A Igreja antiga sabia, e sabia antes mesmo de ser capaz de exprimir e
explicar seu conhecimento sob forma de teorias racionais e coerentes, que no
batismo nós realmente morremos e ressuscitamos com Cristo, porque esse era sua
experiência íntima do mistério batismal. Quanto a nós, devemos hoje retornar a
esse conhecimento sacramental que iluminava toda a vida da Igreja antiga com
uma alegria inefável e que a tornava realmente pascal e realmente batismal, se
quisermos que o batismo reencontre no seio da Igreja o lugar e a função que ele
tinha na origem.
Mas agora, algumas questões, e questões capitais: como podermos nós
morrer a exemplo de Cristo? Como ressuscitaremos nós a exemplo de Sua
Ressurreição? E por que isso, e somente isso, nos permitirá entrar na vida
nova, Nele e com Ele?
A resposta a essas questões nos é dada por essa revelação essencial
referente à própria morte de Cristo – morte voluntária: “Eu dou a minha vida,
para retomá-la de novo. Ninguém a tira de mim, mas eu q eu a dou. Eu tenho o
poder de dá-la e o poder de retomá-la[1]”.
A Igreja nos ensina que em Sua humanidade sem pecado, Cristo não estava
naturalmente sujeito à morte, que ele era inteiramente desembaraçado da mortalidade
humana que é nossa sorte comum e inevitável. Ele não precisava morrer; se Ele
morreu, é simplesmente porque Ele quis morrer, porque Ele escolheu morrer,
porque decidiu morrer. É esse o caráter voluntário dessa morte, a morte do
Imortal, que fez dela uma morte redentora, que fez dela nossa salvação e a
encheu com um poder redentor. Mas antes de responder à questão relativa à
relação entre a morte de Cristo e nossa própria morte batismal, devemos
reencontrar o significado real do desejo de morrer de Cristo.
Eu disse reencontrar porque, por estranho que possa parecer, a grande
heresia de nosso tempo diz respeito justamente à morte. É aí, nessa preocupação
tão evidentemente essencial para a fé e a piedade, que uma metamorfose
paradoxal, embora quase inconsciente, parece ter se produzido, praticamente
ocultando aos nossos olhos a noção e a experiência essencialmente cristãs da
morte. Para falarmos em termos simples, e talvez até simples demais, essa
heresia reside no abandono progressivo pelos próprios cristãos do sentido e do
conteúdo espirituais da morte – da morte enquanto realidade essencialmente
espiritual e não meramente biológica. Para uma maioria absoluta dos cristãos, a
morte significa unicamente a morte física, o fim dessa vida.
Agora, para além desse fim, nós postulamos e afirmamos uma outra vida,
puramente espiritual e sem fim – a vida da alma imortal – sendo assim a morte a
passagem natural de uma à outra. Nessa concepção, que de fato quase não se
diferencia de toda a tradição platônica idealista e espiritualista, o que se
torna cada vez menos compreensível, cada vez menos existencial, e que impregna
cada vez menos a fé, a piedade e a vida, é a afirmação cristã inicial da
destruição da morte por Cristo (que “venceu a morte com a morte”), a alegria
propriamente cristã, tão manifesta na Igreja antiga, diante da abolição da
morte (“A morte foi engolida nessa vitória. Morte, onde está tua vitória?
Morte, onde está teu aguilhão?[2]”),
tão manifesta ainda em nossa tradição litúrgica (“Cristo ressuscitou, e já
ninguém permanece no túmulo”). É como se a Morte e a Ressurreição de Cristo
fossem acontecimentos em si, que devem ser rememorados, celebrados, festejados,
sobretudo na Sexta-Feira Santa e na Páscoa, mas sem nenhuma relação realmente
existencial com nossa própria morte e pós-morte, das quais nos aproximamos e as
quais concebemos de uma perspectiva completamente diferente, a da morte
natural, ou biológica, e a de uma imortalidade igualmente natural, embora
espiritual. A morte concerne ao corpo, a imortalidade concerne à alma. E o
cristão, embora não rejeitando abertamente a fé inicial e se justificando nela,
não sabe de fato o que fazer com a destruição da morte e a ressurreição do
corpo; ele não sabe como ligar essas noções à sua própria experiência vivida e
ao seu universo mental, que combina com frequência (como acontece com os
movimentos pseudo-espirituais de nosso tempo) o positivismo e o espiritualismo,
mas que é quase que totalmente fechado à experiência cósmica e escatológica da
Igreja primitiva.
As razões dessa divergência, dessa heresia tão generalizada embora
quase inconsciente, são muito evidentes. Elas são, para empregarmos um termo
moderno, semânticas, embora num nível profundamente psicológico e espiritual. O
homem moderno, mesmo cristão, para quem a morte é um fenômeno puramente
biológico, não entende a afirmação do Evangelho e respeito da destruição e da
abolição da morte, porque no nível biológico a morte de Cristo em nada mudou a
morte. A morte não foi destruída, nem abolida. Ela permanece sendo a lei
inevitável para os santos e os pecadores, para crentes e descrentes, o mesmo
princípio orgânico da própria existência do mundo. O Evangelho cristão não
parece se aplicar à morte tal como a compreende o homem moderno, de sorte que
esse coloca tranquilamente de lado o Evangelho e retorna à antiga dicotomia que
ele considera bem mais aceitável: mortalidade do corpo, imortalidade da alma.
O que o homem moderno não compreende, aquilo para o que ele se tornou
surdo e cego, é a visão cristã fundamental da morte segundo a qual a morte
biológica ou física não constitui toda a morte, e nem mesmo sua essência
última. Nessa visão cristã, com efeito, a morte é antes de tudo uma realidade
espiritual, que podemos conhecer ainda nessa vida e da qual podemos nos
libertar ao deitarmos no túmulo. A morte, aqui, é o fato de nos separarmos da
vida, o que significa nos separarmos de Deus, que é o único Doador da vida, que
é Ele próprio a vida. A morte é o contrário, não da imortalidade – pois assim
como o homem não criou a si mesmo, ele tampouco
tem o poder de aniquilar a si próprio, de voltar a esse nihil, esse nada do qual ele foi trazido
à existência por Deus, e nesse sentido ele é imortal – mas da verdadeira vida,
“que era a luz dos homens[3]”.
O homem tem o poder de rejeitar essa vida verdadeira, e assim ele morre, de
sorte que sua própria imortalidade se torna morte eterna. E essa vida, ele a
rejeitou. Esse é o pecado original, a catástrofe cósmica inicial que nós
conhecemos, não no plano da história, não racionalmente, mas por meio desse
sentido religioso, dessa misteriosa certeza interior no homem que pecado algum
poderá destruir, e que o empurra sempre e em toda parte a buscar a salvação.
Assim, a morte total não consiste no fenômeno biológico da morte, mas
na realidade espiritual, cujo “aguilhão (...) é o pecado[4]”
– a rejeição pelo homem da única vida verdadeira que lhe foi dada por Deus. “O
pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte[5]”,
e assim não existe outra vida senão a vida em Deus; quem a rejeita morre,
porque a vida sem Deus é morte. É nisso que consiste a morte espiritual, aquela
que preenche toda a vida com o sentimento da morte e que, sendo uma separação
em relação a Deus, transforma a vida do homem em solidão e sofrimento, temor e
ilusão, servidão ao pecado e também ódio, falta de sentido, avidez e vazio. É
essa morte que faz com que o homem morto fisicamente seja verdadeiramente
morto, como consequência de uma vida carregada de morte, horror ao sheol bíblico ou mesmo à sobrevida, a
própria imortalidade não sendo senão a “presença da ausência”, a separação
total, a solidão total, as trevas totais. E enquanto não reencontrarmos essa
visão e esse sentido cristão da morte, da morte enquanto lei e portadora
horrível de nossa “vida morta” (e não apenas de nossa morte), da morte que
“reina[6]”
sobre esse mundo, não seremos capazes de compreender o significado da Morte de
Cristo por nós e pelo mundo. Pois foi para destruir e suprimir essa morte
espiritual que Cristo veio: para nos salvar dessa morte espiritual.
Somente então, tendo compreendido isso, poderemos compreender o
significado crucial da morte voluntária de Cristo, de seu desejo de morrer. O
homem morre porque quis a vida por si mesma e em si mesma, vale dizer, porque
ele amou a si mesmo e à sua vida mais do que amou a Deus. Essa vontade é o
próprio objeto de seu pecado e assim a razão profunda de sua morte espiritual,
seu aguilhão. A vida de Cristo, ao contrário, é feita inteira, total e
exclusivamente de seu desejo de salvar o homem, de libertá-lo dessa morte em
que ele transformou sua vida, de lhe dar essa vida que ele perdeu por causa do
pecado. Sua vontade de salvar é o próprio movimento, a própria força desse amor
perfeito por Deus e pelo homem, da total obediência à vontade de Deus, cuja rejeição
arrastou o homem ao pecado e à morte. Também Sua vida foi realmente isenta de
morte. Não havia morte nela, porque ela estava inteiramente preenchida pelo
único desejo por Deus, porque ela estava inteiramente em Deus e no amor a Deus.
E como Seu desejo de morrer não era outra coisa do que a expressão e a
realização últimas desse amor e dessa obediência – como Sua morte não era outra
coisa senão o amor, senão a vontade de destruir a solidão, a separação para com
a vida, as trevas e o desespero da morte, não era senão o amor por aqueles que
estavam mortos – não existiu “morte” na morte de Cristo, pois Sua morte, sendo
a manifestação última do amor enquanto vida e de vida enquanto amor, retirou da
morte o aguilhão do pecado, e destruiu verdadeiramente a morte enquanto poder
de Satanás e do pecado sobre o mundo.
Cristo não suprimiu, não destruiu a morte física, porque ele não
suprimiu esse mundo do qual a morte não física não apenas é parte, como é o
próprio princípio da vida e do crescimento. Mas Ele fez infinitamente mais. Ao
retirar da morte o aguilhão do pecado, ao abolir a morte enquanto realidade
espiritual, enchendo-a Consigo próprio, com Seu amor e Sua vida, Ele fez da
morte – que era de fato a separação da vida e a perversão da vida – uma alegre e
resplandecente passagem – a Páscoa – para uma vida mais plena, uma comunhão
mais total, um amor mais absoluto. “Para mim, diz São Paulo, viver é Cristo, e
morrer é um ganho[7]”.
Ele não fala da imortalidade de sua alma, mas do sentido novo, totalmente novo
da morte – da morte no sentido de estar com Cristo, da morte no sentido em que
ela se torna, no nosso mundo mortal, a manifestação da vitória de Cristo. Para
os que creem em Cristo e vivem Nele, já não existe morte, “a morte foi engolida
pela vitória”, e cada túmulo contém já não a morte, mas a vida.
Voltemos agora ao batismo e à questão que colocamos a respeito de sua
assimilação à Morte e à Ressurreição de Cristo, e a respeito do significado
real dessa assimilação. Pois somente agora podemos compreender que essa
assimilação – antes de ser realizada pelo rito – está em nós, em nossa fé em
Cristo, em nosso amor por Ele e, por conseguinte, em nosso desejo daquilo que
Ele desejou. Crer em Cristo significa, e sempre significou, não apenas
confessá-Lo, não apenas receber Dele, mas antes de tudo em se dar a Ele. Esse é
o sentido de Seu mandamento, segundo o qual devemos segui-Lo. E não existe
outra maneira de crer Nele do que aceitar Sua fé como sendo nossa fé, Seu amor
como nosso amor, Seu desejo como nosso desejo. Pois não existe Cristo fora
dessa fé, desse amor, desse desejo; é somente partilhando com Ele que podemos
conhecê-Lo, a Ele que é essa fé e essa obediência, esse amor e esse desejo.
Crer Nele e não crer naquilo em que ele crê, não amar o que Ele ama e não
desejar o que Ele deseja, não é crer Nele. Separá-Lo do conteúdo de Sua vida,
esperar Dele milagres e auxílio, sem fazer o que Ele fez, e por fim chamá-Lo
“Senhor” e adorá-Lo sem fazer a vontade de Seu Pai, não é crer Nele. Nós somos
salvos, não porque cremos em Seu poder “sobrenatural” – não é essa a fé que ele
quer – mas porque aceitamos de todo o nosso ser e tornamos nosso o desejo que
encheu Sua vida, que é Sua vida e que, afinal de contas, O levou a descer até a
morte e a suprimi-la.
O desejo de cumprir, de realizar a fé de tal maneira que isso possa
ser realmente qualificado e sentido como morte e ressurreição é, assim, o
primeiríssimo fruto, o primeiro efeito da própria fé, da assimilação à fé de
Cristo: com efeito, é impossível conhecer a Cristo sem desejar ser
completamente liberto desse mundo que Cristo revelou estar a serviço do pecado
e da morte, e para o qual Ele próprio, mesmo vivo, estava realmente morto,
morto para sua suficiência, para “a concupiscência da carne, a concupiscência
dos olhos e a confiança orgulhosa nos bens[8]”,
que enchem e determinam esse mundo, e à morte espiritual que nele reina. É
impossível conhecer a Cristo sem desejar estar com Ele onde Ele está. E Ele não
está nesse mundo que passa. Ele não pertence a esse mundo. Ele subiu ao céu –
não para algum outro mundo, porque o céu, na fé cristã, não fica em “algum
lugar”, mas está na própria realidade da vida em Deus, da vida totalmente
libertada do estado que conduz à morte, desse estado de separação de Deus que é
o pecado desse mundo e que o condena à morte. Estar com Cristo é possuir essa
nova vida – com Deus e em Deus – que não é desse mundo; e isso seria
impossível, a menos (como diz São Paulo em termos tão simples e no entanto tão
incompreensíveis para o cristão moderno) “que estejamos mortos e que nossa vida
esteja oculta com Cristo em Deus[9]”.
Enfim, é impossível conhecer a Cristo sem desejar beber do cálice que Ele
bebeu, e ser batizado no Seu batismo[10],
sem desejar, em outros termos, esse último encontro e esse último combate com o
pecado e a morte que O fez dar Sua vida pela salvação do mundo.
Assim, a própria fé não apenas nos empurra a querer morrer com Cristo,
mas ela é em si esse próprio desejo. E, sem esse desejo, a fé não passa de uma
simples ideologia, tão sujeita à caução e tão aleatória como qualquer outra. É
a fé que chama o batismo; é a fé que sabe que o batismo é realmente a morte e a
ressurreição com Cristo.
[1]
João 10: 17-18.
[2] I Coríntios
15: 54-55.
[3]
João 1: 4.
[4] I
Coríntios 15: 56.
[5]
Romanos 5: 12.
[6]
Cf. Romanos 5: 14.
[7]
Filipenses 1: 21.
[8] I
João 2: 16.
[9]
Colossenses 3: 3.
[10]
Cf. Mateis 20: 22.
Nenhum comentário:
Postar um comentário