terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Alexandre Schmemann - Assimilados à Morte e à Ressurreição de Cristo





A Igreja antiga sabia, e sabia antes mesmo de ser capaz de exprimir e explicar seu conhecimento sob forma de teorias racionais e coerentes, que no batismo nós realmente morremos e ressuscitamos com Cristo, porque esse era sua experiência íntima do mistério batismal. Quanto a nós, devemos hoje retornar a esse conhecimento sacramental que iluminava toda a vida da Igreja antiga com uma alegria inefável e que a tornava realmente pascal e realmente batismal, se quisermos que o batismo reencontre no seio da Igreja o lugar e a função que ele tinha na origem.

Mas agora, algumas questões, e questões capitais: como podermos nós morrer a exemplo de Cristo? Como ressuscitaremos nós a exemplo de Sua Ressurreição? E por que isso, e somente isso, nos permitirá entrar na vida nova, Nele e com Ele?

A resposta a essas questões nos é dada por essa revelação essencial referente à própria morte de Cristo – morte voluntária: “Eu dou a minha vida, para retomá-la de novo. Ninguém a tira de mim, mas eu q eu a dou. Eu tenho o poder de dá-la e o poder de retomá-la[1]”. A Igreja nos ensina que em Sua humanidade sem pecado, Cristo não estava naturalmente sujeito à morte, que ele era inteiramente desembaraçado da mortalidade humana que é nossa sorte comum e inevitável. Ele não precisava morrer; se Ele morreu, é simplesmente porque Ele quis morrer, porque Ele escolheu morrer, porque decidiu morrer. É esse o caráter voluntário dessa morte, a morte do Imortal, que fez dela uma morte redentora, que fez dela nossa salvação e a encheu com um poder redentor. Mas antes de responder à questão relativa à relação entre a morte de Cristo e nossa própria morte batismal, devemos reencontrar o significado real do desejo de morrer de Cristo.

Eu disse reencontrar porque, por estranho que possa parecer, a grande heresia de nosso tempo diz respeito justamente à morte. É aí, nessa preocupação tão evidentemente essencial para a fé e a piedade, que uma metamorfose paradoxal, embora quase inconsciente, parece ter se produzido, praticamente ocultando aos nossos olhos a noção e a experiência essencialmente cristãs da morte. Para falarmos em termos simples, e talvez até simples demais, essa heresia reside no abandono progressivo pelos próprios cristãos do sentido e do conteúdo espirituais da morte – da morte enquanto realidade essencialmente espiritual e não meramente biológica. Para uma maioria absoluta dos cristãos, a morte significa unicamente a morte física, o fim dessa vida.

Agora, para além desse fim, nós postulamos e afirmamos uma outra vida, puramente espiritual e sem fim – a vida da alma imortal – sendo assim a morte a passagem natural de uma à outra. Nessa concepção, que de fato quase não se diferencia de toda a tradição platônica idealista e espiritualista, o que se torna cada vez menos compreensível, cada vez menos existencial, e que impregna cada vez menos a fé, a piedade e a vida, é a afirmação cristã inicial da destruição da morte por Cristo (que “venceu a morte com a morte”), a alegria propriamente cristã, tão manifesta na Igreja antiga, diante da abolição da morte (“A morte foi engolida nessa vitória. Morte, onde está tua vitória? Morte, onde está teu aguilhão?[2]”), tão manifesta ainda em nossa tradição litúrgica (“Cristo ressuscitou, e já ninguém permanece no túmulo”). É como se a Morte e a Ressurreição de Cristo fossem acontecimentos em si, que devem ser rememorados, celebrados, festejados, sobretudo na Sexta-Feira Santa e na Páscoa, mas sem nenhuma relação realmente existencial com nossa própria morte e pós-morte, das quais nos aproximamos e as quais concebemos de uma perspectiva completamente diferente, a da morte natural, ou biológica, e a de uma imortalidade igualmente natural, embora espiritual. A morte concerne ao corpo, a imortalidade concerne à alma. E o cristão, embora não rejeitando abertamente a fé inicial e se justificando nela, não sabe de fato o que fazer com a destruição da morte e a ressurreição do corpo; ele não sabe como ligar essas noções à sua própria experiência vivida e ao seu universo mental, que combina com frequência (como acontece com os movimentos pseudo-espirituais de nosso tempo) o positivismo e o espiritualismo, mas que é quase que totalmente fechado à experiência cósmica e escatológica da Igreja primitiva.

As razões dessa divergência, dessa heresia tão generalizada embora quase inconsciente, são muito evidentes. Elas são, para empregarmos um termo moderno, semânticas, embora num nível profundamente psicológico e espiritual. O homem moderno, mesmo cristão, para quem a morte é um fenômeno puramente biológico, não entende a afirmação do Evangelho e respeito da destruição e da abolição da morte, porque no nível biológico a morte de Cristo em nada mudou a morte. A morte não foi destruída, nem abolida. Ela permanece sendo a lei inevitável para os santos e os pecadores, para crentes e descrentes, o mesmo princípio orgânico da própria existência do mundo. O Evangelho cristão não parece se aplicar à morte tal como a compreende o homem moderno, de sorte que esse coloca tranquilamente de lado o Evangelho e retorna à antiga dicotomia que ele considera bem mais aceitável: mortalidade do corpo, imortalidade da alma.

O que o homem moderno não compreende, aquilo para o que ele se tornou surdo e cego, é a visão cristã fundamental da morte segundo a qual a morte biológica ou física não constitui toda a morte, e nem mesmo sua essência última. Nessa visão cristã, com efeito, a morte é antes de tudo uma realidade espiritual, que podemos conhecer ainda nessa vida e da qual podemos nos libertar ao deitarmos no túmulo. A morte, aqui, é o fato de nos separarmos da vida, o que significa nos separarmos de Deus, que é o único Doador da vida, que é Ele próprio a vida. A morte é o contrário, não da imortalidade – pois assim como o homem não criou a si mesmo, ele tampouco  tem o poder de aniquilar a si próprio, de voltar a esse nihil, esse nada do qual ele foi trazido à existência por Deus, e nesse sentido ele é imortal – mas da verdadeira vida, “que era a luz dos homens[3]”. O homem tem o poder de rejeitar essa vida verdadeira, e assim ele morre, de sorte que sua própria imortalidade se torna morte eterna. E essa vida, ele a rejeitou. Esse é o pecado original, a catástrofe cósmica inicial que nós conhecemos, não no plano da história, não racionalmente, mas por meio desse sentido religioso, dessa misteriosa certeza interior no homem que pecado algum poderá destruir, e que o empurra sempre e em toda parte a buscar a salvação.

Assim, a morte total não consiste no fenômeno biológico da morte, mas na realidade espiritual, cujo “aguilhão (...) é o pecado[4]” – a rejeição pelo homem da única vida verdadeira que lhe foi dada por Deus. “O pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte[5]”, e assim não existe outra vida senão a vida em Deus; quem a rejeita morre, porque a vida sem Deus é morte. É nisso que consiste a morte espiritual, aquela que preenche toda a vida com o sentimento da morte e que, sendo uma separação em relação a Deus, transforma a vida do homem em solidão e sofrimento, temor e ilusão, servidão ao pecado e também ódio, falta de sentido, avidez e vazio. É essa morte que faz com que o homem morto fisicamente seja verdadeiramente morto, como consequência de uma vida carregada de morte, horror ao sheol bíblico ou mesmo à sobrevida, a própria imortalidade não sendo senão a “presença da ausência”, a separação total, a solidão total, as trevas totais. E enquanto não reencontrarmos essa visão e esse sentido cristão da morte, da morte enquanto lei e portadora horrível de nossa “vida morta” (e não apenas de nossa morte), da morte que “reina[6]” sobre esse mundo, não seremos capazes de compreender o significado da Morte de Cristo por nós e pelo mundo. Pois foi para destruir e suprimir essa morte espiritual que Cristo veio: para nos salvar dessa morte espiritual.

Somente então, tendo compreendido isso, poderemos compreender o significado crucial da morte voluntária de Cristo, de seu desejo de morrer. O homem morre porque quis a vida por si mesma e em si mesma, vale dizer, porque ele amou a si mesmo e à sua vida mais do que amou a Deus. Essa vontade é o próprio objeto de seu pecado e assim a razão profunda de sua morte espiritual, seu aguilhão. A vida de Cristo, ao contrário, é feita inteira, total e exclusivamente de seu desejo de salvar o homem, de libertá-lo dessa morte em que ele transformou sua vida, de lhe dar essa vida que ele perdeu por causa do pecado. Sua vontade de salvar é o próprio movimento, a própria força desse amor perfeito por Deus e pelo homem, da total obediência à vontade de Deus, cuja rejeição arrastou o homem ao pecado e à morte. Também Sua vida foi realmente isenta de morte. Não havia morte nela, porque ela estava inteiramente preenchida pelo único desejo por Deus, porque ela estava inteiramente em Deus e no amor a Deus. E como Seu desejo de morrer não era outra coisa do que a expressão e a realização últimas desse amor e dessa obediência – como Sua morte não era outra coisa senão o amor, senão a vontade de destruir a solidão, a separação para com a vida, as trevas e o desespero da morte, não era senão o amor por aqueles que estavam mortos – não existiu “morte” na morte de Cristo, pois Sua morte, sendo a manifestação última do amor enquanto vida e de vida enquanto amor, retirou da morte o aguilhão do pecado, e destruiu verdadeiramente a morte enquanto poder de Satanás e do pecado sobre o mundo.

Cristo não suprimiu, não destruiu a morte física, porque ele não suprimiu esse mundo do qual a morte não física não apenas é parte, como é o próprio princípio da vida e do crescimento. Mas Ele fez infinitamente mais. Ao retirar da morte o aguilhão do pecado, ao abolir a morte enquanto realidade espiritual, enchendo-a Consigo próprio, com Seu amor e Sua vida, Ele fez da morte – que era de fato a separação da vida e a perversão da vida – uma alegre e resplandecente passagem – a Páscoa – para uma vida mais plena, uma comunhão mais total, um amor mais absoluto. “Para mim, diz São Paulo, viver é Cristo, e morrer é um ganho[7]”. Ele não fala da imortalidade de sua alma, mas do sentido novo, totalmente novo da morte – da morte no sentido de estar com Cristo, da morte no sentido em que ela se torna, no nosso mundo mortal, a manifestação da vitória de Cristo. Para os que creem em Cristo e vivem Nele, já não existe morte, “a morte foi engolida pela vitória”, e cada túmulo contém já não a morte, mas a vida.

Voltemos agora ao batismo e à questão que colocamos a respeito de sua assimilação à Morte e à Ressurreição de Cristo, e a respeito do significado real dessa assimilação. Pois somente agora podemos compreender que essa assimilação – antes de ser realizada pelo rito – está em nós, em nossa fé em Cristo, em nosso amor por Ele e, por conseguinte, em nosso desejo daquilo que Ele desejou. Crer em Cristo significa, e sempre significou, não apenas confessá-Lo, não apenas receber Dele, mas antes de tudo em se dar a Ele. Esse é o sentido de Seu mandamento, segundo o qual devemos segui-Lo. E não existe outra maneira de crer Nele do que aceitar Sua fé como sendo nossa fé, Seu amor como nosso amor, Seu desejo como nosso desejo. Pois não existe Cristo fora dessa fé, desse amor, desse desejo; é somente partilhando com Ele que podemos conhecê-Lo, a Ele que é essa fé e essa obediência, esse amor e esse desejo. Crer Nele e não crer naquilo em que ele crê, não amar o que Ele ama e não desejar o que Ele deseja, não é crer Nele. Separá-Lo do conteúdo de Sua vida, esperar Dele milagres e auxílio, sem fazer o que Ele fez, e por fim chamá-Lo “Senhor” e adorá-Lo sem fazer a vontade de Seu Pai, não é crer Nele. Nós somos salvos, não porque cremos em Seu poder “sobrenatural” – não é essa a fé que ele quer – mas porque aceitamos de todo o nosso ser e tornamos nosso o desejo que encheu Sua vida, que é Sua vida e que, afinal de contas, O levou a descer até a morte e a suprimi-la.

O desejo de cumprir, de realizar a fé de tal maneira que isso possa ser realmente qualificado e sentido como morte e ressurreição é, assim, o primeiríssimo fruto, o primeiro efeito da própria fé, da assimilação à fé de Cristo: com efeito, é impossível conhecer a Cristo sem desejar ser completamente liberto desse mundo que Cristo revelou estar a serviço do pecado e da morte, e para o qual Ele próprio, mesmo vivo, estava realmente morto, morto para sua suficiência, para “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a confiança orgulhosa nos bens[8]”, que enchem e determinam esse mundo, e à morte espiritual que nele reina. É impossível conhecer a Cristo sem desejar estar com Ele onde Ele está. E Ele não está nesse mundo que passa. Ele não pertence a esse mundo. Ele subiu ao céu – não para algum outro mundo, porque o céu, na fé cristã, não fica em “algum lugar”, mas está na própria realidade da vida em Deus, da vida totalmente libertada do estado que conduz à morte, desse estado de separação de Deus que é o pecado desse mundo e que o condena à morte. Estar com Cristo é possuir essa nova vida – com Deus e em Deus – que não é desse mundo; e isso seria impossível, a menos (como diz São Paulo em termos tão simples e no entanto tão incompreensíveis para o cristão moderno) “que estejamos mortos e que nossa vida esteja oculta com Cristo em Deus[9]”. Enfim, é impossível conhecer a Cristo sem desejar beber do cálice que Ele bebeu, e ser batizado no Seu batismo[10], sem desejar, em outros termos, esse último encontro e esse último combate com o pecado e a morte que O fez dar Sua vida pela salvação do mundo.

Assim, a própria fé não apenas nos empurra a querer morrer com Cristo, mas ela é em si esse próprio desejo. E, sem esse desejo, a fé não passa de uma simples ideologia, tão sujeita à caução e tão aleatória como qualquer outra. É a fé que chama o batismo; é a fé que sabe que o batismo é realmente a morte e a ressurreição com Cristo.


[1] João 10: 17-18.
[2] I Coríntios 15: 54-55.
[3] João 1: 4.
[4] I Coríntios 15: 56.
[5] Romanos 5: 12.
[6] Cf. Romanos 5: 14.
[7] Filipenses 1: 21.
[8] I João 2: 16.
[9] Colossenses 3: 3.
[10] Cf. Mateis 20: 22.



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