Numa homilia sobre os Atos dos Apóstolos, São João Crisóstomo fala da
casa cristã: “Mesmo à noite (...) levante-se, coloque-se de joelhos e ore (...)
é preciso que sua casa seja continuamente um oratório, uma igreja”. A palavra “continuamente”
tem um valor diretivo, ela convida às vigílias do espírito: a pequena igreja
doméstica deve de colocar dia e noite diante da face de Deus.
A tradição oriental cria um parentesco assim, em sua natureza profunda,
entre a comunidade da Igreja e a comunidade conjugal. Ela as vê sob a forma
ainda indiferenciada do “princípio”: no Paraíso terrestre, o mistério da Igreja
e a comunhão do primeiro casal humano não formam senão uma só e mesma realidade.
A primeira célula conjugal coincide com a pré-Igreja e manifesta a essência
comunitária da relação entre Deus e o homem. O texto bíblico diz: “Deus (...)
vinha ao jardim na brisa do dia[1]”
para conversar com o homem e a mulher. Esse evento prefigura tudo o que São irá
dizer ao falar do “grande Mistério”, o mistério nupcial divino-humano,
fundamento comum da Igreja e do casamento.
Enquanto que a história do Antigo Testamento se abre sobre o amor conjugal,
a história do Novo testamento começa pelo relato das bodas de Caná[2].
Tal coincidência não pode ser fortuita. De resto, cada vez que a Bíblia fala da
natureza das relações entre Deus e a humanidade, ela o faz em termos
matrimoniais. A aliança é de natureza claramente nupcial: o povo de Deus,
depois a Igreja, são adornados com os nomes de Noiva do Senhor[3],
de Esposa do Cordeiro[4],
e o Reino de Deus celebra sua Núpcias eternas[5].
Assim a teologia do casamento se origina na eclesiologia: ambas são
aparentadas, a ponto de que uma se expressa por meio dos símbolos da outra.
Um mesmo mistério
Quando os noivos confessam seu amor diante do Eterno e pronunciam o “sim”
conjugal, o oficio nupcial na Ortodoxia se torna bem mais do que uma simples
bênção, de que uma troca de consentimentos recíprocos que remonta à época da criação.
Estamos aqui na ordem da recriação evangélica, de sua plena realização que
transcende a história e repercute no eterno. Pelo poder sacramental do
sacerdote, a Igreja une os dois destinos e eleva essa união ao valor de um
sacramento. Ela concede ao ser conjugal assim constituído uma graça particular,
em vista de um officium, de um ministério
eclesial. É a criação de uma célula da Igreja a serviço de toda a Igreja, sob a
forma do sacerdócio conjugal.
Em sua teologia do casamento, São Paulo utiliza um método análogo ao
que ele empregou em Atenas[6].
Contemplando o monumento dedicado ao “deus desconhecido”, ele decifra seu anonimato:
o deus absconditus, o deus oculto e misterioso,
é agora o Deus revelatus, cujo nome é
Jesus Cristo. Da mesma forma, na epístola aos Efésios[7],
São Paulo cita o texto do Gênesis: “Os dois serão uma só carne”, um só ser. Ele
toma esse mistério, até então enigmático em sua origem, e o traz à luz,
dizendo: “Esse mistério é grande, vale dizer, ele se aplica a Cristo e à Igreja[8]”.
O mistério conjugal, antes oculto, agora se esclarece e se especifica: ele se
erige em imagem substancial de sua fonte, em ícone das relações misteriosas
entre Cristo e a Igreja, e é por isso que “os dois se tornam um só ser”.
São João Crisóstomo chama o casamento de “sacramento do amor”, e justifica
sua natureza sacramental ao declarar que “o amor muda a própria substância das
coisas”. O amor natural, tornado carismático no momento do sacramento, faz o milagre,
opera a metamorfose. Ele subtrai o casal do habitual, do costumeiro, da ordem
dos elementos desse mundo, do plano animal, e o introduz no inabitual, na ordem
da graça, no mysterion oferecido pelo
sacramento. “Duas almas assim unidas não têm nada a temer. Com a concórdia, a
paz e o amor mútuo, o homem e a mulher entram na posse de todos os bens. Eles podem
viver em paz guardados por um muro inexpugnável que os protege e que é o amor
segundo Deus. Graças ao amor, eles são mais formes do que o diamante e mais
duros do que o ferro, eles navegam na plenitude, eles singram em direção à
glória eterna e atraem doravante e para sempre a graça de Deus”. É por isso,
continua João Crisóstomo, que “quando o marido e a esposa se unem pelo
casamento, eles já não parecem algo de terrestre, mas como a própria imagem de
Deus”. Mas ele especifica que, se o ser conjugal é um ícone vivo de Deus, é
porque ele é antes de tudo um “ícone misterioso da Igreja”, uma célula orgânica
da Igreja. Ora, toda célula orgânica reflete sempre o todo; a plenitude do
Corpo reside nela e aí palpita.
Conhecemos o adágio dos Padres: “onde está Cristo, aí está a Igreja”. Essa
firmação fundamental decorre da palavra do Senhor: “Onde dois ou três estiverem
reunidos em Meu Nome, aí estarei Eu entre eles[9]”.
Semelhante “reunião”, com efeito, é de natureza eclesial, porque está integrada
a Cristo e posta em sua presença. Clemente de Alexandria, pioneiro da teologia
patrística do casal, coloca o casamento em relação direta com as palavras
citadas, e diz: “Quem são os dois reunidos em nome de Cristo, e no meio dos
quais se coloca o Senhor? Não são o homem e a mulher unidos por Deus?”. Essa
descoberta suscita a admiração profunda de Clemente, e o faz proclamar: “Aquele
que se dedica a viver no casamento (...) esse ultrapassa a todos os homens”. O casamento
transcende o humano, pois, como o mistério da Igreja, ele constitui, segundo
Clemente, uma microbasileia, um “pequeno
reino”, a imagem profética do Reino de Deus, a antecipação prefigurativa do
século futuro.
Assim a eclesiologia conjugal da “pequena igreja” se refere à grande
Eclesiologia. O sacramento do matrimônio, “imagem misteriosa da Igreja”, mostra
como os mesmos princípios que estruturam a existência da Igreja, estruturam a
existência conjugal. Esses princípios fundamentais são em número de três: o dogma
trinitário, o dogma cristológico e também o Pentecostes conjugal, ou seja,
segundo a expressão de Clemente de Alexandria, a efusão do Espírito Santo e de
seus carismas na Câmara alta da “pequena morada do Senhor”.
O fundamento trinitário
Um Deus em uma só Pessoa não seria o Amor; da mesma forma o homem, se
for um ser isolado ou totalmente solitário, não será “à sua imagem”. É por isso
que, desde o princípio, Deus declarou: “Não é bom que o homem esteja só[10]”.
E Deus criou o casal, ser comunitário, que também pode ser chamado de eclesial.
É sob esse ângulo que São Gregório de Nazianze descreve o mistério da
Trindade. Claro, essa “descrição” não implica absolutamente uma evolução, uma “teogonia”
em Deus, mas propõe a visão daquilo que desde sempre é um ato único e
indivisível: “O Ser único se coloca em movimento e estabelece o Outro; sua
dualidade expressa a multiplicidade, não mais a unidade. É por isso que a
dualidade é superada, e o movimento se detém na Trindade, que é a plenitude”.
Cada uma das três Pessoas contém as outras duas, e assim se constitui a eterna
circulação do Amor intra-divino, seu Pleroma trino e ao mesmo tempo único. O dogma
salvaguarda a antinomia transcendente do mistério; Deus é identicamente “uno e
trino”. A Tríade divina está além do número. A perfeita igualdade dos Três
remonta ao Pai, que é a fonte, não no tempo, mas no ser; é Nele que se realiza
o Um divino.
Mas sem um terceiro termo, Deus e o homem permaneceriam também
eternamente cortados e separados um do outro. A pessoa do Verbo encarnado é
esse terceiro termo para o qual convergem e no qual se unem a natureza divina e
a natureza humana. É por isso que a encarnação do Verbo é central e
indispensável para a comunhão entre Deus e o homem. “O Cordeiro imolado”
precede a criação do mundo[11].
Podemos compreender agora a insistência do pensamento patrístico sobre
a universalidade do princípio trinitário enquanto fundamento de toda existência
e de todo ser. O homem vacila entre o nada e o absoluto de Deus sem poder
encontrar outra saída. Kierkgaard disse com razão: “Deus é o terceiro termo de
tudo com que o homem se ocupa”. Toda comunhão que transcende o indivíduo é
sempre a unidade num terceiro. Tudo o que existe realmente é a imagem ou o
vestígio da Trindade, e o grau de sua realidade é função de sua participação a
esse mistério.
Assim é que a contemplação dos Padres descobriu em Deus a Ecclesia celeste das três Pessoas
divinas. Essa visão constitui a “imagem condutora”, o modelo ideal da Igreja
terrestre dos homens. Ela postula a comunhão, a unidade de todos recapitulada
em Jesus Cristo. Feita à imagem do Deus uno e trino, a Igreja é “uma e múltipla”.
A unidade do Pai, do Filho e do Espírito é glorificada na própria estrutura da Igreja;
seu mistério essencial consiste em ser uma e todos a um só tempo.
Toda associação humana, toda forma sociológica, toda amizade, todo
amor, não passam de substratos naturais insuficientes em si mesmos: tudo isso
precisa ser vivificado pelo princípio de integração sobrenatural, pelo terceiro
termo da presença divina. Essa necessidade provém das profundezas mesmas do
homem. Com efeito, ele foi criado como casal, sua estrutura conjugal é eclesial.
O homem e a mulher são os elementos constitutivos e complementares de um só ser
conjugal, eles são “um para o outro”, e, como disse São Cirilo de Alexandria, “Deus
criou o con-ser”. E São João Crisóstomo, por sua vez, sublinha que eles não são
apenas reunidos, mas um. É por isso que
o ser conjugal é a mais adequada e perfeita imagem de Deus.
A iconografia oferece uma ilustração impressionante dessa verdade. O fundo
das bodas nupciais de antigamente representava a Cristo segurando as duas
coroas acima dos esposos, revelando assim seu centro divino de integração e
fazendo da comunidade conjugal uma imagem da Trindade. São Teófilo de Antioquia
faz eco a esses símbolos, ao declarar: “Deus criou Adão e Eva para o maior amor
entre eles, refletindo o mistério da unidade divina”. O primeiro dos dogmas
cristãos estrutura assim o ser conjugal, numa pequena tríade, ícone do mistério
trinitário.
O fundamento cristológico
O dogma cristológico formulado pelo Concílio de Calcedônia especifica
o alcance da Encarnação em relação à salvação do homem: as duas naturezas,
divina e humana, são unidas na Pessoa do Verbo sem confusão nem separação. Elas
entram numa espécie de co-penetração e, como o ferro colocado no fogo, a
natureza humana aí se vê deificada. A partir daí, é para a unidade
correspondente do humano e do divino que se dirige toda a economia da salvação:
a graça divina se une à natureza humana, e a Igreja é antes de tudo o lugar
onde se opera essa comunhão.
No nível da apropriação por cada indivíduo desse fruto universal da
salvação, a imagem mais frequente é de caráter nupcial: trata-se das “núpcias
místicas” do Cordeiro com a Igreja, do Cordeiro com cada alma humana. Outra imagem
provém da noção de “corpo”, noção paulina e de origem claramente eucarística. Os
membros se integram num só organismo, o Corpo de Cristo no qual corre a vida
divina, fazendo de todos “um só Cristo”, segundo as palavras de São Simeão. A unidades
dos irmãos de que falam os Atos[12]
se realiza antes de tudo na Eucaristia, pois essa se apresenta como uma
autêntica e plena manifestação de Cristo. Orígenes a explica, dizendo: “Cristo
não vive senão nomeio daqueles que estão unidos”. Assim, a concepção
eucarística da Igreja é expressamente formulada: pela participação no “único
Santo”, o Senhor Jesus, seu Corpo é estruturado em communio sanctorum.
A Grande Igreja e a pequena igreja
Os textos do Direito canônico ortodoxo definem precisamente a comunhão
conjugal como uma forma particular da “Comunhão dos Santos”. Assim, a fórmula
clássica de Theodore Balsamon: “Duas pessoas unidas num só ser”, não é senão
uma imagem concreta da Igreja, “pluralidade de pessoas unidas num só corpo”. Pois
não foi por acaso que São Paulo colocou seu ensinamento sobre o matrimônio no
contexto de sua epístola sobre a Igreja. Em Efésios, ele escreve: “O Corpo
recebe sua coesão e se constrói por meio de ligações e de juntas de toda
espécie, segundo a função de cada parte[13]”.
O milagre da Igreja, sua unidade enraizada em Cristo, resulta das diversas
formas dessas ligações, ora, ao lado das comunidades paroquial e monástica se
coloca um outro tipo de sociedade: a comunidade conjugal, pequena igreja
doméstica, célula orgânica da grande.
É preciso acentuar fortemente essa afirmação central. Com efeito, se o
ser conjugal em sua relação com Deus é “à imagem e semelhança” da Trindade, ao
contrário sua relação com a Igreja é de natureza diferente. Sobre esse plano,
existe mais do que uma analogia, do que uma similaridade. Não se trata apenas
de ser semelhante à Igreja em sua realidade de graça, a comunidade dos esposos
é parte orgânica da comunidade eclesial, ela é Igreja. O simbolismo das
Escrituras implica uma correspondência íntima entre os diversos planos, que os
mostra como as expressões diferentes da única realidade. Assim, Clemente de
Alexandria chama a comunidade conjugal de “morada do Senhor”, nome clássico da
Igreja, e aplica a ela as palavras do Mestre: “Eu estou no meio deles”; e São
João Crisóstomo fala da “pequena igreja”, da “igreja doméstica”, ecclesia micra, ecclesia domestica.
Essa concepção remonta ao estado paradisíaco, e mesmo além. Já Hermas
e Clemente de Roma ensinavam que o mundo foi criado com vistas à Igreja, e que
a Igreja preexiste à criação do homem, de forma que “Adão foi criado à imagem
de Cristo, e Eva à imagem da Igreja”. “Deus criou o homem, criou-o homem e
mulher; o homem representa Cristo, a mulher representa a Igreja”. É por isso
que o amor pré-eterno de Cristo e da Igreja é o arquétipo do matrimônio e
preexiste ao casal humano. Compreendemos melhor agora a afirmação fundamental
de São Paulo em Efésios[14],
e a referência de todo casamento àquilo que ele chama de “grande mistério”. A
precisão em primeiro lugar admirável do ritual ortodoxo se explica por meio
dessa referência: “Nem o pecado original, nem o dilúvio, em nada deterioraram a
santidade da união conjugal”. A sabedoria rabínica considerava também o amor
conjugal como sendo o único canal da graça, mesmo entre os pagãos. E, segundo a
doutrina ortodoxa, Cristo não instituiu o sacramento do matrimônio, mas sua
presença nas bodas de Caná confirmou a instituição como paradisíaca.
As bodas de Caná
Precisamente, em seu comentário sobre o relato de Caná, São João
Crisóstomo ressalta o estreito parentesco entre os símbolos que falam a um
tempo da Igreja e do matrimônio. A matéria do milagre realizado – a água e o
vinho – se referem ao Batismo e à Eucaristia e nos reenviam ao nascimento da
Igreja sobre a Cruz: “Do lado ferido, saiu sangue e água[15]”,
e nisso consiste a essência eucarística da Igreja. Ora, encontramos a mesma
imagem no sacramento do matrimônio, colocada em relevo pelo rito caldeu: “O
esposo é semelhante à árvore da vida na Igreja. A esposa é semelhante a um
cálice de ouro transbordando de leite e aspergido com gotas de sangue. Que a
Santa Trindade resida para sempre em sua morada nupcial”. Assim, um laço
sagrado une o milagre de Caná, a Cruz e o Cálice eucarístico, e os faz convergir
para o cálice comum do qual bebem os esposos no decurso da cerimônia
sacramental. Quanto mais os esposos se unem em Cristo, mais seu cálice comum,
medida de sua vida e de seu próprio ser, se enche de vinho de Caná, se torna
milagre eucarístico, significa sua transmutação da “nova criação”,
reminiscência do Paraíso e prefiguração do Reino.
Para São João Crisóstomo, com efeito, a mudança milagrosa da água em
vinho oferece a “imagem condutora” do amor conjugal: a água das paixões
naturais se transforma em vinho nobre de amor novo, carismático e casto. A castidade
conjugal transcende o elemento fisiológico e se aparenta às estruturas do
espírito. Em sua genial dialética sobre a circuncisão, São Paulo substitui a
noção fisiológica da “carne circuncisa”, pela noção espiritual,
meta-fisiológica, do coração circunciso[16].
É exatamente a perspectiva neotestamentária e patrística do casamento.
Enfim, em Caná Jesus “manifesta sua glória[17]”
no contexto de uma ecclesia domestica.
Segundo a tradição litúrgica e iconográfica, é Cristo que preside as Bodas de
Caná; mais do que isso, é ele o único Noivo no momento de toda boda. O ícone
das bodas de Caná representa misticamente as núpcias da Igreja e de toda alma
com o Esposo divino. Por meio do sacramento, todo casal esposa a Cristo, é por
isso que, amando uma ao outro, os esposos amam a Cristo. “Faz, Senhor, que
amando-nos mutuamente, a Ti amemos sempre daqui por diante”. A partir daí, todo
instante da vida conjugal se torna doxologia, louvor, canto litúrgico, oferenda
total do ser conjugal a Deus[18].
O fundamento pentecostal
É o dom do Espírito, no dia de Pentecostes, que completou a constituição
da Igreja. E efusão perpétua do Espírito Santo faz de todo fiel um ser
carismático, inteiramente penetrado, na alma e no corpo, pelos dons do
Espírito. O sacramento do matrimônio funda a igreja doméstica e chama por seu
próprio Pentecostes. No coração do sacramento de coloca a epiclese, ou seja, a
prece que pede ao Pai que envie o Espírito Santo: “Senhor nosso Deus, coroai-os
(aos esposos) de glória e honra”. Essas palavras marcam o momento da descida do
Espírito e constituem o Pentecostes conjugal. Ao pedir o coroamento dos
esposos, a epiclese se refere à prece sacerdotal do Senhor: “Eu dei a eles a
glória que Tu me deste, a fim de que eles sejam um[19]”.
Os noivos são assim coroados de glória a fim de que se tornem um, na communio sanctorum da Igreja.
Essa fórmula da epiclese conjugal apresenta um grande interesse bíblico.
Nós a encontramos em todos os momentos decisivos do destino humano. No começo
da história, no momento da criação do homem, Deus “a coroou de glória e de
honra[20]”;
na outra extremidade da história, ao entrar na Cidade nova, “as nações lhe
apresentaram sua glória e sua honra[21]”,
os tesouros ou os dons da plena realização. Essa mesma fórmula, que une a
promessa e a realização, o Paraíso e o Reino, é a palavra que opera o
sacramento do matrimônio. O estado conjugal aparece assim como o ponto de
junção entre o alfa e o ômega do destino humano.
“Graça paradisíaca”
É nesse nível que se coloca a tradição reportada por Clemente de
Alexandria sobre a “graça paradisíaca” do casamento. Essa oferece, acima da
queda, que se possa viver ainda sobre a terra qualquer coisa de edênica. Sem o
amor do primeiro casal, o paraíso não seria plenamente o paraíso. Sem essa
alegria que brilha nas primeiras palavras de Adão dirigidas a Eva: “Essa é a
carne de minha carne...[22]”,
o casamento não seria plenamente o casamento. Em Caná, estão presentes em toda
boda cristã o Verbo e o Espírito, e é por isso que se bebe o vinho novo; e esse
vinho do milagre traz uma alegria que não é apenas da terra. É a “embriaguez
sóbria” dos Apóstolos no dia do Pentecostes. O rito do casamento canta essa
felicidade no nível da alegria divina: “Assim como a noiva faz a alegria de seu
noivo, assim tu serás a alegria de teu Deus[23]”.
É que, dentre todos os laços terrestres, somente o matrimônio apresenta
uma plenitude em si. São João Crisóstomo escreve: “Aquele que não está ligado
pelos laços do matrimônio não possui em si mesmo a totalidade de seu ser, mas
apenas sua metade: o homem e a mulher não são dois, mas um só ser”. O casamento
restitui ao homem sua natureza original, e o “nós” conjugal antecipa e
prefigura o “nós”, não desse ou daquele casal, mas do Masculino e do Feminino
em sua totalidade, o Adão reconstituído e realizado do Reino.
São Clemente de Roma cita uma tradição oral sobre o conteúdo
escatológico do matrimônio. À pergunta de Salomé: “Em que momento virá o Reino?”,
o Senhor teria respondido: “Quando os dois forem um”. A revelação da plenitude
conjugal se coloca nos últimos tempos e se erige em sinal da proximidade do
Reino, anuncia que chegou a hora, para a Igreja, de sua passagem ao século
futuro. O Maranatha, “Vem, Senhor”, é
ao mesmo tempo a prece da Igreja e a da comunidade conjugal. Os amantes olham
juntos para o Oriente, para aquele que virá. Os horizontes terrestres em nada
limitam as ascensões comuns dos esposos à Mansão do Pai. Existe uma dimensão
celeste e profética do matrimônio que faz toda a sua grandeza.
A ascese conjugal
Mas toda alegria verdadeira, toda elevação se situa sempre ao final de
um sofrimento, e a liturgia do coroamento fala disso sem rodeios. Somente a coroa de espinhos do Senhor dá
sentido a todas as demais coroas. Segundo São João Crisóstomo, as coroas dos
noivos evocam as coroas dos mártires e convidam à ascese conjugal. Do amor
mútuo dos esposos jorra a prece das virgens mártires: “É a Ti que eu amo,
divino Esposo, é a Ti que eu busco lutando, por Ti eu morro, a fim de viver em
Ti”. O camafeu dos antigos anéis nupciais representava dois esposos de perfil
unidos pela cruz. O amor perfeito é o amor crucificado. “Em todo casamento, não
é p caminho que é difícil, é o difícil que é o caminho”, diz Kierkegaard. É por
isso que o matrimônio é um sacramento que pede a graça e no qual a liturgia ora
sem cessar pelo “amor perfeito”. “Dê seu sangue e receba o Espírito”; esse
aforisma monástico se aplica igualmente ao estado conjugal.
A ascese conjugal tem por outro lado o privilégio e a vocação de demonstrar
que o “pecado carnal” não é em absoluto o pecado da carne, mas o pecado do
espírito contra a carne. O ser conjugal toca o céu, não como poesia,
platonicamente, nem como eremita, espiritualmente, mas ontologicamente, pelo
carisma da santidade conjugal. Segundo a tradição antiga, aguardava-se até o
sétimo dia para que as coroas fossem retiradas: esse tempo era consagrado à
prece e preparava o mistério do amor. E nos meios fiéis à tradição, os esposos
partiam para um convento, a fim de passar esse tempo entre monges e monjas.
Esses dias de continência iniciavam ao domínio da carne e introduziam
ao sacramento conjugal. Que distância entre essas vigílias iniciáticas e nossos
banquetes de bodas, dos quais o amor sai tantas vezes ferido, e nos quais o
caráter eclesial do mistério se vê profanado!
Novas dimensões
A liturgia do Pentecostes descobre dimensões insuspeitas do tempo, do
ser e da existência. É a passagem do estado de cativeiro ao estado da “nova
criatura”. Melhor ainda, não apenas a celebração da desta anuncia essas novas
dimensões, como as veicula. É preciso estar atento a esse simbolismo. O Evangelho
não cessa de nos advertir: “Quem tiver ouvidos, que ouça”. Interiormente,
embora invisivelmente, existe um abismo entre o ser de um batizado e o de um
não batizado.
Ora, essas novas dimensões condicionam a existência da “pequena igreja”
conjugal. É para vivê-las e fazer com que cresça o ser do casal, que a Igreja
concede seus carismas. Um grande santo russo, Serafim de Sarov, via o objetivo
da vida cristã na aquisição dos dons do Espírito Santo, comentando a parábola
das virgens, ele dizia que as virgens tolas eram certamente seres virtuosos,
porque eram “virgens”, mas que suas lâmpadas vazias as mostravam ocupadas em
adquirir as virtudes morais, sem se preocupar em adquirir os dons do Espírito
Santo, de se tornar “seres carismáticos”. Ora, dentro da igreja, todo carisma é
dado por um ministério ao serviço do Corpo como um todo, todo carisma tem uma
finalidade apostólica.
A mensagem secreta do Pentecostes
A celebração litúrgica do Pentecostes traz uma mensagem secreta de
imenso significado, e que está em relação com os carismas conjugais. Nesse dia,
único durante o ano, a Igreja ora por todos os mortos desde a criação do mundo,
e autoriza a prece inclusive pelos suicidas. Na superabundância de sua graça, a
festa nos coloca diante do mistério do inferno. Não se trata aqui de um
elemento doutrinal: a eternidade do inferno ou o destino último dos danados. Trata-se
da atitude orante dos vivos, a única possível diante do mistério insondável. A liturgia,
sem prejulgar nada, redobra sua prece por todos os vivos e por todos os mortos.
Ora, o que é o inferno? É o lugar de onde Deus está excluído. Desse ponto
de vista, o mundo moderno em seu conjunto se apresenta bem sob esse aspecto
infernal. Existe aí uma enorme interrogação dirigida a todo crente: o que fazer
diante de um mundo demoníaco? Parece que a atitude do cristão pode encontrar
uma indicação decisiva numa antiquíssima tradição evocada por São João
Crisóstomo: durante a celebração do Batismo, todo batizado morre com Cristo,
mas também desce com Ele aos infernos e, assim como o Cristo ressuscitado, traz
consigo o destino dos pecadores. Também nós recebemos esse apelo poderoso para
seguir a Cristo e descer ao inferno do mundo moderno, não como “turistas”, como
disse o poeta Charles Péguy a respeito de Dante, mas como testemunhos da luz de
Cristo!
Um texto litúrgico da Sexta-Feira Santa descreve a descida aos
infernos e mostra a Cristo “saindo do inferno como de um palácio nupcial”. Podemos
discernir aí um apelo preciso dirigido aos esposos cristãos: é preciso criar
uma “relação nupcial” com o mundo, mesmo e sobretudo sob seu aspecto infernal,
e nele penetrar como em um “palácio nupcial”, dando testemunho da presença
universal de Cristo, e pelo fato de que, segundo a expressão de Santo Isaac o
Sírio, o pecado essencial do mundo é o de ser insensível ao Ressuscitado,
esforçando-se por sensibilizar o mundo moderno ao Ressuscitado. Mais do que
nunca, toda casa cristã é acima de tudo um traço de união, um elo entre o
Templo de Deus e a civilização sem Deus.
O sacerdócio conjugal
Mas como poderão os esposos exercer essa influência decisiva sobre o
mundo? Por meio do seu sacerdócio conjugal. E esse sacerdócio se articula sobre
os carismas particulares do homem e da mulher.
O homem é um ser “extático”: ele sai de si mesmo e se prolonga no mundo
pelos seus utensílios e pelos seus atos. A mulher é um ser “enstático”, pois
ela não é ato, mas ser: ela está voltada para sua própria profundidade, ela se
interioriza, semelhante à Virgem que guardava as palavras divinas em seu
coração; ela está presente no mundo pelo dom total de si mesma. Um afresco na
catacumba de São Calixto mostra o homem com a mão estendida sobre a oferenda, celebrando
a eucaristia; atrás dele está uma mulher, com os braços em prece, orando. Se é
próprio do homem o agir, é próprio da mulher o ser. Deixado a si mesmo, o homem
se perde nas abstrações e nas objetivações; degradado, ele se torna degradante
e fabrica um mundo desumanizado. Proteger o mundo, os homens e a vida enquanto
mãe e nova Eva, purificá-los enquanto virgem, tal é a vocação de toda mulher. Ela
deve converter o homem à sua função essencialmente sacerdotal: penetrar
sacramentalmente os elementos desse mundo e santificá-los, purificá-los pela
prece. Todo cristão é convidado por Deus a viver de fé: ver aquilo que não se vê,
contemplar a Sabedoria de Deus no absurdo aparente da História, e se tornar
luz, revelação, profecia, seguir os “violentos” que tomam de assalto o céu e se
apoderam do Reino[24].
Assim o Espírito Santo faz germinar a caridade sacerdotal dos maridos
e a ternura maternal das esposas: ele os abre para o mundo a fim de liberar
todo próximo e restituí-lo a Deus. Se o monge transcende o tempo, o casal
cristão dá início à transfiguração do tempo. O ser conjugal se aprofunda, se
torna uma epifania, lugar da presença do único Bem-Amado e ponto de partida das
ascensões comuns com Ele e Nele para a Morada do Pai.
O Evangelho de São João reporta uma palavra do Senhor, talvez a mais
grave endereçada à Igreja: “Quem recebe aquele a quem Eu envio Me recebe, e
quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou[25]”.
Essas palavras se dirigem também à “pequena igreja” que é todo lar cristão. Ela
quer dizer que o destino do mundo está suspenso na atitude inventiva da Igreja,
à sua arte de acolher e de se fazer acolher, a arte da caridade de seus santos.
E essa arte significa a um tempo a coisa mais simples e mais alta: reconhecer a
presença do Senhor em cada ser humano.
Uma secreta germinação trabalha a Igreja, prepara a primavera do
Espírito, esse festim no qual o amor nupcial de Deus e de seu povo se realiza enfim
em cada casal e em toda alma humana que deseja recebe-lo. A felicidade pascal
transborda de novas harmonias. Face ao pessimismo e ao desgaste do tempo se
erguem as palavras de Orígenes: “A Igreja está plena de Trindade”. A todo
abatimento no esforço responde a magnífica palavra de São Gregório de Nisse: “O
poder divino é capaz de inventar uma esperança onde não existe esperança, e uma
via no impossível”.
[1]
Gênesis 3: 8.
[2]
João 2: 1.
[3]
Oséias 2: 19-20.
[4]
Apocalipse 21: 9.
[5]
Apocalipse 19: 7.
[6]
Atos 17: 22ss
[7]
Efésios 5: 31.
[8]
Efésios 5: 32.
[9]
Mateus 18: 20.
[10]
Gênesis 1: 18.
[11]
Apocalipse 13: 8.
[12]
“A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava
propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre
eles” (Atos 4: 32).
[13]
Efésios 4: 16.
[14] “21
Sejam submissos uns aos outros no temor a Cristo. 22 Mulheres, sejam submissas
a seus maridos, como ao Senhor. 23 De fato, o marido é a cabeça da sua esposa,
assim como Cristo, salvador do Corpo, é a cabeça da Igreja. 24 E assim como a
Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo
a seus maridos. 25 Maridos, amem suas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se
entregou por ela; 26 assim, ele a purificou com o banho de água e a santificou
pela Palavra, 27 para apresentar a si mesmo uma Igreja gloriosa, sem mancha nem
ruga ou qualquer outro defeito, mas santa e imaculada. 28 Portanto, os maridos
devem amar suas mulheres como a seus próprios corpos. Quem ama sua mulher, está
amando a si mesmo. 29 Ninguém odeia a sua própria carne; pelo contrário, a
nutre e dela cuida, como Cristo faz com a igreja, 30 porque somos membros do
corpo dele. 31 Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua
mulher, e os dois serão uma só carne. 32 Esse mistério é grande: eu me refiro a
Cristo e à Igreja. 33 Portanto, cada um de vocês ame a sua mulher como a si
mesmo, e a mulher respeite o seu marido” (Efésios 5: 21-33).
[15]
João 19: 34.
[16]
Cf. Romanos 2: 29.
[17]
João 2: 11.
[18]
Cf. II Coríntios 11: 2; I Coríntios 10: 31; Colossenses 3: 17;
[19]
João 17: 22.
[20] Salmo
8: 6; Hebreus 2: 7.
[21] Apocalipse
21: 26.
[22]
Gênesis 2: 23.
[23]
Isaías 62: 5.
[24]
Cf. Mateus 11: 12.
[25]
João 13: 20.
Nenhum comentário:
Postar um comentário