sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Paul Evdokimov - A Igreja Doméstica


Numa homilia sobre os Atos dos Apóstolos, São João Crisóstomo fala da casa cristã: “Mesmo à noite (...) levante-se, coloque-se de joelhos e ore (...) é preciso que sua casa seja continuamente um oratório, uma igreja”. A palavra “continuamente” tem um valor diretivo, ela convida às vigílias do espírito: a pequena igreja doméstica deve de colocar dia e noite diante da face de Deus.

A tradição oriental cria um parentesco assim, em sua natureza profunda, entre a comunidade da Igreja e a comunidade conjugal. Ela as vê sob a forma ainda indiferenciada do “princípio”: no Paraíso terrestre, o mistério da Igreja e a comunhão do primeiro casal humano não formam senão uma só e mesma realidade. A primeira célula conjugal coincide com a pré-Igreja e manifesta a essência comunitária da relação entre Deus e o homem. O texto bíblico diz: “Deus (...) vinha ao jardim na brisa do dia[1]” para conversar com o homem e a mulher. Esse evento prefigura tudo o que São irá dizer ao falar do “grande Mistério”, o mistério nupcial divino-humano, fundamento comum da Igreja e do casamento.

Enquanto que a história do Antigo Testamento se abre sobre o amor conjugal, a história do Novo testamento começa pelo relato das bodas de Caná[2]. Tal coincidência não pode ser fortuita. De resto, cada vez que a Bíblia fala da natureza das relações entre Deus e a humanidade, ela o faz em termos matrimoniais. A aliança é de natureza claramente nupcial: o povo de Deus, depois a Igreja, são adornados com os nomes de Noiva do Senhor[3], de Esposa do Cordeiro[4], e o Reino de Deus celebra sua Núpcias eternas[5]. Assim a teologia do casamento se origina na eclesiologia: ambas são aparentadas, a ponto de que uma se expressa por meio dos símbolos da outra.

Um mesmo mistério

Quando os noivos confessam seu amor diante do Eterno e pronunciam o “sim” conjugal, o oficio nupcial na Ortodoxia se torna bem mais do que uma simples bênção, de que uma troca de consentimentos recíprocos que remonta à época da criação. Estamos aqui na ordem da recriação evangélica, de sua plena realização que transcende a história e repercute no eterno. Pelo poder sacramental do sacerdote, a Igreja une os dois destinos e eleva essa união ao valor de um sacramento. Ela concede ao ser conjugal assim constituído uma graça particular, em vista de um officium, de um ministério eclesial. É a criação de uma célula da Igreja a serviço de toda a Igreja, sob a forma do sacerdócio conjugal.

Em sua teologia do casamento, São Paulo utiliza um método análogo ao que ele empregou em Atenas[6]. Contemplando o monumento dedicado ao “deus desconhecido”, ele decifra seu anonimato: o deus absconditus, o deus oculto e misterioso, é agora o Deus revelatus, cujo nome é Jesus Cristo. Da mesma forma, na epístola aos Efésios[7], São Paulo cita o texto do Gênesis: “Os dois serão uma só carne”, um só ser. Ele toma esse mistério, até então enigmático em sua origem, e o traz à luz, dizendo: “Esse mistério é grande, vale dizer, ele se aplica a Cristo e à Igreja[8]”. O mistério conjugal, antes oculto, agora se esclarece e se especifica: ele se erige em imagem substancial de sua fonte, em ícone das relações misteriosas entre Cristo e a Igreja, e é por isso que “os dois se tornam um só ser”.

São João Crisóstomo chama o casamento de “sacramento do amor”, e justifica sua natureza sacramental ao declarar que “o amor muda a própria substância das coisas”. O amor natural, tornado carismático no momento do sacramento, faz o milagre, opera a metamorfose. Ele subtrai o casal do habitual, do costumeiro, da ordem dos elementos desse mundo, do plano animal, e o introduz no inabitual, na ordem da graça, no mysterion oferecido pelo sacramento. “Duas almas assim unidas não têm nada a temer. Com a concórdia, a paz e o amor mútuo, o homem e a mulher entram na posse de todos os bens. Eles podem viver em paz guardados por um muro inexpugnável que os protege e que é o amor segundo Deus. Graças ao amor, eles são mais formes do que o diamante e mais duros do que o ferro, eles navegam na plenitude, eles singram em direção à glória eterna e atraem doravante e para sempre a graça de Deus”. É por isso, continua João Crisóstomo, que “quando o marido e a esposa se unem pelo casamento, eles já não parecem algo de terrestre, mas como a própria imagem de Deus”. Mas ele especifica que, se o ser conjugal é um ícone vivo de Deus, é porque ele é antes de tudo um “ícone misterioso da Igreja”, uma célula orgânica da Igreja. Ora, toda célula orgânica reflete sempre o todo; a plenitude do Corpo reside nela e aí palpita.

Conhecemos o adágio dos Padres: “onde está Cristo, aí está a Igreja”. Essa firmação fundamental decorre da palavra do Senhor: “Onde dois ou três estiverem reunidos em Meu Nome, aí estarei Eu entre eles[9]”. Semelhante “reunião”, com efeito, é de natureza eclesial, porque está integrada a Cristo e posta em sua presença. Clemente de Alexandria, pioneiro da teologia patrística do casal, coloca o casamento em relação direta com as palavras citadas, e diz: “Quem são os dois reunidos em nome de Cristo, e no meio dos quais se coloca o Senhor? Não são o homem e a mulher unidos por Deus?”. Essa descoberta suscita a admiração profunda de Clemente, e o faz proclamar: “Aquele que se dedica a viver no casamento (...) esse ultrapassa a todos os homens”. O casamento transcende o humano, pois, como o mistério da Igreja, ele constitui, segundo Clemente, uma microbasileia, um “pequeno reino”, a imagem profética do Reino de Deus, a antecipação prefigurativa do século futuro.

Assim a eclesiologia conjugal da “pequena igreja” se refere à grande Eclesiologia. O sacramento do matrimônio, “imagem misteriosa da Igreja”, mostra como os mesmos princípios que estruturam a existência da Igreja, estruturam a existência conjugal. Esses princípios fundamentais são em número de três: o dogma trinitário, o dogma cristológico e também o Pentecostes conjugal, ou seja, segundo a expressão de Clemente de Alexandria, a efusão do Espírito Santo e de seus carismas na Câmara alta da “pequena morada do Senhor”.

O fundamento trinitário

Um Deus em uma só Pessoa não seria o Amor; da mesma forma o homem, se for um ser isolado ou totalmente solitário, não será “à sua imagem”. É por isso que, desde o princípio, Deus declarou: “Não é bom que o homem esteja só[10]”. E Deus criou o casal, ser comunitário, que também pode ser chamado de eclesial.

É sob esse ângulo que São Gregório de Nazianze descreve o mistério da Trindade. Claro, essa “descrição” não implica absolutamente uma evolução, uma “teogonia” em Deus, mas propõe a visão daquilo que desde sempre é um ato único e indivisível: “O Ser único se coloca em movimento e estabelece o Outro; sua dualidade expressa a multiplicidade, não mais a unidade. É por isso que a dualidade é superada, e o movimento se detém na Trindade, que é a plenitude”. Cada uma das três Pessoas contém as outras duas, e assim se constitui a eterna circulação do Amor intra-divino, seu Pleroma trino e ao mesmo tempo único. O dogma salvaguarda a antinomia transcendente do mistério; Deus é identicamente “uno e trino”. A Tríade divina está além do número. A perfeita igualdade dos Três remonta ao Pai, que é a fonte, não no tempo, mas no ser; é Nele que se realiza o Um divino.

Mas sem um terceiro termo, Deus e o homem permaneceriam também eternamente cortados e separados um do outro. A pessoa do Verbo encarnado é esse terceiro termo para o qual convergem e no qual se unem a natureza divina e a natureza humana. É por isso que a encarnação do Verbo é central e indispensável para a comunhão entre Deus e o homem. “O Cordeiro imolado” precede a criação do mundo[11].

Podemos compreender agora a insistência do pensamento patrístico sobre a universalidade do princípio trinitário enquanto fundamento de toda existência e de todo ser. O homem vacila entre o nada e o absoluto de Deus sem poder encontrar outra saída. Kierkgaard disse com razão: “Deus é o terceiro termo de tudo com que o homem se ocupa”. Toda comunhão que transcende o indivíduo é sempre a unidade num terceiro. Tudo o que existe realmente é a imagem ou o vestígio da Trindade, e o grau de sua realidade é função de sua participação a esse mistério.

Assim é que a contemplação dos Padres descobriu em Deus a Ecclesia celeste das três Pessoas divinas. Essa visão constitui a “imagem condutora”, o modelo ideal da Igreja terrestre dos homens. Ela postula a comunhão, a unidade de todos recapitulada em Jesus Cristo. Feita à imagem do Deus uno e trino, a Igreja é “uma e múltipla”. A unidade do Pai, do Filho e do Espírito é glorificada na própria estrutura da Igreja; seu mistério essencial consiste em ser uma e todos a um só tempo.

Toda associação humana, toda forma sociológica, toda amizade, todo amor, não passam de substratos naturais insuficientes em si mesmos: tudo isso precisa ser vivificado pelo princípio de integração sobrenatural, pelo terceiro termo da presença divina. Essa necessidade provém das profundezas mesmas do homem. Com efeito, ele foi criado como casal, sua estrutura conjugal é eclesial. O homem e a mulher são os elementos constitutivos e complementares de um só ser conjugal, eles são “um para o outro”, e, como disse São Cirilo de Alexandria, “Deus criou o con-ser”. E São João Crisóstomo, por sua vez, sublinha que eles não são apenas reunidos, mas um.  É por isso que o ser conjugal é a mais adequada e perfeita imagem de Deus.

A iconografia oferece uma ilustração impressionante dessa verdade. O fundo das bodas nupciais de antigamente representava a Cristo segurando as duas coroas acima dos esposos, revelando assim seu centro divino de integração e fazendo da comunidade conjugal uma imagem da Trindade. São Teófilo de Antioquia faz eco a esses símbolos, ao declarar: “Deus criou Adão e Eva para o maior amor entre eles, refletindo o mistério da unidade divina”. O primeiro dos dogmas cristãos estrutura assim o ser conjugal, numa pequena tríade, ícone do mistério trinitário.

O fundamento cristológico

O dogma cristológico formulado pelo Concílio de Calcedônia especifica o alcance da Encarnação em relação à salvação do homem: as duas naturezas, divina e humana, são unidas na Pessoa do Verbo sem confusão nem separação. Elas entram numa espécie de co-penetração e, como o ferro colocado no fogo, a natureza humana aí se vê deificada. A partir daí, é para a unidade correspondente do humano e do divino que se dirige toda a economia da salvação: a graça divina se une à natureza humana, e a Igreja é antes de tudo o lugar onde se opera essa comunhão.

No nível da apropriação por cada indivíduo desse fruto universal da salvação, a imagem mais frequente é de caráter nupcial: trata-se das “núpcias místicas” do Cordeiro com a Igreja, do Cordeiro com cada alma humana. Outra imagem provém da noção de “corpo”, noção paulina e de origem claramente eucarística. Os membros se integram num só organismo, o Corpo de Cristo no qual corre a vida divina, fazendo de todos “um só Cristo”, segundo as palavras de São Simeão. A unidades dos irmãos de que falam os Atos[12] se realiza antes de tudo na Eucaristia, pois essa se apresenta como uma autêntica e plena manifestação de Cristo. Orígenes a explica, dizendo: “Cristo não vive senão nomeio daqueles que estão unidos”. Assim, a concepção eucarística da Igreja é expressamente formulada: pela participação no “único Santo”, o Senhor Jesus, seu Corpo é estruturado em communio sanctorum.

A Grande Igreja e a pequena igreja

Os textos do Direito canônico ortodoxo definem precisamente a comunhão conjugal como uma forma particular da “Comunhão dos Santos”. Assim, a fórmula clássica de Theodore Balsamon: “Duas pessoas unidas num só ser”, não é senão uma imagem concreta da Igreja, “pluralidade de pessoas unidas num só corpo”. Pois não foi por acaso que São Paulo colocou seu ensinamento sobre o matrimônio no contexto de sua epístola sobre a Igreja. Em Efésios, ele escreve: “O Corpo recebe sua coesão e se constrói por meio de ligações e de juntas de toda espécie, segundo a função de cada parte[13]”. O milagre da Igreja, sua unidade enraizada em Cristo, resulta das diversas formas dessas ligações, ora, ao lado das comunidades paroquial e monástica se coloca um outro tipo de sociedade: a comunidade conjugal, pequena igreja doméstica, célula orgânica da grande.

É preciso acentuar fortemente essa afirmação central. Com efeito, se o ser conjugal em sua relação com Deus é “à imagem e semelhança” da Trindade, ao contrário sua relação com a Igreja é de natureza diferente. Sobre esse plano, existe mais do que uma analogia, do que uma similaridade. Não se trata apenas de ser semelhante à Igreja em sua realidade de graça, a comunidade dos esposos é parte orgânica da comunidade eclesial, ela é Igreja. O simbolismo das Escrituras implica uma correspondência íntima entre os diversos planos, que os mostra como as expressões diferentes da única realidade. Assim, Clemente de Alexandria chama a comunidade conjugal de “morada do Senhor”, nome clássico da Igreja, e aplica a ela as palavras do Mestre: “Eu estou no meio deles”; e São João Crisóstomo fala da “pequena igreja”, da “igreja doméstica”, ecclesia micra, ecclesia domestica.

Essa concepção remonta ao estado paradisíaco, e mesmo além. Já Hermas e Clemente de Roma ensinavam que o mundo foi criado com vistas à Igreja, e que a Igreja preexiste à criação do homem, de forma que “Adão foi criado à imagem de Cristo, e Eva à imagem da Igreja”. “Deus criou o homem, criou-o homem e mulher; o homem representa Cristo, a mulher representa a Igreja”. É por isso que o amor pré-eterno de Cristo e da Igreja é o arquétipo do matrimônio e preexiste ao casal humano. Compreendemos melhor agora a afirmação fundamental de São Paulo em Efésios[14], e a referência de todo casamento àquilo que ele chama de “grande mistério”. A precisão em primeiro lugar admirável do ritual ortodoxo se explica por meio dessa referência: “Nem o pecado original, nem o dilúvio, em nada deterioraram a santidade da união conjugal”. A sabedoria rabínica considerava também o amor conjugal como sendo o único canal da graça, mesmo entre os pagãos. E, segundo a doutrina ortodoxa, Cristo não instituiu o sacramento do matrimônio, mas sua presença nas bodas de Caná confirmou a instituição como paradisíaca.

As bodas de Caná

Precisamente, em seu comentário sobre o relato de Caná, São João Crisóstomo ressalta o estreito parentesco entre os símbolos que falam a um tempo da Igreja e do matrimônio. A matéria do milagre realizado – a água e o vinho – se referem ao Batismo e à Eucaristia e nos reenviam ao nascimento da Igreja sobre a Cruz: “Do lado ferido, saiu sangue e água[15]”, e nisso consiste a essência eucarística da Igreja. Ora, encontramos a mesma imagem no sacramento do matrimônio, colocada em relevo pelo rito caldeu: “O esposo é semelhante à árvore da vida na Igreja. A esposa é semelhante a um cálice de ouro transbordando de leite e aspergido com gotas de sangue. Que a Santa Trindade resida para sempre em sua morada nupcial”. Assim, um laço sagrado une o milagre de Caná, a Cruz e o Cálice eucarístico, e os faz convergir para o cálice comum do qual bebem os esposos no decurso da cerimônia sacramental. Quanto mais os esposos se unem em Cristo, mais seu cálice comum, medida de sua vida e de seu próprio ser, se enche de vinho de Caná, se torna milagre eucarístico, significa sua transmutação da “nova criação”, reminiscência do Paraíso e prefiguração do Reino.

Para São João Crisóstomo, com efeito, a mudança milagrosa da água em vinho oferece a “imagem condutora” do amor conjugal: a água das paixões naturais se transforma em vinho nobre de amor novo, carismático e casto. A castidade conjugal transcende o elemento fisiológico e se aparenta às estruturas do espírito. Em sua genial dialética sobre a circuncisão, São Paulo substitui a noção fisiológica da “carne circuncisa”, pela noção espiritual, meta-fisiológica, do coração circunciso[16]. É exatamente a perspectiva neotestamentária e patrística do casamento.

Enfim, em Caná Jesus “manifesta sua glória[17]” no contexto de uma ecclesia domestica. Segundo a tradição litúrgica e iconográfica, é Cristo que preside as Bodas de Caná; mais do que isso, é ele o único Noivo no momento de toda boda. O ícone das bodas de Caná representa misticamente as núpcias da Igreja e de toda alma com o Esposo divino. Por meio do sacramento, todo casal esposa a Cristo, é por isso que, amando uma ao outro, os esposos amam a Cristo. “Faz, Senhor, que amando-nos mutuamente, a Ti amemos sempre daqui por diante”. A partir daí, todo instante da vida conjugal se torna doxologia, louvor, canto litúrgico, oferenda total do ser conjugal a Deus[18].

O fundamento pentecostal

É o dom do Espírito, no dia de Pentecostes, que completou a constituição da Igreja. E efusão perpétua do Espírito Santo faz de todo fiel um ser carismático, inteiramente penetrado, na alma e no corpo, pelos dons do Espírito. O sacramento do matrimônio funda a igreja doméstica e chama por seu próprio Pentecostes. No coração do sacramento de coloca a epiclese, ou seja, a prece que pede ao Pai que envie o Espírito Santo: “Senhor nosso Deus, coroai-os (aos esposos) de glória e honra”. Essas palavras marcam o momento da descida do Espírito e constituem o Pentecostes conjugal. Ao pedir o coroamento dos esposos, a epiclese se refere à prece sacerdotal do Senhor: “Eu dei a eles a glória que Tu me deste, a fim de que eles sejam um[19]”. Os noivos são assim coroados de glória a fim de que se tornem um, na communio sanctorum da Igreja.

Essa fórmula da epiclese conjugal apresenta um grande interesse bíblico. Nós a encontramos em todos os momentos decisivos do destino humano. No começo da história, no momento da criação do homem, Deus “a coroou de glória e de honra[20]”; na outra extremidade da história, ao entrar na Cidade nova, “as nações lhe apresentaram sua glória e sua honra[21]”, os tesouros ou os dons da plena realização. Essa mesma fórmula, que une a promessa e a realização, o Paraíso e o Reino, é a palavra que opera o sacramento do matrimônio. O estado conjugal aparece assim como o ponto de junção entre o alfa e o ômega do destino humano.

“Graça paradisíaca”

É nesse nível que se coloca a tradição reportada por Clemente de Alexandria sobre a “graça paradisíaca” do casamento. Essa oferece, acima da queda, que se possa viver ainda sobre a terra qualquer coisa de edênica. Sem o amor do primeiro casal, o paraíso não seria plenamente o paraíso. Sem essa alegria que brilha nas primeiras palavras de Adão dirigidas a Eva: “Essa é a carne de minha carne...[22]”, o casamento não seria plenamente o casamento. Em Caná, estão presentes em toda boda cristã o Verbo e o Espírito, e é por isso que se bebe o vinho novo; e esse vinho do milagre traz uma alegria que não é apenas da terra. É a “embriaguez sóbria” dos Apóstolos no dia do Pentecostes. O rito do casamento canta essa felicidade no nível da alegria divina: “Assim como a noiva faz a alegria de seu noivo, assim tu serás a alegria de teu Deus[23]”.

É que, dentre todos os laços terrestres, somente o matrimônio apresenta uma plenitude em si. São João Crisóstomo escreve: “Aquele que não está ligado pelos laços do matrimônio não possui em si mesmo a totalidade de seu ser, mas apenas sua metade: o homem e a mulher não são dois, mas um só ser”. O casamento restitui ao homem sua natureza original, e o “nós” conjugal antecipa e prefigura o “nós”, não desse ou daquele casal, mas do Masculino e do Feminino em sua totalidade, o Adão reconstituído e realizado do Reino.

São Clemente de Roma cita uma tradição oral sobre o conteúdo escatológico do matrimônio. À pergunta de Salomé: “Em que momento virá o Reino?”, o Senhor teria respondido: “Quando os dois forem um”. A revelação da plenitude conjugal se coloca nos últimos tempos e se erige em sinal da proximidade do Reino, anuncia que chegou a hora, para a Igreja, de sua passagem ao século futuro. O Maranatha, “Vem, Senhor”, é ao mesmo tempo a prece da Igreja e a da comunidade conjugal. Os amantes olham juntos para o Oriente, para aquele que virá. Os horizontes terrestres em nada limitam as ascensões comuns dos esposos à Mansão do Pai. Existe uma dimensão celeste e profética do matrimônio que faz toda a sua grandeza.

A ascese conjugal

Mas toda alegria verdadeira, toda elevação se situa sempre ao final de um sofrimento, e a liturgia do coroamento fala disso sem rodeios.  Somente a coroa de espinhos do Senhor dá sentido a todas as demais coroas. Segundo São João Crisóstomo, as coroas dos noivos evocam as coroas dos mártires e convidam à ascese conjugal. Do amor mútuo dos esposos jorra a prece das virgens mártires: “É a Ti que eu amo, divino Esposo, é a Ti que eu busco lutando, por Ti eu morro, a fim de viver em Ti”. O camafeu dos antigos anéis nupciais representava dois esposos de perfil unidos pela cruz. O amor perfeito é o amor crucificado. “Em todo casamento, não é p caminho que é difícil, é o difícil que é o caminho”, diz Kierkegaard. É por isso que o matrimônio é um sacramento que pede a graça e no qual a liturgia ora sem cessar pelo “amor perfeito”. “Dê seu sangue e receba o Espírito”; esse aforisma monástico se aplica igualmente ao estado conjugal.

A ascese conjugal tem por outro lado o privilégio e a vocação de demonstrar que o “pecado carnal” não é em absoluto o pecado da carne, mas o pecado do espírito contra a carne. O ser conjugal toca o céu, não como poesia, platonicamente, nem como eremita, espiritualmente, mas ontologicamente, pelo carisma da santidade conjugal. Segundo a tradição antiga, aguardava-se até o sétimo dia para que as coroas fossem retiradas: esse tempo era consagrado à prece e preparava o mistério do amor. E nos meios fiéis à tradição, os esposos partiam para um convento, a fim de passar esse tempo entre monges e monjas.

Esses dias de continência iniciavam ao domínio da carne e introduziam ao sacramento conjugal. Que distância entre essas vigílias iniciáticas e nossos banquetes de bodas, dos quais o amor sai tantas vezes ferido, e nos quais o caráter eclesial do mistério se vê profanado!

Novas dimensões

A liturgia do Pentecostes descobre dimensões insuspeitas do tempo, do ser e da existência. É a passagem do estado de cativeiro ao estado da “nova criatura”. Melhor ainda, não apenas a celebração da desta anuncia essas novas dimensões, como as veicula. É preciso estar atento a esse simbolismo. O Evangelho não cessa de nos advertir: “Quem tiver ouvidos, que ouça”. Interiormente, embora invisivelmente, existe um abismo entre o ser de um batizado e o de um não batizado.

Ora, essas novas dimensões condicionam a existência da “pequena igreja” conjugal. É para vivê-las e fazer com que cresça o ser do casal, que a Igreja concede seus carismas. Um grande santo russo, Serafim de Sarov, via o objetivo da vida cristã na aquisição dos dons do Espírito Santo, comentando a parábola das virgens, ele dizia que as virgens tolas eram certamente seres virtuosos, porque eram “virgens”, mas que suas lâmpadas vazias as mostravam ocupadas em adquirir as virtudes morais, sem se preocupar em adquirir os dons do Espírito Santo, de se tornar “seres carismáticos”. Ora, dentro da igreja, todo carisma é dado por um ministério ao serviço do Corpo como um todo, todo carisma tem uma finalidade apostólica.

A mensagem secreta do Pentecostes

A celebração litúrgica do Pentecostes traz uma mensagem secreta de imenso significado, e que está em relação com os carismas conjugais. Nesse dia, único durante o ano, a Igreja ora por todos os mortos desde a criação do mundo, e autoriza a prece inclusive pelos suicidas. Na superabundância de sua graça, a festa nos coloca diante do mistério do inferno. Não se trata aqui de um elemento doutrinal: a eternidade do inferno ou o destino último dos danados. Trata-se da atitude orante dos vivos, a única possível diante do mistério insondável. A liturgia, sem prejulgar nada, redobra sua prece por todos os vivos e por todos os mortos.

Ora, o que é o inferno? É o lugar de onde Deus está excluído. Desse ponto de vista, o mundo moderno em seu conjunto se apresenta bem sob esse aspecto infernal. Existe aí uma enorme interrogação dirigida a todo crente: o que fazer diante de um mundo demoníaco? Parece que a atitude do cristão pode encontrar uma indicação decisiva numa antiquíssima tradição evocada por São João Crisóstomo: durante a celebração do Batismo, todo batizado morre com Cristo, mas também desce com Ele aos infernos e, assim como o Cristo ressuscitado, traz consigo o destino dos pecadores. Também nós recebemos esse apelo poderoso para seguir a Cristo e descer ao inferno do mundo moderno, não como “turistas”, como disse o poeta Charles Péguy a respeito de Dante, mas como testemunhos da luz de Cristo!

Um texto litúrgico da Sexta-Feira Santa descreve a descida aos infernos e mostra a Cristo “saindo do inferno como de um palácio nupcial”. Podemos discernir aí um apelo preciso dirigido aos esposos cristãos: é preciso criar uma “relação nupcial” com o mundo, mesmo e sobretudo sob seu aspecto infernal, e nele penetrar como em um “palácio nupcial”, dando testemunho da presença universal de Cristo, e pelo fato de que, segundo a expressão de Santo Isaac o Sírio, o pecado essencial do mundo é o de ser insensível ao Ressuscitado, esforçando-se por sensibilizar o mundo moderno ao Ressuscitado. Mais do que nunca, toda casa cristã é acima de tudo um traço de união, um elo entre o Templo de Deus e a civilização sem Deus.

O sacerdócio conjugal  

Mas como poderão os esposos exercer essa influência decisiva sobre o mundo? Por meio do seu sacerdócio conjugal. E esse sacerdócio se articula sobre os carismas particulares do homem e da mulher.

O homem é um ser “extático”: ele sai de si mesmo e se prolonga no mundo pelos seus utensílios e pelos seus atos. A mulher é um ser “enstático”, pois ela não é ato, mas ser: ela está voltada para sua própria profundidade, ela se interioriza, semelhante à Virgem que guardava as palavras divinas em seu coração; ela está presente no mundo pelo dom total de si mesma. Um afresco na catacumba de São Calixto mostra o homem com a mão estendida sobre a oferenda, celebrando a eucaristia; atrás dele está uma mulher, com os braços em prece, orando. Se é próprio do homem o agir, é próprio da mulher o ser. Deixado a si mesmo, o homem se perde nas abstrações e nas objetivações; degradado, ele se torna degradante e fabrica um mundo desumanizado. Proteger o mundo, os homens e a vida enquanto mãe e nova Eva, purificá-los enquanto virgem, tal é a vocação de toda mulher. Ela deve converter o homem à sua função essencialmente sacerdotal: penetrar sacramentalmente os elementos desse mundo e santificá-los, purificá-los pela prece. Todo cristão é convidado por Deus a viver de fé: ver aquilo que não se vê, contemplar a Sabedoria de Deus no absurdo aparente da História, e se tornar luz, revelação, profecia, seguir os “violentos” que tomam de assalto o céu e se apoderam do Reino[24].

Assim o Espírito Santo faz germinar a caridade sacerdotal dos maridos e a ternura maternal das esposas: ele os abre para o mundo a fim de liberar todo próximo e restituí-lo a Deus. Se o monge transcende o tempo, o casal cristão dá início à transfiguração do tempo. O ser conjugal se aprofunda, se torna uma epifania, lugar da presença do único Bem-Amado e ponto de partida das ascensões comuns com Ele e Nele para a Morada do Pai.

O Evangelho de São João reporta uma palavra do Senhor, talvez a mais grave endereçada à Igreja: “Quem recebe aquele a quem Eu envio Me recebe, e quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou[25]”. Essas palavras se dirigem também à “pequena igreja” que é todo lar cristão. Ela quer dizer que o destino do mundo está suspenso na atitude inventiva da Igreja, à sua arte de acolher e de se fazer acolher, a arte da caridade de seus santos. E essa arte significa a um tempo a coisa mais simples e mais alta: reconhecer a presença do Senhor em cada ser humano.

Uma secreta germinação trabalha a Igreja, prepara a primavera do Espírito, esse festim no qual o amor nupcial de Deus e de seu povo se realiza enfim em cada casal e em toda alma humana que deseja recebe-lo. A felicidade pascal transborda de novas harmonias. Face ao pessimismo e ao desgaste do tempo se erguem as palavras de Orígenes: “A Igreja está plena de Trindade”. A todo abatimento no esforço responde a magnífica palavra de São Gregório de Nisse: “O poder divino é capaz de inventar uma esperança onde não existe esperança, e uma via no impossível”.


[1] Gênesis 3: 8.
[2] João 2: 1.
[3] Oséias 2: 19-20.
[4] Apocalipse 21: 9.
[5] Apocalipse 19: 7.
[6] Atos 17: 22ss
[7] Efésios 5: 31.
[8] Efésios 5: 32.
[9] Mateus 18: 20.
[10] Gênesis 1: 18.
[11] Apocalipse 13: 8.
[12] “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles” (Atos 4: 32).
[13] Efésios 4: 16.
[14] “21 Sejam submissos uns aos outros no temor a Cristo. 22 Mulheres, sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor. 23 De fato, o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, salvador do Corpo, é a cabeça da Igreja. 24 E assim como a Igreja está submissa a Cristo, assim também as mulheres sejam submissas em tudo a seus maridos. 25 Maridos, amem suas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela; 26 assim, ele a purificou com o banho de água e a santificou pela Palavra, 27 para apresentar a si mesmo uma Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou qualquer outro defeito, mas santa e imaculada. 28 Portanto, os maridos devem amar suas mulheres como a seus próprios corpos. Quem ama sua mulher, está amando a si mesmo. 29 Ninguém odeia a sua própria carne; pelo contrário, a nutre e dela cuida, como Cristo faz com a igreja, 30 porque somos membros do corpo dele. 31 Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne. 32 Esse mistério é grande: eu me refiro a Cristo e à Igreja. 33 Portanto, cada um de vocês ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido” (Efésios 5: 21-33).
[15] João 19: 34.
[16] Cf. Romanos 2: 29.
[17] João 2: 11.
[18] Cf. II Coríntios 11: 2; I Coríntios 10: 31; Colossenses 3: 17;
[19] João 17: 22.
[20] Salmo 8: 6; Hebreus 2: 7.
[21] Apocalipse 21: 26.
[22] Gênesis 2: 23.
[23] Isaías 62: 5.
[24] Cf. Mateus 11: 12.
[25] João 13: 20.

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