quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Segunda Homilia: Introdução ao Evangelho de São Mateus





1.      Creio que vocês se recordam, irmãos, do pedido que fiz ontem a vocês, no sentido de que se recolhessem num respeitoso silêncio e na paz de coração e espírito para escutar a palavra de Deus. Como vamos hoje penetrar nos umbrais sagrados do templo onde reside o Verbo divino, vejo-me obrigado a repetir o conselho. Pois se, antigamente, quando os judeus foram em vigília se aproximar da montanha do Sinai, desse fogo, dessa fumaça, dessas trevas e desses turbilhões – ou melhor, à vigília para contemplar de longe um raio da glória de Deus, e para escutar à distância algumas palavras de sua boca – se, digo eu, naquela ocasião lhes foi ordenado que se separassem de suas mulheres por três dias, e que lavassem suas vestes, se eles estavam então, como o próprio Moisés, atemorizados e tremendo, é bem mais razoável que, estando a ponto de ouvir palavras tão santas, e não de olhar de longe uma montanha ardente, mas de penetrar no próprio céu, vocês mostrem uma disposição mais perfeita, lavando suas vestes, não do corpo, mas da alma, e se separando de todo comércio com a vida desse mundo.

Aqui vocês não verão fumaça, turbilhões ou trevas, mas o próprio Rei sentado sobre seu trono, numa glória inefável, acompanhado de seus anjos e arcanjos, e das coortes de santos, juntamente com o número infinito desses espíritos bem-aventurados. Essa é a cidade santa, a que contém, diz São Paulo, “a Igreja dos primogênitos, dos espíritos dos justos, das coortes de anjos, e do sangue cuja aspersão reconcilia todas as coisas[1]”. Pois o céu recebeu o que estava na terra, a terra recebeu o que estava no céu, e assim se fez essa paz de homens e de anjos que fora desejada durante tantos séculos.

O troféu que brilha nessa cidade santa é a cruz, os despojos que estão ligados a ela não nossa própria natureza, a qual Jesus Cristo tornou sua presa e sua conquista, como veremos na sequência do Evangelho. Se vocês quiserem me seguir em profundo silêncio, eu espero lhes mostrar a morte derrotada e destruída, o pecado crucificado, e os monumentos ilustres da vitória que Jesus Cristo obteve nessa guerra. Vocês verão o tirano acorrentado, uma multidão de cativos que seguiram seu libertador, e a fortaleza onde o demônio foi aprisionado depois de tantos séculos, e de onde ele fazia suas investidas contra os homens, agora capturado e derrubado por terra. Vocês verão a própria caverna e os mesmos antros profundos desse príncipe das trevas, que se descortinaram aos nossos olhos, porque assim o quis nosso Rei vencedor quando desceu em pessoa para fazer com que ali brilhasse o esplendor de sua glória.

Não temam que esse relato seja enfadonho. Sim, porque se quando alguém conta as guerras e as vitórias de homens, longe de se entediar, vocês deixam de comer e beber para escutá-lo, quanto mais gosto terão nas coisas ainda mais admiráveis de que lhes iremos falar! Considerem o que significa ver um Deus que veio do céu, que desceu do alto de seu trono sobre a terra e foi até o fundo dos infernos, para ali combater o príncipe; o que é ver o demônio lutar contra um Deus que se oculta sob a forma de homem, e, o que jamais deixaremos de admirar, a morte destruída pela morte, a maldição abolida pela maldição, e a tirania do demônio derrubada pelas mesmas armas que ele usou para estabelecê-la.

Deixemos nossa sonolência e ergamo-nos. Já vejo as portas abertas. Entremos, com respeitosa modéstia e um santo temor. Mas, quais são essas portas?

Como, dirão vocês? Você nos prometei falar do Filho único de Deus, e você nos fala do filho de Davi, um homem que viveu há muitos séculos, e você o chama de pai e avô de Jesus Cristo? Mas, esperem um pouco, não queiram saber todas as coisas de uma vez, aprendam pouco a pouco e por degraus. Lembrem-se de que vocês não estão senão na porta e ainda no vestíbulo. Porque se apressar em penetrar até o fundo do santuário, quando ainda sequer se chegou a entender o que se passa do lado de fora?

Não é o nascimento divino do Salvador que eu vou explicar agora, e nem mesmo em seguida. Eu sei que ele é incompreensível e inefável. Já o profeta Isaías o disse antes de mim. Pois, após haver predito a paixão do Salvador, a extrema caridade que ele teve por todos os homens, e admirado de que alturas de glória ele desceu até o mais profundo rebaixamento, ele exclamou: “Quem poderá descrever a sua geração?[2]”.

Portanto, não será desse primeiro nascimento que eu vou tratar aqui, mas de seu nascimento terrestre provado por uma infinidade de testemunhos, os quais eu lhes direi que a graça do Espírito Santo concedeu-me aprender.

E também não é possível descrever a esse claramente, porque ele próprio é um mistério grande e temível. Não o considerem, então, de pouca importância na medida em que lhes falo, mas mantenham sua atenção, e tremam ao ouvir dizer que um Deus desceu sobre a terra. Trata-se de uma maravilha tão espantosa e tão inaudita, que os anjos em coro renderam glória a Deus em nome de toda a terra, por meio de aclamações e louvores. Os próprios profetas, muito tempo antes, demonstraram uma profunda admiração. “Afinal ele veio sobre a terra, e conversou com os homens![3]”. pois é um estranho prodígio que esse Deus inefável, incompreensível, em tudo igual a seu Pai, tenha vindo a nós, passando pelo seio de uma virgem, e que se tenha rebaixado a ponto de nascer de uma mulher; que ele tenha desejado ter a Davi e Abrahão por ancestrais, e não apenas Davi e Abrahão, mas, o que é mais admirável, mulheres semelhantes àquelas de que já falamos.

2.      Assim, quando ouvirem falar dessas coisas tão grandiosas, elevem seu espírito e não concebam nenhuma baixeza, e que sua admiração redobre ao ver o verdadeiro e único Filho do Pai, sofrer ser chamado de filho de Davi, para tornar vocês filhos de Deus, e não recusar ter como pai a seu escravo, a fim de que vocês, que são escravos, possam ter a Deus como pai. Vejam como esse Evangelho, ou seja, essa boa nova que lhes anunciamos, é admirável desde o começo.

Se vocês duvidam da glória que lhes está prometida, sejam persuadidos pela humilhação de Jesus Cristo. Pois a razão do homem tem muito mais dificuldade em compreender que um Deus tenha se tornado homem, do que em explicar que um homem possa se tornar filho de Deus. Então, quando vocês ouvirem dizer que o Filho de Deus é também filho de Davi e de Abrahão, não duvidem que vocês, que são filhos de Adão, sejam também filhos de Deus. Pois teria sido em vão que Deus se rebaixou tão profundamente, se não fosse para levantar o homem. Ele nasceu segundo a carne a fim de que vocês possam renascer segundo o espírito. Ele nasceu de uma mulher, a fim de que vocês possam deixar de ser filhos de uma mulher.

É por isso que ele nasceu de duas maneiras diferentes, sendo uma igual ao nosso nascimento e a outra infinitamente elevada acima do nosso: pois ele tem isso em comum conosco – ter nascido de uma mulher – mas o que ele tem de particular é “que ele não nasceu do sangue, nem da vontade do homem ou da carne[4]”, mas do Espírito Santo, e que nesse ponto seu nascimento constitui a imagem desse renascimento divino, que ele nos dará pela graça do Espírito Santo. Podemos dizer a mesma coisa de todos os seus outros mistérios. Seu batismo tinha alguma coisa do Antigo Testamento e do Novo; do Antigo, tê-lo recebido de um profeta; do Novo, ter recebido ali invisivelmente o Espírito Santo. Jesus Cristo, ao se encarnar, fez como uma pessoa que, vendo dois homens lutarem, tomou ambos pela mão e os reconciliou. Assim, ao vir ao mundo, ele reuniu a natureza humana e a natureza divina, a grandeza de Deus e a pequenez do homem, a antiga lei e a nova.

Vocês podem ver, desde o começo, qual é o brilho dessa cidade santa, e como nela o Rei aparece revestido com nossa carne, como um príncipe no meio de sua armada. É comum que um Rei, durante o combate, não traga as marcas de sua dignidade e de seu poder. Ele deixa a púrpura e o diadema, e se veste como um de seus soldados. Mas os reis da terra se disfarçam assim para que, não se deixando conhecer, não atraiam sobre si os esforços de seus inimigos, enquanto que o nosso Rei o faz em primeiro lugar para não afugentar seus inimigos, e para não espantar seus amigos. Ele veio, não para nos atemorizar, mas para nos salvar. É por isso que, desde o começo do Evangelho, ele é chamado de Jesus; e essa palavra, que é hebraica e não grega, significa “Salvador”, porque, conforme diz o Evangelho, “ele salvará seu povo[5]”.

3.      Considerem como o escritor sagrado eleva nossos espíritos, e como, não nos falando senão de coisas comuns, ele nos revela maravilhas que ultrapassam todas as nossas esperanças. Pois esses dois nomes do Filho de Deus, o de Jesus e o de Cristo eram ambos conhecidos de todos os judeus. Deus, prevendo que os mistérios que ele haveria de realizar seriam inacreditáveis, quis que ele tivesse esse nome divino a partir das figuras ancestrais, para assim prevenir todas as confusões que as novidades costumam causar. Pois Josué, que sucedeu a Moisés, e que fez com que o povo entrasse na terra prometida, também se chamava Jesus. Vejam a figura, e compreendam agora a verdade. Antes, Jesus fez os judeus entrarem na terra prometida; e Jesus agora nos faz entrar no céu e desfrutar dos bens eternos. O primeiro fez essa maravilha após a morte de Moisés; o segundo a faz depois do fim da lei de Moisés; o primeiro foi o chefe do povo de Deus; o segundo é seu Rei e Soberano.

Mas para que, ouvindo o nome de Jesus, vocês não hesitem entre ele e seus homônimos, o evangelista acrescenta logo o sobrenome de Cristo: “Jesus Cristo, filho de Davi”. Josué não era da tribo de Davi, mas de outra tribo.

Vocês me perguntarão porque São Mateus chama seu livro de “livro da geração de Jesus Cristo”, uma vez que ele não contém apenas seu nascimento, mas toda a sua vida. É porque o nascimento de Jesus Cristo é o princípio, e como que a raiz de todos os demais mistérios seus, e a fonte única de todos os nossos bens. E, assim como Moisés chamou seu livro de “livro da criação do céu e da terra”, embora tratasse de muitas outras coisas, também o evangelista nomeia seu livro a partir do mistério que é a fonte e o princípio de todos os outros. Pois era uma coisa absolutamente espantosa, e que ultrapassava a esperança e a expectativa de todos os homens, que um Deus se fizesse homem; e, depois de tão grandiosa maravilha, todo o resto se segue naturalmente a esse princípio.

Mas por que ele não o chama primeiro de “filho de Abrahão”, e a seguir, “filho de Davi”? Não foi, como dizem alguns, para ir do último ao primeiro, porque senão ele teria feito como São Lucas, coisa que ele não fez. Por que, então, nomeia ele primeiro a Davi? Porque o nome de Davi, príncipe ilustre e muito menos antigo do que Abrahão, estava então em todas as bocas. Embora Deus tenha feito a ambos a mesma promessa, não obstante o longo passar dos anos fez com que o povo já não se lembrasse mais de um e que só se falasse do outro, mais novo e mais recente. Os próprios judeus dizem no Evangelho: “Não sabemos nós que o Cristo deve vir da raça de Davi, e da cidade de Belém, onde estava Davi?[6]”. Nenhum dentre eles o chamava de filho de Abrahão, e todos o chamavam de filho de Davi. Eu repito, Davi era muito mais lembrado do que Abrahão, por ser menos antigo, e por ter sido rei.

 É por isso que eles chamavam por esse nome os reis que eles mais queriam honrar. O próprio Deus usa esse modo de falar. Ezequiel e outros profetas dizem que “Davi se erguerá e reinará[7]”, coisa que ele não referia a Davi, que estava morto, mas aos outros reis que seriam os imitadores de sua piedade. Deus diz ainda a Ezequias: “Eu protegerei essa cidade, por mim, e por Davi, meu servidor[8]”. Ele também promete a Salomão, “que enquanto ele vivesse ele não destruiria seu reino, por causa de seu servidor Davi[9]”. Esse rei estava em grande glória diante de Deus e diante dos homens. É por isso que o evangelista começa por ele, e só então passa ao mais antigo de seus pais, acreditando ser supérfluo, ao menos aos olhos dos judeus, ir além na enumeração dos seus ancestrais, porque aqueles eram os mais ilustres de todos, um por ter sido rei e profeta, e o outro por ter sido profeta e patriarca.

Mas como é possível provar, dirão vocês, que Jesus Cristo descende da raça de Davi? Tendo ele nascido, não de um homem, mas apenas de uma virgem cuja genealogia não é apontada, como poderemos saber que ele pertencia à raça desse rei? Eis aqui duas dificuldades que se apresentam: uma porque a genealogia da Virgem não está indicada, e a outra porque a apontada é a de São José, que é inteiramente estranho ao nascimento do Salvador. Parece que a primeira dessas genealogias é a única necessária, e que a segunda seria inútil.

Como responderemos a isso? Como demonstraremos que a Virgem descende de Davi? Como o provaremos? Escutem o que disse Deus ao anjo Gabriel: Vá a uma virgem que está noiva de um homem chamado José, que é da casa e da família de Davi[10]”. Não pode haver nada mais claro, uma vez que José era da casa e da família de Davi, e assim se demonstra que também a Virgem o era, uma vez que era proibido pela lei que se buscasse uma esposa fora de sua tribo, e desposar uma que não o fosse.

O patriarca Jacó havia predito que Jesus Cristo nasceria da tribo de Judá, ao dizer: “Os príncipes não cessarão na tribo de Judá e todos os chefes sairão de sua carne até que chegue Aquele que foi destinado por Deus, e ele será a esperança das nações[11]”. Essa profecia nos garante, em primeiro lugar, que Jesus Cristo sairia da tribo de Judá, mas não mostra que seria da de Davi. Seria a tribo de Judá composta apenas pela família de Davi? Não haveriam outras? Ao contrário, muitas famílias eram da tribo de Judá, sem que fossem da raça de Davi. Mas, para nos impedir de pensar assim o evangelista diz formalmente que José era “da casa e da família de Davi”.

Se vocês quiserem outra prova, aqui está. Não era permitido as casar ou sair, não apenas de sua tribo, mas mesmo de sua família e de seu parentesco. Sendo assim, as palavras “da casa e da família de Davi” podem ser entendidas tanto de José como da Virgem. Pois se José era da casa e da família de Davi, ele certamente não tomaria uma esposa que não fosse da família da qual ele próprio descendia.

Mas, dirão, e se José tivesse burlado a lei? O evangelista prevê essa objeção, ao dizer que “ele era justo[12]”, a fim de que, reconhecendo nele essa virtude, não se pudesse acusá-lo de violação da lei. Como poderia um homem tão caridoso e moderado – incapaz sequer de pensar em punir a Virgem embora todas as aparências parecessem obrigá-lo – como poderia um homem tão virtuoso violar a lei apenas para satisfazer sua paixão? Como poderia um homem, cuja virtude ia além da própria lei – como vemos por sua decisão de deixar sua esposa secretamente – teria se resolvido a pecar abertamente contra a lei, sem ser a isso obrigado por necessidade alguma?

É assim evidente, por tantas provas, que a Virgem era da raça de Davi. Vejamos agora porque o evangelista não reporta sua genealogia, mas apenas a de José.

4.      É porque não era comum que os judeus tirassem sua genealogia do lado das mulheres. Assim, para manter o costume, e para não perturbar os espíritos com mais uma novidade, ele não menciona os parentes da Virgem, e se contenta em nos relatar a genealogia de José. Se ele tivesse relatado a genealogia da Virgem, ele não teria observado a ordem estabelecida, e, se não houvesse reportado a de São José, nós não saberíamos a qual tribo pertencia a Virgem. Foi para que conhecêssemos quem era Maria e de quem ela descendia, e para manter o costume judaico, que o evangelista descreveu a genealogia de José, esposo da Virgem, mostrando que ele era da família de Davi. Segue-se daí que também a Virgem o era, porque sem dúvida um homem tão justo, conforme foi dito, não teria jamais desposado uma mulher de outra tribo que não da sua.

Poderíamos ainda reportar outra razão mais misteriosa, para mostrar porque nada se diz da genealogia da Virgem, mas não é aqui o lugar para isso, porque já estamos nesse assunto há muito tempo.

É melhor terminarmos esse discurso e conservarmos com cuidado esses pontos que explicamos: porque o evangelista nos fala primeiro de Davi; porque ele chama seu livro de “livro da geração do Salvador”; porque ele dá o nome de Jesus, e de Jesus Cristo; o que esse nascimento tem em comum com o nosso; como se demonstra que Maria era da raça de Davi; e, enfim, porque se relata a genealogia de José, e não a da Virgem.

Se vocês tiverem o cuidado de se lembrar dessas coisas, vocês nos encorajarão a continuar; mas, se forem indiferentes e deixarem tudo escapar da memória, sua frieza nos tornará frios e lentos daqui para frente. Pois um trabalhador não de dedica a cultivar uma terra na qual ele vê que o que planta se perde e não cresce. Por isso eu lhes peço que façam crescer essa semente, porque esse cuidado produzirá grandes benefícios para a salvação de suas almas. Esse santo exercício os tornará agradáveis a Jesus Cristo, e, meditando as palavras de sua boca, vocês aprenderão a purificar suas bocas de todas as palavras desonestas e injuriosas. Nós nos tornaremos assim temíveis aos demônios, quando eles virem nossa língua armada com essas palavras de fogo; e atrairemos para nós uma grande graça de Deus, e essa leitura assídua tornará os olhos de nossos corações mais vivos e iluminados.

Deus os deu olhos, boca e orelhas, a fim de que nos consagremos ao seu serviço, a fim de que falemos dele, que nossas ações sejam para ele, que cantemos seus louvores, que lhe rendamos contínuas ações de graças, e que, por meio desses santos exercícios, purifiquemos o fundo de nossos corações. Pois, assim como a pureza do ar torna o corpo são, também a santidade dessas ocupações torna a alma mais santa e mais pura.

5.      Não é verdade que nossos olhos lacrimejam num lugar cheio de fumaça, e que logo que passamos ao ar livre, observando a beleza dos campos, as flores e as águas correntes, eles logo retomam seu vigor? O mesmo acontece com os olhos da alma. Se eles desfrutam das Escrituras como se fossem uma pastagem espiritual, eles se tornarão mais saudáveis, mais puros e penetrantes; mas se se deixam obscurecer pela fumaça das coisas do século, serão reduzidos a chorar, nesse mundo e no outro. Pois tudo o que existe nesse mundo se assemelha à fumaça. É o que fez Davi dizer: “Meus dias se evanesceram como a fumaça[13]”. Ele falava da brevidade e da instabilidade da vida; mas creio que podemos dizer também que as coisas do mundo nos cegam como a fumaça, e que elas nos enredam com laços semelhantes às teias de aranha.

Pois não há nada que fira ou que perturbe mais os olhos da alma do que o embaraço causado pelos cuidados e os negócios do mundo, e essa multiplicidade de desejos e de paixões, que são como a lenha que produz essa fumaça. E, como o fogo fumega mais quando a lenha está úmida, também um desejo, quando penetra numa alma que está úmida pelo relaxamento e a preguiça, produz necessariamente uma fumaceira terrível. É por isso que precisamos do orvalho do Espírito Santo, e desse sopro bem-aventurado, a fim de extinguir esse fogo das paixões, de dissipar essa fumaça, e de tornar nosso coração mais livre e desembaraçado. Pois é impossível que uma alma pesada com tantos cuidados possa se elevar ao alto e voar ao céu. Devemos nos desembaraçar de tudo para que possamos correr pelos caminhos de Deus. E não poderemos fazê-lo, a menos que sejamos levados pelas asas do Espírito Santo.

Não é uma coisa vergonhosa e ridícula que, ao mesmo tempo em que nos servimos de empregados, quando os temos, apenas para serviços necessários, empreguemos nossa boca para coisas que enrubesceríamos em encarregar o menor de nossos servidores, ou seja, para coisas inteiramente vãs e supérfluas? E praza a Deus que elas sejam apenas supérfluas, e não más e perigosas! Se nossas palavras fossem úteis, é certo que seriam agradáveis a Deus; mas ao contrário, dizemos tudo o que o demônio nos inspira: intrigas e maledicências, imprecações e injúrias, juramentos mentirosos, perjúrios, gritos de cólera e futilidades, contos de comadres, questões ociosas e sem interesse, eis tudo o que costuma sair de nossa boca.

Quem, de vocês que agora me ouvem, que seria capaz de recitar de cor um salmo ou qualquer outro trecho da Escritura, se eu lhe pedisse? Creio que ninguém. E, o que é mais deplorável, é que, sendo tão indiferentes com as coisas santas, vocês são tão ardorosos para as coisas do diabo. Pois se eu lhes pedir para cantar uma dessas canções infames, ou alguns versos lascivos e desavergonhados, eu encontraria muitos que os houvessem aprendido direitinho, e que os recitariam com prazer.

Mas, como desculpamos tais excessos? Eu não sou religioso nem solitário, dirão, eu tenho esposa e filhos, e cuido dos meus afazeres. De fato, essa é uma grande praga de nosso tempo, acreditar que a leitura das Escrituras não é boa senão para os religiosos, enquanto que as pessoas do mundo não têm necessidade dela. Mas os que estão no meio do combate, e que recebem todos os dias novos ferimentos, precisam mais de remédio do que os outros. É um grande mal não ler os livros que contêm a palavra de Deus, mas é pior ainda se convencer de que essa leitura é inútil. Um pensamento assim só pode vir do demônio.

Vocês não ouviram o que disse São Paulo: “Tudo o que está escrito, foi escrito para nossa instrução[14]”? Se quiséssemos obrigá-los a tocar o Evangelho com as mãos sujas, vocês se recusariam a fazê-lo, e, no entanto, vocês não acham necessário saber o que ele tem a ensinar. Está aí a causa do desregramento geral que vemos hoje entre os homens.

Se vocês quiserem experimentar o quanto a leitura da Escritura é santa e útil, examinem a si próprios. Vejam em que disposição se encontram, quando escutam os salmos e quando escutam canções diabólicas; quando estão na igreja e quando estão no teatro; e vocês se surpreenderão de ver o quanto a alma, embora sendo a mesma, fica diferente em cada um desses encontros. É por isso que São Paulo disse: “Os maus entretenimentos corrompem os bons costumes[15]”. Nós temos continuamente necessidade dos cânticos do Espírito Santo. Cantar louvores a Deus é o mais belo privilégio do homem, e nada o distingue mais dos animais, que por sua vez possuem sobre ele muitas vantagens. É aí que reside o alimento da alma, seu ornamento, sua segurança; ao contrário, a negligência da palavra de Deus lhe causa a fome e a morte: “Eu lhes enviarei, disse Deus. Não a fome de pão, nem a sede de água, mas a fome da palavra de Deus[16]”.

O que existe de mais deplorável do que atrair voluntariamente sobre si uma infelicidade como a que Deus ameaça os homens como sendo um grande suplício, e de reduzir a própria alma a uma fome cruel que a enfraquece? Pois é pela palavra que a alma se perde, e por ela se salva. Uma palavra inflama a cólera, uma palavra apazigua; uma palavra lança a alma numa paixão brutal, uma palavra modesta e grave a torna casta e pura. Se então a palavra de um homem produz tão grandes efeitos, como é possível desprezar a palavra do próprio Deus? E se a exortação de um homem é tão poderosa, quanto mais não será a do Espírito Santo?

Uma palavra da Escritura é capaz de excitar na alma uma chama mais viva do que o fogo, e de torná-la capaz das mais belas ações. Foi assim que São Paulo reduziu o orgulho dos Coríntios, que se glorificavam de coisas das quais deveriam se envergonhar e que deveriam destinar ao silêncio eterno. Mas, quando esse apóstolo lhes escreveu, qual não foi o efeito de suas palavras, como ele próprio atesta: “Vejam, com efeito, o que produziu em vocês essa tristeza segundo Deus, que vocês sentiram: quanta solicitude, quanto cuidado em se justificarem, quanto indignação, temor, desejo, zelo e ardor em punir o crime![17]”.

É desse modo que vocês disciplinarão seus servidores, seus filhos, suas esposas e seus amigos, e que forçarão até seus inimigos a amá-los. É por essas palavras santas que tantos homens amados por Deus avançaram no caminho da virtude. Davi, depois de seu pecado, escutou a palavra do profeta, e imediatamente acatou a penitência, tornando-se o modelo de todos os penitentes. Foi por palavras santas que os apóstolos se tornaram aquilo que foram, atraindo para si toda a terra.

Mas de que serve, dirão vocês, ouvir a palavra de Deus, se não a praticarmos? Mesmo assim, não deixaremos de extrair dela um benefício considerável. Pois então nos acusaremos, suspiraremos, gemeremos, e acabaremos fazendo o que ela nos ensina. Mas, quando sequer compreendemos o mal que foi feito, como poderemos fugir dele ou nos arrependermos?

Não devemos, assim, negligenciar a santa Escritura. É o demônio que nos inspira esse desgosto, para que nos roube as pérolas e os diamantes que nos enriquecem. É por isso que ele nos persuade que é inútil ouvir a palavra de Deus, para que ele não tenha que lamentar nos vendo por em prática aquilo que escutamos. É preciso reconhecermos esse perigoso artifício, e nos fortalecermos de todos os lados contra seus ataques; a fim de que, cobertos com essa armadura espiritual, sejamos invulneráveis contra nosso inimigo, e que, tendo-o vencido e trazendo as marcas de nossa vitória, desfrutemos para sempre dos bens do céu, pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence a glória e o poder, pelos séculos dos séculos. Amém.



[1] Hebreus 12: 20.
[2] Isaías 53: 8.
[3] Baruch 3: 38.
[4] João 1: 13.
[5] Mateus 1: 21.
[6] João 7: 42.
[7] Ezequiel 37: 24.
[8] IV Reis 19: 34.
[9] III Reis 2: 34.
[10] Lucas 1: 27.
[11] Gênesis 49: 10.
[12] Mateus 1: 19.
[13] Salmo 101: 12.
[14] Romanos 15: 4.
[15] I Coríntios 15: 33.
[16] Amós 8: 11.
[17] II Coríntios 7: 11.

Nenhum comentário:

Postar um comentário