sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Sexta Homilia: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão - Capítulo II, versículos 1 a 4






1.      Necessitamos, irmãos, de uma grande atenção e de muitas preces, para explicar todas as dificuldades que se encontram nessas palavras de nosso Evangelho, e para saber o quem são esses magos, e de onde vêm eles; o que os fez empreender essa viagem; e o que era a estrela que os conduziu.

Comecemos, se quiserem, pelo que dizem a respeito os inimigos da verdade: pois o demônio os cega de tal maneira, que eles acreditam encontrar nessa história as armas para combater essa mesma verdade. Assim que Cristo nasceu, dizem eles, apareceu uma estrela, o que vem a ser uma prova clara da certeza e da solidez da astrologia. Mas o que existe de falso nesse raciocínio? Se Jesus tivesse nascido segundo a lei da astrologia, como poderia ele tê-la destruído depois, invertendo o erro do destino, fechando a boca ao demônio e destruindo todas as ilusões dessa arte de predizer e adivinhar?

Como os magos poderiam ter entendido por meio dessa estrela que aquela criança seria o rei dos Judeus, pois certamente ela não era rei desse reino terrestre, como ele próprio disse a Pilatos: “Meu reino não é desse mundo[1]”? ele não possuía exteriormente nada das coisas que costumam acompanhar os reis.

Ele não tinha junto a si escoltas de guerreiros, cavalos, juntas de mulas, nem outras coisas do gênero. Ele escolheu uma vida baixa e desprezível, e não se fez seguir senão por doze homens muito pobres.

Mas, ainda que os magos tivessem reconhecido Jesus Cristo como um príncipe temporal, por que eles haveriam de vir vê-lo? Não faz parte da arte dos astrólogos conhecer pelos astros aqueles que nasceram, mas sim predizer, conforme pretendem, o que deverá acontecer com a criança, observando qual era a posição das estrelas no momento de seu nascimento. Entretanto, os magos não estavam junto da mãe, para marcar o instante do parto. Eles não tinham conhecimento do tempo em que nasceu Jesus Cristo, para que esse conhecimento fosse o fundamento de predições que eles pudessem fazer a respeito do futuro. Ao contrário, depois de terem visto brilhar uma estrela em seu país, eles vieram para ver aquele que havia nascido, coisa que é muito mais surpreendente do que todo o resto.

Que razão os levou e empreender essa viagem? Que benefício esperavam eles, para vir de tão longe adorar um rei? Ainda que esse príncipe algum dia se tornasse seu rei, essa razão não seria suficiente para colocá-los nesse longo caminho. Se ele tivesse nascido num palácio e seu pai fosse um rei, poderíamos dizer que o desejo de agradar ao pai os tivesse levado a vir saudar a criança, a fim de obter com isso algum mérito e atrair sua amizade; mas eles jamais esperavam que ele fosse seu rei: ele o seria, no máximo, rei de um povo estrangeiro e muito afastado de seu país, e ainda era uma criança – por que, então empreender uma viagem tão penosa? Por que oferecer presentes, principalmente porque não o poderiam tê-lo feito sem se expor a grandes perigos? “Pois Herodes, tendo ouvido a respeito, ficou perturbado, e com ele todo o povo”. Mas, dir-se-á, eles não previram nem essa perturbação nem esses perigos. Objeção inverossímil: a menos que fossem inteiramente desprovidos de senso, eles deveriam saber que ao entrar numa cidade governada por um rei, e anunciando aí o que haviam de anunciar – ou seja, indicando um outro rei que não o rei que governava – eles estariam infalivelmente expostos a mil perigos mortais.

Mas por que adorariam eles uma criança de fraldas? Se tivesse sido um príncipe em idade viril, poderíamos dizer que a esperança de obter algum socorro poderia tê-los levado a se expor por sua causa a todos os perigos. Entretanto, teria sido ainda uma enorme loucura para esses Persas e estrangeiros, que não tinham nenhuma ligação com os Judeus, deixar seu país, sua casa, seus parentes, para vir se colocar sob o domínio de um rei estrangeiro.

Pois, se isso tudo era loucura, mais ainda seria que pessoas sábias tivessem vindo de tão longe para adorar uma criança, provocar tantas perturbações e logo retornar ao seu país. Pois, afinal, que marca de realeza viram eles, deparando-se com um estábulo, um berço, uma criança envolta em panos e uma mãe pobríssima?

Mas o que significam esses presentes que eles ofereceram, e por que os ofereceram eles? Haveria alguma lei ou costume que os obrigasse a prestar essa honra a todos os reis quando de seu nascimento? Poder-se-ia dizer que esses magos percorriam toda a terra, para adorar aqueles que eles sabiam que iriam se tornar, de pobres que fossem, reis, e para lhes prestar suas homenagens antes que eles subissem ao trono? Essa suposição não pode ser levada a sério.

Então, por que eles o adoraram? Se fosse com vistas a alguma vantagem presente, o que poderiam eles esperar de uma criança, e de uma mãe pobre? Se fosse por qualquer vantagem futura, como poderiam saber que essa criança se lembraria que um dia eles a adoraram num berço? Se disserem que a mãe poderia lembrar-lhe, eu respondo que eles deveriam então receber não uma recompensa, mas um castigo, por havê-la exposto a um perigo evidente. Pois eles foram causa de que Herodes, perturbado com essa novidade, pesquisou com cuidado o local onde se encontrava a criança, e fez de tudo para descobri-la e matá-la. Com efeito, anunciar que um qualquer poderia um dia se tornar rei, não equivale a apontá-lo com o dedo, e suscitar de todas as partes mil hostilidades?

Vejam, portanto, como encontramos aqui absurdos, se considerarmos essa história do ponto de vista humano. Esses que mencionei aqui não são os únicos, e uma reflexão atenta poderá descobrir muitos outros. Mas empilhando tantas questões umas sobre as outras, eu não conseguirei senão causar uma espécie de tontura e vertigem; contentemo-nos com essas que propusemos e busquemos a solução, começando pela estrela que os magos viram. Quando tivermos examinado o que era esse astro, de onde ele provinha, se ele era da natureza dos astros, se era um novo astro, de uma espécie diferente, ou se era um astro em realidade ou somente em aparência, compreendemos daí por diante todo o resto.

2.      De onde nos virá o esclarecimento dessas dúvidas? Do próprio Evangelho. Pois para considerar que essa estrela não era uma estrela comum, nem mesmo uma estrela, mas uma virtude invisível que se ocultava sob essa forma exterior, não precisamos mais do que considerar seu curso e seu movimento. Não existe astro, um sequer, que siga a mesma direção que esse. O sol, a lua e todos os planetas e estrelas, vão do Oriente para o Ocidente; enquanto que essa estrela foi do Setentrião ao Meio Dia, conforme a posição da Palestina em relação à Pérsia.

Podemos provar a mesma coisa pelo tempo em que essa estrela apareceu. Pois ela não brilhou à noite como as outras, mas no meio do dia e em pleno meio-dia, coisa que as outras estrelas não podem fazer, nem a lua, que, embora bem mais brilhante do que os demais astros, desaparece assim que o sol começa a aparecer. Entretanto, essa estrela possuía um brilho que ultrapassava o do sol, e derramava uma claridade mais viva e mais brilhante.

 A terceira prova que nos permite ver que essa estrela era incomum, é que ela aparecia e desaparecia em seguida, ela guiou os magos ao longo de toda a rota até a Palestina. Assim que eles entraram em Jerusalém, ela se ocultou; e quando eles deixaram Herodes depois de lhe noticiar o objetivo de sua viagem, e continuaram seu caminho, ela se mostrou outra vez, coisa que não poderia fazer um astro comum, mas apenas uma virtude viva, e sobretudo inteligente. Pois ela não tinha, como os outros astros, um movimento fixo e invariável. Ela se movia quando era preciso e se detinha quando necessário, modificando, segundo as circunstâncias, sua marcha e seu estado, a exemplo daquela coluna de fogo que apareceu diante dos israelitas, e que fazia com que marchasse ou se detivesse o exército, conforme o fazia.

A mesma coisa se prova em quarto lugar, pelas indicações que essa estrela dava. Ela não ficava no alto do céu, quando ela indicava aos magos o lugar para onde eles deviam ir, pois ela não poderia conduzi-los desse jeito; assim, para isso ela descia até a região mais baixa do espaço. Pois vocês podem julgar que uma estrela não poderia indicar uma cabana específica e o ponto preciso ocupado pelo corpo da criança, e estão certos. De tão grande altura, ela não teria podido designar e indicar exatamente um objeto tão pequeno ao olhar. Considerem a lua, cujas dimensões são bem diferentes das estrelas e, no entanto, todos os habitantes da terra, de qualquer ponto de sua vasta extensão que a mirem, a verão sempre como próxima a eles. Como então, uma simples estrela poderia indicar objetos tão pequenos quanto uma gruta e um berço, senão descendo de suas alturas no céu, para vir se deter de certa forma diretamente sobre a cabeça da criança? É o que o Evangelista indica com as palavras: “A estrela que eles haviam visto no Oriente começou a se mover diante deles, até que chegou ao lugar onde estava a criança, e ali se deteve”. Vocês podem ver por quantas provas o Evangelho mostra que essa estrela não era uma estrela comum, e que não poderia ser pelas regras da astrologia que ela iria revelar a criança aos magos.

3.      Mas, por que Deus fez com que aparecesse essa estrela? Ele fez isso para convencer a infidelidade dos Judeus, e para tornar sua ingratidão indesculpável. Descendo à terra para fazer cessar o Antigo testamento, para chamar a todos ao conhecimento de seu nome, e para se fazer adorar por toda a terra e além dos mares, Jesus Cristo primeiro abriu aos Gentios a porta da fé, e instruiu seu próprio povo por intermédio de estrangeiros. Vendo Deus a indiferença com que os Judeus escutavam todas as profecias que prometiam o nascimento do Salvador, fez vir de longe aqueles bárbaros para buscar o rei dos Judeus no meio dos próprios Judeus, e quis que Persas lhes ensinassem primeiro aquilo que eles se recusavam a aprender pelos oráculos de seus profetas, a fim de que, se eles tivessem ainda um pouco de boa vontade, essa ocasião os poderia levar a crer, e, caso se mantivessem rebeldes, já não lhes restaria mais desculpa alguma. Pois que poderiam eles ainda dizer, rejeitando Jesus Cristo depois de tantos testemunhos de profetas, depois de verem esses magos buscá-lo pela simples aparição de uma estrela, e adorá-lo tão logo o encontraram?

Deus se serviu então dos magos, do mesmo modo como se serviu outrora dos Ninivitas, aos quais ele enviou Jonas, e da mesma maneira como ele se serviria mais tarde da Samaritana e da Cananeia, ou seja, para confundir os Judeus. E aqui podemos aplicar as palavras de Jesus Cristo: “Os Ninivitas se levantarão contra esse povo e o condenarão; a rainha de Sabá acusará essa raça infiel[2]”, porque eles creram nos menores sinais, e esse povo não se rendeu aos maiores.

Vocês me perguntarão por que Deus se serviu dessa estrela para atrair os magos para si. Mas de que outro meio poderia ele se servir? Deveria ele enviar-lhes profetas? Os magos não os teriam recebido. Deveria ter-lhes falado do Céu? Eles não teriam escutado. Deveria ter-lhes enviado um anjo? Eles o teriam negligenciado. É por isso que, deixando de lado todos esses meios extraordinários, ele os chamou com coisas que lhes eram comuns e familiares; e, usando assim de uma admirável condescendência para se adaptar à sua fraqueza, ele fez brilhar sobre eles um grande astro, muito diferente de todos os outros, a fim de tocá-los com sua grandeza, sua beleza e a novidade de seu movimento.

Foi imitando essa condescendência que São Paulo aproveitou outrora a oportunidade de um altar que ele viu em Atenas, para pregar Jesus Cristo aos Atenienses, servindo-se do testemunho de seus próprios poetas. Quando ele se dirigia aos Judeus, ele falava de circuncisão; aos que viviam sob a lei antiga, ele partia dos sacrifícios para anunciar a doutrina. Como os homens são ligados aos seus costumes e ao que estão acostumados a ver, Deus, e todos os que ele envia a trabalhar pela salvação dos povos se servem deles frequentemente para lhes mostrar a verdade.

Então, não vejam como coisa indigna da grandeza de Deus, atrair a si os magos por meio de uma estrela, porque vocês estariam condenando pela mesma razão as cerimônias dos Judeus, seus sacrifícios, suas purificações, seus festejos da lua nova, sua arca e seu próprio templo. Todas essas coisas não por origem senão uma grosseria inteiramente pagã. Porém, Deus, pela salvação de um povo mergulhado no erro, permitiu que os Hebreus o honrassem do jeito que os pagãos honram os demônios, com algumas poucas diferenças, a fim de que, retirando pouco a pouco seus costumes, ele os elevasse a seguir até o cume da sabedoria evangélica.

Ele utiliza assim dessa condescendência para com os magos, e os atrai por meio de uma estrela, para os fazer passar em seguida a um estado mais perfeito e mais elevado. Mas depois de tê-los conduzido assim, como pela mão, até o berço, ele já não lhes falou através de uma estrela, mas através de um anjo, porque eles haviam se tornado mais perfeitos e iluminados.

Assim Deus tratara outrora os Ascalonitas e os povos de Gaza[3]. Pois as cinco cidades dos Filistinos haviam sido atingidas por uma praga mortal desde a tomada da arca, e, não podendo encontrar meio algum de debelá-la, eles reuniram os adivinhos e se informaram sobre os meios de fazer cessar a praga. Seus adivinhos lhes responderam que eles deveriam pegar vacas novas que ainda não tivesse sido domesticadas, e que não tivessem ficado prenhes mais do que uma vez, e atrelá-las à carroça onde estava a arca, a fim de deixá-las ir onde quisessem sem que ninguém as conduzissem; e eles asseguraram que se poderia com isso reconhecer se a praga vinha de Deus, ou se acontecera por acaso. Pois, disseram eles, se elas recusassem o jugo ao qual não estavam acostumadas, se os gritos de seus bezerros as fizessem retornar ao estábulo, isso seria uma prova de que a praga acontecera por acaso; mas se elas marchassem reto pelo caminho sem se desviar, ainda que não o conhecessem, e sem ser tocadas pelos chamados de suas crias, seria um indício seguro de que fora a mão de Deus que atingira as cidades. Como, então, aqueles povos acreditavam em seus adivinhos, e fizeram o que eles ordenavam, Deus, em sua condescendência, preferiu se conformar à palavra dos adivinhos, e não considerou indigno secundar suas predições, e realizar o que eles haviam dito. Sua glória então brilhou mais ainda, a ponto de seus inimigos reconhecerem sua grandeza e prestarem testemunho de seu poder soberano.

4.      Agora vamos retomar o começo da passagem que lemos: “Tendo então Jesus nascido em Belém, na tribo de Judá, no tempo do rei Herodes, vieram magos do Oriente a Jerusalém[4]”. Esses magos seguiram a luz de uma estrela, enquanto os judeus não acreditavam tanto em seus próprios profetas, que haviam anunciado o nascimento do Filho de Deus! Mas por que o Evangelista identifica com tanto cuidado o lugar e o tempo dessa história? “Em Belém”, diz ele, “e no tempo do rei Herodes”. Por que ele toma o cuidado de indicar a dignidade de Herodes, acrescentando a palavra “rei”? É para distinguir esse Herodes daquele que mandou matar São João, e que era Tetrarca, mas não rei. Quanto ao lugar e ao tempo, ele os reporta para chamar à nossa memória as antigas profecias, uma do profeta Miquéias, que dizia: “E tu, Belém, terra de Judá, não és a menor dentre as cidades de Judá[5]”; e outra, do patriarca Jacó, que havia indicado com exatidão o tempo da vinda do Messias, e que, para lhe dar um sinal evidente, dissera: “Os príncipes não cessarão na tribo de Judá, e os chefes sairão sempre de sua carne, até que venha Aquele que foi destinado por Deus, e que será a esperança das nações[6]”.

Mas é preciso buscar de onde tiraram os magos o pensamento que tiveram, bem como a decisão que tomaram. Pois eu creio que sua fé não foi obra dessa estrela, mas do próprio Deus, agindo sobre suas almas, como outrora agira sobre o espírito do rei Ciro para dispô-lo a libertar o povo judeu. Quando Deus age dessa forma, ele o faz sem destruir o livre arbítrio, assim como, quando converteu São Paulo por uma voz que o fez ouvir desde o céu, ele quis, fazendo-o ver sua graça, mostrar ao mesmo tempo a submissão e a obediência desse apóstolo.

Mas por que, dirão vocês, Deus não fez essa revelação a todos os magos? É porque nem todos dariam crédito, e esses estavam melhor dispostos do que os demais. Foi assim que, dentre tantos povos a ponto de perecer, Deus não enviou seu profeta senão aos Ninivitas, e que, dos dois ladrões crucificados com Jesus Cristo, apenas um foi salvo. Admirem, então, a virtude dos magos, admirem não apenas sua coragem, mas a franqueza que eles mostraram diante de Herodes. Para que não fossem tomados como espiões, eles se explicaram francamente ao guia que os conduzira, assim como a distância da rota que haviam percorrido.

“E eles perguntaram: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Pois nós vimos sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo[7]”. Eles não temeram nem a cólera do povo, nem a tirania do rei. É isso que me faz acreditar que esses magos se tornaram depois em seu país pregadores da verdade. Pois depois de terem falado tão audaciosamente a um povo estrangeiro, eles o terão feito ainda mais em seu próprio país, principalmente depois de terem sido instruídos pela palavra de um anjo e pelo testemunho dos profetas.

“Tendo ouvido isso, o rei Herodes ficou perturbado, e com ele toda a cidade de Jerusalém[8]”. Herodes podia racionalmente temer, por ser rei, e assim ele receava por si e por seus filhos. Mas que objeto de temor poderia ter Jerusalém, à qual, depois de tanto tempo, os profetas prometiam um Messias, salvador, benfeitor, libertador? De onde vinha a perturbação desse povo? Da mesma aberração de espírito que tantas vezes o fizera desprezar a Deus mesmo quando ele o cumulava de bens, e que lhe fez lamentar perder as carnes do Egito, em detrimento de sua liberdade milagrosamente recuperada. Mas considerem a exatidão das profecias. Pois Isaías havia anunciado essas coisas muito tempo antes: “Eles desejarão, eles se consumirão, porque uma criança nasceu e um filho nos foi dado[9]”. Entretanto, seja qual for o porquê de se perturbarem, eles não se informaram a respeito dessa maravilha que lhes era anunciada. Eles não seguiram os magos, não mostraram a menor curiosidade sobre esse encontro; aliavam em si uma negligência inacreditável e uma teimosia inflexível. Eles deviam, ao contrário, ter como grande honra o nascimento desse novo rei, que já atraía as homenagens dos Persas, e sob cujo reino eles poderiam vir a se tornar mestres do mundo, pois um começo tão ilustre só podia ter consequências gloriosas. Mas nada foi capaz de mudar suas más disposições, nem mesmo a lembrança do domínio Persa, ao qual apenas recentemente haviam escapado. Ainda que não tivessem conhecimento algum dos sublimes mistérios que Deus haveria de realizar, não consultando mais do que os acontecimentos de que haviam sido testemunhas, eles deveria naturalmente dizer uns aos outros: se esses estrangeiros já tremem e temem um rei tão forte, mal tendo ele nascido, quão mais o temerão quando ele se tornar grande! Quão mais poderosos e gloriosos seremos, acima dos outros povos? Mas nada disso foi capaz de tocá-los. Tal foi o torpor de sua indiferença, tamanha a malignidade de sua inveja; duplo vício que devemos cuidar de expulsar de nossa alma; mas, para combatê-lo com sucesso, é preciso ser mais quente do que o fogo. É por isso que Jesus Cristo disse: “Eu vim trazer o fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso![10]”. Também é por isso que o Espírito Santo aparece sob a forma de fogo.

5.      E, mesmo depois disso, permanecemos mais frios do que cinzas e mais insensíveis do que os mortos. Não nos sentimos tocados, vendo o bem-aventurado Paulo se erguer acima do céu, e passar de céu em céu, voando mais rápido do que uma chama, vencendo todos os obstáculos que se apresentam, e se colocando acima do céu e do inferno, do presente e do futuro, daquilo que é e do que não é.

Se esse modelo é demasiado grande para vocês, isso é um sinal da sua negligência. O que tem São Paulo mais do que vocês, para crerem ser impossível imitá-lo? Mas não insistamos sobre esse ponto, deixemos Paulo à parte e lancemos um olhar sobre os primeiros cristãos: dinheiro, propriedades, cuidados mundanos, ocupações seculares, a tudo rejeitaram esses homens, para se entregar a Deus por inteiro e meditar dia e noite seus ensinamentos.

Pois assim é o fogo do Espírito Santo: ele não tolera que o coração que ele inflama deseje qualquer coisa desse mundo, mas, a nós, ele conduz a outro amor. É por isso que aquele que antes seguia suas paixões e desejos, de repente está pronto a dar tudo o que possui, a desprezar a glória, a deixar as delícias e mesmo a expor sua vida, se necessário, e a tudo ele fará com uma facilidade maravilhosa, porque quando o ardor do fogo penetra na alma de alguém, ela expulsa daí toda frieza e toda lassidão. Ele a torna mais leve do que um pássaro e concede um desprezo generalizado a todas as coisas presentes.

Essa pessoa começa logo a sentir sem descanso os movimentos do arrependimento e da compunção. Ela chora abundantemente e sem cessar, e encontra mil prazeres e delícias nessas lágrimas. Certamente, não há nada que nos ligue a Deus mais do que essas lágrimas. Quem se encontra nesse estado, ainda que viva numa cidade, não deixa de viver como se estivesse retirado num deserto, sobre uma montanha ou numa caverna num rochedo. Ele não se volta mais para nadas das coisas presentes, e não deixa de gemer e chorar, seja por seus pecados, seja pelos pecados dos outros. É por isso que Jesus Cristo disse que esses são bem-aventurados: “Felizes os que choram[11]”, disse ele.

Mas como, dirão vocês, São Paulo disse: “Regozijem-se sem cessar em nosso Senhor”? Ele disse isso para expressar o prazer que nasce dessas lágrimas. Pois, assim como a alegria do mundo tem sempre a tristeza como companheira, também as lágrimas que derramamos por Deus fazem crescer na alma uma flor de alegria que não fenece jamais.

Foi assim que aquela cortesã do Evangelho se tornou mais pura do que as virgens, tendo sido abrasada com o fogo divino. A partir do momento em que ela atravessou as chamas da penitência, seu amor por Jesus Cristo chegou ao arrebatamento. Ela chegou descabelada, derramou suas lágrimas sobre os pés sagrados, enxugou-os com seus cabelos e verteu perfumes por cima de tudo. Mas esses sinais exteriores estavam a tal ponto ainda abaixo dos santos ardores de sua alma, que somente Deus os viu! E até hoje, todos os que ouvem essa história se alegram com suas ações santas e a veem como purificada de todos os seus pecados.

Se nós, que temos tanta malícia, temos esse juízo sobre a sua conversão, consideremos quantas graças ele terá recebido de Deus, cuja bondade é infinita, e o quanto ele recolheu os frutos de sua penitência, ainda antes de que Deus a tivesse cumulado com seus dons e seus favores. Assim como o ar se torna mais puro depois de uma chuva, da mesma forma, depois dessa chuva de lágrimas, o espírito se torna sereno e tranquilo, e as nuvens do pecado se dissipam inteiramente. E, do mesmo modo como fomos purificados pela primeira vez no batismo pela água e o espírito, somos purificados pela segunda vez na penitência, pelas lágrimas e a confissão, desde que não ajamos por ostentação e vanglória. Pois quem chora dessa forma é mais digno de condenação do que quem pinta o rosto de branco e vermelho pelo desejo de parecer mais belo.

Quanto a mim, eu quero as lágrimas que derramamos, não por hipocrisia, mas por compunção. Quero as lágrimas que derramamos em segredo no lugar mais retirado da casa e fora da vista dos homens; lágrimas que versamos em grande silêncio, em profundo repouso, e que saem do fundo do coração, que nascem da dor e da tristeza, e que não apresentamos senão aos olhos de Deus. Assim eram as lágrimas de Ana, de quem a Escritura diz: “Ela movia os lábios, sem que se ouvisse sua voz[12]”. Mas suas lágrimas retiniram mais alto diante de Deus do que todas as trombetas do mundo. Por isso Deus a curou de sua esterilidade, e de uma rocha dura fez um campo fértil.

6.      Vocês também imitarão nosso Senhor e nosso Deus, se chorarem dessa maneira, porque ele próprio chorou a morte de Lázaro e a ruína de Jerusalém, e ficou emocionado e perturbado com a perda de Judas. Nós o encontramos chorando muitas vezes, mas nunca o vemos rindo, nem mesmo sorrindo – pelo menos, nenhum dos Evangelistas assinalou o fato. A Escritura reporta também que São Paulo “chorou noite e dia durante três anos”. Ele próprio o afirma, e outros disseram isso dele; mas nem ele, nem ninguém, escreveu que ele ria; nem nenhum Santo escreveu isso de si ou de outro. Só se menciona isso de Sara, que logo reteve o riso, e de um dos filhos de Noé, que de livre se tornou escravo. Eu absolutamente não digo isso para proibir que se rua jamais, mas para banir a dissipação.

Mas, verdadeiramente, que motivo tem vocês para se alegrarem tanto, e explodir em riso, se são devedores da justiça divina, se deverão comparecer diante de um tribunal tão terrível e prestar a conta exata de todas as suas ações? Sejam nossas faltas voluntárias ou involuntárias, teremos que apresentar as razões de tudo: “Se alguém – diz o Salvador – renunciar a mim diante dos homens, eu renunciarei a ele diante de meu Pai que está nos céus[13]”. E assim, ainda que essa renúncia tenha sido involuntária, não evitaremos o suplício.

Diremos ainda mais: daquilo que sabemos e do que não sabemos, porque o Apóstolo disse: “Não me sinto culpado por nada, mas isso não me justifica[14]”. E ele ainda mostra que a ignorância não é desculpa, dizendo aos Judeus: “Eu posso testemunhar que eles têm zelo por Deus, mas seu zelo não é segundo a ciência[15]”, o que não bastou para os desculpar. E, escrevendo aos Coríntios, ele lhes disse: “Receio que, assim como a serpente enganou a Eva com sua astúcia, seu espírito possa se corromper, e vocês podem perder a simplicidade que é conforme Cristo[16]”.

Como, tendo que prestar conta de tantos pecados, vocês se divertem rindo, dizendo futilidades, buscando as delícias da vida? Mas que ganharei eu, dirão, chorando ao invés de rir? Vocês ganharão infinitamente. Perante a justiça do século um criminoso faz bem em chorar, mas isso não retratará sua condenação. Mas na igreja, se vocês apenas suspirarem, seus suspiros farão com que sua sentença seja revogada, e vocês obterão o perdão. É por isso que Jesus Cristo nos recomenda tanto as lágrimas, e que ele chama de felizes os que choram, e infelizes os que riem.

A igreja não é um teatro, e não nos reunimos aí para rir às gargalhadas, mas para gemer e adquirir um reino com nossas lágrimas e nossos suspiros. Quando vocês estão diante de um rei da terra, vocês não ousam sequer sorrir; mas quando o Senhor dos anjos habita em seu meio, vocês não se comportam com a educação e o temor respeitoso que ele demanda, mas riem, mesmo quando ele está encolerizado contra vocês. Vocês não percebem que O irritam ainda mais com esse desdém do que com seus outros crimes? Deus não tem tanto horror dos que pecam, como dos que não se arrependem de seus pecados.

Mas existem pessoas insensíveis o bastante para, depois de tudo, dizer: Deus me livre de chorar, pois o dom que eu lhe peço é de rir e me divertir por toda a minha vida. Existe alguma coisa mais baixa e pueril do que esse pensamento? Os divertimentos não são um dom de Deus, mas do diabo. Escutem o que aconteceu uma vez aos que se divertiam, conforme a Escritura: “O povo se sentava para comer e beber, e depois se levantava para jogar[17]”. Esse era o povo de Sodoma; esses eram os que viviam antes do dilúvio. Pois Deus disse dos primeiros que “eles estavam mergulhados nas delícias, no orgulho, nos festins e na abundância de todas as coisas[18]”. E os segundos, que viviam no tempo de Noé, vendo-o construir a arca por tanto tempo, não pensaram senão em retomar seus divertimentos, sem ser tocados de dor por seus pecados, e sem se preocupar com o futuro. É por isso que quando veio o dilúvio, ele alcançou a todos, e eles pereceram nesse naufrágio comum a toda a terra.

7.      Não esperem de Deus aquilo que só o demônio pode dar aos homens. O dom que Deus nos concede é um coração contrito e humilhado, que vigia a si mesmo com grande circunspecção, e que é tocado pelo arrependimento e a compunção de suas faltas. Esses são os presentes que Deus nos dá, porque eles são os mais úteis. Nós temos que sustentar uma dura guerra. Devemos combater contra inimigos invisíveis, contra espíritos de malícia, contra os principados e as potências, e podemos nos considerar felizes, se, com todos os nossos cuidados, nossa vigilância e nossos esforços, formos capazes de resistir a uma falange tão temível. Mas se formos negligentes e preguiçosos, se nos divertimos rindo, seremos vencidos por nossa apatia, mesmo antes de combater.

Não cabe a nós passar o tempo em risadas, em divertimentos e em delícias. Isso é bom para as prostitutas do teatro, para os homens que as frequentam, e em especial para os aduladores que buscam as boas mesas. Não é esse o espírito dos que são chamados a uma vida celeste, cujos nomes já estão inscritos na cidade eterna, e que formam uma milícia toda espiritual; esse é o espírito dos que combatem sob os ensinamentos do demônio.

Sim, meus irmãos, é o demônio que transformou em arte esses divertimentos e esses jogos, para atrair para si os soldados de Jesus Cristo, e para amolecer todo o vigor e os nervos de sua virtude. É por esse motivo que ele fez construir teatros nas praças públicas, e que, exercitando e formando ele mesmo esses bufões, ele se serve deles como de uma peste com a qual infecta toda a cidade. São Paulo nos proibiu as palavras impertinentes, e todas as que tendem apenas a um vão divertimento; mas o demônio nos persuade a amarmos umas e outras.

O que é ainda mais perigoso, é o motivo pelo qual explodem esses risos imoderados. Assim que esses bufões ridículos proferem qualquer blasfêmia, qualquer palavra desonesta, logo uma multidão de tolos começa a rir e a demonstrar alegria, aplaudindo-os por coisas que os teriam condenado à lapidação, e atraindo sobre si mesmos, com esses prazeres infelizes, o suplício do fogo eterno. Pois, ao louvar essas bobagens nós nos persuadirmos a também fazê-las, e nos tornamos ainda mais dignos da condenação que eles merecem. Se todo o mundo concordasse em não mais assistir às suas tolices, eles logo deixariam de fazê-las; mas, como eles veem que todos os dias deixamos nossas ocupações, nosso trabalho e o dinheiro que ganhamos, numa palavra, que renunciamos a tudo para assistir aos seus espetáculos, eles redobram o ardor, e se aplicam cada vez mais nessas loucuras.

Eu não digo isso para desculpá-los, mas para que vocês vejam que são principalmente vocês a fonte de todos esses desregramentos, por assistir a esses jogos e neles passar dias inteiros. São vocês que, nessas infelizes representações profanam a santidade do casamento, e que desonram diante de todo mundo esse grande sacramento. Pois quem representa esses personagens infames é menos culpado do que vocês que os fazem representar, vocês que os animam cada vez mais com sua paixão, com seus arrebatamentos, seus aplausos e elogios, e que trabalham de todas as maneiras para embelezar e engrandecer a obra do demônio. Com que olhos poderão vocês encarar suas esposas, depois de vê-la tão ultrajada na pessoa desses comediantes? Como não se envergonharão pensando nela, enquanto assistem seu sexo tão desonrado por essas infâmias?

8.      Não me digam que tudo isso não passa de ficção. Essa ficção produziu muitos adultérios verdadeiros e destruiu muitas famílias. O que mais me aflige é que, sendo esse um mal tão grande, ele não é visto como um mal, e que, quando se representa um crime tão grave quanto um adultério, só se ouvem aplausos e gritos de alegria. Não passa de uma farsa, dirão. É por isso mesmo que essas pessoas são dignas de mil mortes, por ousar expor aos olhos de todos desordens que são proibidas por todas as leis. Se o adultério é um mal, representá-lo é um mal também.

Quem poderá dizer quantos adultérios são produzidos por essas representações dramáticas de adultério, e o quanto de impudência e impureza elas inspiram aos que as assistem? Pois não existe nada mais impudico do que o olho, que consente em ver obscenidades. Vocês teriam horror a que uma mulher nua se apresentasse a vocês numa praça pública ou numa casa, e ficariam ofendidos se ela o fizesse; e, no entanto, vocês não se incomodam de ir ao teatro, para desonrar publicamente ambos os sexos, e para sujar seus olhos com a visão dessas impurezas.

Não digam que aquela que representa esse papel não passa de uma prostituta. Pois antes disso ela é uma mulher, e, seja livre ou escrava, sua desonra é a desonra de seu sexo e de sua natureza. Se não houvesse mal nisso, por que vocês não se retirariam, caso acontecesse na rua? Por que se enfureceriam contra a que cometesse tal infâmia? Ou o que fere a honestidade quando se está só, não mais a fere quando muitos se ajuntam? Não será esse pensamento ridículo, e inteiramente extravagante? Seria melhor cobrir o rosto com lama, do que sujar a vista com esses espetáculos vergonhosos. Pois a lama fere menos os olhos do corpo do que a visão de uma mulher impudica fere os da alma.

Lembrem-se de onde provém a nudez do primeiro homem, e aprendam a causa desse estado tão vergonhoso. O que causou essa nudez, senão a desobediência de Adão e a inspiração do demônio? Tanto isso é verdade que foi o demônio que primeiro colocou os homens nesse estado! Mas se nossos pais se vissem nus, ao menos enrubesceriam com sua nudez: vocês, ao contrário, se glorificam com ela, e “colocam sua glória na sua confusão[19]”, segundo a palavra do Apóstolo. Com que olhos os contemplarão suas esposas, quando vocês regressarem desses lugares impuros? Como os receberão? Como lhes falarão, depois que vocês cometeram esse ultraje ao seu sexo, e que a visão de uma prostituta os tornou escravos por uma detestável paixão?

Se vocês se afligem quando eu lhes falo assim, bendirei a Deus pela graça que lhes fez. Pois, como disse São Paulo, “o que pode me alegrar mais, do que aquele que se entristece com o que eu digo?[20]”. portanto, não cessem de chorar e de suspirar por causa dessas desordens, porque a dor que estarão sentindo será o começo da sua conversão. É por esse motivo que eu lhes falei com mais força; eu quis, por uma incisão mais profunda, curá-los da gangrena que lhes transmitiram esses corruptores públicos, e devolver-lhes uma saúde perfeita. É o que eu desejo a todos vocês, com as recompensas eternas que Deus prometeu para as nossas boas obras, pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence a glória, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém.


[1] João 18: 36.
[2] Mateus 12: 41.
[3] I Reis, 5.
[4] Mateus 2: 2.
[5] Miquéias 5: 2.
[6] Gênesis 49: 10.
[7] Mateus 2: 2.
[8] Mateus 2: 3.
[9] Isaías 9: 6.
[10] Lucas 12: 49.
[11] Mateus 5: 5; Filipenses 4: 4.
[12] I Reis 1: 13.
[13] Mateus 10: 33.
[14] I Coríntios 4: 4.
[15] Romanos 10: 2.
[16] II Coríntios 11: 3.
[17] Êxodo 32: 6.
[18] Ezequiel 16: 49.
[19] Filipenses 3: 13.
[20] II Coríntios 2: 2.

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