1.
Herodes não deveria se enfurecer. Ele devia
temer, se humilhar e reconhecer a nulidade de seu plano. Mas nada podia detê-lo.
Pois a partir do momento em que uma alma se torna ímpia e desesperadamente
enferma, ela rejeita todos os remédios que Deus lhe oferece para curá-la.
Considerem então como esse príncipe acrescenta novos crimes, como prologa a
cadeia de seus homicídios, e atire a si próprio de precipício em precipício.
Sua cólera e sua inveja são como um demônio que o agita e transporta, sem que
ninguém possa detê-lo. O insensato se declara contra a própria natureza; e,
furioso por ter sido iludido pelos magos, ele volta seu furor contra as
crianças inocentes. Parece que ele desejava fazer na Judéia o que outrora fez o
Faraó no Egito.
“Herodes, enviando seus guardas, matou todas as crianças que havia em
Belém e região, com idades inferiores a dois anos, segundo o tempo que ele havia
calculado pelas informações dos magos”. Prestem atenção nisso. Muitos falam
levianamente dessas crianças, e de que sua triste sorte seria um libelo contra
a justiça divina. Os mais moderados dentre esses apenas suspendem seu
julgamento; mas outros são mais ousados e agressivos. Permitam que nos
detenhamos um pouco sobre esse assunto, a fim de curar a uns de sua ignorância
e suas dúvidas, e a outros de seus excessos e sua loucura. Se ousamos acusar a
Deus por ter permitido a morte daquelas crianças, devemos acusá-lo também da
morte do soldado que guardava São Pedro. Assim como essas crianças morreram no
lugar do menino Jesus, que se salvou, mas que era quem deveria ser morto,
também São Pedro foi libertado por um anjo de suas cadeias e de sua prisão, e o
tirano, que tinha o mesmo nome e era tão cruel como o outro, fez com que em seu
lugar morressem os soldados que o guardavam.
Mas de que serve esse exemplo, dirão vocês? Ele aumenta a dificuldade
ao invés de resolvê-la. Eu lhes disse isso com esse objetivo, e se eu
acrescento uma dificuldade a mais, é para assim responder às duas. Qual será
então essa resposta, e o que poderemos dizer a respeito? É que não foi o menino
Jesus a causa da morte daquelas crianças, mas apenas a crueldade de Herodes,
assim como não foi São Pedro que fez com os soldados morressem, mas a
brutalidade do príncipe. Se ele tivesse encontrado as portas da prisão
quebradas, ou as muralhas destruídas, Herodes poderia ter razão em condenar os
vigias. Mas, como tudo estava no mesmo estado, as portas fechadas, os soldados
ainda com as correntes que os prendiam ao Apóstolo, ele poderia concluir, se
julgasse corretamente as coisas, que isso não seria obra e artifício de homens,
mas efeito de um poder extraordinário e divino. Ele deveria adorar o autor de
tão grande milagre, ao invés de exercer sua crueldade sobre os soldados. Deus,
ao operar esse milagre, fez o que era necessário, não apenas para não expor os
guardas à morte, como para levar o príncipe ao conhecimento da verdade. Se o
tirano persistiu em sua impiedade, por que atribuir ao sábio médico das almas,
àquele que é benevolente em todas as suas obras, um mal que não adveio senão do
desregramento do doente?
Podemos dizer a mesma coisa aqui. Por que, ó Herodes, você ficou colérico
quando pensou ter sido iludido pelos magos? Você não sabia que essa gravidez
tinha origem divina? Não reuniu os sacerdotes e os escribas? Não lhe fizeram
esses ver que o profeta havia predito esses acontecimentos, e que muito tempo
antes havia previsto esse nascimento? Não percebeu a admirável relação entre o
presente e o passado? Não soube que os magos foram guiados por uma estrela? Não
se enrubesceu com o zelo daqueles estrangeiros? Não admirou sua liberdade de
linguagem? Não tremeu diante do oráculo do profeta? Não deveria ter
compreendido facilmente qual deveria ser a sequência de tantas maravilhas? Não
pôde julgar o futuro pelo passado? Por que todas essas coisas não o fizeram
concluir por si mesmo, que não se tratava de uma manobra enganadora dos magos,
mas do poder de Deus, que a tudo conduzia com sabedoria admirável? E, ainda que
os magos o tivessem iludido, por que tomar as crianças, que não lhe fizeram mal
algum?
2.
Muito bem dirão vocês, você mostrou
perfeitamente que Herodes era um homem sanguinário, e que crueldade era
indesculpável; mas você não solucionou a objeção relativa à injustiça do fato.
Se foi Herodes que cometeu a injustiça, que seja, mas por que Deus permitiu que
ele o fizesse?
Que posso responder-lhes, senão o que tantas vezes tenho lhes mostrado,
na igreja e fora dela, e que eu lhes peço que retenham na memória? Pois
trata-se de uma regra que deve servir a vocês em outras dificuldades
semelhantes. Eis o que eu lhes responderei. Existem muitas pessoas que desejam
fazer mal às outras. Mas eu sustento que não existe homem que possa fazer um
mal verdadeiro a outro homem. E para não deixá-los em suspense, direi numa
palavra, que, quem quer que, dentre os homens, os ofenda, Deus transformará o
mal em benefício nosso, e se servirá disso, ou para nos perdoar, ou para
aumentar nossa recompensa. A fim de esclarecer o que eu digo, darei um exemplo.
Suponhamos que um servidor tenha uma dívida considerável para com seu senhor, e
que homens injustos o maltratem, roubando-lhe uma parte do que possui; suponhamos
ainda que o senhor pudesse ter impedido o roubo e ordenar a restituição, mas
que, em lugar de agir assim, ele considera essa quantia para indenizar seu
servidor. Podemos dizer que esse foi lesado? Absolutamente. Mas se o senhor
pagar ao servidor mais do que lhe foi roubado, esse terá ganhado, ao invés de
perder. Evidentemente sim.
Vamos transpor esse raciocínio para os males que nos afligem
injustamente. Estejamos certos de que as aflições, ou obterão para nós a
remissão de todos os nossos pecados, ou, se nossos pecados não forem tão
numerosos quanto aquelas aflições, elas nos farão merecer uma coroa mais rica.
Vocês têm a prova disso no que disse São Paulo ao homem que caíra na
fornicação: “Entreguem esse homem a Satanás para fazer morrer sua carne, a fim
de que sua alma seja salva[1]”.
Vocês dirão que se trata aqui dos males que nossos inimigos nos fazem sofrer, e
não das correções que nossos pastores nos impõem com justiça. Mas, se vocês
considerarem uns e outros com cuidado, não encontrarão nenhuma diferença. Nossa
dificuldade era de saber se o mal que sofremos é verdadeiramente um mal para
aquele que o sofre. Mas eu posso lhes dar um exemplo que se aproxima ainda mais
da questão que nos ocupa. Lembram-se de que Davi, no auge de sua infelicidade,
foi insultado por Semei, que fazia chover sobre ele as mais violentas injúrias;
seus soldados queriam matar o ofensor, mas ele os deteve, e lhes disse: “Deixem
que faça, deixem que maldiga. Talvez o Senhor veja minha aflição, e talvez me
conceda alguma graça pelas maldições que eu estou suportando[2]”.
É o que ele diz também em seus salmos: “Veja como meus inimigos se multiplicam,
e como é injusta a raiva que têm de mim, e devolve a eles meus pecados[3]”.
Da mesma forma, Lázaro repousou, porque havia sofrido nessa vida uma infinidade
de males. Aqueles a quem se faz mal, esses não o recebem, conquanto que sofram
com paciência; ao contrário, esse mal se transformará para eles num grande bem,
seja esse mal vindo de Deus, que os castiga pela aflição, seja do demônio, que
os persegue.
Mas que crimes, me dirão vocês, teriam cometido aquelas crianças para
que devessem expiá-los com uma morte tão sangrenta? O que vocês dizem pode ser
verdadeiro para pessoas de idade avançada, e que cometeram muitos pecados; mas,
para os inocentes que morrem no berço, que pecado poderiam eles ter cometido,
que precise ser lavado com sangue? Lembrem-se do que eu lhes disse, que se a
injustiça que nos é feita não encontrar em nós pecados a punir, ela nos trará
uma grande recompensa. Que mal pode ter acontecido àquelas crianças, uma vez
que, morrendo desse modo, elas passaram por uma morte tão rápida, como por uma
curta tempestade, chegando logo ao porto eterno da paz?
Dirão vocês que elas poderiam se tornar grandes santos, se tivessem
sobrevivido. Mas vocês acham que sua recompensa foi medíocre, por terem sido
mortas no lugar de Jesus Cristo? E podemos ainda afirmar que se Deus previsse
que essas crianças viriam a se elevar a um grande mérito, ele não teria
permitido que elas fossem mortas no berço. Pois se ele tolera com paciência
infatigável, mesmo aqueles que ele sabe que permanecerão no crime, ele teria
impedido a morte daquelas crianças, se previsse que elas chegariam um dia a um
alto grau de virtude.
3.
Isso é o que podemos dizer a esse respeito, mas
existem outras razões bem mais secretas sobre essa conduta, que só são
conhecidas Daquele que regulou esses acontecimentos com uma providência
incompreensível. Deixando assim a Deus o conhecimento exato e inteiro desse
segredo, passemos adiante e aprendamos com a aflição dos outros a sofrer com
coragem todos os males que possam nos acontecer. De fato, que trágica
calamidade atingiu Belém naqueles tempos, quando se via de todos os lados
crianças arrancadas ao seio de suas mães para serem cruelmente imoladas à fúria
de um tirano!
Pois se vocês são fracos, se sofrer com paciência e sem se queixar
lhes parece uma sabedoria que está acima de suas forças, lancem o olhar sobre a
morte de Herodes e respirem um pouco ante essa visão. A justiça de Deus não
tardou a atingi-lo, e lhe infligiu uma punição proporcional ao seu crime,
fazendo- o sofrer uma morte cruel, mais deplorável do que tudo o que ele fez
com que aqueles inocentes suportassem: ela o oprimiu com males sem conta, que
os que leram sua história em Josefo conhecem bem. Eu não reporto essas coisas
aqui para não me alongar demãos e para não interromper a sequência de nosso
Evangelho.
“Foi então que se realizou o
que havia sido predito pelo profeta jeremias: Um grande barulho se fez ouvir em
Ramá, e ouviram-se prantos, choro e gritos lamentáveis; Raquel chora seus
filhos e não aceita se consolar, porque eles já não existem”. Como o
Evangelista havia enchido o espírito do leitor de horror e espanto,
apresentando-lhe uma carnificina tão desumana, injusta, cruel e bárbara, ele agora
o consola dizendo que isso não aconteceu por impotência ou ignorância de Deus;
ao contrário, isso havia sido previsto muito tempo antes por seu profeta. Retomem
assim sua coragem, e não temam mais ao olhar essa providência de Deus, que é a
mesma, quando ela age e quando ela deixa que ajam os homens.
É o que outrora Jesus Cristo disse aos seus apóstolos. Depois de prever
que eles seriam arrastados aos tribunais e conduzidos ao suplício, que toda a
terra se levantaria contra eles e lhes faria uma guerra irreconciliável, ele
acrescentou, para os consolar: “Não é verdade que se vendem dois pardais por um
óbolo? E, no entanto, não cai um só por terra sem que seja a vontade do seu Pai
celeste[4]”.
Ele lhes falou assim, para ensiná-los que nada lhe é oculto, e que ele vê tudo,
embora não faça tudo. Não temam, disse a eles, não se preocupem. Aquele que vê
o que vocês sofrem, e que poderia impedi-lo se quisesse, mostra suficientemente
que se ele permite que vocês sofram alguma coisa, é porque ele cuida de vocês e
os ama. São sentimentos que devemos ter em todas as nossas aflições, e então
encontraremos nelas todo o consolo que podemos desejar.
Mas alguém poderá dizer: o que existe de comum entre Raquel e Belém? “Raquel,
diz o Evangelho, chora seus filhos”. E o que existe de comum entre Rama e Raquel?
Raquel, meus irmãos, era a mãe de Benjamin, e depois de morta ela foi enterrada
num campo próximo de Belém. Como seu sepulcro fosse muito próximo, e como esse
campo foi deixado à tribo de Benjamin, sendo que Rama pertencia também a essa
tribo, o Evangelho chama os pequenos inocentes de “filhos de Raquel”, por causa
do chefe dessa tribo e do lugar de sua sepultura. E, para frisar que essa praga
era cruel e incurável, ele acrescenta: “Ela não quer ser consolada porque seus
filhos já não existem”.
Nós aprendemos ainda aqui o que eu disse, que não devemos jamais nos
perturbar quando nos acontecem coisas contrarias às promessas que Deus nos fez.
Pois assim que Aquele que veio para salvar seu povo, ou melhor, toda a terra,
nasceu, considerem com quantas provações ele começou sua grande obra. Sua mãe
fugiu, seu país caiu na maior das aflições, houve uma carnificina de crianças,
mais lamentável do que tudo que se vira antes, e de todas as partes eram
ouvidos prantos, suspiros e gritos de mães desesperadas. Entretanto, não se
perturbem. Deus costuma cumprir seus desígnios por vias que parecem opostas a
eles, para que admiremos sua onipotência. É assim que ele formou seus
discípulos, preparando-os para grandes ações por meios que pareciam contrários
a essa finalidade, a fim de que o milagre parecesse maior. Pois, sofrendo a chibata,
o exílio e mil outros males, eles se tornaram mestres inclusive daqueles que trataram
dessa maneira.
4.
“Depois, estando Herodes morto, um anjo do Senhor
apareceu em sonhos a José, que estava no Egito, e lhe disse: Levante-se, pegue
o menino e sua mãe e vá para a terra de Israel”.
“E José, levantando-se, tomou o menino e sua mãe, e foi para a terra
de Israel”. O anjo já não diz: “Fuja”, mas: “Vá”. Vemos ainda que a calma
sucede à tempestade, e que a tempestade vem depois da calmaria. Pois, ao deixar
a terra estrangeira, ele retornou ao seu país, onde ficou sabendo da morte
funesta daquele assassino de tantas crianças. Mas uma vez chegado, ele encontrou
alguns dos perigos precedentes, pois o filho do tirano vivia e reinava na
Judeia. “Sabendo que Arquelau reinava na Judeia no lugar de seu pai Herodes,
ele teve medo de ir lá, e tendo sido advertido em sonhos por Deus, retirou-se
ao país da Galileia”. Mas como Arquelau reinava na Judeia, se o Evangelho diz
que seu governador era Pôncio Pilatos? Fazia pouco tempo que Herodes havia
morrido, e seu reino fôra dividido em muitas partes. Assim, durante um tempo,
Arquelau reinou no lugar de Herodes, que é chamado de seu pai, para distingui-lo
de outro Herodes, filho daquele e irmão de Arquelau.
Mas, dirão, se José temia ir à Judeia por causa de Arquelau, ele devia
temer também a Galileia por causa de Herodes, seu irmão e filho do tirano. Eu respondo
que José se colocara suficientemente a coberto de seus temores, não
permanecendo na Judeia; porque todo o furor de Herodes desabara sobre Belém e
região. Arquelau acreditava que, depois dessas precauções sangrentas, já não
havia nada a temer, e que a criança que eles procuravam havia sido morta com as
demais. De resto, depois de ver seu pai terminar a vida da maneira como terminou,
ele devia temer seus excessos, e continuar a lutar contra ela com crueldade.
“Ele foi morar numa cidade chamada Nazaré, a fim de que se realizasse
o que o profeta disse: Ele será chamado de Nazareno”. José foi a Nazaré, para
evitar o perigo, e para rever seu país, de que gostava muito; e, para fazê-lo
com mais segurança, ele recebeu a ordem de um anjo. São Lucas não diz que José
tenha ido lá por ordem do anjo, mas apenas que, tendo se cumprido a purificação
da Virgem, eles retornaram a Nazaré. Como podemos conciliar os dois Evangelistas,
senão dizendo que a purificação de que fala São Lucas precedeu a fuga para o
Egito: pois Deus não lhes prescreveu que fossem para o Egito antes da
purificação, para que nada da lei fosse violado; mas, uma vez cumprida essa
cerimônia, eles retornaram a Nazaré, de onde receberam ordem de ir para o
Egito. E foi no retorno desse banimento que o anjo lhes ordenou que fossem
morar em Nazaré, para onde haviam retornado por si próprios da primeira vez,
pelo prazer que tinham de morar naquele país. Como eles só tinham ido a Belém
para obedecer às ordens do imperador, sem sequer encontrar lugar onde pudessem
se hospedar, eles logo retornaram a Nazaré; é por isso que o anjo, quando do
regresso do Egito, para permitir que repousassem, os enviou àquele país. Isso não
foi feito ao acaso, porque os profetas o haviam predito. Diz o Evangelho: “A
fim de cumprir o que o profeta disse: Ele será chamado de Nazareno”.
Qual profeta disse isso? Não sejam demasiado curiosos, nem detalhistas
ao extremo. Pois existem muitos profetas que foram perdidos, como podemos ver
no livro dos Paralipomenos. A negligência e a preguiça dos Judeus fizeram com
que se perdessem muitos livros santos, assim como sua impiedade queimou e
destruiu um grande número deles. O profeta Jeremias lamenta sua impiedade; e
sua negligência é atestada no livro IV de Reis, onde está marcado que depois de
um longo período foi muito difícil encontrar o livro do Deuteronômio, que tinha
sido escondido enterrado, e cujos caracteres estavam quase apagados. Se eles
deixaram que se perdessem esses livros tão santos, quando seu país estava em
paz, como teriam agido melhor no meio da irrupção de tantos povos estrangeiros?
Nada mais era certo, e os profetas previram que Jesus Cristo seria chamado de
Nazareno, e é por isso que os Evangelistas muitas vezes o chamaram por esse nome.
Estariam então os Judeus desculpados, dirão vocês, por não serem capazes
de compreender a profecia de Belém? Absolutamente. Por isso mesmo, eles deveriam
ter tido a curiosidade excitada e tentado conciliar entre si dois oráculos que
pareciam se contradizer. Foi o nome de Nazaré que levou Natanael a inquirir
Jesus, dizendo: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?[5]”.
Pois esse lugar era pequeno e miserável; e não apenas esse lugar, mas toda a
Galileia. É por isso que os fariseus disseram a Nicodemos: “Leia bem a
Escritura, e verá que nuca surgiu um profeta da Galileia[6]”.
Entretanto, Jesus não se envergonhava de ser chamado por esse nome, para nos
mostrar que ele não tinha necessidade das coisas que aprecem grandes aos
homens. Ele escolheu seus apóstolos na Galileia, pais desprezado pelos Judeus,
para evitar toda escusa às pessoas preguiçosas, e para lhes ensinar que nada do
que é exterior pode prejudicar a quem se aplica seriamente à virtude. É por
isso que o Filho de Deus não quis possuir uma casa para si: “O Filho do homem,
disse ele, não tem onde repousar a cabeça[7]”.
Por esse mesmo motivo ele fugiu quando Herodes tentou matá-lo; por esse mesmo
motivo, ele nasceu e foi colocado numa manjedoura; habitou num estábulo, e
escolheu uma mãe pobre, para nos acostumar a não nos envergonharmos de todas
essas coisas; para nos ensinar, desde sua entrada nesse mundo, a pisotear todo orgulho
do século, e não buscar mais do que os bens da alma, que são as virtudes.
5.
Por que, poderão dizer vocês, ser tão fiel à sua
pátria, se em qualquer lugar da terra em que estivermos, nos é ordenado de aí
estar como um estrangeiro; e, se o obedecermos, poderemos nos tornar tão
grandes, que todo o mundo não será digno de nós? Poderemos nós estimar essas
coisas, depois que os filósofos pagãos as desprezaram, considerando-as como
estranhas a nós, considerando-as como coisas que deveriam ocupar o último lugar
dentre os bens do mundo?
Entretanto, São Paulo – dirão vocês – não rejeitou essas vantagens,
quando disse: “Quanto à eleição divina, Deus os ama, por causa dos patriarcas
que são seus pais[8]”. Mas,
eu lhes peço, considerem a quem São Paulo se dirige, e o que diz, e em que
tempo. Ele escrevia a pagãos que, tendo se tornado fiéis, orgulhavam-se de sua
fé e tratavam os Judeus com desprezo, pretendendo empurrá-los às fileiras dos
infiéis. É por isso que São Paulo tratou de reprimir seu orgulho, ao mesmo
tempo em que incitava os Judeus à fé e os encorajava a abraçar o culto de Jesus
Cristo. Mas quando ele fala dos maiores homens do Antigo Testamento, vejam o
que ele diz: “Aqueles que falam assim fariam bem em ver que eles buscam sua
pátria. Pois, se eles tivessem no espírito aquela da qual saíram, eles teriam
tempo bastante para retornar a ela; mas eles desejam uma pátria melhor, que é a
pátria celeste[9]”. E
um pouco antes: “Todos esses morreram na fé, mesmo não tendo recebido os dons
que Deus lhes prometera, mas vendo-os, e como que os saudando de longe[10]”.
Também São João disse, àqueles que vinham ao seu batismo: “Não digam:
temos a Abrahão como pai[11]”.
E São Paulo: “Nem todos os que são de Israel são Israelitas, e os filhos da
carne não são os filhos de Deus[12]”.
Que vantagem tiveram os filhos de Samuel, sendo filhos de tal pai, sem terem
sido herdeiros de sua virtude? De que serviu aos filhos de Moisés tê-lo por
pai, se degeneraram seu zelo? É por isso que eles não foram os sucessores de
sua autoridade depois de sua morte, porque se contentaram em ser filhos apenas
no nome; e o governo do povo passou às mãos de outro, que era seu filho, não de
nascimento, mas de virtude. Timóteo era filho de um pagão, e no que foi ele
prejudicado pela sua origem? Que ganho o filho de Noé tirou da virtude de seu
pai, porque, de livre que era, não deixou de se tornar escravo? Ilustre exemplo
que mostra que a nobreza do pai nem sempre basta para preservar o filho da
decadência; o desregramento da vontade nesses casos prevalece sobre a lei da
natureza, e não apenas priva esses filhos culpados das vantagens de seu
nascimento, como ainda faz com que percam a liberdade.
Não era Esaú filho de Isaac, e especialmente querido por seu pai? Não
queria Isaac lhe dar a bênção, como o mais velho, porque Esaú o agradava em
todas as coisas? Mas, como ele era mau, essas vantagens não lhe serviram para
nada. Ainda que a natureza lhe tivesse dado o direito da progenitura, e que seu
pai a quisesse conservar, ele perdeu tudo, porque Deus não estava com ele. Mas,
para não falarmos dessas particularidades, os Judeus foram feitos filhos de
Deus, mas esse título tão glorioso lhes foi inútil. Se, então, aqueles mesmos
que se tornam filhos de Deus, se não respondem à dignidade de tão alto
nascimento, são ainda punidos por isso, como podem vocês se vangloriarem da
nobreza de seus pais e ancestrais?
Isso que eu digo é tão
verdadeiro no Novo como no Antigo Testamento: “Todos os que o receberam, diz
São João, receberam de Deus o poder de se tornarem filhos de Deus[13]”.
Mas São Paulo declara que essa adoção divina seria inútil a muitos dentre eles,
ao dizer: “Se vocês se fizerem circuncidar, Jesus Cristo não lhes servirá de
nada[14]”.
Se Jesus Cristo de nada vale para aqueles que não cuidam da guarda de suas
almas, de que poderá servir termos nascido de tal ou qual homem? Não sejamos
orgulhosos de nosso nascimento, bem de nossas riquezas, e desprezemos os que
têm esse orgulho.
Não nos envergonhemos por sermos pobres, mas trabalhemos para nos tornar
ricos pelas boas obras. Fujamos dessa pobreza que é a companhia dos vícios, e
que reduziu a tão extrema pobreza o rico do Evangelho. Pois ele não pôde sequer
obter uma gota d’água, apesar de pedir com tanta insistência. Quem dentre vocês
é tão pobre como esse rico foi então? Os que morrem de fome têm ao menos água,
e não apenas algumas gotas, mas em abundância, sem falar dos outros consolos. Mas
aquele rico ficou pobre, até o ponto de não ter sequer uma gota daquilo que pedia;
e, o que é mais terrível, sem ter o menor alívio em seus males.
Por que temos tanta avidez por riquezas, uma vez que elas não podem
nos adquirir o céu? Se um rei da terra declarasse que nenhum rico seroa honrado
em sua corte, não renunciariam todos às suas riquezas? Qual! O perigo de ficar
malvisto na corte de um príncipe faria com que todas as riquezas se tornassem
desprezíveis; mas quando o Rei do céu nos grita todos os dias: “Como é difícil
um rico entrar no reino do céu!”, nós hesitamos e não renunciamos a tudo, como
deveríamos fazer para assim podermos entrar com confiança nesse reino eterno.
6.
Depois disso, seremos nós desculpáveis, por
ajuntar assim com tanto ardor aquilo que não pode nos servir senão para nos
fechar as portas do céu? Mas não é só em nossos cofres que guardamos esse
dinheiro, nós o enterramos debaixo da terra, quando poderíamos dá-lo a Deus,
que o conservaria para nós na outra vida. Não se parecem vocês com o
trabalhador que, tendo recebido trigo para semear numa terra bem preparada, o
atira a um lago onde ele logo morrerá, ao invés de lhe trazer algum fruto?
Mas o que dizem essas pessoas, quando as reprovamos por isso? Não é
para nós pouca consolação, dizem elas, ver entre nós esses tesouros em segurança.
Ao contrário, grande consolação é saber que não existe tesouro para guardarmos
conosco. Pois, ainda que vocês não temam mais a fome, nem por isso poderão
evitar outros temores mais desagradáveis: a morte, a guerra, as violências
secretas de seus inimigos. Se houver uma fome, o povo, pressionado pela
necessidade, virá invadir sua casa a mão armada. Assim, com sua avareza, vocês
contribuirão para esfomear toda uma cidade, e exporão sua casa a um mal maior
do que a fome e a pobreza poderiam fazê-lo.
Eu não tenho ouvido que em nossos tempos algum pobre tenha morrido de
fome. Existe uma infinidade de remédios contra esse mal. Mas eu posso mostrar
quantas pessoas foram mortas, em segredo ou em público, por causa de seus bens
e de suas riquezas, ou por motivos afins. Temos mil exemplos disso nas ruas,
nas praças públicas, e nos próprios lugares onde se exerce a justiça. Toda a
terra está cheia. Ora, digo eu, toda a terra? O próprio mar está tinto de
sangue daqueles que saem a buscar riquezas. Há os que se expõem ao mar na busca
de ouro, e os que encontram algum pirata que o mata por causa desse mesmo ouro.
O mesmo desejo de riqueza que torna a um, comerciante, faz do outro pirata e
homicida. O que existe, então, de mais pérfido do que o dinheiro, porque ele arrasta
tantas pessoas, ou a exílios voluntários, ou a perigos extremos, ou a mortes
sangrentas e infelizes? “Quem terá compaixão, diz o Eclesiastes, do encantador
que é picado pela serpente?[15]”.
Seria preciso, no mínimo, que o conhecimento que os homens têm da cruel
dominação da avareza os impedisse de se submeterem a ela, e que os livrasse de
uma paixão tão violenta e tirânica. Mas como isso pode ser feito, perguntarão
vocês? Vocês o farão se substituírem a esse amor pelo ouro, um outro amor, o
desejo das coisas do céu. Quem suspira por esse reino, se ri da paixão da
avareza. O verdadeiro servidor de jesus Cristo não será jamais escravo, mas sim
mestre do dinheiro. Pois normalmente o dinheiro persegue quem dele foge, e foge
daquele que o persegue. Ele respeita menos quem o deseja do que quem o
despreza. Ele se diverte com quem corre atrás de si, e não apenas ele se
diverte, como ainda lhe deita milhares de cadeias.
Rompamos essas correntes tão pesadas, irmãos. Por que haveremos de
submeter uma alma racional a uma matéria morta e desprovida de razão, que é a
mãe de mil males? Mas, ó loucura inconcebível dos homens! Nós fazemos a guerra
à avareza em palavras, mas ela nos sujeita de fato. Ela nos arrasta por toda
parte como almas venais, e coo escravos que ela comprou com dinheiro. Existe no
mundo coisa mais vergonhosa e mais infame para os cristãos? Se não formos capazes
de nos elevar acima da matéria sem alma e sem movimento, como poderemos vencer
as potências espirituais que nos atacam? Se não podemos desprezar um pouco de
terra, e meia dúzia de pedrinhas que brilham, como sujeitaremos os principados
e as potestades? Como poderemos praticar a castidade, se não podemos resistir à
avareza? Se o brilho do dinheiro nos fascina, como resistiremos à atração de um
belo rosto? Existem pessoas que são de tal modo apaixonadas pelo dinheiro, que
não podem vê-lo sem se sentirem transportadas, e dizem então que “a visão do
dinheiro é a alegria dos olhos”. Não diga tal tipo de asneira, ó homem! Nada é
mais pernicioso para os olhos do corpo e da alma, do que um olhar concupiscente
lançado sobre o dinheiro. Foi esse olhar que extinguiu as lâmpadas das virgens
tolas, e que as excluiu da câmara do esposo. Essa visão do ouro, que vocês
dizem ser tão agradável aos olhos, é a mesma que cegou Judas, que lhe fechou o
coração para que não ouvisse mais a voz de seu mestre, que o levou a matar e a
perder a si próprio; e que fez com que suas entranhas se derramassem por terra,
e arrastou sua alma ao inferno.
O que pode existir de mais funesto do que essa paixão? O que pode ser
mais perigoso? Eu não falo da matéria do ouro, falo do desejo furioso que têm
os homens por possuí-lo. É essa paixão, que tantas vezes pinta a terra com o
sangue dos homens, que a enche de assassinatos, e que é mais cruel do que os
animais mais temíveis. Pois ela despedaça todos aqueles que ela possui, e o que
é mais terrível, é que ela os despedaça sem que eles sintam. Deveríamos, quando
ficamos expostos às suas violências, estender nossa mão aos que passam, e chamá-los
em nosso socorro, mas, ao contrário, ficamos felizes com que ela nos devore, e
amamos suas feridas, o que é o cúmulo de todos os males. Compenetremo-nos,
então, dessas verdades tão úteis; fujamos dessa doença incurável, curemos suas
feridas envenenadas; e retiremo-nos para bem longe dessa perigosa peste, a fim
de podermos levar aqui uma vida tranquila, e obtermos um dia os tesouros do céu
pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, com quem está o Pai e
o Espírito Santo, a quem pertencem a glória, o poder e a honra, agora e sempre,
e pelos séculos dos séculos. Amém.
Final das Homilias
sobre a Natividade do Senhor
[1] I
Coríntios 5: 5.
[2] II
Reis 16: 10.
[3]
Salmo 24: 19.
[4] Mateus
10: 29.
[5] João
1: 46.
[6] João
7: 12.
[7]
Mateus 8: 20.
[8]
Romanos 11: 28.
[9]
Hebreus 11: 14-15.
[10] Ibid. 13.
[11]
Lucas 3: 2.
[12]
Romanos 9: 16.
[13] João
1: 12.
[14] Gálatas
5: 2.
[15] Eclesiastes
22: 13.
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