terça-feira, 1 de janeiro de 2019

São João Crisóstomo - Homilias sobre a Natividade do Senhor - Nona Homilia: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abrahão - Capítulo II, versículos 16 a 23






1.      Herodes não deveria se enfurecer. Ele devia temer, se humilhar e reconhecer a nulidade de seu plano. Mas nada podia detê-lo. Pois a partir do momento em que uma alma se torna ímpia e desesperadamente enferma, ela rejeita todos os remédios que Deus lhe oferece para curá-la. Considerem então como esse príncipe acrescenta novos crimes, como prologa a cadeia de seus homicídios, e atire a si próprio de precipício em precipício. Sua cólera e sua inveja são como um demônio que o agita e transporta, sem que ninguém possa detê-lo. O insensato se declara contra a própria natureza; e, furioso por ter sido iludido pelos magos, ele volta seu furor contra as crianças inocentes. Parece que ele desejava fazer na Judéia o que outrora fez o Faraó no Egito.

“Herodes, enviando seus guardas, matou todas as crianças que havia em Belém e região, com idades inferiores a dois anos, segundo o tempo que ele havia calculado pelas informações dos magos”. Prestem atenção nisso. Muitos falam levianamente dessas crianças, e de que sua triste sorte seria um libelo contra a justiça divina. Os mais moderados dentre esses apenas suspendem seu julgamento; mas outros são mais ousados e agressivos. Permitam que nos detenhamos um pouco sobre esse assunto, a fim de curar a uns de sua ignorância e suas dúvidas, e a outros de seus excessos e sua loucura. Se ousamos acusar a Deus por ter permitido a morte daquelas crianças, devemos acusá-lo também da morte do soldado que guardava São Pedro. Assim como essas crianças morreram no lugar do menino Jesus, que se salvou, mas que era quem deveria ser morto, também São Pedro foi libertado por um anjo de suas cadeias e de sua prisão, e o tirano, que tinha o mesmo nome e era tão cruel como o outro, fez com que em seu lugar morressem os soldados que o guardavam.

Mas de que serve esse exemplo, dirão vocês? Ele aumenta a dificuldade ao invés de resolvê-la. Eu lhes disse isso com esse objetivo, e se eu acrescento uma dificuldade a mais, é para assim responder às duas. Qual será então essa resposta, e o que poderemos dizer a respeito? É que não foi o menino Jesus a causa da morte daquelas crianças, mas apenas a crueldade de Herodes, assim como não foi São Pedro que fez com os soldados morressem, mas a brutalidade do príncipe. Se ele tivesse encontrado as portas da prisão quebradas, ou as muralhas destruídas, Herodes poderia ter razão em condenar os vigias. Mas, como tudo estava no mesmo estado, as portas fechadas, os soldados ainda com as correntes que os prendiam ao Apóstolo, ele poderia concluir, se julgasse corretamente as coisas, que isso não seria obra e artifício de homens, mas efeito de um poder extraordinário e divino. Ele deveria adorar o autor de tão grande milagre, ao invés de exercer sua crueldade sobre os soldados. Deus, ao operar esse milagre, fez o que era necessário, não apenas para não expor os guardas à morte, como para levar o príncipe ao conhecimento da verdade. Se o tirano persistiu em sua impiedade, por que atribuir ao sábio médico das almas, àquele que é benevolente em todas as suas obras, um mal que não adveio senão do desregramento do doente?

Podemos dizer a mesma coisa aqui. Por que, ó Herodes, você ficou colérico quando pensou ter sido iludido pelos magos? Você não sabia que essa gravidez tinha origem divina? Não reuniu os sacerdotes e os escribas? Não lhe fizeram esses ver que o profeta havia predito esses acontecimentos, e que muito tempo antes havia previsto esse nascimento? Não percebeu a admirável relação entre o presente e o passado? Não soube que os magos foram guiados por uma estrela? Não se enrubesceu com o zelo daqueles estrangeiros? Não admirou sua liberdade de linguagem? Não tremeu diante do oráculo do profeta? Não deveria ter compreendido facilmente qual deveria ser a sequência de tantas maravilhas? Não pôde julgar o futuro pelo passado? Por que todas essas coisas não o fizeram concluir por si mesmo, que não se tratava de uma manobra enganadora dos magos, mas do poder de Deus, que a tudo conduzia com sabedoria admirável? E, ainda que os magos o tivessem iludido, por que tomar as crianças, que não lhe fizeram mal algum?

2.      Muito bem dirão vocês, você mostrou perfeitamente que Herodes era um homem sanguinário, e que crueldade era indesculpável; mas você não solucionou a objeção relativa à injustiça do fato. Se foi Herodes que cometeu a injustiça, que seja, mas por que Deus permitiu que ele o fizesse?

Que posso responder-lhes, senão o que tantas vezes tenho lhes mostrado, na igreja e fora dela, e que eu lhes peço que retenham na memória? Pois trata-se de uma regra que deve servir a vocês em outras dificuldades semelhantes. Eis o que eu lhes responderei. Existem muitas pessoas que desejam fazer mal às outras. Mas eu sustento que não existe homem que possa fazer um mal verdadeiro a outro homem. E para não deixá-los em suspense, direi numa palavra, que, quem quer que, dentre os homens, os ofenda, Deus transformará o mal em benefício nosso, e se servirá disso, ou para nos perdoar, ou para aumentar nossa recompensa. A fim de esclarecer o que eu digo, darei um exemplo. Suponhamos que um servidor tenha uma dívida considerável para com seu senhor, e que homens injustos o maltratem, roubando-lhe uma parte do que possui; suponhamos ainda que o senhor pudesse ter impedido o roubo e ordenar a restituição, mas que, em lugar de agir assim, ele considera essa quantia para indenizar seu servidor. Podemos dizer que esse foi lesado? Absolutamente. Mas se o senhor pagar ao servidor mais do que lhe foi roubado, esse terá ganhado, ao invés de perder. Evidentemente sim.

Vamos transpor esse raciocínio para os males que nos afligem injustamente. Estejamos certos de que as aflições, ou obterão para nós a remissão de todos os nossos pecados, ou, se nossos pecados não forem tão numerosos quanto aquelas aflições, elas nos farão merecer uma coroa mais rica. Vocês têm a prova disso no que disse São Paulo ao homem que caíra na fornicação: “Entreguem esse homem a Satanás para fazer morrer sua carne, a fim de que sua alma seja salva[1]”. Vocês dirão que se trata aqui dos males que nossos inimigos nos fazem sofrer, e não das correções que nossos pastores nos impõem com justiça. Mas, se vocês considerarem uns e outros com cuidado, não encontrarão nenhuma diferença. Nossa dificuldade era de saber se o mal que sofremos é verdadeiramente um mal para aquele que o sofre. Mas eu posso lhes dar um exemplo que se aproxima ainda mais da questão que nos ocupa. Lembram-se de que Davi, no auge de sua infelicidade, foi insultado por Semei, que fazia chover sobre ele as mais violentas injúrias; seus soldados queriam matar o ofensor, mas ele os deteve, e lhes disse: “Deixem que faça, deixem que maldiga. Talvez o Senhor veja minha aflição, e talvez me conceda alguma graça pelas maldições que eu estou suportando[2]”. É o que ele diz também em seus salmos: “Veja como meus inimigos se multiplicam, e como é injusta a raiva que têm de mim, e devolve a eles meus pecados[3]”. Da mesma forma, Lázaro repousou, porque havia sofrido nessa vida uma infinidade de males. Aqueles a quem se faz mal, esses não o recebem, conquanto que sofram com paciência; ao contrário, esse mal se transformará para eles num grande bem, seja esse mal vindo de Deus, que os castiga pela aflição, seja do demônio, que os persegue.

Mas que crimes, me dirão vocês, teriam cometido aquelas crianças para que devessem expiá-los com uma morte tão sangrenta? O que vocês dizem pode ser verdadeiro para pessoas de idade avançada, e que cometeram muitos pecados; mas, para os inocentes que morrem no berço, que pecado poderiam eles ter cometido, que precise ser lavado com sangue? Lembrem-se do que eu lhes disse, que se a injustiça que nos é feita não encontrar em nós pecados a punir, ela nos trará uma grande recompensa. Que mal pode ter acontecido àquelas crianças, uma vez que, morrendo desse modo, elas passaram por uma morte tão rápida, como por uma curta tempestade, chegando logo ao porto eterno da paz?

Dirão vocês que elas poderiam se tornar grandes santos, se tivessem sobrevivido. Mas vocês acham que sua recompensa foi medíocre, por terem sido mortas no lugar de Jesus Cristo? E podemos ainda afirmar que se Deus previsse que essas crianças viriam a se elevar a um grande mérito, ele não teria permitido que elas fossem mortas no berço. Pois se ele tolera com paciência infatigável, mesmo aqueles que ele sabe que permanecerão no crime, ele teria impedido a morte daquelas crianças, se previsse que elas chegariam um dia a um alto grau de virtude.

3.      Isso é o que podemos dizer a esse respeito, mas existem outras razões bem mais secretas sobre essa conduta, que só são conhecidas Daquele que regulou esses acontecimentos com uma providência incompreensível. Deixando assim a Deus o conhecimento exato e inteiro desse segredo, passemos adiante e aprendamos com a aflição dos outros a sofrer com coragem todos os males que possam nos acontecer. De fato, que trágica calamidade atingiu Belém naqueles tempos, quando se via de todos os lados crianças arrancadas ao seio de suas mães para serem cruelmente imoladas à fúria de um tirano!

Pois se vocês são fracos, se sofrer com paciência e sem se queixar lhes parece uma sabedoria que está acima de suas forças, lancem o olhar sobre a morte de Herodes e respirem um pouco ante essa visão. A justiça de Deus não tardou a atingi-lo, e lhe infligiu uma punição proporcional ao seu crime, fazendo- o sofrer uma morte cruel, mais deplorável do que tudo o que ele fez com que aqueles inocentes suportassem: ela o oprimiu com males sem conta, que os que leram sua história em Josefo conhecem bem. Eu não reporto essas coisas aqui para não me alongar demãos e para não interromper a sequência de nosso Evangelho.

 “Foi então que se realizou o que havia sido predito pelo profeta jeremias: Um grande barulho se fez ouvir em Ramá, e ouviram-se prantos, choro e gritos lamentáveis; Raquel chora seus filhos e não aceita se consolar, porque eles já não existem”. Como o Evangelista havia enchido o espírito do leitor de horror e espanto, apresentando-lhe uma carnificina tão desumana, injusta, cruel e bárbara, ele agora o consola dizendo que isso não aconteceu por impotência ou ignorância de Deus; ao contrário, isso havia sido previsto muito tempo antes por seu profeta. Retomem assim sua coragem, e não temam mais ao olhar essa providência de Deus, que é a mesma, quando ela age e quando ela deixa que ajam os homens.

É o que outrora Jesus Cristo disse aos seus apóstolos. Depois de prever que eles seriam arrastados aos tribunais e conduzidos ao suplício, que toda a terra se levantaria contra eles e lhes faria uma guerra irreconciliável, ele acrescentou, para os consolar: “Não é verdade que se vendem dois pardais por um óbolo? E, no entanto, não cai um só por terra sem que seja a vontade do seu Pai celeste[4]”. Ele lhes falou assim, para ensiná-los que nada lhe é oculto, e que ele vê tudo, embora não faça tudo. Não temam, disse a eles, não se preocupem. Aquele que vê o que vocês sofrem, e que poderia impedi-lo se quisesse, mostra suficientemente que se ele permite que vocês sofram alguma coisa, é porque ele cuida de vocês e os ama. São sentimentos que devemos ter em todas as nossas aflições, e então encontraremos nelas todo o consolo que podemos desejar.

Mas alguém poderá dizer: o que existe de comum entre Raquel e Belém? “Raquel, diz o Evangelho, chora seus filhos”. E o que existe de comum entre Rama e Raquel? Raquel, meus irmãos, era a mãe de Benjamin, e depois de morta ela foi enterrada num campo próximo de Belém. Como seu sepulcro fosse muito próximo, e como esse campo foi deixado à tribo de Benjamin, sendo que Rama pertencia também a essa tribo, o Evangelho chama os pequenos inocentes de “filhos de Raquel”, por causa do chefe dessa tribo e do lugar de sua sepultura. E, para frisar que essa praga era cruel e incurável, ele acrescenta: “Ela não quer ser consolada porque seus filhos já não existem”.

Nós aprendemos ainda aqui o que eu disse, que não devemos jamais nos perturbar quando nos acontecem coisas contrarias às promessas que Deus nos fez. Pois assim que Aquele que veio para salvar seu povo, ou melhor, toda a terra, nasceu, considerem com quantas provações ele começou sua grande obra. Sua mãe fugiu, seu país caiu na maior das aflições, houve uma carnificina de crianças, mais lamentável do que tudo que se vira antes, e de todas as partes eram ouvidos prantos, suspiros e gritos de mães desesperadas. Entretanto, não se perturbem. Deus costuma cumprir seus desígnios por vias que parecem opostas a eles, para que admiremos sua onipotência. É assim que ele formou seus discípulos, preparando-os para grandes ações por meios que pareciam contrários a essa finalidade, a fim de que o milagre parecesse maior. Pois, sofrendo a chibata, o exílio e mil outros males, eles se tornaram mestres inclusive daqueles que trataram dessa maneira.

4.      “Depois, estando Herodes morto, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, que estava no Egito, e lhe disse: Levante-se, pegue o menino e sua mãe e vá para a terra de Israel”.

“E José, levantando-se, tomou o menino e sua mãe, e foi para a terra de Israel”. O anjo já não diz: “Fuja”, mas: “Vá”. Vemos ainda que a calma sucede à tempestade, e que a tempestade vem depois da calmaria. Pois, ao deixar a terra estrangeira, ele retornou ao seu país, onde ficou sabendo da morte funesta daquele assassino de tantas crianças. Mas uma vez chegado, ele encontrou alguns dos perigos precedentes, pois o filho do tirano vivia e reinava na Judeia. “Sabendo que Arquelau reinava na Judeia no lugar de seu pai Herodes, ele teve medo de ir lá, e tendo sido advertido em sonhos por Deus, retirou-se ao país da Galileia”. Mas como Arquelau reinava na Judeia, se o Evangelho diz que seu governador era Pôncio Pilatos? Fazia pouco tempo que Herodes havia morrido, e seu reino fôra dividido em muitas partes. Assim, durante um tempo, Arquelau reinou no lugar de Herodes, que é chamado de seu pai, para distingui-lo de outro Herodes, filho daquele e irmão de Arquelau.

Mas, dirão, se José temia ir à Judeia por causa de Arquelau, ele devia temer também a Galileia por causa de Herodes, seu irmão e filho do tirano. Eu respondo que José se colocara suficientemente a coberto de seus temores, não permanecendo na Judeia; porque todo o furor de Herodes desabara sobre Belém e região. Arquelau acreditava que, depois dessas precauções sangrentas, já não havia nada a temer, e que a criança que eles procuravam havia sido morta com as demais. De resto, depois de ver seu pai terminar a vida da maneira como terminou, ele devia temer seus excessos, e continuar a lutar contra ela com crueldade.

“Ele foi morar numa cidade chamada Nazaré, a fim de que se realizasse o que o profeta disse: Ele será chamado de Nazareno”. José foi a Nazaré, para evitar o perigo, e para rever seu país, de que gostava muito; e, para fazê-lo com mais segurança, ele recebeu a ordem de um anjo. São Lucas não diz que José tenha ido lá por ordem do anjo, mas apenas que, tendo se cumprido a purificação da Virgem, eles retornaram a Nazaré. Como podemos conciliar os dois Evangelistas, senão dizendo que a purificação de que fala São Lucas precedeu a fuga para o Egito: pois Deus não lhes prescreveu que fossem para o Egito antes da purificação, para que nada da lei fosse violado; mas, uma vez cumprida essa cerimônia, eles retornaram a Nazaré, de onde receberam ordem de ir para o Egito. E foi no retorno desse banimento que o anjo lhes ordenou que fossem morar em Nazaré, para onde haviam retornado por si próprios da primeira vez, pelo prazer que tinham de morar naquele país. Como eles só tinham ido a Belém para obedecer às ordens do imperador, sem sequer encontrar lugar onde pudessem se hospedar, eles logo retornaram a Nazaré; é por isso que o anjo, quando do regresso do Egito, para permitir que repousassem, os enviou àquele país. Isso não foi feito ao acaso, porque os profetas o haviam predito. Diz o Evangelho: “A fim de cumprir o que o profeta disse: Ele será chamado de Nazareno”.

Qual profeta disse isso? Não sejam demasiado curiosos, nem detalhistas ao extremo. Pois existem muitos profetas que foram perdidos, como podemos ver no livro dos Paralipomenos. A negligência e a preguiça dos Judeus fizeram com que se perdessem muitos livros santos, assim como sua impiedade queimou e destruiu um grande número deles. O profeta Jeremias lamenta sua impiedade; e sua negligência é atestada no livro IV de Reis, onde está marcado que depois de um longo período foi muito difícil encontrar o livro do Deuteronômio, que tinha sido escondido enterrado, e cujos caracteres estavam quase apagados. Se eles deixaram que se perdessem esses livros tão santos, quando seu país estava em paz, como teriam agido melhor no meio da irrupção de tantos povos estrangeiros? Nada mais era certo, e os profetas previram que Jesus Cristo seria chamado de Nazareno, e é por isso que os Evangelistas muitas vezes o chamaram por esse nome.

Estariam então os Judeus desculpados, dirão vocês, por não serem capazes de compreender a profecia de Belém? Absolutamente. Por isso mesmo, eles deveriam ter tido a curiosidade excitada e tentado conciliar entre si dois oráculos que pareciam se contradizer. Foi o nome de Nazaré que levou Natanael a inquirir Jesus, dizendo: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?[5]”. Pois esse lugar era pequeno e miserável; e não apenas esse lugar, mas toda a Galileia. É por isso que os fariseus disseram a Nicodemos: “Leia bem a Escritura, e verá que nuca surgiu um profeta da Galileia[6]”. Entretanto, Jesus não se envergonhava de ser chamado por esse nome, para nos mostrar que ele não tinha necessidade das coisas que aprecem grandes aos homens. Ele escolheu seus apóstolos na Galileia, pais desprezado pelos Judeus, para evitar toda escusa às pessoas preguiçosas, e para lhes ensinar que nada do que é exterior pode prejudicar a quem se aplica seriamente à virtude. É por isso que o Filho de Deus não quis possuir uma casa para si: “O Filho do homem, disse ele, não tem onde repousar a cabeça[7]”. Por esse mesmo motivo ele fugiu quando Herodes tentou matá-lo; por esse mesmo motivo, ele nasceu e foi colocado numa manjedoura; habitou num estábulo, e escolheu uma mãe pobre, para nos acostumar a não nos envergonharmos de todas essas coisas; para nos ensinar, desde sua entrada nesse mundo, a pisotear todo orgulho do século, e não buscar mais do que os bens da alma, que são as virtudes.

5.      Por que, poderão dizer vocês, ser tão fiel à sua pátria, se em qualquer lugar da terra em que estivermos, nos é ordenado de aí estar como um estrangeiro; e, se o obedecermos, poderemos nos tornar tão grandes, que todo o mundo não será digno de nós? Poderemos nós estimar essas coisas, depois que os filósofos pagãos as desprezaram, considerando-as como estranhas a nós, considerando-as como coisas que deveriam ocupar o último lugar dentre os bens do mundo?

Entretanto, São Paulo – dirão vocês – não rejeitou essas vantagens, quando disse: “Quanto à eleição divina, Deus os ama, por causa dos patriarcas que são seus pais[8]”. Mas, eu lhes peço, considerem a quem São Paulo se dirige, e o que diz, e em que tempo. Ele escrevia a pagãos que, tendo se tornado fiéis, orgulhavam-se de sua fé e tratavam os Judeus com desprezo, pretendendo empurrá-los às fileiras dos infiéis. É por isso que São Paulo tratou de reprimir seu orgulho, ao mesmo tempo em que incitava os Judeus à fé e os encorajava a abraçar o culto de Jesus Cristo. Mas quando ele fala dos maiores homens do Antigo Testamento, vejam o que ele diz: “Aqueles que falam assim fariam bem em ver que eles buscam sua pátria. Pois, se eles tivessem no espírito aquela da qual saíram, eles teriam tempo bastante para retornar a ela; mas eles desejam uma pátria melhor, que é a pátria celeste[9]”. E um pouco antes: “Todos esses morreram na fé, mesmo não tendo recebido os dons que Deus lhes prometera, mas vendo-os, e como que os saudando de longe[10]”.

Também São João disse, àqueles que vinham ao seu batismo: “Não digam: temos a Abrahão como pai[11]”. E São Paulo: “Nem todos os que são de Israel são Israelitas, e os filhos da carne não são os filhos de Deus[12]”. Que vantagem tiveram os filhos de Samuel, sendo filhos de tal pai, sem terem sido herdeiros de sua virtude? De que serviu aos filhos de Moisés tê-lo por pai, se degeneraram seu zelo? É por isso que eles não foram os sucessores de sua autoridade depois de sua morte, porque se contentaram em ser filhos apenas no nome; e o governo do povo passou às mãos de outro, que era seu filho, não de nascimento, mas de virtude. Timóteo era filho de um pagão, e no que foi ele prejudicado pela sua origem? Que ganho o filho de Noé tirou da virtude de seu pai, porque, de livre que era, não deixou de se tornar escravo? Ilustre exemplo que mostra que a nobreza do pai nem sempre basta para preservar o filho da decadência; o desregramento da vontade nesses casos prevalece sobre a lei da natureza, e não apenas priva esses filhos culpados das vantagens de seu nascimento, como ainda faz com que percam a liberdade.

Não era Esaú filho de Isaac, e especialmente querido por seu pai? Não queria Isaac lhe dar a bênção, como o mais velho, porque Esaú o agradava em todas as coisas? Mas, como ele era mau, essas vantagens não lhe serviram para nada. Ainda que a natureza lhe tivesse dado o direito da progenitura, e que seu pai a quisesse conservar, ele perdeu tudo, porque Deus não estava com ele. Mas, para não falarmos dessas particularidades, os Judeus foram feitos filhos de Deus, mas esse título tão glorioso lhes foi inútil. Se, então, aqueles mesmos que se tornam filhos de Deus, se não respondem à dignidade de tão alto nascimento, são ainda punidos por isso, como podem vocês se vangloriarem da nobreza de seus pais e ancestrais?

 Isso que eu digo é tão verdadeiro no Novo como no Antigo Testamento: “Todos os que o receberam, diz São João, receberam de Deus o poder de se tornarem filhos de Deus[13]”. Mas São Paulo declara que essa adoção divina seria inútil a muitos dentre eles, ao dizer: “Se vocês se fizerem circuncidar, Jesus Cristo não lhes servirá de nada[14]”. Se Jesus Cristo de nada vale para aqueles que não cuidam da guarda de suas almas, de que poderá servir termos nascido de tal ou qual homem? Não sejamos orgulhosos de nosso nascimento, bem de nossas riquezas, e desprezemos os que têm esse orgulho.

Não nos envergonhemos por sermos pobres, mas trabalhemos para nos tornar ricos pelas boas obras. Fujamos dessa pobreza que é a companhia dos vícios, e que reduziu a tão extrema pobreza o rico do Evangelho. Pois ele não pôde sequer obter uma gota d’água, apesar de pedir com tanta insistência. Quem dentre vocês é tão pobre como esse rico foi então? Os que morrem de fome têm ao menos água, e não apenas algumas gotas, mas em abundância, sem falar dos outros consolos. Mas aquele rico ficou pobre, até o ponto de não ter sequer uma gota daquilo que pedia; e, o que é mais terrível, sem ter o menor alívio em seus males.

Por que temos tanta avidez por riquezas, uma vez que elas não podem nos adquirir o céu? Se um rei da terra declarasse que nenhum rico seroa honrado em sua corte, não renunciariam todos às suas riquezas? Qual! O perigo de ficar malvisto na corte de um príncipe faria com que todas as riquezas se tornassem desprezíveis; mas quando o Rei do céu nos grita todos os dias: “Como é difícil um rico entrar no reino do céu!”, nós hesitamos e não renunciamos a tudo, como deveríamos fazer para assim podermos entrar com confiança nesse reino eterno.

6.      Depois disso, seremos nós desculpáveis, por ajuntar assim com tanto ardor aquilo que não pode nos servir senão para nos fechar as portas do céu? Mas não é só em nossos cofres que guardamos esse dinheiro, nós o enterramos debaixo da terra, quando poderíamos dá-lo a Deus, que o conservaria para nós na outra vida. Não se parecem vocês com o trabalhador que, tendo recebido trigo para semear numa terra bem preparada, o atira a um lago onde ele logo morrerá, ao invés de lhe trazer algum fruto?

Mas o que dizem essas pessoas, quando as reprovamos por isso? Não é para nós pouca consolação, dizem elas, ver entre nós esses tesouros em segurança. Ao contrário, grande consolação é saber que não existe tesouro para guardarmos conosco. Pois, ainda que vocês não temam mais a fome, nem por isso poderão evitar outros temores mais desagradáveis: a morte, a guerra, as violências secretas de seus inimigos. Se houver uma fome, o povo, pressionado pela necessidade, virá invadir sua casa a mão armada. Assim, com sua avareza, vocês contribuirão para esfomear toda uma cidade, e exporão sua casa a um mal maior do que a fome e a pobreza poderiam fazê-lo.

Eu não tenho ouvido que em nossos tempos algum pobre tenha morrido de fome. Existe uma infinidade de remédios contra esse mal. Mas eu posso mostrar quantas pessoas foram mortas, em segredo ou em público, por causa de seus bens e de suas riquezas, ou por motivos afins. Temos mil exemplos disso nas ruas, nas praças públicas, e nos próprios lugares onde se exerce a justiça. Toda a terra está cheia. Ora, digo eu, toda a terra? O próprio mar está tinto de sangue daqueles que saem a buscar riquezas. Há os que se expõem ao mar na busca de ouro, e os que encontram algum pirata que o mata por causa desse mesmo ouro. O mesmo desejo de riqueza que torna a um, comerciante, faz do outro pirata e homicida. O que existe, então, de mais pérfido do que o dinheiro, porque ele arrasta tantas pessoas, ou a exílios voluntários, ou a perigos extremos, ou a mortes sangrentas e infelizes? “Quem terá compaixão, diz o Eclesiastes, do encantador que é picado pela serpente?[15]”. Seria preciso, no mínimo, que o conhecimento que os homens têm da cruel dominação da avareza os impedisse de se submeterem a ela, e que os livrasse de uma paixão tão violenta e tirânica. Mas como isso pode ser feito, perguntarão vocês? Vocês o farão se substituírem a esse amor pelo ouro, um outro amor, o desejo das coisas do céu. Quem suspira por esse reino, se ri da paixão da avareza. O verdadeiro servidor de jesus Cristo não será jamais escravo, mas sim mestre do dinheiro. Pois normalmente o dinheiro persegue quem dele foge, e foge daquele que o persegue. Ele respeita menos quem o deseja do que quem o despreza. Ele se diverte com quem corre atrás de si, e não apenas ele se diverte, como ainda lhe deita milhares de cadeias.

Rompamos essas correntes tão pesadas, irmãos. Por que haveremos de submeter uma alma racional a uma matéria morta e desprovida de razão, que é a mãe de mil males? Mas, ó loucura inconcebível dos homens! Nós fazemos a guerra à avareza em palavras, mas ela nos sujeita de fato. Ela nos arrasta por toda parte como almas venais, e coo escravos que ela comprou com dinheiro. Existe no mundo coisa mais vergonhosa e mais infame para os cristãos? Se não formos capazes de nos elevar acima da matéria sem alma e sem movimento, como poderemos vencer as potências espirituais que nos atacam? Se não podemos desprezar um pouco de terra, e meia dúzia de pedrinhas que brilham, como sujeitaremos os principados e as potestades? Como poderemos praticar a castidade, se não podemos resistir à avareza? Se o brilho do dinheiro nos fascina, como resistiremos à atração de um belo rosto? Existem pessoas que são de tal modo apaixonadas pelo dinheiro, que não podem vê-lo sem se sentirem transportadas, e dizem então que “a visão do dinheiro é a alegria dos olhos”. Não diga tal tipo de asneira, ó homem! Nada é mais pernicioso para os olhos do corpo e da alma, do que um olhar concupiscente lançado sobre o dinheiro. Foi esse olhar que extinguiu as lâmpadas das virgens tolas, e que as excluiu da câmara do esposo. Essa visão do ouro, que vocês dizem ser tão agradável aos olhos, é a mesma que cegou Judas, que lhe fechou o coração para que não ouvisse mais a voz de seu mestre, que o levou a matar e a perder a si próprio; e que fez com que suas entranhas se derramassem por terra, e arrastou sua alma ao inferno.

O que pode existir de mais funesto do que essa paixão? O que pode ser mais perigoso? Eu não falo da matéria do ouro, falo do desejo furioso que têm os homens por possuí-lo. É essa paixão, que tantas vezes pinta a terra com o sangue dos homens, que a enche de assassinatos, e que é mais cruel do que os animais mais temíveis. Pois ela despedaça todos aqueles que ela possui, e o que é mais terrível, é que ela os despedaça sem que eles sintam. Deveríamos, quando ficamos expostos às suas violências, estender nossa mão aos que passam, e chamá-los em nosso socorro, mas, ao contrário, ficamos felizes com que ela nos devore, e amamos suas feridas, o que é o cúmulo de todos os males. Compenetremo-nos, então, dessas verdades tão úteis; fujamos dessa doença incurável, curemos suas feridas envenenadas; e retiremo-nos para bem longe dessa perigosa peste, a fim de podermos levar aqui uma vida tranquila, e obtermos um dia os tesouros do céu pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, com quem está o Pai e o Espírito Santo, a quem pertencem a glória, o poder e a honra, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.

Final das Homilias sobre a Natividade do Senhor



[1] I Coríntios 5: 5.
[2] II Reis 16: 10.
[3] Salmo 24: 19.
[4] Mateus 10: 29.
[5] João 1: 46.
[6] João 7: 12.
[7] Mateus 8: 20.
[8] Romanos 11: 28.
[9] Hebreus 11: 14-15.
[10] Ibid. 13.
[11] Lucas 3: 2.
[12] Romanos 9: 16.
[13] João 1: 12.
[14] Gálatas 5: 2.
[15] Eclesiastes 22: 13.

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