Capítulo I
Teologia e mística na tradição da Igreja do Oriente
Nós nos propomos a estudar aqui alguns aspectos da espiritualidade
oriental em relação com os temas fundamentais da tradição dogmática ortodoxa. O
termo “teologia mística” não designa aqui, portanto, nada além de uma
espiritualidade que exprime uma atitude doutrinal.
Num certo sentido, toda teologia é mística, na medida em que manifesta
o mistério divino, os dados da revelação. Por outro lado, costuma-se opor a
mística à teologia, como um domínio inacessível ao conhecimento, como um
mistério inexprimível, um fundo oculto que pode ser antes vivido do que
conhecido, entregando-se a uma experiência específica que ultrapassa nossas
faculdades de entendimento, mais do que a uma apreensão qualquer de nossos
sentidos e da nossa inteligência. Se adotarmos sem reservas essa concepção,
opondo resolutamente a mística à teologia, chegaremos finalmente à tese de
Bergson que distingue, em As duas fontes
da moral e da religião a “religião estática” das Igrejas, religião social e
conservadora, da “religião dinâmica” dos místicos, religião pessoal e
renovadora. Em que medida Bergson tinha
razão ao afirmar essa posição? Essa questão é incômoda de resolver, tanto mais
que, para Bergson, os dois termos que ele opõe no domínio religioso estão
fundamentados sobre dois polos de sua visão filosófica do universo: a natureza
e o impulso vital. Mas, independentemente da atitude bergsoniana, costuma-se
expressar a opinião que pretende ver na mística um domínio reservado a poucos,
uma exceção à regra comum, um privilégio concedido a algumas almas que
desfrutam da experiência da verdade, enquanto que as outras devem se contentar
com uma submissão mais ou menos cega ao dogma, que é imposto exteriormente,
como uma autoridade coerciva. Acentuando essa oposição, chega-se ainda mais
longe, sobretudo quando se força um pouco a realidade histórica: é assim que
são postos em conflito os místicos e os teólogos, os espirituais e os prelados,
os santos e a Igreja. Basta lembrar as muitas passagens de Harnack, a Vida de São Francisco de Paul Sabatier e
outras obras, devidas em sua maior parte a autores protestantes.
A tradição oriental jamais fez uma distinção clara entre a mística e a
teologia, entre a experiência pessoal dos mistérios divinos e o dogma afirmado
pela Igreja. As palavras ditas há cerca de um século por um grande teólogo
ortodoxo, o metropolita Filarete de Moscou, exprimem perfeitamente essa
atitude: “Nenhum mistério da sabedoria mais secreta de Deus deve nos parecer
estranho ou totalmente transcendente, mas, com toda a humildade, devemos
adaptar nosso espírito à contemplação das coisas divinas[1]”.
Dito de outra forma, o dogma que exprime uma verdade revelada, que nos parece
um mistério insondável, deve ser vivido por nós num processo, em cujo decurso,
ao invés de assimilar o mistério ao nosso modo de entendimento, será preciso,
ao contrário, que cheguemos a uma mudança profunda, a uma transformação
interior de nosso espírito, para nos tornarmos aptos à experiência mística.
Longe de se opor, a teologia e a mística se sustentam e se completam
mutuamente. Uma é impossível sem a outra: se a experiência mística constitui
uma valoração pessoal do conteúdo da fé comum, a teologia é uma expressão, para
a utilidade de todos, daquilo que pode ser experimentado por cada um. Fora da
verdade guardada pelo conjunto da Igreja, a experiência pessoal seria privada
de qualquer certeza, de toda objetividade; ela seria uma mistura de verdadeiro
e falso, de realidade e ilusão, o “misticismo” no sentido pejorativo do termo.
Por outro lado, o ensinamento da Igreja não teria nenhum poder sobre as almas,
se não expressasse de algum modo uma experiência íntima da verdade dada, numa
medida diferente, a cada fiel. Assim, não existe mística cristã sem teologia,
mas, sobretudo, não existe teologia sem mística. Não é por acaso que a tradição
da Igreja do Oriente reservou particularmente o nome de “teólogo” a três escritores
sagrados, dos quais o primeiro é São João, o mais “místico” dos quatro
evangelistas, o segundo São Gregório de Nazianze, autor de poemas
contemplativos, e o terceiro São Simeão, chamado de “Novo Teólogo”, cantor da
união com Deus. A mística é assim considerada aqui como a perfeição, o cume de
toda a teologia, como uma teologia por excelência.
Contrariamente à gnose[2],
onde o conhecimento por si mesmo constitui a finalidade dogmática do gnóstico,
a teologia cristã é sempre, em último lugar, um meio, um conjunto de
conhecimentos que deve servir a um fim que ultrapassa todo conhecimento. Esse
fim último é a união com Deus, ou deificação, a Theosis dos Padres gregos. Chegamos assim a uma conclusão que pode
parecer paradoxal: a teoria cristã teria um sentido eminentemente prático, e
isso na medida mesma em que ela for mais mística, em que visar mais diretamente
o objetivo supremo da união com Deus. Todo o desenvolvimento das lutas
dogmáticas sustentadas pela Igreja ao longo dos séculos, se o virmos do ponto de
vista puramente espiritual, surge agora como dominado pela preocupação
constante que teve a Igreja de salvaguardar a cada momento de sua história a
possibilidade, para os cristãos, de atingirem a plenitude da união mística. Com
efeito, a Igreja lutou contra os gnósticos para defender a própria ideia da
deificação como fim universal: “Deus se fez homem para que os homens pudessem
se fazer deuses”. Ela afirmou contra os arianos o dogma da Trindade
consubstancial, porque é o verbo, o Logos que nos abre a vida para a união com
a divindade, e, se o Verbo encarnado não tivesse a mesma substância do Pai, se
ele não fosse verdadeiro Deus, nossa deificação seria impossível. A Igreja
condenou o nestorianismo, para derrubar o muro por meio do qual, no próprio
Cristo, pretendeu-se separar o homem de Deus. Ela se levantou contra o
apolinarismo e o monofisitismo, para mostrar que, tendo sido assumida pelo
Verbo a plenitude da verdadeira natureza humana, toda a nossa natureza poderia
entrar em união com Deus. Ela combateu os monotelitas, porque fora da união das
duas vontades, a divina e a humana, não seria possível alcançar a deificação:
“Deus criou o homem apenas por sua vontade, mas ele não pode salvá-lo sem a
participação da vontade humana”. A Igreja triunfou na luta contra as imagens,
afirmando a possibilidade de expressar as realidades divinas na matéria –
símbolo e garantia de nossa santificação. Nas questões que foram colocadas sucessivamente,
sobre o Espírito Santo, sobre a graça, sobre a própria Igreja – questão dogmática
da época em que vivemos – a preocupação central, o desafio da luta é sempre a
possibilidade, o modo ou os meios da união com Deus. Toda a história do dogma
cristão se desenvolve ao redor do mesmo núcleo místico, defendido por armas
diferentes contra adversários múltiplos no decurso de épocas sucessivas.
As doutrinas teológicas elaboradas ao longo dessas lutas podem ser
tratadas em sua relação direta com o objetivo vital que elas deveriam ajudar a
atingir – a União com Deus. Assim, elas se apresentaram como as bases da
espiritualidade cristã. É isso o que entendemos quando falamos de “teologia
mística”. Não se trata da mística propriamente dita, das experiências pessoais
dos diferentes mestres da vida espiritual. De resto, essas experiências
permanecem, no mais das vezes, inacessíveis, mesmo quando encontraram alguma
expressão verbal. Que podemos dizer, com efeito, sobre a experiência mística de
São Paulo: “Eu conheci um homem em Cristo, que foi, há cerca de quatorze anos,
arrebatado ao terceiro céu (se foi no corpo, não sei, se foi fora do corpo, não
sei – Deus o sabe). E sei que esse homem (se foi no corpo, não sei, se foi fora
do corpo, não sei – Deus o sabe) foi levado ao paraíso e ali ouviu palavras
inefáveis que não é permitido ao homem expressar[3]”.
Para nos arriscarmos a emitir um juízo qualquer a respeito da natureza dessa
experiência, seria preciso saber mais sobre ela do que São Paulo, que confessa
sua ignorância – “eu não sei, Deus o sabe”. Deixamos de lado propositadamente
toda questão de psicologia mística. Tampouco são as doutrinas teológicas enquanto
tais que pretendemos expor aqui, mas apenas os elementos de teologia
indispensáveis para compreender uma espiritualidade, os dogmas que constituem a
base de uma mística. Eis a primeira definição e delimitação de nosso tema, que
é a teologia mística da Igreja do Oriente.
***
A segunda determinação de nosso
tema o circunscreve, por assim dizer, no espaço: trata-se do Oriente cristão,
ou, mais precisamente, da Igreja Ortodoxa do Oriente, que será o campo de
nossos estudos sobre a teologia mística. É preciso reconhecer que essa
delimitação é um pouco artificial. Com efeito, a ruptura entre o Oriente e o
Ocidente cristãos não data senão da metade do século X, e tudo oque é anterior
a essa data constitui um tesouro comum inseparável das duas partes desunidas. A
Igreja Ortodoxa não seria o que ela é, se não tivesse havido um São Cipriano,
um Santo Agostinho, um São Gregório o Grande, assim como a Igreja católica
Romana não poderia passar sem Santo Atanásio, São Basílio, São Cirilo de
Alexandria. Portanto, quando queremos falar da teologia mística do Oriente ou
do Ocidente, colocamo-nos na esteira de uma das duas tradições que foram até um
dado momento como que duas tradições locais da Igreja una, testemunhando uma só
verdade cristã, mas que em seguida se separaram e fizeram nascer duas atitudes
dogmáticas diferentes, inconciliáveis sobre muitos pontos. É possível julgar as
duas tradições, colocando-nos num terreno neutro, igualmente estranho a uma e
outra? Isso equivaleria a julgar o Cristianismo como um não-cristão, ou seja,
recusar previamente compreender seja lá o que for daquilo que se propõe a
estudar. Pois a objetividade não constitui absolutamente em se colocar fora do
objeto, mas, ao contrário, em considerar o objeto em si mesmo e por si mesmo.
Existem domínios nos quais aquilo que se chama ordinariamente de “objetividade”
não passa de indiferença, e de uma indiferença que significa incompreensão. No
estado atual da oposição dogmática entre o Oriente e o Ocidente é preciso,
portanto, se quisermos estudar a teologia mística da Igreja do Oriente,
escolher entre as duas atitudes possíveis: colocarmo-nos sobre o terreno
dogmático ocidental e examinar a tradição oriental através daquela do Ocidente,
vale dizer, criticando-a, ou bem apresentar essa tradição sob a luz dogmática
da Igreja do Oriente. Essa última atitude é para nós a única possível.
Pode-se objetar, eventualmente, que a dissensão dogmática entre o
Oriente e o Ocidente não foi senão acidental, que ela não desempenhou um papel
decisivo, que se tratava mais de dois mundos historicamente diferentes que
deveriam, cedo ou tarde, se separar para seguir cada qual seu próprio caminho;
que a disputa dogmática não passou de um pretexto para romper definitivamente a
unidade eclesiástica, que, de fato, já não existia há muito tempo. Essas
afirmações, que escutamos com frequência tanto no Oriente como no Ocidente, são
devidas a uma mentalidade puramente laica, que costuma tratar a história da
Igreja segundo métodos que abstraem a própria natureza religiosa da Igreja.
Para um “historiador da Igreja”, o fator religioso desaparece, e é substituído
por outros, tais como o jogo de interesses políticos ou sociais, o papel das
condições étnicas e culturais, considerados como forças determinantes da vida
da Igreja. Acredita-se assim que se está sendo muito engenhoso, hábil e astuto
ao invocar esses fatores como as verdadeiras razões que dirigem a história
eclesiástica. Ainda que reconhecendo a importância dessas condições, um historiador
cristão não pode se resignar em encará-los de outro modo que não exteriores à
própria existência da Igreja; ele não pode renunciar a ver a Igreja como um
corpo autônomo, submetido a outra lei do que aquela do determinismo desse
mundo. Se considerarmos a questão dogmática sobre a processão do Espírito
Santo, que dividiu o Oriente e o Ocidente, não podemos tratá-la como um
fenômeno fortuito na história da Igreja, vista enquanto tal. Do ponto de vista
religioso, foi a única razão que contou no encadeamento dos fatos que levaram à
separação. Embora talvez condicionada por muitos fatores, essa determinação
dogmática foi, para uns e outros, um compromisso espiritual, uma tomada de
posição consciente em matéria de fé.
Se somos costumeiramente levados a diminuir a importância do fato
dogmático que determinou todo o desenvolvimento ulterior dessas tradições, isso
se deve a uma certa insensibilidade diante do dogma, considerado como algo de
exterior e abstrato. É a espiritualidade que conta, diz-se; a diferença
dogmática não muda nada. No entanto, espiritualidade e dogma, mística e
teologia, estão inseparavelmente ligados na vida da Igreja. No que concerne à
Igreja do Oriente, como dissemos, ela não faz uma distinção clara entre a
teologia e a mística, entre o domínio da fé comum e o da experiência pessoal.
Portanto, se quisermos falar da teologia mística da tradição Oriental, não
poderemos tratar esse assunto de outro modo que dentro dos quadros dogmáticos
da Igreja ortodoxa.
***
Antes de abordar nosso tema, é necessário que digamos algumas palavras
sobre a Igreja ortodoxa, que até hoje é pouco conhecida no Ocidente. O livro do
Pe. Congar, Cristãos desunidos:
Princípios de um ecumenismo católico[4],
muito louvável sob muitos aspectos, nas páginas consagradas à Ortodoxia,
malgrado todos os cuidados com a objetividade, não deixa de ser tributário de
certas opiniões preconcebidas a respeito da Igreja ortodoxa. “Onde o Ocidente,
diz ele, sobre a base a um tempo desenvolvida e ajustada da ideologia
agostiniana, reivindica para a Igreja a autonomia de uma vida e uma organização
próprias, e fixa nesse sentido as linhas mestras de uma eclesiologia positiva,
o Oriente admite praticamente, e às vezes teoricamente, para a realidade social
e humana da Igreja, um princípio de unidade política, não religioso, parcial,
não verdadeiramente universal”. Para o Pe. Congar, como para a maior parte dos
autores católicos ou protestantes que se manifestaram a respeito desse ponto, a
Ortodoxia se apresenta sob o aspecto de uma federação de igrejas nacionais,
tendo por base um princípio político – a Igreja de um Estado. É preciso ignorar
os fundamentos canônicos, tanto quanto a história da Igreja do oriente, para se
arriscar a semelhantes generalizações. A opinião que pretende fundamentar a
unidade de uma igreja local sobre um princípio político, étnico ou cultural, é
reputado pela Igreja ortodoxa como uma heresia especificamente denominada pelo
nome de filetismo[5]. É
o território eclesiástico, a terra consagrada pela tradição mais ou menos
antiga do Cristianismo que constitui a base de uma província metropolitana,
administrada por um arcebispo ou um metropolita, com bispos para cada diocese,
que se reúnem de tempos em tempos em sínodos. Se as províncias metropolitanas
se reúnem em grupos e formam igrejas locais sob a jurisdição de um bispo que
recebe o título de patriarca, trata-se ainda da comunidade de tradição local e
de destino histórico, bem como da comodidade de convocar um concílio de muitas
províncias, que presidem a formação desses grandes círculos jurisdicionais,
cujo território não corresponde necessariamente aos limites políticos de um
Estado[6].
O patriarca de Constantinopla desfruta de um certo primado de honra, fazendo-se
ocasionalmente árbitro em disputas, sem exercer uma jurisdição sobre o conjunto
da Igreja ecumênica. As igrejas locais do Oriente tinham mais ou menos a mesma
atitude perante o patriarcado apostólico de Roma, primeira sede da Igreja antes
da separação, símbolo de sua unidade. A Ortodoxia não reconhece um chefe
visível da Igreja. A unidade da Igreja se expressa pela comunhão dos chefes das
igrejas locais entre si, pelo acordo de todas as igrejas a respeito de um
concílio local, que por isso mesmo adquire um valor universal; enfim, em casos
excepcionais, a Igreja pode se manifestar por meio de um concílio geral[7].
A catolicidade da Igreja, longe se ser privilégio de uma sede ou centro
determinado, se realiza na riqueza e na multiplicidade das tradições locais que
testemunham unanimemente um só Verdade – a que é conservada sempre, em toda
parte e por todos. Sendo a Igreja católica em todas as suas partes, cada um de
seus membros – não apenas o clero, mas também cada leigo – é chamado a
confessar e defender a verdade da tradição, opondo-se inclusive aos bispos,
caso esses incorram em heresia. Um cristão que tenha recebido o dom do Espírito
Santo no sacramento do santo crisma não pode estar inconsciente em sua fé; ele
é sempre responsável pela Igreja. Daí o caráter agitado e às vezes perturbado
da vida eclesiástica em Bizâncio, na Rússia e em outros países do mundo
ortodoxo. Mas é o preço que se paga por uma vitalidade religiosa, por uma
intensa vida espiritual que penetra o povo dos fiéis, unido pela consciência de
formar um só corpo coma hierarquia da Igreja. Daí provém igualmente essa força
invencível que permitiu à Ortodoxia atravessar todas as provações, todos os
cataclismos e revoluções, sempre se adaptando à nova realidade histórica,
mostrando-se mais forte do que as condições exteriores. As perseguições contra
a fé na Rússia comunista, cuja fúria metódica não foi capaz de destruir a
Igreja, são o melhor testemunho dessa força que parece não ser desse mundo.
A Igreja ortodoxa, apesar de ser comumente chamada de Igreja do
Oriente, não se considera por isso menos como uma Igreja ecumênica. E isso é
verdade no sentido em que ela não está limitada por um tipo de cultura
determinada, pela herança de uma civilização, seja helênica ou outra, ou pelas
formas culturais estritamente orientais. De resto, “oriental” significa muitas
coisas: o Oriente é menos homogêneo do ponto de vista cultural do que o
Ocidente. O que existe de comum, por exemplo, entre o helenismo e a cultura
russa, apesar das origens bizantinas do Cristianismo na Rússia? A Ortodoxia foi
o fermento de muitas culturas diferentes, para ser considerada como uma forma
cultural do Cristianismo oriental: suas formas são muitas, a fé é uma. Ela
jamais opôs às culturas nacionais uma cultura que fosse considerada como
especificamente ortodoxa. É por isso que a obra da missão pôde se desenvolver
de forma tão prodigiosa: a cristianização da Rússia nos séculos X e XI e, mais
tarde, a predicação do Evangelho por toda a Ásia. No final do século XVIII a
missão ortodoxa alcançou as ilhas Aleutas e o Alasca, passando a seguir para a
América do Norte, criando novas dioceses da Igreja russa fora da Rússia e se
propagando na China e no Japão. As variedades antropológicas e culturais, da
Grécia até as extremidades da Ásia, do Egito até o Oceano Glacial não
destruíram o caráter homogêneo dessa família de espiritualidade, muito
diferente daquela do Ocidente cristão.
A vida espiritual na Ortodoxia conhece uma grande riqueza de formas,
dentre as quais o monaquismo continua sendo a mais clássica. Entretanto,
contrariamente ao monaquismo do Ocidente, o do Oriente não compreende uma
multiplicidade de ordens diferentes. Isso se explica pela própria concepção da
vida monástica, cujo objetivo não pode ser outro do que a união com Deus na
renúncia total à vida desse século. Se o clero secular (sacerdotes e diáconos
casados), ou as confrarias de leigos podem se ocupar de obras sociais ou se
dedicar a outras atividades exteriores, o mesmo não acontece com os monges.
Eles tomam o hábito, antes de tudo para se dedicarem à oração, à obra interior,
num mosteiro ou num eremitério. Entre um mosteiro de aspecto comum à solidão de
um anacoreta que continua as tradições dos Padres do deserto, existem muitos
tipos intermediários de instituições monásticas. Podemos dizer em geral que o
monaquismo oriental é exclusivamente contemplativo, se a distinção entre as
duas vias, ativa e contemplativa, tivesse o mesmo sentido no Oriente que tem no
Ocidente. Na realidade, as duas vias são inseparáveis para os espirituais
orientais: uma não pode ser exercida sem a outra, porque a maestria ascética, a
escola da oração interior, recebe o nome de atividade
espiritual. Se os monges ocasionalmente exercem trabalhos físicos, é
sobretudo com finalidade ascética, para melhor domar a natureza rebelde; assim,
por exemplo, para evitar o ócio, inimigo da vida espiritual. Para alcançar a
união com Deus, na medida em que essa é realizável aqui em baixo, é preciso um
esforço contínuo, ou, mais precisamente, uma vigília incessante para que a
integridade do homem interior, “a união entre o coração e o espírito” (para
empregarmos uma expressão do ascetismo ortodoxo) resista a todos os assaltos do
inimigo, a todos os movimentos irracionais da natureza decaída. A natureza
humana deve mudar, ela deve ser transfigurada mais e mais pela graça sobre o
caminho da santificação, que tem um alcance não apenas espiritual, mas também
corporal, e, a partir daí, cósmico. A obra espiritual de um cenobita ou de um
anacoreta que vive retirado do mundo, mesmo que passe desapercebida por todos,
mantém todo seu valor para o universo inteiro. É por isso que as instituições
monásticas sempre gozaram de grande veneração em todos os países do mundo
ortodoxo.
O papel dos grandes centros de irradiação da espiritualidade foi
considerável, não apenas na vida eclesiástica, como no domínio cultural e
político. Os mosteiros do Monte Sinai, de Studion, perto de Constantinopla, a
“república monástica” do Monte Athos, reuniram religiosos de todas as nações
(incluindo monges latinos antes da separação), enquanto outros grandes centros
fora do Império, como o mosteiro de Tirnovo, na Bulgária, e as grandes abadias
(lavra) da Rússia – Petcheri em Kiev,
Santa Trindade próxima a Moscou – foram cidadelas da Ortodoxia, escolas de vida
espiritual cuja influência religiosa e moral foi de primeira ordem na formação
cristã dos novos povos. Mas, se o ideal do monaquismo teve tão grande poder
sobre as almas, essa não foi a única forma de vida espiritual que a Igreja
propôs aos fiéis: a via de união com Deus pode ser seguida fora dos claustros,
nas condições normais da vida humana. As formas exteriores podem mudar, os mosteiros
podem desaparecer, como desapareceram na Rússia[8],
mas a vida espiritual continuou com a mesma intensidade, encontrando novos
meios de expressão.
A hagiografia oriental, extremamente rica, mostra ao lado dos santos
monges muitos exemplos de perfeição espiritual adquirida no mundo por simples
leigos e por pessoas casadas. Ela conhece também vias de santificação estranhas
e insólitas, como a dos “loucos em Cristo”, que cometem atos extravagantes para
esconder seus dons espirituais aos olhos da multidão sob a aparência
assustadora da loucura, ou também para se libertar dos laços desse mundo em sua
expressão mais íntima e mais difícil para o espírito, a do “eu” social. A união
com Deus se manifesta às vezes por meio de dons carismáticos, como, por
exemplo, o da direção espiritual exercida pelos startzy, ou “anciãos”. No mais das vezes esses são monges que
passaram muitos anos de sua vida em oração, fechados a todo contato com o
mundo, e que, no final de sua existência, abrem largamente as portas de sua
cela a todos. Eles possuem o dom de penetrar nas profundezas insondáveis das
consciências, de revelar os pecados e as dificuldades interiores que nos restam,
frequentemente desconhecidos, de endireitar as almas oprimidas, de dirigir os
homens não apenas em sua via espiritual, mas também em todas as peripécias de
sua vida no século.
***
A experiência individual dos grandes místicos da Igreja ortodoxa permanece
para nós, em geral, desconhecida. Salvo raras exceções, a literatura espiritual
do Oriente cristão não possui quase relatos autobiográficos que toquem a vida
interior, como os de Santo Ângelo de Foligno, de Henri Suso, ou como a História de uma alma de Santa Tereza de
Lisieux. O caminho da união mística é quase sempre um segredo entre Deus e a alma,
que não se expõe fora, a não ser para o confessor e alguns discípulos. O que se
publica são os frutos da união: a sabedoria, os conhecimentos dos mistérios
divinos que se exprimem num ensinamento teológico ou moral, em conselhos para a
edificação dos irmãos. Quanto ao lado íntimo e pessoal da experiência mística,
ele permanece oculto aos olhos de todos. É preciso reconhecer que o
individualismo místico aparece na literatura ocidental bastante tarde, por
volta do século XIII. São Bernardo não fala diretamente de sua experiência
pessoal senão muito raramente, uma única vez nos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos – e ainda assim com uma
espécie de pudor, como São Paulo. Foi preciso que uma espécie de cisão acontecesse
entre a experiência pessoal e a fé comum, entre a vida individual e a vida da
Igreja, para que a espiritualidade e o dogma, a mística e a teologia se
tornassem dois domínios distintos, para que as almas, não encontrando mais o
alimento suficiente nas sumas teológicas, se pusessem a buscar com avidez os
relatos de experiências místicas individuais, a fim de se reavivarem em uma
atmosfera de espiritualidade. O individualismo místico permaneceu estranho à
espiritualidade da Igreja do Oriente.
O Pe. Congar tem razão, quando disse: “Nós nos tornamos homens diferentes. Temos o mesmo Deus,
mas diante dele somos homens diferentes e não podemos concordar sobre a
natureza de nossa relação com Ele[9]”.
Mas para julgar essa diferença espiritual seria preciso examiná-la em suas
expressões mais perfeitas, nos diferentes tipos de santos do Ocidente e do Oriente,
depois da separação entre as duas Igrejas. Poderíamos então nos dar conta da
ligação estreita que existe entre o dogma confessado pela Igreja e os frutos
espirituais que ela produz, pois a experiência interior de um cristão se realiza
dentro do círculo traçado pelo ensinamento da Igreja, dentro do quadro dos
dogmas que modelam sua pessoa. Se uma simples doutrina política professada
pelos membros de um partido já e capaz de moldar as mentalidades até produzir
tipos de homens que se distinguem dos outros por determinadas marcas morais e
psíquicas, como mais razão o dogma religioso consegue transformar o próprio espírito
daqueles que o professam; ele são homens diferentes dos outros, daqueles que
foram conformados por uma outra concepção dogmática. Jamais compreenderemos uma
espiritualidade se não levarmos em conta o dogma que está em sua base. É preciso
aceitar as coisas tal como elas são e não tentar explicar a diferença entre as
espiritualidades do Ocidente e do Oriente por meio de causas de ordem étnica ou
cultural, quando uma causa maior, uma causa dogmática está em jogo. Não se deve
dizer, tampouco, que a questão da processão do Espírito Santo ou da natureza da
graça não tenha grande importância no conjunto da doutrina cristã, que seria
assim mais ou menos idêntica entre católicos romanos e ortodoxos. Em dogmas tão
fundamentais, é esse “mais ou menos” que importa, pois ele empresta um acento
diferente a toda a doutrina e a apresenta sob uma nova luz, ou seja, ela dá
lugar a outra espiritualidade.
Não pretendemos fazer aqui “teologia comparada”, e menos ainda renovar
as polêmicas confessionais. Nós nos limitamos aqui a constatar o fato de que existe
uma diferença dogmática entre o Oriente e o Ocidente cristãos, antes de passar
em revista alguns elementos de teologia que estão na base da espiritualidade
oriental. Caberá aos nossos leitores julgar em que medida esses aspectos teológicos
da mística ortodoxa podem ser úteis para a compreensão de uma espiritualidade
que é estranha à cristandade ocidental. Se, mesmo permanecendo fiéis às nossas
atitudes dogmáticas, possamos chegar a nos conhecer mutuamente – sobretudo naquilo
que nos torna diferentes – essa poderia certamente ser um caminho de união mais
seguro do que outro que passasse ao largo das diferenças. Pois, para citarmos
as palavras de Karl Barth, “a união das Igrejas não se faz, se descobre[10]”.
[1] Sermões e discursos do Metropolita Filarete,
Moscou, 1884.
[2]
Ver M. H.-Ch. Puech, Où em est le problème
du gnosticisme?, in Revue de
l’Université de Bruxelles, 1934, nos. 2 e 3.
[3] II
Coríntios 12: 2-4.
[4] Éditions du Cerf, 1937.
[5] Atas do Sínodo de Constantinopla,
agosto-setembro 1872.
[6]
Assim é que o patriarcado de Moscou compreende as dioceses da América do Norte
e de Tóquio. Os territórios dos patriarcados de Constantinopla, de Alexandria,
de Antioquia e de Jerusalém pertencem politicamente a diferentes potências.
[7]
O nome de concílios ecumênicos atribuído no Oriente aos sete primeiros sínodos
responde a uma realidade de ordem puramente histórica; trata-se dos concílios
do território “ecumênico”, o do Império Bizantino que se estendia (ao menos
teoricamente) por todo o universo cristão. Nas épocas posteriores, a Igreja
ortodoxa conheceu concílios gerais que, sem receber o título de “ecumênicos”,
nem por isso foram menos numerosos nem menos importantes.
[8] No
período da União Soviética, de 1922 a 1991.
[9] Pe.
Congar, op. cit.
[10] A Igreja e as igrejas, in Ecumenica III, Julho 1936.
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