sábado, 5 de janeiro de 2019

Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente - Capítulo I: Teologia e mística na tradição da Igreja do Oriente



Capítulo I
Teologia e mística na tradição da Igreja do Oriente

Nós nos propomos a estudar aqui alguns aspectos da espiritualidade oriental em relação com os temas fundamentais da tradição dogmática ortodoxa. O termo “teologia mística” não designa aqui, portanto, nada além de uma espiritualidade que exprime uma atitude doutrinal.

Num certo sentido, toda teologia é mística, na medida em que manifesta o mistério divino, os dados da revelação. Por outro lado, costuma-se opor a mística à teologia, como um domínio inacessível ao conhecimento, como um mistério inexprimível, um fundo oculto que pode ser antes vivido do que conhecido, entregando-se a uma experiência específica que ultrapassa nossas faculdades de entendimento, mais do que a uma apreensão qualquer de nossos sentidos e da nossa inteligência. Se adotarmos sem reservas essa concepção, opondo resolutamente a mística à teologia, chegaremos finalmente à tese de Bergson que distingue, em As duas fontes da moral e da religião a “religião estática” das Igrejas, religião social e conservadora, da “religião dinâmica” dos místicos, religião pessoal e renovadora.  Em que medida Bergson tinha razão ao afirmar essa posição? Essa questão é incômoda de resolver, tanto mais que, para Bergson, os dois termos que ele opõe no domínio religioso estão fundamentados sobre dois polos de sua visão filosófica do universo: a natureza e o impulso vital. Mas, independentemente da atitude bergsoniana, costuma-se expressar a opinião que pretende ver na mística um domínio reservado a poucos, uma exceção à regra comum, um privilégio concedido a algumas almas que desfrutam da experiência da verdade, enquanto que as outras devem se contentar com uma submissão mais ou menos cega ao dogma, que é imposto exteriormente, como uma autoridade coerciva. Acentuando essa oposição, chega-se ainda mais longe, sobretudo quando se força um pouco a realidade histórica: é assim que são postos em conflito os místicos e os teólogos, os espirituais e os prelados, os santos e a Igreja. Basta lembrar as muitas passagens de Harnack, a Vida de São Francisco de Paul Sabatier e outras obras, devidas em sua maior parte a autores protestantes.

A tradição oriental jamais fez uma distinção clara entre a mística e a teologia, entre a experiência pessoal dos mistérios divinos e o dogma afirmado pela Igreja. As palavras ditas há cerca de um século por um grande teólogo ortodoxo, o metropolita Filarete de Moscou, exprimem perfeitamente essa atitude: “Nenhum mistério da sabedoria mais secreta de Deus deve nos parecer estranho ou totalmente transcendente, mas, com toda a humildade, devemos adaptar nosso espírito à contemplação das coisas divinas[1]”. Dito de outra forma, o dogma que exprime uma verdade revelada, que nos parece um mistério insondável, deve ser vivido por nós num processo, em cujo decurso, ao invés de assimilar o mistério ao nosso modo de entendimento, será preciso, ao contrário, que cheguemos a uma mudança profunda, a uma transformação interior de nosso espírito, para nos tornarmos aptos à experiência mística. Longe de se opor, a teologia e a mística se sustentam e se completam mutuamente. Uma é impossível sem a outra: se a experiência mística constitui uma valoração pessoal do conteúdo da fé comum, a teologia é uma expressão, para a utilidade de todos, daquilo que pode ser experimentado por cada um. Fora da verdade guardada pelo conjunto da Igreja, a experiência pessoal seria privada de qualquer certeza, de toda objetividade; ela seria uma mistura de verdadeiro e falso, de realidade e ilusão, o “misticismo” no sentido pejorativo do termo. Por outro lado, o ensinamento da Igreja não teria nenhum poder sobre as almas, se não expressasse de algum modo uma experiência íntima da verdade dada, numa medida diferente, a cada fiel. Assim, não existe mística cristã sem teologia, mas, sobretudo, não existe teologia sem mística. Não é por acaso que a tradição da Igreja do Oriente reservou particularmente o nome de “teólogo” a três escritores sagrados, dos quais o primeiro é São João, o mais “místico” dos quatro evangelistas, o segundo São Gregório de Nazianze, autor de poemas contemplativos, e o terceiro São Simeão, chamado de “Novo Teólogo”, cantor da união com Deus. A mística é assim considerada aqui como a perfeição, o cume de toda a teologia, como uma teologia por excelência.

Contrariamente à gnose[2], onde o conhecimento por si mesmo constitui a finalidade dogmática do gnóstico, a teologia cristã é sempre, em último lugar, um meio, um conjunto de conhecimentos que deve servir a um fim que ultrapassa todo conhecimento. Esse fim último é a união com Deus, ou deificação, a Theosis dos Padres gregos. Chegamos assim a uma conclusão que pode parecer paradoxal: a teoria cristã teria um sentido eminentemente prático, e isso na medida mesma em que ela for mais mística, em que visar mais diretamente o objetivo supremo da união com Deus. Todo o desenvolvimento das lutas dogmáticas sustentadas pela Igreja ao longo dos séculos, se o virmos do ponto de vista puramente espiritual, surge agora como dominado pela preocupação constante que teve a Igreja de salvaguardar a cada momento de sua história a possibilidade, para os cristãos, de atingirem a plenitude da união mística. Com efeito, a Igreja lutou contra os gnósticos para defender a própria ideia da deificação como fim universal: “Deus se fez homem para que os homens pudessem se fazer deuses”. Ela afirmou contra os arianos o dogma da Trindade consubstancial, porque é o verbo, o Logos que nos abre a vida para a união com a divindade, e, se o Verbo encarnado não tivesse a mesma substância do Pai, se ele não fosse verdadeiro Deus, nossa deificação seria impossível. A Igreja condenou o nestorianismo, para derrubar o muro por meio do qual, no próprio Cristo, pretendeu-se separar o homem de Deus. Ela se levantou contra o apolinarismo e o monofisitismo, para mostrar que, tendo sido assumida pelo Verbo a plenitude da verdadeira natureza humana, toda a nossa natureza poderia entrar em união com Deus. Ela combateu os monotelitas, porque fora da união das duas vontades, a divina e a humana, não seria possível alcançar a deificação: “Deus criou o homem apenas por sua vontade, mas ele não pode salvá-lo sem a participação da vontade humana”. A Igreja triunfou na luta contra as imagens, afirmando a possibilidade de expressar as realidades divinas na matéria – símbolo e garantia de nossa santificação. Nas questões que foram colocadas sucessivamente, sobre o Espírito Santo, sobre a graça, sobre a própria Igreja – questão dogmática da época em que vivemos – a preocupação central, o desafio da luta é sempre a possibilidade, o modo ou os meios da união com Deus. Toda a história do dogma cristão se desenvolve ao redor do mesmo núcleo místico, defendido por armas diferentes contra adversários múltiplos no decurso de épocas sucessivas.

As doutrinas teológicas elaboradas ao longo dessas lutas podem ser tratadas em sua relação direta com o objetivo vital que elas deveriam ajudar a atingir – a União com Deus. Assim, elas se apresentaram como as bases da espiritualidade cristã. É isso o que entendemos quando falamos de “teologia mística”. Não se trata da mística propriamente dita, das experiências pessoais dos diferentes mestres da vida espiritual. De resto, essas experiências permanecem, no mais das vezes, inacessíveis, mesmo quando encontraram alguma expressão verbal. Que podemos dizer, com efeito, sobre a experiência mística de São Paulo: “Eu conheci um homem em Cristo, que foi, há cerca de quatorze anos, arrebatado ao terceiro céu (se foi no corpo, não sei, se foi fora do corpo, não sei – Deus o sabe). E sei que esse homem (se foi no corpo, não sei, se foi fora do corpo, não sei – Deus o sabe) foi levado ao paraíso e ali ouviu palavras inefáveis que não é permitido ao homem expressar[3]”. Para nos arriscarmos a emitir um juízo qualquer a respeito da natureza dessa experiência, seria preciso saber mais sobre ela do que São Paulo, que confessa sua ignorância – “eu não sei, Deus o sabe”. Deixamos de lado propositadamente toda questão de psicologia mística. Tampouco são as doutrinas teológicas enquanto tais que pretendemos expor aqui, mas apenas os elementos de teologia indispensáveis para compreender uma espiritualidade, os dogmas que constituem a base de uma mística. Eis a primeira definição e delimitação de nosso tema, que é a teologia mística da Igreja do Oriente.

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 A segunda determinação de nosso tema o circunscreve, por assim dizer, no espaço: trata-se do Oriente cristão, ou, mais precisamente, da Igreja Ortodoxa do Oriente, que será o campo de nossos estudos sobre a teologia mística. É preciso reconhecer que essa delimitação é um pouco artificial. Com efeito, a ruptura entre o Oriente e o Ocidente cristãos não data senão da metade do século X, e tudo oque é anterior a essa data constitui um tesouro comum inseparável das duas partes desunidas. A Igreja Ortodoxa não seria o que ela é, se não tivesse havido um São Cipriano, um Santo Agostinho, um São Gregório o Grande, assim como a Igreja católica Romana não poderia passar sem Santo Atanásio, São Basílio, São Cirilo de Alexandria. Portanto, quando queremos falar da teologia mística do Oriente ou do Ocidente, colocamo-nos na esteira de uma das duas tradições que foram até um dado momento como que duas tradições locais da Igreja una, testemunhando uma só verdade cristã, mas que em seguida se separaram e fizeram nascer duas atitudes dogmáticas diferentes, inconciliáveis sobre muitos pontos. É possível julgar as duas tradições, colocando-nos num terreno neutro, igualmente estranho a uma e outra? Isso equivaleria a julgar o Cristianismo como um não-cristão, ou seja, recusar previamente compreender seja lá o que for daquilo que se propõe a estudar. Pois a objetividade não constitui absolutamente em se colocar fora do objeto, mas, ao contrário, em considerar o objeto em si mesmo e por si mesmo. Existem domínios nos quais aquilo que se chama ordinariamente de “objetividade” não passa de indiferença, e de uma indiferença que significa incompreensão. No estado atual da oposição dogmática entre o Oriente e o Ocidente é preciso, portanto, se quisermos estudar a teologia mística da Igreja do Oriente, escolher entre as duas atitudes possíveis: colocarmo-nos sobre o terreno dogmático ocidental e examinar a tradição oriental através daquela do Ocidente, vale dizer, criticando-a, ou bem apresentar essa tradição sob a luz dogmática da Igreja do Oriente. Essa última atitude é para nós a única possível.

Pode-se objetar, eventualmente, que a dissensão dogmática entre o Oriente e o Ocidente não foi senão acidental, que ela não desempenhou um papel decisivo, que se tratava mais de dois mundos historicamente diferentes que deveriam, cedo ou tarde, se separar para seguir cada qual seu próprio caminho; que a disputa dogmática não passou de um pretexto para romper definitivamente a unidade eclesiástica, que, de fato, já não existia há muito tempo. Essas afirmações, que escutamos com frequência tanto no Oriente como no Ocidente, são devidas a uma mentalidade puramente laica, que costuma tratar a história da Igreja segundo métodos que abstraem a própria natureza religiosa da Igreja. Para um “historiador da Igreja”, o fator religioso desaparece, e é substituído por outros, tais como o jogo de interesses políticos ou sociais, o papel das condições étnicas e culturais, considerados como forças determinantes da vida da Igreja. Acredita-se assim que se está sendo muito engenhoso, hábil e astuto ao invocar esses fatores como as verdadeiras razões que dirigem a história eclesiástica. Ainda que reconhecendo a importância dessas condições, um historiador cristão não pode se resignar em encará-los de outro modo que não exteriores à própria existência da Igreja; ele não pode renunciar a ver a Igreja como um corpo autônomo, submetido a outra lei do que aquela do determinismo desse mundo. Se considerarmos a questão dogmática sobre a processão do Espírito Santo, que dividiu o Oriente e o Ocidente, não podemos tratá-la como um fenômeno fortuito na história da Igreja, vista enquanto tal. Do ponto de vista religioso, foi a única razão que contou no encadeamento dos fatos que levaram à separação. Embora talvez condicionada por muitos fatores, essa determinação dogmática foi, para uns e outros, um compromisso espiritual, uma tomada de posição consciente em matéria de fé.

Se somos costumeiramente levados a diminuir a importância do fato dogmático que determinou todo o desenvolvimento ulterior dessas tradições, isso se deve a uma certa insensibilidade diante do dogma, considerado como algo de exterior e abstrato. É a espiritualidade que conta, diz-se; a diferença dogmática não muda nada. No entanto, espiritualidade e dogma, mística e teologia, estão inseparavelmente ligados na vida da Igreja. No que concerne à Igreja do Oriente, como dissemos, ela não faz uma distinção clara entre a teologia e a mística, entre o domínio da fé comum e o da experiência pessoal. Portanto, se quisermos falar da teologia mística da tradição Oriental, não poderemos tratar esse assunto de outro modo que dentro dos quadros dogmáticos da Igreja ortodoxa.

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Antes de abordar nosso tema, é necessário que digamos algumas palavras sobre a Igreja ortodoxa, que até hoje é pouco conhecida no Ocidente. O livro do Pe. Congar, Cristãos desunidos: Princípios de um ecumenismo católico[4], muito louvável sob muitos aspectos, nas páginas consagradas à Ortodoxia, malgrado todos os cuidados com a objetividade, não deixa de ser tributário de certas opiniões preconcebidas a respeito da Igreja ortodoxa. “Onde o Ocidente, diz ele, sobre a base a um tempo desenvolvida e ajustada da ideologia agostiniana, reivindica para a Igreja a autonomia de uma vida e uma organização próprias, e fixa nesse sentido as linhas mestras de uma eclesiologia positiva, o Oriente admite praticamente, e às vezes teoricamente, para a realidade social e humana da Igreja, um princípio de unidade política, não religioso, parcial, não verdadeiramente universal”. Para o Pe. Congar, como para a maior parte dos autores católicos ou protestantes que se manifestaram a respeito desse ponto, a Ortodoxia se apresenta sob o aspecto de uma federação de igrejas nacionais, tendo por base um princípio político – a Igreja de um Estado. É preciso ignorar os fundamentos canônicos, tanto quanto a história da Igreja do oriente, para se arriscar a semelhantes generalizações. A opinião que pretende fundamentar a unidade de uma igreja local sobre um princípio político, étnico ou cultural, é reputado pela Igreja ortodoxa como uma heresia especificamente denominada pelo nome de filetismo[5]. É o território eclesiástico, a terra consagrada pela tradição mais ou menos antiga do Cristianismo que constitui a base de uma província metropolitana, administrada por um arcebispo ou um metropolita, com bispos para cada diocese, que se reúnem de tempos em tempos em sínodos. Se as províncias metropolitanas se reúnem em grupos e formam igrejas locais sob a jurisdição de um bispo que recebe o título de patriarca, trata-se ainda da comunidade de tradição local e de destino histórico, bem como da comodidade de convocar um concílio de muitas províncias, que presidem a formação desses grandes círculos jurisdicionais, cujo território não corresponde necessariamente aos limites políticos de um Estado[6]. O patriarca de Constantinopla desfruta de um certo primado de honra, fazendo-se ocasionalmente árbitro em disputas, sem exercer uma jurisdição sobre o conjunto da Igreja ecumênica. As igrejas locais do Oriente tinham mais ou menos a mesma atitude perante o patriarcado apostólico de Roma, primeira sede da Igreja antes da separação, símbolo de sua unidade. A Ortodoxia não reconhece um chefe visível da Igreja. A unidade da Igreja se expressa pela comunhão dos chefes das igrejas locais entre si, pelo acordo de todas as igrejas a respeito de um concílio local, que por isso mesmo adquire um valor universal; enfim, em casos excepcionais, a Igreja pode se manifestar por meio de um concílio geral[7]. A catolicidade da Igreja, longe se ser privilégio de uma sede ou centro determinado, se realiza na riqueza e na multiplicidade das tradições locais que testemunham unanimemente um só Verdade – a que é conservada sempre, em toda parte e por todos. Sendo a Igreja católica em todas as suas partes, cada um de seus membros – não apenas o clero, mas também cada leigo – é chamado a confessar e defender a verdade da tradição, opondo-se inclusive aos bispos, caso esses incorram em heresia. Um cristão que tenha recebido o dom do Espírito Santo no sacramento do santo crisma não pode estar inconsciente em sua fé; ele é sempre responsável pela Igreja. Daí o caráter agitado e às vezes perturbado da vida eclesiástica em Bizâncio, na Rússia e em outros países do mundo ortodoxo. Mas é o preço que se paga por uma vitalidade religiosa, por uma intensa vida espiritual que penetra o povo dos fiéis, unido pela consciência de formar um só corpo coma hierarquia da Igreja. Daí provém igualmente essa força invencível que permitiu à Ortodoxia atravessar todas as provações, todos os cataclismos e revoluções, sempre se adaptando à nova realidade histórica, mostrando-se mais forte do que as condições exteriores. As perseguições contra a fé na Rússia comunista, cuja fúria metódica não foi capaz de destruir a Igreja, são o melhor testemunho dessa força que parece não ser desse mundo.

A Igreja ortodoxa, apesar de ser comumente chamada de Igreja do Oriente, não se considera por isso menos como uma Igreja ecumênica. E isso é verdade no sentido em que ela não está limitada por um tipo de cultura determinada, pela herança de uma civilização, seja helênica ou outra, ou pelas formas culturais estritamente orientais. De resto, “oriental” significa muitas coisas: o Oriente é menos homogêneo do ponto de vista cultural do que o Ocidente. O que existe de comum, por exemplo, entre o helenismo e a cultura russa, apesar das origens bizantinas do Cristianismo na Rússia? A Ortodoxia foi o fermento de muitas culturas diferentes, para ser considerada como uma forma cultural do Cristianismo oriental: suas formas são muitas, a fé é uma. Ela jamais opôs às culturas nacionais uma cultura que fosse considerada como especificamente ortodoxa. É por isso que a obra da missão pôde se desenvolver de forma tão prodigiosa: a cristianização da Rússia nos séculos X e XI e, mais tarde, a predicação do Evangelho por toda a Ásia. No final do século XVIII a missão ortodoxa alcançou as ilhas Aleutas e o Alasca, passando a seguir para a América do Norte, criando novas dioceses da Igreja russa fora da Rússia e se propagando na China e no Japão. As variedades antropológicas e culturais, da Grécia até as extremidades da Ásia, do Egito até o Oceano Glacial não destruíram o caráter homogêneo dessa família de espiritualidade, muito diferente daquela do Ocidente cristão.

A vida espiritual na Ortodoxia conhece uma grande riqueza de formas, dentre as quais o monaquismo continua sendo a mais clássica. Entretanto, contrariamente ao monaquismo do Ocidente, o do Oriente não compreende uma multiplicidade de ordens diferentes. Isso se explica pela própria concepção da vida monástica, cujo objetivo não pode ser outro do que a união com Deus na renúncia total à vida desse século. Se o clero secular (sacerdotes e diáconos casados), ou as confrarias de leigos podem se ocupar de obras sociais ou se dedicar a outras atividades exteriores, o mesmo não acontece com os monges. Eles tomam o hábito, antes de tudo para se dedicarem à oração, à obra interior, num mosteiro ou num eremitério. Entre um mosteiro de aspecto comum à solidão de um anacoreta que continua as tradições dos Padres do deserto, existem muitos tipos intermediários de instituições monásticas. Podemos dizer em geral que o monaquismo oriental é exclusivamente contemplativo, se a distinção entre as duas vias, ativa e contemplativa, tivesse o mesmo sentido no Oriente que tem no Ocidente. Na realidade, as duas vias são inseparáveis para os espirituais orientais: uma não pode ser exercida sem a outra, porque a maestria ascética, a escola da oração interior, recebe o nome de atividade espiritual. Se os monges ocasionalmente exercem trabalhos físicos, é sobretudo com finalidade ascética, para melhor domar a natureza rebelde; assim, por exemplo, para evitar o ócio, inimigo da vida espiritual. Para alcançar a união com Deus, na medida em que essa é realizável aqui em baixo, é preciso um esforço contínuo, ou, mais precisamente, uma vigília incessante para que a integridade do homem interior, “a união entre o coração e o espírito” (para empregarmos uma expressão do ascetismo ortodoxo) resista a todos os assaltos do inimigo, a todos os movimentos irracionais da natureza decaída. A natureza humana deve mudar, ela deve ser transfigurada mais e mais pela graça sobre o caminho da santificação, que tem um alcance não apenas espiritual, mas também corporal, e, a partir daí, cósmico. A obra espiritual de um cenobita ou de um anacoreta que vive retirado do mundo, mesmo que passe desapercebida por todos, mantém todo seu valor para o universo inteiro. É por isso que as instituições monásticas sempre gozaram de grande veneração em todos os países do mundo ortodoxo.

O papel dos grandes centros de irradiação da espiritualidade foi considerável, não apenas na vida eclesiástica, como no domínio cultural e político. Os mosteiros do Monte Sinai, de Studion, perto de Constantinopla, a “república monástica” do Monte Athos, reuniram religiosos de todas as nações (incluindo monges latinos antes da separação), enquanto outros grandes centros fora do Império, como o mosteiro de Tirnovo, na Bulgária, e as grandes abadias (lavra) da Rússia – Petcheri em Kiev, Santa Trindade próxima a Moscou – foram cidadelas da Ortodoxia, escolas de vida espiritual cuja influência religiosa e moral foi de primeira ordem na formação cristã dos novos povos. Mas, se o ideal do monaquismo teve tão grande poder sobre as almas, essa não foi a única forma de vida espiritual que a Igreja propôs aos fiéis: a via de união com Deus pode ser seguida fora dos claustros, nas condições normais da vida humana. As formas exteriores podem mudar, os mosteiros podem desaparecer, como desapareceram na Rússia[8], mas a vida espiritual continuou com a mesma intensidade, encontrando novos meios de expressão.

A hagiografia oriental, extremamente rica, mostra ao lado dos santos monges muitos exemplos de perfeição espiritual adquirida no mundo por simples leigos e por pessoas casadas. Ela conhece também vias de santificação estranhas e insólitas, como a dos “loucos em Cristo”, que cometem atos extravagantes para esconder seus dons espirituais aos olhos da multidão sob a aparência assustadora da loucura, ou também para se libertar dos laços desse mundo em sua expressão mais íntima e mais difícil para o espírito, a do “eu” social. A união com Deus se manifesta às vezes por meio de dons carismáticos, como, por exemplo, o da direção espiritual exercida pelos startzy, ou “anciãos”. No mais das vezes esses são monges que passaram muitos anos de sua vida em oração, fechados a todo contato com o mundo, e que, no final de sua existência, abrem largamente as portas de sua cela a todos. Eles possuem o dom de penetrar nas profundezas insondáveis das consciências, de revelar os pecados e as dificuldades interiores que nos restam, frequentemente desconhecidos, de endireitar as almas oprimidas, de dirigir os homens não apenas em sua via espiritual, mas também em todas as peripécias de sua vida no século.

***

A experiência individual dos grandes místicos da Igreja ortodoxa permanece para nós, em geral, desconhecida. Salvo raras exceções, a literatura espiritual do Oriente cristão não possui quase relatos autobiográficos que toquem a vida interior, como os de Santo Ângelo de Foligno, de Henri Suso, ou como a História de uma alma de Santa Tereza de Lisieux. O caminho da união mística é quase sempre um segredo entre Deus e a alma, que não se expõe fora, a não ser para o confessor e alguns discípulos. O que se publica são os frutos da união: a sabedoria, os conhecimentos dos mistérios divinos que se exprimem num ensinamento teológico ou moral, em conselhos para a edificação dos irmãos. Quanto ao lado íntimo e pessoal da experiência mística, ele permanece oculto aos olhos de todos. É preciso reconhecer que o individualismo místico aparece na literatura ocidental bastante tarde, por volta do século XIII. São Bernardo não fala diretamente de sua experiência pessoal senão muito raramente, uma única vez nos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos – e ainda assim com uma espécie de pudor, como São Paulo. Foi preciso que uma espécie de cisão acontecesse entre a experiência pessoal e a fé comum, entre a vida individual e a vida da Igreja, para que a espiritualidade e o dogma, a mística e a teologia se tornassem dois domínios distintos, para que as almas, não encontrando mais o alimento suficiente nas sumas teológicas, se pusessem a buscar com avidez os relatos de experiências místicas individuais, a fim de se reavivarem em uma atmosfera de espiritualidade. O individualismo místico permaneceu estranho à espiritualidade da Igreja do Oriente.

O Pe. Congar tem razão, quando disse: “Nós nos tornamos homens diferentes. Temos o mesmo Deus, mas diante dele somos homens diferentes e não podemos concordar sobre a natureza de nossa relação com Ele[9]”. Mas para julgar essa diferença espiritual seria preciso examiná-la em suas expressões mais perfeitas, nos diferentes tipos de santos do Ocidente e do Oriente, depois da separação entre as duas Igrejas. Poderíamos então nos dar conta da ligação estreita que existe entre o dogma confessado pela Igreja e os frutos espirituais que ela produz, pois a experiência interior de um cristão se realiza dentro do círculo traçado pelo ensinamento da Igreja, dentro do quadro dos dogmas que modelam sua pessoa. Se uma simples doutrina política professada pelos membros de um partido já e capaz de moldar as mentalidades até produzir tipos de homens que se distinguem dos outros por determinadas marcas morais e psíquicas, como mais razão o dogma religioso consegue transformar o próprio espírito daqueles que o professam; ele são homens diferentes dos outros, daqueles que foram conformados por uma outra concepção dogmática. Jamais compreenderemos uma espiritualidade se não levarmos em conta o dogma que está em sua base. É preciso aceitar as coisas tal como elas são e não tentar explicar a diferença entre as espiritualidades do Ocidente e do Oriente por meio de causas de ordem étnica ou cultural, quando uma causa maior, uma causa dogmática está em jogo. Não se deve dizer, tampouco, que a questão da processão do Espírito Santo ou da natureza da graça não tenha grande importância no conjunto da doutrina cristã, que seria assim mais ou menos idêntica entre católicos romanos e ortodoxos. Em dogmas tão fundamentais, é esse “mais ou menos” que importa, pois ele empresta um acento diferente a toda a doutrina e a apresenta sob uma nova luz, ou seja, ela dá lugar a outra espiritualidade.

Não pretendemos fazer aqui “teologia comparada”, e menos ainda renovar as polêmicas confessionais. Nós nos limitamos aqui a constatar o fato de que existe uma diferença dogmática entre o Oriente e o Ocidente cristãos, antes de passar em revista alguns elementos de teologia que estão na base da espiritualidade oriental. Caberá aos nossos leitores julgar em que medida esses aspectos teológicos da mística ortodoxa podem ser úteis para a compreensão de uma espiritualidade que é estranha à cristandade ocidental. Se, mesmo permanecendo fiéis às nossas atitudes dogmáticas, possamos chegar a nos conhecer mutuamente – sobretudo naquilo que nos torna diferentes – essa poderia certamente ser um caminho de união mais seguro do que outro que passasse ao largo das diferenças. Pois, para citarmos as palavras de Karl Barth, “a união das Igrejas não se faz, se descobre[10]”.



[1] Sermões e discursos do Metropolita Filarete, Moscou, 1884.
[2] Ver M. H.-Ch. Puech, Où em est le problème du gnosticisme?, in Revue de l’Université de Bruxelles, 1934, nos. 2 e 3.
[3] II Coríntios 12: 2-4.
[4] Éditions du Cerf, 1937.
[5] Atas do Sínodo de Constantinopla, agosto-setembro 1872.
[6] Assim é que o patriarcado de Moscou compreende as dioceses da América do Norte e de Tóquio. Os territórios dos patriarcados de Constantinopla, de Alexandria, de Antioquia e de Jerusalém pertencem politicamente a diferentes potências.
[7] O nome de concílios ecumênicos atribuído no Oriente aos sete primeiros sínodos responde a uma realidade de ordem puramente histórica; trata-se dos concílios do território “ecumênico”, o do Império Bizantino que se estendia (ao menos teoricamente) por todo o universo cristão. Nas épocas posteriores, a Igreja ortodoxa conheceu concílios gerais que, sem receber o título de “ecumênicos”, nem por isso foram menos numerosos nem menos importantes.
[8] No período da União Soviética, de 1922 a 1991.
[9] Pe. Congar, op. cit.
[10] A Igreja e as igrejas, in Ecumenica III, Julho 1936.



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