quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente - Capítulo IV: Energias incriadas




Capítulo IV
Energias incriadas


A revelação do Deus-Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, é a base de toda a teologia cristã; ela é a própria teologia, segundo o sentido que os Padres gregos davam ao termo “teologia”, que para eles designava, no mais das vezes, o mistério da Trindade revelado à Igreja. Não se trata do fundamento simplesmente, mas também do objetivo supremo da teologia, pois, segundo o pensamento de Evagro o Pôntico desenvolvido por São Máximo, conhecer o mistério da Trindade em sua plenitude equivale a entrar em união perfeita com Deus, atingir a deificação do ser humano, ou seja, entrar na vida divina, na própria vida da Santa trindade, tornar-se “participante da natureza divina” – Qeias koinwnoi jusws, segundo São Pedro[1]. A teologia trinitária é, portanto, uma teologia de união, uma teologia mística que chama pela experiência, que pressupõe um caminho de mudanças progressivas da natureza criada, uma comunhão cada vez mais íntima da pessoa humana com o Deus-Trindade.

A palavra de São Pedro é explícita: divinae consortes naturae, “participantes da natureza divina”. Ela não deixa dúvida sobre a união real com Deus que nos foi prometida e anunciada como o fim derradeiro, como a beatitude do século futuro. Seria pueril – e ímpio – não ver aí mais do que uma expressão enfática, uma metáfora. Com efeito, seria seguir um método de exegese demasiado fácil, tentar evitar as dificuldades assim, desviando de seu sentido as palavras da Revelação suscetíveis de contradizer nosso pensamento, de estar em desacordo com o que nos parece convir a Deus. Entretanto, é absolutamente legítimo tentarmos definir o sentido de uma expressão que parece estar em contradição com tantos outros testemunhos da Santa Escritura e da tradição sobre a incomunicabilidade absoluta do Ser divino. Poderíamos levantar duas séries de textos contraditórios, extraídos das Escrituras e dos Padres, uns testemunhando sobre o caráter inacessível da natureza divina, outros afirmando que Deus se comunica, se entrega à experiência, pode ser realmente alcançado na união. São Macário do Egito (ou pseudo-Macário, se quiserem – isso não muda nada quanto ao grande valor dos escritos místicos conhecidos sob esse nome), falando da alma que entra em união com Deus, insiste sobre a diferença absoluta entre essas duas naturezas, dentro da própria união: “Ele é Deus, ela não é Deus; Ele é Senhor, ela é serva; Ele é Criador, ela é criatura (...) Não existe nada em comum entre suas naturezas[2]”. Mas, por outro lado, o mesmo autor fala da “transmutação da alma em natureza divina[3]”. Deus seria assim totalmente inacessível e ao mesmo tempo realmente comunicável aos seres criados, sem que se possa suprimir ou reduzir em qualquer medida um dos termos dessa antinomia. Na verdade, se a mística cristã não pode se contentar com um Deus transcendente, ela tampouco o poderia em relação a um Deus imanente e acessível às criaturas. Etienne Gilson exprime muito bem esse princípio fundamental da vida espiritual: “Baixem, nem que seja por um instante e num só ponto, a barreira levantada entre o homem e Deus pela contingência do ser, e vocês privam o místico cristão de seu Deus, vocês o privam de sua mística: ele pode passar sem qualquer deus que não seja inacessível, o único Deus que é naturalmente inacessível é também o único sem o qual ele não pode passar[4]”.

A união real com Deus, e, em geral, a experiência mística coloca assim a teologia cristã diante de uma questão antinômica, a da acessibilidade da natureza inacessível. Como pode o Deus-Trindade ser objeto da união e, em geral, da experiência mística? Essa questão levantou debates teológico animados no Oriente por volta do século XIV e deu lugar às decisões conciliares que formularam claramente a tradição da Igreja Ortodoxa a esse respeito. São Gregório Palamas, arcebispo de Tessalônica, porta-voz dos concílios desse grande período da teologia bizantina, consagrou um diálogo intitulado Teófano à questão da divindade incomunicável e comunicável. Examinando o sentido das palavras de São Pedro sobre os “participantes da natureza divina”, São Gregório de Tessalônica afirma que essa expressão possui um caráter antinômico que a aproxima do dogma trinitário. Assim como Deus é ao mesmo tempo uno e trino, “a natureza divina deve ser dita ao mesmo tempo imparticipável e, num certo sentido, participável; nós chegamos à participação da natureza de Deus e, no entanto, ela permanece totalmente inacessível. É preciso que afirmemos as duas coisas simultaneamente, e que preservemos sua antinomia como um critério de piedade[5]”.

Sob que aspecto podemos nós entrar em união com a Santa Trindade? Se pudéssemos, num dado momento, nos encontrarmos unidos com a própria essência de Deus, participando dela nem que fosse numa pequena medida, já não seríamos nesse momento aquilo que somos, mas seríamos Deus por natureza. Deus não seria então Trindade, mas um Deus “muriupostatos”, uma miríade de hipóstases, pois Ele teria tantas hipóstases quantas pessoas que participassem de Sua essência. Poderíamos dizer que entramos em união com uma das três Pessoas divinas? Essa seria a união hipostática própria exclusivamente ao Filho, ao Deus que se fez homem sem cessar de ser a segunda Pessoa da Trindade. Ao mesmo tempo em que participamos da mesma natureza humana, ao mesmo tempo em que recebemos em Cristo o nome de filho de Deus, não nos tornamos, porém, pelo fato da Encarnação, a hipóstase divina do Filho. Portanto, nós não podemos participar nem da essência, nem das hipóstases da Trindade. E, no entanto, a promessa divina não pode ser uma ilusão: nós somos chamados a participar da natureza divina. É preciso então confessar uma distinção inefável em Deus, diferente daquela entre a essência e as Pessoas, uma distinção segundo a qual Ele seria totalmente inacessível e acessível ao mesmo tempo e sob diferentes aspectos. É a distinção entre a essência de Deus, ou Sua natureza propriamente dita – inacessível, incognoscível, incomunicável – e as energias ou operações divinas, forças naturais e inseparáveis da essência por meio das quais Deus procede no exterior, se manifesta, se comunica e se dá. “A iluminação e a graça divina e deificante não constitui a essência, mas a energia de Deus[6]”, uma “força e operação comum da Trindade[7]”. Assim, segundo as palavras de São Gregório Palamas, “mesmo quando afirmamos que a natureza divina é participável, não em si mesma, mas nas suas energias, nós permanecemos dentro dos limites da piedade[8]”.

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Como vimos, a necessidade de estabelecer um fundamento dogmático da união com Deus, foi o que determinou a Igreja do Oriente a formular o ensinamento sobre a distinção real entre a essência e as energias divinas. No entanto, não foi São Gregório Palamas o autor dessa doutrina. Com menor claridade dogmática, encontramos essa distinção na maior parte dos Padres gregos, chegando até os primeiros séculos da Igreja. Ela é a própria tradição da Igreja do Oriente, estreitamente ligada ao dogma trinitário.

O pensamento dos Padres via na teologia propriamente dita os ensinamentos sobre o Ser divino em si mesmo, sobre a Santa Trindade; enquanto que as manifestações exteriores de Deus, a Trindade conhecida em suas relações com o ser criado, caíam no domínio da “economia[9]”. Os escritores eclesiásticos dos primeiros séculos, anteriores ao dogma de Nicéia, frequentemente misturavam os dois planos quando falavam da pessoa do Verbo como Logos Projorikos, manifestando a divindade do Pai. É dentro dessa ordem de ideias, no sentido da economia divina, que às vezes eles chamavam o Logos de “força” ou “poder” (dinamis) do Pai, ou então de sua “operação” (eneregia). Atenágoras chamava a isso de “ideia e energia divina que se manifestam na criação[10]”. O texto de São Paulo sobre a invisibilidade de Deus[11], seu poder eterno e sua divindade (h te aidios autou dinamis kai Qeioths) tornados visíveis desde a criação do mundo, será interpretada tanto no sentido do Logos “Poder e Sabedoria” manifestados do Pai, como no sentido mais preciso de “energias” – operações comuns da Santa Trindade se manifestando nas criaturas, “aquilo que pode ser conhecido de Deus” (to gnwston tou Qeou), segundo o mesmo texto de São Paulo[12]. É nesse sentido que São Basílio fala do papel manifestador das energias, opondo-as à essência incognoscível: “Ao afirmarmos, diz ele, que conhecemos nosso Deus nas suas energias, não estamos prometendo aproximarmo-nos dele em sua própria essência. Pois, se suas energias descem até nós, sua essência permanece inacessível[13]”. Na criação a Trindade consubstancial se dá a conhecer pelas suas energias naturais.

O autor das Obras Areopagitas opõe as “uniões” (enowseis) às “distinções” (diakriseis) em Deus. As “uniões” são “as residências secretas e que praticamente não se manifestam”, a natureza supraessencial em que Deus permanece como que em repouso absoluto, sem proceder exteriormente em nenhuma manifestação. As “distinções”, ao contrário, são processões (proodoi) de Deus exteriormente, suas manifestações (ekjamseis), que Dionísio chama também de virtudes ou forças (dunameis), das quais tudo o que existe participa, permitindo conhecer a Deus através das suas criaturas[14]. A oposição entre as duas vias no conhecimento de Deus, entre a teologia negativa e a teologia positiva, está fundamentada para Dionísio sobre essa distinção inefável, mas real, entre a essência incognoscível e as energias reveladoras da divindade, entre as “uniões” e as “distinções”. A Santa Escritura nos revela Deus formando os nomes divinos segundo as energias nas quais Deus se comunica, ao mesmo tempo em que permanece inacessível quanto à sua essência, e se distingue sendo simples, se multiplica sem deixar sua unidade, pois Nele “as uniões prevalecem sobre as distinções[15]”. Isso significa que as distinções não são divisões ou separações no Ser divino. As dunameis ou energias, nas quais Deus procede exteriormente, são o próprio Deus, mas não segundo a substância. São Máximo o Confessor expressa a mesma ideia ao dizer: “Deus pode ser participado naquilo que Ele nos comunica, mas ele permanece não-participável em sua essência incomunicável[16]”. São João Damasceno retoma, precisando-o, o pensamento de São Gregório de Nazianze: “Tudo o que dizemos de Deus em termos positivos declara, não sua natureza, mas o que cerca sua natureza[17]”. E ele designa as energias divinas por meio de imagens expressivas de “movimento” (kinesis), ou de “impulso para Deus” (exalma Qeou)[18]. Com Dionísio, os Padres aplicam às energias o nome de “raios da divindade”, que penetram o universo criado. São Gregório Palamas as chamará resumidamente de “divindades”, de “luz incriadas” ou de “graça”.

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A presença de Deus nas suas energias deve ser entendida num sentido realista. Não se trata da presença operativa da causa nos seus efeitos: as energias não são efeitos das causas divinas, como as criaturas; elas não são criadas, produzidas a partir do nada, mas fluem eternamente da essência una da Trindade. São transbordamentos da natureza divina que não pode ser contida, que é mais do que a essência. Podemos dizer que as energias designam um modo de existência da Trindade fora de sua essência inacessível. Deus existiria, assim, ao mesmo dentro e fora de sua essência. Referindo-se a São Cirilo de Alexandria, Palamas declara: “É próprio da energia o criar, é próprio da natureza o gerar[19]”. Negando a distinção real entre a essência e a energia, não se pode estabelecer um limite claro entre a processão das pessoas divinas e a criação do mundo, pois tanto uma como outra seriam igualmente atos da natureza[20]. O ser e a ação de Deus se apresentariam então como coisas idênticas, com o mesmo caráter de necessidade, segundo São Marcos de Éfeso (século XV)[21]. É preciso então distinguir em Deus a natureza una, as três hipóstases e a energia incriadas que procede da natureza sem se separar dela nessa processão manifestadora.

Se participamos de Deus nas suas energias, na medida de nossas capacidades, isso não quer dizer que Deus não se manifeste plenamente em sua processão ad extra. Deus não pode ser diminuído em suas energias; Ele está totalmente presente em cada raio de sai divindade. É preciso evitar duas opiniões falsas que se podem formar a propósito das energias divinas:

1.       A energia não é uma função divina em face das criaturas, embora Deus crie e opere por meio de suas energias, que penetram tudo o que existe. As criaturas poderiam não existir, e Deus se manifestaria da mesma forma exteriormente à sua essência, tal como o sol brilha com seus raios fora do disco solar, quer hajam ou não seres suscetíveis de receber sua luz. É claro que as expressões: “se manifestar”, e “exteriormente”, são impróprias aqui, pois o “exteriormente” não começa a existir senão com a criação, e a “manifestação” não pode ser concebida a não ser num meio estranho àquele que se manifesta. Ao empregarmos essas locuções defeituosas, essas imagens inadequadas, estamos assinalando o caráter absoluto e não relativo de uma força natural de expansão, eternamente própria a Deus. Mas,
2.       O mundo criado não se torna infinito e co-eterno a Deus pelo fato de que as processões naturais ou energias divinas o sejam. As energias não implicam nenhuma necessidade da criação, que é um ato livre efetuado pela energia divina, mas determinado pro uma decisão da vontade comum das três Pessoas. Trata-se de um ato da volição de Deus, que estabelece um objeto novo fora do Ser divino, ex nihilo. O “meio” da manifestação terá aí seu começo. Quanto à própria manifestação, ela é eterna: é a glória de Deus.

Filarete de Moscou exprime essa doutrina própria da Igreja do Oriente em seu sermão de Natal, ao falar do canto angélico Gloria in Excelsis Deo: “Deus, diz ele, desfruta da sublimidade de sua glória por toda a eternidade (...) A glória é a revelação, a manifestação, o reflexo, a vestimenta da perfeição interior. Deus se revela a si mesmo por toda a eternidade pela geração eterna de seu Filho consubstancial e pela processão eterna de seu Espírito consubstancial, e assim sua unidade, em sua Trindade santa, resplendece com uma glória essencial, imperecível, imutável. Deus é Pai, e o Pai da glória[22]; o Filho de Deus é o esplendor de sua glória[23], e Ele próprio possuía a glória em seu Pai antes que o mundo existisse[24]; da mesma forma, o Espírito de Deus é o Espírito de glória[25]. Nessa glória própria, intrínseca, Deus vive numa felicidade perfeita acima de toda glória, sem necessidade de nenhum testemunho, sem poder admitir nenhuma participação. Mas, como em sua clemência e seu amor infinitos Ele deseja comunicar sua beatitude, criar participantes bem-aventurados de sua glória, Ele suscita suas perfeições infinitas e elas o revelam em suas criaturas; sua glória se manifesta nas potências celestes, se reflete no homem, reveste a magnificência do mundo visível; Ele a dá, aqueles que Ele tornou partícipes a recebem, ela retorna a Ele e nessa circunvolução perpétua, por assim dizer, da glória divina, nela consiste a vida bem-aventurada, a felicidade das criaturas[26]”.

Nas criaturas, seres produzidos a partir do nada pela vontade divina, limitados e mutantes, as energias infinitas e eternas repousam, fazem resplender em tudo a magnificência de Deus, aparecendo também fora de tudo como a luz divina que o mundo não pode conter. É a luz inacessível na qual Deus habita, como dizia São Paulo: “que habita uma luz inacessível, que nenhum homem viu, nem pode ver[27]”. Essa á a glória na qual Deus apareceu aos justos do Antigo Testamento, é a luz eterna que penetrou a humanidade de Cristo e tornou visível aos apóstolos sua divindade no momento da Transfiguração, é a graça incriadas e deificante, a parte que cabe aos santos da Igreja viva na união com Deus; enfim, é o Reino de Deus onde os justos resplandecerão como o sol[28]. A Santa Escritura possui inúmeros textos que, segundo a tradição da Igreja do Oriente, se referem às energias divinas, como, por exemplo, essa passagem do profeta Habacuque: “O Santo veio da montanha de Farã (...) sua majestade cobriu os céus e sua glória encheu toda a terra. É como o brilho da luz: raios partiam de suas mãos; lá residia sua força[29]”.

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Vemos que o dogma sobre as energias não constitui uma concepção abstrata, uma distinção puramente intelectual: o que visamos aqui é uma realidade de ordem religiosa muito concreta, ainda que difícil de ser captada. É por isso que essa doutrina é expressa por meio de antinomia: as energias, por sua processão, representam uma distinção inefável _ elas não são Deus na sua essência – e, ao mesmo tempo, sendo inseparáveis da essência, elas testemunham a unidade do ser simples de Deus. Os adversários de São Gregório Palamas, teólogos orientais fortemente influenciados pelo tomismo (como o monge calabrês Barlaam, que estudou na Itália, e Acindino, tradutor para o grego da Suma Teológica), viam na distinção real entre a essência e as energias um atentado à simplicidade de Deus, e acusavam Palamas de diteísmo e politeísmo. Tendo se tornado estranhos ao espírito apofático e antinômico da teologia oriental, eles defendiam contra ela uma concepção de Deus que fazia Dele, antes de tudo, uma essência simples, na qual as próprias hipóstases recebiam o caráter de relações de essência. A filosofia de Deus como ato puro não pode admitir algo q eu seja Deus e que não seja a própria essência de Deus. Deus seria, por assim dizer, limitado por sua essência. O que não fosse essência não pertenceria ao Ser divino, não seria Deus. Assim sendo, segundo Barlaam e Acindino, as energias seriam, ou bem a própria essência enquanto ato puro, ou bem produtos dos atos exteriores da essência, ou seja, efeitos criados que tivessem como causa a essência, vale dizer, criaturas. Para os adversários de São Gregório Palamas, haveria a essência divina, haveriam seus efeitos criados, mas não haveria operações divinas (energias). Respondendo a seus críticos, o arcebispo de Tessalônica colocou os tomistas orientais diante do seguinte dilema: era preciso, ou que eles admitissem a distinção entre a essência e as operações, e nesse caso, de acordo com seu conceito filosófico de essência, eles teriam que relegar à condição de criaturas a glória de Deus, a luz da Transfiguração, a graça; ou então, eles deveriam negar essa distinção, o que os obrigaria a identificar o incognoscível e o cognoscível, o incomunicável e o comunicável, a essência e a graça[30]. Nos dois casos, a deificação real era impossível. Dessa forma, a defesa da simplicidade divina a partir de um conceito filosófico da essência desembocava em conclusões inadmissíveis para a piedade, contrárias à tradição da Igreja do Oriente.

Pata São Gregório Palamas – como para toda a teologia oriental, fundamentalmente apofática – a simplicidade divina não poderia estar fundamentada num conceito de essência simples. O ponto de partida de seu pensamento teológico é a Trindade, eminentemente simples, malgrado a distinção da natureza e das pessoas, bem como das pessoas entre si. Essa simplicidade é antinômica, como todo enunciado doutrinal referente a Deus: ela não exclui a distinção, mas não admite separação nem divisão em partes no Ser divino. São Gregório de Nissa podia afirmar que a inteligência humana permanece simples, apesar da diversidade das faculdades; com efeito, ela se diversifica procedendo em direção aos objetos que ela conhece, ao mesmo tempo em que permanece indivisa, sem passar por sua essência em outras substâncias. No entanto, a inteligência humana não está “acima dos nomes”, como as Três Pessoas que possuem em suas energias comuns tudo o que poderia ser atribuído à natureza de Deus[31]. Simplicidade não quer dizer uniformidade ou indistinção; de outro modo, o Cristianismo não seria a religião da Santa Trindade. É preciso dizer que, em geral, esquece-se com frequência que a ideia da simplicidade divina – ao menos tal como ela se apresenta nos manuais de teologia – provém mais da filosofia humana do que da Revelação divina. Ao reconhecer a dificuldade que o pensamento filosófico tem em admitir em Deus um modo de existir diferente daquele da essência, em conciliar as distinções com a simplicidade, São Marcos de Éfeso traça um quadro no qual ele mostra a sábia economia da Igreja que se conforma, segundo as épocas, com as aptidões dos homens para receber a verdade: “Não devemos nos espantar, diz ele, por não encontrarmos nos antigos a distinção clara entre a essência de Deus e sua operação. Se, hoje em dia, depois da solene confirmação da verdade e do reconhecimento universal da monarquia divina, os partidários da ciência profana criaram tantos embaraços à Igreja a esse respeito, acusando-a de politeísmo, que não teriam feito antigamente aqueles que se orgulhavam de sua vã sabedoria e que buscavam sempre uma ocasião para acusar de erro nossos doutores? É por isso que os teólogos insistiram primeiro na simplicidade de Deus do que na distinção que encontramos Nele. Às pessoas que com dificuldade admitiam a distinção das hipóstases, não se poderia então impor a distinção das operações. Foi com sábia discrição que os dogmas divinos foram sendo esclarecidos segundo os tempos, tendo a sabedoria se utilizado, para tanto, dos tolos ataques das heresias[32]”.

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Mesmo distinguindo em Deus três hipóstases, a natureza e as energias naturais, a teologia ortodoxa não admite Nele nenhuma composição. Da mesma forma como as Pessoas, as energias não são elementos do Ser divino que poderiam ser consideradas à parte, separadamente da Trindade, da qual elas são a manifestação comum, a eterna irradiação. Elas não são acidentes (sumbebhkoi) da natureza em sua qualidade de energias puras, e não implicam passividade alguma em Deus[33]. Elas tampouco são seres hipostáticos, semelhantes às três Pessoas. Não podemos atribuir uma energia qualquer exclusivamente a uma das hipóstases divinas, embora se costume dizer a respeito do Filho, que Ele é “a Sabedoria ou o Poder do Pai”. Poderíamos dizer, para empregar um termo usual, que as energias são atributos de Deus; entretanto, esses atributos dinâmicos e concretos não têm nada em comum com os atributos conceituais emprestados a Deus pela teologia abstrata e estéril dos manuais. As energias revelam os inumeráveis nomes de Deus, segundo o ensinamento do Areopagita: Sabedoria, Vida, Poder, Justiça, Amor, Ser, Deus – e uma infinidade de outros nomes que nos são desconhecidos, pois o mundo não pode conter a plenitude da manifestação divina que se revela nas energias, assim como não poderia conter os livros, caso se fosse escrever tudo o que fez Jesus, conforme as palavras de São João[34]. Sendo os nomes divinos inumeráveis, assim como as energias, a natureza revelada por eles permanece anônima, incognoscível – trevas ocultas pela profusão da luz.

Para o pensamento ortodoxo, as energias significam uma manifestação exterior da Trindade que não pode ser interiorizada introduzida, por assim dizer, no interior do Ser divino, como uma determinação natural sua. Foi esse o ponto de partida do desenvolvimento teológico e também do erro fundamental de Boulgakof, que quis ver na energia da Sabedoria (Sophia) – que ele identificou com a essência – o próprio princípio da divindade. Com efeito, Deus não é determinado por nenhum de seus atributos; todas as determinações Lhe são inferiores, logicamente posteriores ao seu Ser em si, em sua essência. Quando dizemos que Deus é Amor, Sabedoria, Vida, Verdade, entendemos com isso as energias, aquilo que vem depois da essência, suas manifestações naturais, mas exteriores ao próprio Ser da Trindade. É por isso que, ao contrário da teologia ocidental, a tradição da Igreja do Oriente não designa jamais as relações entre as pessoas da Trindade pelos nomes dos atributos. Jamais se dirá, por exemplo, que o Filho procede a partir da inteligência e que o Espírito Santo procede a partir da vontade. O Espírito jamais será assimilado ao amor entre o Pai e o Filho. Veremos no psicologismo trinitário de Santo Agostinho uma imagem analógica, mais do que uma teologia positiva que expresse as relações entre as pessoas. São Máximo recusava admitir na Trindade qualificações de ordem psicológica referente à vontade; ele via nelas algo de posterior à natureza de Deus, suas determinações exteriores, suas manifestações[35]. Ao dizer: “Deus é Amor”, “as Pessoas divinas estão unidas pelo amor mútuo”, temos em vista uma manifestação comum, o amor-energia que é possuído pelas três hipóstases, pois a união das Três é superior ao próprio Amor. São Gregório Palamas aplica às vezes às energias – atributos reais de Deus, na medida em que são posteriores à Trindade, o nome de “divindade inferior” (ujeimenh Qeoths), por oposição à essência, a “divindade superior” (upereimenh), o que escandalizou sobremaneira seus adversários. No entanto, essa expressão é legítima, referindo-se à manifestação, logicamente posterior Àquele que se manifesta, “pois Deus significa Aquele que opera, e divindade (enquanto energia) significa sua operação[36]”.

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Como dissemos, a Santa Trindade pode ser considerada em si mesma – essa é a teologia propriamente dita, segundo a terminologia dos Padres; e ela pode ser considerada em suas relações com a criatura – esse é o domínio da “economia”, ação ou dispensação divina. A eterna processão das Pessoas é objeto da teologia tomada nesse sentido limitado, enquanto que suas manifestações na obra da criação ou da providência, a missão temporal do Filho e do Espírito Santo, provêm do domínio da economia; é a “Trindade econômica”, segundo a expressão bastante inexata de alguns teólogos modernos. As energias, segundo essa divisão da matéria doutrinal, ocupariam um meio termo: de um lado, elas pertencem à teologia, como forças eternas e inseparáveis da Trindade, e que existem independentemente do ato da criação do mundo; mas, por outro lado, elas provêm também do domínio da economia, porque Deus se manifesta às criaturas em suas energias, “que descem até nós”, nas palavras de São Basílio.

Na ordem da manifestação econômica da Trindade no mundo, toda energia provém do Pai, e se comunica pelo Filho no Espírito Santo – ek patros, dia uiou, en agiw pneumati. é assim que se pode dizer que o Pai criou tudo pelo Filho no Espírito Santo. Isso foi expresso com muita ênfase por São Cirilo de Alexandria: “a operação da substância incriadas, diz ele, é uma espécie de coisa comum, embora convenha propriamente a cada Pessoa, de tal maneira que é graças às três hipóstases que a operação convém a cada uma como propriedade de uma Pessoa perfeita. Assim, o Pai opera, mas pelo Filho no Espírito Santo. Também o Filho opera, mas enquanto poder do Pai, na medida em que Ele é Dele e Nele segundo sua própria hipóstase. O Espírito também opera; pois Ele é o Espírito do Pai e do Filho, Espírito Onipotente[37]”. Na dispensação das energias manifestadoras o Pai aparecerá como possuidor do atributo manifestado, o Filho como a manifestação do Pai, e o Espírito como Aquele que manifesta. Assim para São Gregório de Nazianze, o Pai é O Verdadeiro, o Filho é a Verdade, e o Espírito Santo é o Espírito da Verdade: Alhqinos, kai Alhqeia, kai pneuma ths Alhqeias[38]. Segundo São Gregório de Nissa, “a fonte do Poder é o Pai; o Poder do Pai é o Filho, e o Espírito de Poder é o Espírito Santo”[39]. É por isso que o atributo da Sabedoria, comum à Trindade, designará o Filho na ordem da economia divina; dir-se-á que “o Filho é a Sabedoria hipostática do Pai”. O próprio nome do Verbo – Logos – atribuído ao Filho, é também uma designação sobretudo “econômica”, própria à segunda hipóstase na medida em que ela manifesta a natureza do Pai. É o que São Gregório de Nazianze dá a entender quando diz: “Parece-me que o Filho é chamado de Logos não apenas por ter sido gerado sem paixão, mas ainda porque Ele permanece unido ao Pai e O revela. Poderíamos talvez dizer também: porque, em relação ao Pai, Ele é como a definição em relação ao objeto definido. Pois logos quer dizer ainda “definição”, e “quem conhece o Filho conhece o Pai[40]”. O Filho constitui assim uma declaração curta e clara da natureza do Pai; pois todo ser gerado é uma definição muda de seu gerador. Enfim, se pela palavra logos entendemos a razão essencial de cada coisa, não estaremos errados ao atribuir esse nome ao Filho. Pois nada existe que não se apoie sobre o Logos[41]”. Não podemos expressar com mais clareza o caráter econômico do nome Logos – manifestação exterior da natureza do Pai pelo Filho. Santo Irineu se expressou nessa mesma ordem de ideias, típica sobretudo do pensamento cristão dos primeiros séculos: “O invisível do Filho é o Pai e o visível do Pai é o Filho[42]”. O Filho que torna visível a natureza secreta do Pai quase se identifica aqui com as energias manifestadoras. Também São Basílio, ao dizer: “O Filho mostra em si o Pai por inteiro, jorrando de Sua glória por resplendência[43]”, coloca a ênfase sobre o caráter energético (“glória”, “resplendência”) da manifestação do Pai pelo Filho.

O ensinamento dos Padres sobre as Pessoas do Verbo e do Espírito, consideradas como imagens perfeitas de Deus, não pode ser explicado senão nesse mesmo sentido, vale dizer, no plano exterior da Trindade, manifestando-se no mundo pelas energias. Ao desenvolver a ideia contida no texto de São Paulo[44], São João Damasceno dirá: “O Filho é a imagem do Pai e o Espírito é a imagem do Filho[45]”. Ora, a imagem (eikwn) para Damasceno é uma manifestação e uma declaração daquilo que permanece oculto[46]. E ele especifica assim seu pensamento sobre a ação manifestadora das duas Pessoas que procedem do Pai: “O Filho é a imagem do Pai, imagem natural, completa, semelhante ao Pai em tudo, salvo a inascibilidade e a paternidade. Pois o Pai é progenitor não gerado, enquanto que o Filho é gerado e não é o Pai (...) O Espírito Santo é a imagem do Filho. Pois ‘ninguém pode dizer: Senhor Jesus, se não for no Espírito Santo[47]’. Assim, é pelo Espírito Santo que conhecemos Cristo, Filho de Deus e Deus, e é no Filho que vemos o Pai[48]”. Portanto, as Pessoas consubstanciais do Filho e do Espírito Santo, ao operar no mundo, não se manifestam por si mesmas – pois elas não agem em virtude de uma vontade própria – mas o Filho dá a conhecer o Pai e o Espírito Santo testemunha o Filho. Devemos reter aqui um dado importante: a Pessoa do Espírito Santo permanece não manifestada. Ele não tem sua imagem em outro. Voltaremos a esse assunto mais adiante, quando tratarmos da questão do Espírito Santo e da graça. No momento, faremos a seguinte observação: a Igreja do Oriente censurou a teologia ocidental por confundir o plano exterior das atividades manifestadoras no mundo, onde o Espírito Santo revela o Filho enquanto Pessoa consubstancial enviada pelo Pai e o Filho, com o plano interior da Trindade em si mesma, onde a Pessoa perfeita do Espírito Santo procede apenas do Pai, sem ter nenhuma relação de origem com o Filho. A diferença entre os dois planos é constituída pela vontade que, para a tradição oriental, jamais intervém nas relações interiores da Trindade, mas que determina as atividades exteriores das Pessoas divinas em relação à criatura. Essa vontade é comum às três Pessoas; é por isso que, na missão do Filho e do Espírito Santo, cada uma das três Pessoas agirá em cooperação com as outras duas: os Filho se encarna, mas enviado pelo Pai e tomando a carne com a assistência do Espírito Santo; o Espírito Santo desce, mas enviado do Pai para o Filho. Desse plano da economia divina, o amor da Santa Trindade que se manifesta no mistério da cruz será expresso assim por Filarete de Moscou: “O amor do Pai crucificante, o amor do Filho crucificado, o amor do Espírito Santo triunfante na força invencível da cruz[49]”.

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A teologia da Igreja do Oriente, portanto, distingue em Deus: as três hipóstases, processões pessoais; a natureza ou essência; as energias, processões naturais. As energias são inseparáveis da natureza; a natureza é inseparável das três Pessoas. Isso tem uma grande importância para a vida mística da tradição oriental:

1.       A doutrina das energias inefavelmente distintas da natureza é o fundamento dogmático real de toda experiência mística. Deus, inacessível em sua natureza, está presente nas suas energias “como num espelho”, mas permanece invisível naquilo que Ele é; “é assim que nosso rosto se torna visível no vidro do espelho, mas permanece invisível para nós”, segundo a comparação de São Gregório Palamas[50]. Totalmente incognoscível em sua essência, Deus se revela assim totalmente nas suas energias, que não dividem sua natureza em duas partes – cognoscível e incognoscível – mas que assinalam dois modos diferentes da existência divina, na essência e fora da essência.
2.       Essa doutrina permite entender como a Trindade pode existir em sua essência incomunicável e, ao mesmo tempo, vir habitar entre nós, segundo a promessa de Cristo[51]. Não se trata de uma presença causal, como a onipresença divina na criação; tampouco se trata da presença segundo a essência, incomunicável por definição; mas é um modo segundo o qual a Trindade habita em nós realmente através daquilo que Ela tem de comunicável, pelas energias comuns às três hipóstases, vale dizer pela graça, pois é assim que chamamos as energias deificantes que o Espírito Santo nos comunica. Aquele a quem o Espírito Santo conferiu esse dom possui ao mesmo tampo o Filho, por meio do qual tudo nos é transmitido; e possui também o Pai, do qual procede todo dom perfeito. Ao receber o dom, as energias deificantes, recebemos ao mesmo tempo a habitação da Santa Trindade, inseparável de suas energias naturais, presente nelas de outra forma, mas também realmente em sua natureza.
3.       A distinção entre essência e energias – fundamental para a doutrina ortodoxa sobre a graça – permite conservar o sentido real da expressão de São Pedro: “participantes da natureza divina[52]”. A união à qual somos chamados não é nem hipostática, como para a natureza humana de Cristo, nem substancial, como para as três Pessoas divinas: é a união com Deus nas suas energias ou a união pela graça fazendo-nos participar da natureza divina, sem que por isso nossa essência se torne a essência de Deus. Na deificação, possuímos pela graça – ou seja, nas energias divinas – tudo o que Deus é por natureza, salvo a identidade de natureza, segundo ensina São Máximo[53]. Permanecemos como criaturas, ainda que nos tornemos Deus pela graça, assim como Cristo permaneceu Deus ao se tornar homem pela encarnação.

As distinções que a teologia da Igreja do Oriente admite em Deus não conflitam com sua atitude apofática em relação às realidades reveladas. Ao contrário, essas distinções antinômicas são ditadas pelo cuidado religioso em salvaguardar o mistério, ao mesmo tempo em que exprime os dados da Revelação no dogma. Assim, conforme pudemos ver em relação ao dogma da Trindade, a distinção entre as Pessoas e a natureza manifesta uma tendência a representar Deus como uma mônada e uma tríade ao mesmo tempo, sem que a unidade de natureza a faça sobressair em relação à trindade das hipóstases, sem que o mistério inicial dessa identidade-diversidade seja eliminado ou diminuído. Da mesma forma, a distinção entre a essência e as energias é devida à antinomia entre o incognoscível e o cognoscível, entre o incomunicável e o comunicável, à qual se deparam o pensamento religioso e a experiência das coisas divinas. Essas distinções reais não introduzem nenhuma composição no Ser divino, mas assinalam o mistério de Deus, absolutamente um quanto à sua natureza, absolutamente trino quanto às Pessoas, Trindade soberana e inacessível, viva na profusão da Glória que é sua Luz incriadas, seu Reino eterno no qual deverão entrar, no século futuro, todos os que herdarem o estado deificado.

A teologia ocidental que, mesmo no dogma da Trindade, coloca a ênfase sobre a essência única, admite menos ainda uma distinção real entre a essência e as energias. Porém, ao contrário, ela estabelece outras distinções, estranhas à teologia oriental: entre a luz da glória – criada – e a luz da graça – igualmente criada –, assim como entre outros elementos de ordem “sobrenatural”, tais como os dons, as virtudes infusas, a graça habitual e atual. A tradição oriental ignora uma ordem sobrenatural entre Deus e o mundo criado, que acrescentaria a esse último uma espécie de nova criação. Ela não conhece aqui outra distinção, ou antes, divisão, além daquela entre o criado e o Incriado. Para ela, o sobrenatural criado não existe. O que a teologia ocidental designa pelo nome de “sobrenatural”, significa para o Oriente o “Incriado”, as energias divinas distintas inefavelmente da essência de Deus. A diferença consiste no fato de que a concepção ocidental da graça implica a ideia de causalidade, na qual a graça se apresenta como um efeito da Causa divina, assim como no ato da criação; enquanto que, para a teologia oriental, trata-se de uma processão natural, as energias, a irradiação eterna da essência divina. É apenas na criação que Deus age como causa, produzindo um novo sujeito que é chamado a participar da plenitude divina, conservando-o, salvando-o, concedendo-lhe a graça, guiando-o para seu fim último. Nas energias, Ele é, Ele existe, Ele se manifesta eternamente. Trata-se de um modo de ser divino ao qual acedemos ao recebermos a graça. É também, no mundo criado e perecível, a presença da Luz incriadas e eterna, a onipresença real de Deus em todas as coisas, que é mais do que sua presença causal, “a luz que brilhou nas trevas e que as trevas não reconheceram[54]”.

As energias divinas estão em tudo e fora de tudo. É preciso se elevar acima do ser criado, deixar todo contato com as criaturas, para chegar à união om o “raio da divindade”, segundo as palavras de Dionísio o Areopagita. E, no entanto, esses raios divinos penetram o universo criado, são a causa de sua existência. “A luz estava no mundo, e o mundo foi feito por ela e o mundo não a conheceu[55]”. Deus criou tudo por suas energias. O ato da criação estabeleceu uma relação das energias divinas com aquilo q eu não é Deus. Trata-se de uma limitação, uma determinação (proorismos) da irradiação divina e eterna de Deus, que se torna a causa do ser finito e contingente. Pois as energias não produzem o mundo criado pelo fato de existirem, pelo fato de que sejam as processões naturais da essência. De outro modo, ou bem o mundo seria infinito e eterno como Deus, ou bem as energias não seriam mais do que manifestações limitadas e temporais de Deus. Portanto, as energias divinas em si mesmas não são relações de Deus com o ser criado, mas elas entram em contato com aquilo que não é Deus, elas conduzem o mundo à existência, pela vontade de Deus. Ora, segundo São Máximo, a vontade é sempre uma relação ativa em relação a um outro que não a si mesmo, a algo de exterior em relação ao sujeito agente. Essa vontade criou tudo pelas energias, a fim de que o ser criado chegue livremente à união com Deus nas mesmas energias. Pois, diz São Máximo, “Deus nos criou para que nos tornemos participantes da natureza divina, para que entremos na eternidade, para que nos tornemos semelhantes a Ele, sendo deificados pela graça que produziu todos os seres existentes e que conduziu à existência tudo o que não existia[56]”.



[1] “Por meio delas é que ele nos deu os bens extraordinários e preciosos que tinham sido prometidos, e com esses vocês se tornassem participantes da natureza divina, depois de escaparem da corrupção que o egoísmo provoca neste mundo” (II Pedro 1: 4).
[2] Homilia 49, 4, P.G., t. 34, col. 816B.
[3] Homilia 44, 8, Ibid., col. 784C.
[4] La théologie mystique de saint Bernard, pp. 143–44
[5] P.G., t. 150, col. 932D.
[6] São Gregório Palamas, Capita physica, theologica, moralia et practica, 68 e 69, P.G., t. 150, col. 1169.
[7] Theophanes, ibidem, col. 941C.
[8] Ibid., col. 937D.
[9] Oikonomia, literalmente: “construção ou administração de uma casa; ordenamento; dispensação”.
[10] Presbeia periw cristianwn, §10, P.G., t. 6, col. 908B.
[11] “De fato, desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, tais como o seu poder eterno e sua divindade, podem ser contempladas, através da inteligência, nas obras que ele realizou” (Romanos 1: 20).
[12] “Pois aquilo que é possível conhecer de Deus foi manifestado aos homens; e foi o próprio Deus quem o manifestou” (Romanos 1: 19).
[13] Epistola 234 (ad Amphilochium), P.G., t. 32, col. 869AB. Adversus Eunomium II, 32, P.G., t. 29, col. 648.
[14] De Divin. Nomin., II, 4, P.g., t. 3, col.640.
[15] Ibid., col. 649-652.
[16] Autoridade de Máximo na Panoplia dogmática de Euthymius Zigabene, titulus III, P.G., t. 130, col.132A.
[17] Gregório de Nazianze, In Theophaniam, or. XXXVIII, 7, P.G., t. 36, col. 317B; João Damasceno, De Fide Orthodoxa, I, 4, P.G., t., 94, col. 800BC.
[18] De Fide Orthodoxa, I, 4, P.G., t. 94, col. 860B.
[19] Capita physica, etc. (143), P.G., t. 150, col. 1220D.
[20] Ibid. (96), col. 1189B.
[21] S. Marci Eugenici Ephes. Capita Syllogistica in W. Gass, Der Mystik des Nicolas Cabasilas, 1849.
[22] Efésios 1: 17.
[23] Hebreus 1: 3.
[24] João 17: 5.
[25] I Pedro 4: 14.
[26] Seleção de sermões e discursos de Sua Eminência Metropolita Filarete, Paris, 1866.
[27] I Timóteo 6: 16.
[28] Cf. Mateus 13: 43.
[29] Habacuque, 3: 3-4.
[30] Theophanes, P.G., t. 150, col. 929BC.
[31] Ibid., col. 949AC.
[32] Citado por M. Jugie no artigo Palamas, Dict. De Théol. Cathol., XI, col. 1759s.
[33] São Gregório Palamas, Capita physica, etc. (127-128), P.G., t. 150, col. 1209C-1212A.
[34] João 21: 25.
[35] De ambiguis, P.G., t. 91, col. 1261-1264.
[36] Concílio de 1341, Synopsis Nili, Mansi, Col. Concil., t. 25, col. 1149.
[37] De Sancta Trinitate, dial. VI, P.G., t. 75, col. 1056A.
[38] Oratio XXIII (De Pace III), §II, P.G., t. 35, col. 1164A.
[39] De Spiritu Sancto, adversus Macedonianos, §13, P.G., t. 45, col. 1317A.
[40] João 14: 7.
[41] Oratio XXX (theologica IV), §20, P.G., t. 36, col. 129A.
[42] Contra Haereses, 1. IV, c. 6, §6, P.G., t. 7, col. 989C.
[43] Adversus Eunomium, II, 17, P.G., t. 29, col. 605B.
[44] Hebreus 1: 3. “O Filho é a irradiação da sua glória e nele Deus se expressou tal como é em si mesmo.” (Splendor gloriae ejus et figura substantiae).
[45] De Fide Orthodoxa, I, 13. P.G., t. 94, col. 605B.
[46] De Imaginibus, III, 17, P.G., t.94, col. 1337B.
[47] II Coríntios 12: 3.
[48] Ibid., III, 16, col. 1340AB.
[49] Metropolita Filarete, Orações fúnebres, homilias e discursos, Paris, 1849.
[50] Sermão sobre a Apresentação da Santa Virgem no Templo, Atenas, 1861.
[51] João 14: 23.
[52] II Pedro 1: 4.
[53] De Ambigua, P.G., t. 91, col. 1308B.
[54] João 1: 5.
[55] João 1: 10.
[56] Epistola 43, Ad Joannem cubicularium, P.G., t. 91, col. 640BC.

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