Capítulo V
O ser criado
Quando tentamos nos voltar da plenitude do Ser divino para aquilo que
é chamado a adquirir essa plenitude, ou seja, para nós mesmos, para o universo
criado que é não-pleno e, em si mesmo não-ser, somos obrigados a constatar que,
se foi difícil nos elevarmos à consideração de Deus, se precisamos nos
restringir à ascensão apofática para receber, na medida do possível, a
revelação da Trindade, não será menos difícil passar da noção do Ser divino
para a do ser criado. Pois, se existe um mistério em Deus, existe também um na
criatura. Também aí é necessário um salto da fé para admitir fora de Deus, ao
lado de Deus, alguma coisa diferente Dele, um sujeito absolutamente novo. E é
preciso uma espécie de apofatismo ao contrário para chegarmos à verdade
revelada da criação ex nihilo, ou
seja, a partir do nada.
Esquecemos frequentemente que a criação do mundo não é uma verdade de
ordem filosófica, mas um artigo de fé. A filosofia antiga ignora a criação no
sentido absoluto da palavra. O demiurgo de Platão não é um Deus criador, antes
é um ordenador do universo, um artesão, um fazedor do kosmos, palavra que quer dizer ordem, ornamento. “Ser”, para o
pensamento helênico, significa ser de uma maneira ordenada, possuir uma
essência. O demiurgo cria substâncias informando a matéria amorfa que existe
eternamente fora dele como um meio caótico e inqualificável, pronto para
receber todas as formas e qualidades possíveis. Em si, a matéria é então o
não-ser, uma pura possibilidade de ser, de se tornar qualquer coisa; ela é o mh on, que não é o nada absoluto, o ouk on. A ideia da criação ex nihilo encontra sua primeira
expressão na Bíblia, quando uma mãe exorta seu filho a suportar o martírio pela
fé, dizendo: “Veja o céu e a terra e, vendo tudo o que aí se encontra, você
compreenderá que Deus os criou do nada[1]”
(oti ek ouk ontwn epoihsen auta o Qeos,
na tradução dos Setenta).
“As criaturas estão colocadas sobre a palavra criadora de Deus como
sobre uma ponte de diamante, sob o abismo da infinitude divina, acima do abismo
de seu próprio nada”, dizia Filarete de Moscou[2].
O nada das criaturas é tão misterioso e impensável quanto o Nada divino da
teologia negativa. A própria ideia do nada absoluto é contraditória, absurda:
dizer que o nada existe é uma contradição; dizer que ele não existe é um
pleonasmo, a menos que se queira expressar assim, de um modo desajeitado, a
ideia de que não existe nada fora de Deus, que o próprio “fora de” não existe.
Ora, a criação ex nihilo significa
justamente um ato que produz alguma coisa fora de Deus, a produção de um objeto
absolutamente novo, que não possui nenhum fundamento, nem na natureza divina,
nem na matéria ou qualquer possibilidade de ser fora de Deus. Podemos dizer
que, pela criação ex nihilo, dá lugar
a alguma coisa fora de Si mesmo, que Ele coloca o “de fora” ou o nada ao lado
de sua plenitude. Ele dá lugar a um objeto absolutamente outro, infinitamente
afastado de Si, “não pelo lugar, mas pela natureza” (ou topw, ala jusei), segundo as palavras de São João Damasceno[3].
A criação não é um desdobramento, uma difusão infinita de Deus, uma
comunicação espontânea das energias que produz os seres em virtude de uma
necessidade da natureza divina. “O Bem difundindo-se por si mesmo” do
neoplatonismo não é o Deus de São Paulo, “que chama à existência tanto o que
existe como o que não existe[4]”.
A criação é uma obra da vontade e não da natureza. É nesse sentido que São João
Damasceno opõe a criação do mundo à geração do Verbo: “Por ser a geração, diz
ele, obra da natureza, procedendo da própria substância de Deus, é preciso
necessariamente que ela seja sem começo e eterna, caso contrário o gerador
sofreria uma alteração, e haveria um Deus anterior e outro Deus posterior; Deus
teria crescido. Quanto à criação, ela é obra da vontade, e assim ela não é
co-eterna com Deus. Pois não é possível que aquilo que foi trazido do nada à
existência seja co-eterno com o que existe sem origem e para sempre[5]”.
É uma obra que se iniciou; outra, o começo pressupõe uma alteração, a passagem
do não-ser ao ser. A criatura será assim, em virtude de sua própria origem, um
ser mutante, suscetível de passar de um estado a outro. Ela não possui nenhum
fundamento, nem em si mesma – por ter sido criada a partir do nada – nem na
essência divina, pois Deus não pode ter sido movido por uma necessidade
qualquer de criar. Com efeito, não há nada na natureza divina que seja a causa
necessária da produção das criaturas: a criatura poderia muito bem não existir.
Deus poderia muito bem não criar. A criação é um ato livre de sua vontade, e é
o único fundamento dos seres. A própria intenção da vontade divina, quando Ele
o quer, se torna uma obra e sua vontade se realiza, tornando-se imediatamente
um ser, pelo poder do Todo-poderoso que, ao desejar qualquer coisa em sua
Sabedoria e sua virtude criadora, não deixa sua vontade sem realização. Ora,
essa realização da vontade é o ser criado, segundo São Gregório de Nissa[6].
A criatura, contingente desde sua origem mesma, começou a existir, mas existirá
para sempre. A morte e a destruição não constituirão um retorno ao nada, pois a
palavra do Senhor permanece para sempre[7],
e a vontade divina é imutável.
***
A criação, que é um ato livre da vontade e não um transbordamento
natural, como a irradiação das energias divinas, é própria de um Deus pessoal,
da Trindade que possui uma vontade comum que pertence à sua natureza e que age
segundo a determinação do pensamento. É o que São João Damasceno chama de “o
Conselho eterno e imutável de Deus[8]”.
O livro do Gênesis nos mostra Deus dizendo: “Façamos o homem à nossa imagem,
segundo nossa semelhança[9]”,
como se a Trindade consultasse a si própria antes de criar. Esse “Conselho”
representa um ato livre e refletido: “Deus cria por seu pensamento, e o
pensamento se torna obra[10]”,
segundo o mesmo São João Damasceno. “Deus, diz ele, contemplou todas as coisas
antes de sua existência, imaginando-as em seu pensamento, e cada ser recebeu
sua existência num determinado momento, segundo seu eterno pensamento-vontade (kata thn qelhtikhn autou acronon
ennoian), o qual é uma
predeterminação (proorismos), uma
imagem (eikwn) e um modelo (paradeigma)[11]”.
A expressão qelhtikhn ennoian, que
traduzimos como pensamento-vontade, (seria talvez mais exato dizer “pensamento
volitivo”) é muito significativa. Ela exprime perfeitamente a doutrina oriental
sobre as ideias divinas, o lugar que a teologia da Igreja do Orienta assinala
às ideias das coisas criadas em Deus. As ideias não são, segundo essa
concepção, razões eternas das criaturas contidas no próprio Ser de Deus,
determinações da essência à qual as coisas criadas se referem como sendo sua
causa exemplar, segundo o pensamento de Santo Agostinho, que se tornou mais
tarde um ensinamento comum a toda a tradição ocidental – doutrina que foi
formulada claramente por São Tomás de Aquino. No pensamento dos Padres gregos,
as ideias divinas possuem um caráter mais dinâmico, intencional. Elas não têm
lugar na essência, mas “naquilo que vem depois da essência”, nas energias divinas;
pois as ideias se identificam com a vontade ou as vontades (qelhmata) que determinam os diferentes modos
segundo os quais os seres criados participam das energias criadoras. É assim
que Dionísio caracteriza “as ideias ou modelos”, que são “as razões
substanciais das coisas (...) pois é por elas que o Deus suprassubstancial
determinou e criou tudo[12]”.
Se as ideias divinas não são a própria essência de Deus, se elas são, por assim
dizer, separadas da essência pela vontade, então, não apenas o ato da criação,
mas o pensamento de Deus, tampouco constituem uma determinação necessária da
natureza, o conteúdo inteligível do Ser divino. Então o universo criado não se
apresentará, como no pensamento platônico ou platonizante, sob o aspecto pálido
e frágil de uma réplica defeituosa de Deus, mas aparecerá como um ser
absolutamente novo, como a criação novamente saída das mãos do Deus da Gênese,
“que viu que isso é bom”, um universo criado desejado por Deus e que foi a
alegria de sua Sabedoria, “uma ordenação musical”, “um hino maravilhosamente
composto pela força onipotente”, segundo as palavras de São Gregório de Nissa[13].
Pretendendo fazer entrar as ideias no ser interior de Deus, atribuímos
à essência divina um conteúdo ideal, colocamos nela o cosmos nohtos platônico.
Chegamos então na seguinte alternativa, segundo a ênfase que dermos a esse
mundo ideal de Deus: ou bem o mundo criado se encontra depreciado, privado de
seu caráter de obra original da Sabedoria criadora, ou bem a criatura se introduziu
na vida interior de Deus e suas raízes ontológicas mergulharam na própria
Trindade, como nas doutrinas ditas sofiológicas. No primeiro caso (o de Santo
Agostinho) as ideias divinas permanecem estáticas – perfeições imóveis de Deus;
no segundo caso (o do sofianismo oriental) a própria essência de Deus, a ousia, se torna dinâmica. É interessante que
João Scottus Erigena, cujo sistema teológico é um curioso amálgama de elementos
orientais e ocidentais, uma transposição das doutrinas dos Padres gregos sobre
um fundo de pensamento agostiniano, representa as ideias divinas como
criaturas, como os primeiros princípios criados por meio dos quais Deus criou o
universo (natura creata creans). Como
os orientais, ele coloca das ideias fora da essência divina, mas, ao mesmo
tempo, ele tenta manter, como Santo Agostinho, seu caráter substancial; as
ideias se tornam assim as primeiras essências criadas. Erigena não captou a
distinção entre a essência e as energias; e nesse ponto ele permaneceu fiel a
Agostinho. É por isso que ele não soube identificar as ideias com as vontades
criadoras de Deus.
***
As ideias-vontade, que Dionísio[14]
chama de “modelos” (paradeigmata),
“predeterminações” (proorismoi) ou
“providências” (pronoiai), não são
idênticas às coisas criadas. Ao mesmo tempo em que são os fundamentos de todas
as coisas estabelecidas pela vontade divina nos raios simples ou energias – as
relações de Deus com os seres que Ele criou – não obstante as ideias permanecem
separadas das criaturas, como a vontade do artesão é separada de sua obra, na
qual ela se manifesta. As ideias preestabelecem modos diferentes de
participação às energias, elevações desiguais para diferentes categorias de
seres, movidos pelo amor divino e respondendo cada qual a esse amor segundo a
proporção de sua natureza. A criação aparece assim como uma hierarquia das
analogias reais, ou, segundo as palavras de Dionísio, “cada ordem da disposição
hierárquica se eleva à cooperação com Deus segundo sua própria analogia,
realizando pela graça e a virtude dadas por Deus aquilo que Deus possui por
natureza e além de toda medida[15]”.
Todas as criaturas são assim chamadas à união perfeita com Deus, que se realiza
na “sinergia”, na cooperação das vontades criadas com as vontades-ideia
divinas. A noção de criação em Dionísio se encontra assim tão próxima da
deificação, que temos dificuldade em distinguir entre o estado primitivo das
criaturas e seu termo final, o da união com Deus. E, no entanto, como essa
união, segundo Dionísio, pressupõe a “cooperação”, o acordo das vontades –
portanto, a liberdade – podemos ver no estado inicial do cosmos criado uma
perfeição instável onde a plenitude da união ainda não tinha sido atingida,
onde os seres criados deveriam ainda crescer no amor para realizar plenamente a
ideia-vontade de Deus.
Esse pensamento encontra seu desenvolvimento em São Máximo, para quem
as criaturas se definem, antes de tudo, como seres limitados, o que quer dizer,
para Máximo, que elas possuem sua finalidade fora de si mesmas, que elas tendem
para alguma coisa, que elas estão em perpétuo movimento. Onde existe
diversidade e multiplicidade, existe movimento. Tudo está em movimento no mundo
criado, tanto o inteligível como o sensível. Essa limitação e esse movimento
dão lugar às formas do espaço e do tempo. Somente Deus permanece em repouso
absoluto, e sua imobilidade perfeita o coloca fora do tempo e do espaço. Se
atribuímos a Ele o movimento quando falamos Dele em suas relações com o ser
criado, queremos dizer que Ele produz nas criaturas o amor que as faz tender
para Ele, que Ele as atrai “desejando que o desejem e amando que o amem[16]”.
Sua vontade em relação a nós é um mistério, porque a vontade é uma relação com
um outro, e não existe “um outro” senão Deus: a criação ex nihilo é incompreensível para nós. Nós não conhecemos a vontade
de Deus senão na medida em que ela representa sua relação com o mundo já
criado. Ela é o ponto de contato entre o infinito e o finito e, nesse sentido,
as vontades divinas são as ideias criadoras das coisas, os logoi, as “palavras”. Apesar da identidade de termos, essas
“palavras” têm pouco em comum com as logoi
spermatikoi, as “razões seminais” dos estoicos. Elas consistem antes nas
“palavras” da criação e da providência que encontramos no Gênesis e nos Salmos[17].
Toda coisa criada tem seu ponto de contato com a divindade: é sua ideia, sua
razão, seu logos, que é ao mesmo
tempo seu fim, para o qual ela tende. As ideias das coisas individuais estão
contidas nas ideias superiores e mais gerai, como as espécies estão contidas
nos gêneros. O todo está contido no Logos, segunda Pessoa da Trindade, que é o
princípio primeiro e o fim último de todas as coisas criadas. O Logos, Deus o
Verbo, recebe aqui uma ênfase econômica, própria à teologia anterior ao
Concílio de Nicéia: Ele é a manifestação da vontade divina, pois é por meio
Dele que o Pai criou todas as coisas no Espírito Santo. Examinando a natureza
das coisas criadas, buscando penetrar sua razão de ser, somos levados
finalmente ao conhecimento do Logos, princípio causal e, ao mesmo tempo, fim de
todos os seres. Tudo foi criado pelo Logos, que se apresenta como um centro
divino, fonte de onde partem os raios criadores, os logoi particulares das criaturas, centro para o qual tendem todos
os seres criados, como seu fim derradeiro. Pois se as criaturas, desde seu
estado inicial, estavam separadas de Deus, a deificação, a união com Deus,
sempre foi seu objetivo, sua realização final. Portanto, a beatitude inicial
não era um estado deificado, mas uma certa ordem, uma perfeição da criatura
ordenada e tendendo para seu fim.
Ao se revelar por meio de suas ideias-vontade criadoras, Deus pode ser
conhecido nas criaturas, por meio das criaturas, mas Ele também pode ser
conhecido de modo imediato na contemplação mística, nas energias incriadas que
são o esplendor de sua face. Foi assim que Cristo apareceu aos apóstolos sobre
o Monte Tabor, em sua divindade; é assim que ele se dá a conhecer aos santos
que se desligam de todas as criaturas, renunciando a todo conhecimento das
coisas finitas para alcançar a união com Deus. É por isso que, tendo abandonado
tudo, os santos recebem o conhecimento perfeito das coisas criadas[18],
pois, ao se elevarem à contemplação de Deus, eles conhecem ao mesmo tempo todo
o domínio do ser nos seus raios primeiros que são as ideias-vontade de Deus,
contidas nas suas energias simples. Isso nos faz pensar no êxtase de São Bento
de Nursia, que viu o universo inteiro como que reunido num raio de luz divina[19].
***
Todas as coisas foram criadas pelo Logos. São João disse: “omnia per ipsum facta sunt[20]”,
e nós o repetimos no Credo: “per quem
omnia facta sunt”. Mas o mesmo símbolo de Nicéia nos ensina que foi o Pai
quem criou o céu e a terra e todas as coisas visíveis e invisíveis, e, mais
adiante, o Espírito Santo é chamado de “vivificador” (zwopoion). “O Pai criou tudo pelo Filho no Espírito Santo, diz
Santo Atanásio – pois onde está o Verbo, está o Espírito, e o que o Pai produz
recebe sua existência pelo Verbo no Espírito Santo; com efeito, o Salmo diz: “Verbo Domini coeli firmati sunt et spiritu
oris ejus omnis virtus eorum[21]”.
Essa é a manifestação econômica da Trindade: o Pai que opera pelo Filho no
Espírito Santo. É por isso que Santo Irineu chama o Filho e o Espírito Santo de
“as duas mãos de Deus[22]”.
A criação é a obra comum da Trindade, mas as três Pessoas são causa do ser
criado de uma maneira diferente, ainda que unida. São Basílio, falando da
criação dos anjos, traça da seguinte maneira a manifestação das três Pessoas
não obra criadora: “Na criação, diz ele, considerem a causa primordial (thn prokatartikhn aitian) de tudo o que foi
feito – é o Pai; a causa operadora (thn
demiourgikhn) – é o Filho; a causa perfeccionadora (thn teleiwtikhn) – é o Espírito; de tal sorte
que pela vontade do Pai os espíritos celestes são, pela operação do Filho eles
vêm à existência, e pela presença do Espírito eles se tornam perfeitos[23]”.
Essa ação comum da Trindade que se apresenta
como a dupla economia do Verbo e do Espírito Santo – operadora e
perfeccionadora – confere às criaturas não apenas o ser, mas também o “ser bom”
– to eu einai – a faculdade de ser
segundo o bem, a perfeição.
A tradição oriental ignora a “natureza pura”, à qual a graça seria
acrescentada como um dom sobrenatural. Não existe para ela um estado natural
“normal”, pois a graça não está implicada no ato criador em si. As
determinações eternas do “Conselho divino”, as ideias divinas, praticamente não
correspondem às essências das coisas tais como elas se apresentam à especulação
dita natural de um Aristóteles, ou de qualquer outro filósofo que não conheça a
natureza decaída. A “natureza pura” seria assim, para a teologia oriental, uma
ficção filosófica que não responde nem a um estado inicial da criação, nem ao
seu estado atual (que é “contra a natureza”), nem ao estado deificado próprio
do século futuro. Criado para ser deificado, o mundo é dinâmico, tendendo para
seu objetivo final predeterminado nas ideias-vontade. Essas últimas se
encontram centradas no Verbo, Sabedoria hipostática do Pai que se exprime em
todas as coisas e que a tudo conduz no Espírito Santo para a união com Deus.
Pois não existe “beatitude natural” para a criatura, a qual não pode ter outro
fim senão a deificação. Todas as distinções que nos esforçamos para estabelecer
entre o estado das criaturas primeiras segundo sua natureza e o estado que lhes
é conferido pela participação sempre crescente nas energias divinas, não passam
de ficções: com efeito, elas tendem a separar em momentos distintos uma
realidade indivisível que aparece simultaneamente: os seres criados dotados da
faculdade de se assimilar a Deus, porque essa é sua destinação.
***
Diz o Gênesis que o céu e a terra – o conjunto do universo – foi
criado no princípio. Para São Basílio, trata-se do início do tempo. Mas, “como
o início de um caminho ainda não é o caminho, o início de uma casa não é uma
casa, da mesma forma o início do tempo ainda não é o tempo, nem mesmo uma parte
ínfima do tempo[24]”.
Se a vontade divina foi criada “no início”, isso quer dizer que sua ação
instantânea e atemporal. Mas, com o universo começou o tempo. Segundo São Máximo,
é o movimento, a mudança própria à criatura, cuja própria origem foi uma
mudança, que produziu o tempo, a forma do ser sensível (ta aisqeta). É o tempo que começa, que dura, e que terá seu fim.
Mas, fora do tempo, existe uma outra forma de existência criada, própria do ser
inteligível (ta nohta). É o éon – aiwn. “O éon, diz Máximo, é o tempo imóvel,
enquanto que o tempo é o éon medido pelo movimento[25]”.
O inteligível não é eterno: ele tem seu começo “no século” (en aiwni), passando do não-ser ao ser, mas
ele permanece sem alteração, submetido a um modo de existência intemporal. O
éon está fora do tempo, mas, por ter um começo como o tempo, ele é mensurável
juntamente com ele. Somente a eternidade divina é incomensurável, e isso tanto
em relação ao tempo, como em relação ao éon.
É nessa condição extra-temporal que Deus criou o mundo angélico,
segundo São Basílio. É por isso que os anjos não mais podem cair em pecado: sua
adesão imutável a Deus ou sua inimizade eterna contra Ele se realizaram
instantaneamente, no momento mesmo de sua criação, pelos séculos dos séculos. Para
São Gregório de Nissa, como para São Máximo, a natureza angélica pode,
entretanto, crescer sem cessar pela aquisição dos bens eternos, num movimento
incessante próprio a tudo o que é criado, mas excluindo toda e qualquer
sucessão temporal.
A natureza da matéria, segundo a doutrina de São Gregório de Nissa
adotada por São Máximo, seria o resultado da reunião de qualidades simples,
inteligíveis em si mesmas, mas cuja soma, o concurso, a concreção, produzem o
substrato das coisas sensíveis, a corporeidade. “Nada no corpo – nem sua forma,
sem sua extensão, nem seu volume, nem seu peso, nem sua cor, nem outras
qualidades tomadas em si mesmas – são o corpo, mas são puros inteligíveis. E,
no entanto, seu concurso (sundromh) se
torna o corpo[26]”.
Essa teoria dinâmica da matéria permitirá conceber os diferentes graus de
materialidade, dos corpos mais, ou menos, materiais; ela tornará ainda mais
compreensível a mudança ocorrida na natureza primeira após o pecado, assim como
a ressurreição dos corpos. Tudo existe, um dentro do outro – disse São Gregório
de Nissa – e todas as coisas se sustentam mutuamente, pois uma força
transmutadora, numa espécie de rotação, faz com que os elementos terrestres passem
sem cessar uns por dentro dos outros, para a seguir reuni-los em seu ponto de
partida. “Assim, nessa revolução, nada diminui nem aumenta, mas tudo permanece
nas suas medidas primordiais[27]”.
Entretanto, cada elemento do corpo é guardado “como que por uma sentinela[28]”
pela faculdade intelectual da alma que a sela com sua marca, pois a alma
conhece seu corpo ainda que seus elementos estejam dispersos pelo mundo. Assim,
na condição mortal seguinte ao pecado, a natureza espiritual da alma manterá
uma certa ligação com os elementos desunidos do corpo, que ela será capaz de
reencontrar quando da ressurreição, para que eles sejam transformados em “corpo
espiritual”, que é o verdadeiro corpo, diferente de nossa corporeidade
grosseira, “vestes de pele” que Deus fez para Adão e Eva depois do pecado.
***
A cosmologia dos Padres gregos reproduz necessariamente a imagem do
universo própria à ciência de sua época. Isso não deprecia absolutamente o
fundo propriamente teológico de seus comentários sobre o relato bíblico da
criação. A teologia da Igreja Ortodoxa, sempre soteriológica, jamais formou uma
aliança com a filosofia numa tentativa de síntese doutrinal. Apesar de toda sua
riqueza, o pensamento religioso do Oriente nunca teve uma escolástica. Se ela
chega a ter elementos de gnose cristã, como em São Gregório de Nissa, em São
Máximo ou nos Capítulos físicos e
teológicos de São Gregório Palamas, essa especulação permanece sempre
submetida à ideia central da união com Deus, e não adquire o caráter de
sistema. Não tendo nenhuma preferência filosófica, a Igreja se servirá sempre
com muita liberdade da filosofia e das ciências com uma finalidade apologética,
mas ela jamais precisará defender essas verdades relativas e cambiantes do
mesmo modo como ela defende a verdade imutável de seus dogmas. É por isso que
as doutrinas cosmológicas antigas ou modernas não afetarão em nada a verdade
mais fundamental revelada à Igreja. “A veracidade da Santa Escritura se estende
mais longe do que os limites de nosso entendimento”, dizia Filarete de Moscou[29].
Se a visão do universo, própria à humanidade desde a época da Renascença,
apresenta a terra como um átomo perdido no espaço infinito no meio de inúmeros
outros mundos, a teologia não precisará mudar uma vírgula no relato do Gênesis,
como tampouco terá que se preocupar com a questão da salvação dos habitantes de
Marte... A Revelação permanecerá por si essencialmente geocêntrica, porque se
dirige aos homens, levando-lhes a verdade que se refere à sua salvação nas
condições próprias à realidade da vida terrestre. O pensamento patrístico viu
na parábola do Bom Pastor, que desce para buscar uma única ovelha perdida,
deixando nas montanhas um rebanho de noventa e nove ovelhas, uma alusão à
pequenez do mundo decaído em comparação com o conjunto do cosmos, em especial
em relação aos éons angélicos[30].
A Igreja nos revela o mistério de nossa salvação e não os segredos do
conjunto do universo, que, talvez, não precise ser salvo. É por isso que a
cosmologia da Revelação será necessariamente geocêntrica. É também por isso que
a cosmografia copernicana, do ponto de vista psicológico, ou antes, espiritual,
corresponderá a um estado de dispersão, a um certo desequilíbrio religioso, um
relaxamento da atitude soteriológica, como na gnose ou nas doutrinas ocultas. O
espírito insaciável da ciência, o espírito inquieto de Fausto, voltando-se para
o cosmo, romperá as esferas celestes demasiado estreitas para se lançar nos
espaços infinitos, onde se perderá na busca de um conhecimento sintético do
universo; seu conhecimento exterior, limitado ao domínio do porvir, jamais
captará o todo senão sob o aspecto da desagregação que corresponde ao estado de
nossa natureza depois da queda. Um místico cristão, ao contrário, entrará em si
mesmo, fechando-se na “cela interior” de seu coração, para lá encontrar, mais
profundamente do que o pecado pode alcançar[31],
o começo de uma ascensão no decurso da qual o universo lhe parecerá cada vez
mais unido, mais coerente, penetrado por forças espirituais, formando uma coisa
só contida na mão de Deus. Podemos citar, a título de curiosidade, a tentativa
de um teólogo russo moderno, o Pe. Pavel Florensky, que foi também um grande
matemático, de voltar a uma cosmologia geocêntrica baseando-se nas teorias
científicas de nossa época. É inútil dizer que essa síntese ousada, e talvez
cientificamente defensável, não tem nenhum valor para a teologia cristã, que se
acomoda muito bem a qualquer teoria científica do universo, com a condição de
que essa última não ultrapasse seus limites e não se ponha a negar com impertinência
aquilo que está fora de seu campo visual.
***
Não falaremos da cosmologia – ou antes, das cosmologias – dos Padres,
senão para deduzir algumas ideias teológicas que encontraram seu lugar na
doutrina da união com Deus. A obra dos seis dias se apresenta – tanto em São
Basílio, no Hexameron, quanto em São
Gregório de Nissa, que complementou o trabalho de Basílio – como uma distinção
sucessiva dos elementos criados simultaneamente no primeiro dia. São Basílio
encara o primeiro dia, o “princípio”, o primeiro momento do ser criado, como se
ele estivesse “fora dos sete dias”, assim como o “oitavo dia” que festejamos no
domingo, e que será o começo da eternidade, o dia da ressurreição[32].
Nos cinco dias que se seguem, a criação dos elementos inteligíveis e sensíveis,
do céu e da terra – o universo visível – se organizam progressivamente, mas
essa ordenação sucessiva, segundo São Gregório de Nissa, não existe senão para
a criatura. Essa última é regida por uma “força luminosa” que Deus introduziu
na matéria e que é Sua palavra (os “logoi-vontade”
de São Máximo), suas ordens às coisas criadas de que nos fala o Gênesis[33].
Pois a palavra de Deus, como diz Filarete de Moscou, “não é como as palavras
dos homens, palavras que se extinguem e desaparecem no ar assim que são
pronunciadas. Em Deus nada há que cesse, nada que acabe. Sua palavra procede e
não passa jamais. Ele não criou por
algum tempo, mas para sempre; Ele trouxe a criatura à existência por meio de
sua palavra criadora. ‘Pois ele firmou o universo que não será abalado[34]’[35]”.
Santo Isaac o Sírio observa que existe uma certa diferença misteriosa
na criação, diferentes modos da atividade divina: se, depois de haver criado o
céu e a terra, Deus dirigiu sucessivas ordens à matéria que deveria produzir a
variedade dos seres, por outro lado Ele criou o mundo dos espíritos angélicos
“em silêncio”. Da mesma forma, a criação do homem não foi efeito de uma ordem
dada à terra, como aconteceu com o resto dos seres vivos: Deus não ordenou, mas
disse a Si mesmo no seu Conselho eterno: “Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança”. Por meio de suas ordens Deus dividiu o universo e organizou suas
partes; ora, nem os anjos, nem o homem, são partes propriamente ditas, porque
são seres pessoais. Uma pessoa não é parte de um todo, mas ela contém o todo em
si. Nessa ordem de ideias, o ser humano é mais completo, mais rico, contém mais
possibilidades que os espíritos angélicos. Colocado no limite do inteligível e
do sensível, ele reúne em si esses dois mundos e participa em geral de todas as
esferas do universo criado. “Pois tudo o que foi criado por Deus nas diversas
naturezas concorre conjuntamente no homem, como num cadinho, para nele formar
uma perfeição única, tal como uma harmonia composta de diferentes sons[36]”.
Segundo São Máximo, a obra da criação compreende cinco divisões que
dão lugar a esferas concêntricas do ser, no centro das quais se encontra o
homem, que contém a todas em si virtualmente. Antes de tudo, é preciso distinguir
as naturezas incriada e criada, Deus e o conjunto das criaturas. A seguir, a
natureza criada se divide em universo inteligível e universo sensível (nohta kai aisqeta). No universo sensível o
céu (ouranos) é separado da terra (gh). De toda a superfície da terra separa-se
o paraíso (oikoumenh kai paradeisos), o
lugar onde habita o homem. Enfim, o homem se divide em dois sexos, masculino e
feminino, divisão essa que se atualizará definitivamente depois do pecado, na
natureza decaída. Essa última divisão teria sido efetivada por Deus prevendo o
pecado, segundo São Máximo, que aqui repete o pensamento de São Gregório de
Nissa. “O ser que começou com uma alteração, diz esse, conserva a afinidade com
a mudança. É por isso que Aquele que, segundo a palavra da Escritura, vê todas
as coisas antes de seu nascimento, tendo examinado, ou antes, vendo previamente
pela força de seu conhecimento antecipador o lado para o qual se inclinaria o movimento
livre e independente do homem, sabendo o que ele viria a ser, acrescentou à
imagem a divisão entre homem e mulher: essa divisão não tem nenhuma relação com
o Arquétipo divino, mas, como foi dito, ela se aparenta à natureza irracional[37]”.
Mas a partir daqui todo pensamento teológico se torna confuso e não pode ser
expresso claramente; dois planos de superpõem – o da criação e o da queda – e não
podemos conceber o primeiro senão nas imagens próprias ao segundo, através da
sexualidade tal como ela se realizou na natureza decaída. O verdadeiro sentido
dessa última divisão misteriosa poderá ser entrevisto apenas onde o sexo é ultrapassado
numa nova plenitude – na mariologia, na eclesiologia, assim como no sacramento
do matrimônio ou na “via angélica” do monaquismo. Da mesma forma como essa
última, as demais divisões do cosmo adquiriram em seguida ao pecado um caráter
de limitação, de separação, de despedaçamento.
O primeiro homem foi chamado, segundo São Máximo, a reunir em si o
conjunto do ser criado; ao mesmo tempo ele deveria atingir a união perfeita com
Deus e assim conferir o estado deificado a toda a criação. Seria preciso em primeiro
lugar que ele suprimisse em sua própria natureza a divisão em dois sexos, pela
vida impassível segundo o arquétipo divino. Em seguida, ele deveria reunir o
paraíso ao resto da terra, vale dizer, que trazendo sempre em si o paraíso numa
comunhão constante com Deus, ele deveria transformar toda a terra em paraíso. Depois
disso ele deveria suprimir as condições espaciais não apenas por intermédio de
seu espírito, mas também com seu corpo, reunindo a terra e o céu, o conjunto do
universo sensível. Então, ultrapassando os limites do sensível, ele deveria
penetrar no universo inteligível por meio de um conhecimento igual ao dos
espíritos angélicos, a fim de reunir em si mesmo o mundo inteligível e o mundo
sensível. Por fim, não tendo mais fora de si senão unicamente a Deus, não
restaria ao homem mais do que se dar inteiramente a Ele num impulso de amor,
remetendo a Ele o universo inteiro reunido no ser humano. Então o próprio Deus,
por sua vez, se daria ao homem, que, em virtude desse dom, ou seja, pela graça,
possuiria tudo o que Deus possui por Sua natureza. A deificação do homem e de
todo o universo criado estaria assim realizada. Essa tarefa prescrita ao homem
não foi cumprida por Adão, e desse modo só a podemos descobrir através da obra
de Cristo, o segundo Adão.
Essa é a doutrina de São Máximo sobre as divisões do ser criado,
doutrina que Scottus Erigena emprestou dele em seu De divisione naturae. Em Máximo, essas divisões expressam o caráter
limitado da criatura, que constitui sua condição própria. Elas são, ao mesmo
tempo, problemas a ser resolvidos, obstáculos a superar no caminho da união com
Deus. O homem não é um ser isolado do resto da criação; por sua própria
natureza ele está ligado ao conjunto do universo, e São Paulo testemunha que
todas as criaturas aguardam a glória futura que deve se revelar nos filhos de
Deus[38].
O sentido cósmico jamais foi estranho à espiritualidade oriental. Ele se
exprime tanto na teologia como na poesia litúrgica, na iconografia e, talvez,
sobretudo nos escritos ascéticos dos mestres da vida espiritual da Igreja do
Oriente. “O que é o coração caridoso?, pergunta-se Santo Isaac o Sírio. É um
coração que se inflama de caridade pela criação inteira, pelos homens, pelos
pássaros, pelos animais, pelos demônios, por todas as criaturas. Quem possui
esse coração não poderá lembrar ou ver uma criatura sem que seus olhos se
encham de lágrimas por causa da imensa compaixão que se apodera de seu coração.
E o coração se enternece e já não pode suportar, se vê ou se sabe por outros,
de algum sofrimento, ainda que seja uma pena mínima infligida a uma criatura. É
por isso que esse homem não cessa de orar também pelos animais, pelos inimigos
da Verdade, por aqueles que lhe fazem mal, a fim de que eles sejam conservados
e purificados. Ele ora até pelos répteis, movido pela piedade infinita que é despertada
no coração daqueles que se assimilam a Deus[39]”.
Em seu caminho de união com Deus, o homem não rejeita as criaturas, mas reúne
em seu amor o cosmo desunido pelo pecado, a fim de que ele seja finalmente
transfigurado pela graça.
***
O homem foi criado por último para ser introduzido no universo como um
rei em seu palácio, diziam os Padres gregos. “Como um profeta e um pontífice”,
acrescenta Filarete de Moscou[40],
dando uma ênfase eclesiológica à cosmologia da Bíblia. Para esse grande teólogo
do século XIX, a criação é desde logo uma preparação da Igreja, que teria seu
começo no paraíso terrestre, com os primeiros homens. Os livros da Revelação
são para ele uma história sagrada do mundo, começando pela criação do céu e da
terra e terminando com o novo céu e a nova terra do Apocalipse. A história do
mundo é uma história da Igreja, que por sua vez é o fundamento místico do
mundo. A teologia ortodoxa dos últimos séculos é essencialmente eclesiológica. É
o dogma da Igreja que constitui atualmente o móvel secreto que determina o
pensamento e a vida religiosa da Ortodoxia. O conjunto da tradição cristã, sem
ser modificado ou modernizado, se apresenta hoje sob o aspecto nova da
eclesiologia, pois a tradição não é um depósito imóvel e inerte, mas a própria
vida do Espírito da Verdade que instrui a Igreja. Não é de admirar, assim, que
a cosmologia receba hoje uma nota eclesiológica que não se opõe absolutamente,
mas ao contrário, empresta um valor novo à cosmologia cristológica de um São
Máximo.
Mesmo nos seus caminhos que mais se afastam da tradição, mesmo em seus
desvios, o pensamento do Oriente cristão, e sobretudo o pensamento religioso
russo reflete uma tendência a encarar o Cosmos criado sob um aspecto
eclesiológico. Podemos encontrar esses motivos na filosofia religiosa de
Soloviev, na mística cósmica de Jacob Boehme, de Paracelso e da Kabalah,
entremeadas com as ideias sociológicas de Fourier e de Auguste Comte, no
utopismo escatológico de Fedorov, nas aspirações milenaristas do cristianismo
social, e até no sofianismo do Pe. Boulgakof, que é uma eclesiologia manca. Nesses
pensadores, a ideia de Igreja se confunde com a de Cosmos e a ideia de Cosmos
se descristianiza. Mas os erros, também eles, dão testemunho da Verdade, ainda
que de uma maneira indireta e negativa. Se a ideia de Igreja – o meio onde se
realiza a união com Deus – já está implicada na ideia de Cosmos, isso não quer
dizer que o Cosmos seja a Igreja. Não podemos atribuir à origem aquilo que
pertence à vocação, à realização, ao fim último.
O mundo foi criado a partir do nada apenas pela vontade de Deus – essa
é sua origem. Ele foi criado para participar da plenitude da vida divina – essa
é sua vocação. Ele é chamado a realizar essa união na liberdade, no acordo
livre da vontade criada com a vontade de Deus – esse é o mistério da Igreja
inerente à criação. Através de todas as vicissitudes que se seguiram à queda da
humanidade e à destruição da primeira Igreja, da Igreja paradisíaca, a criatura
guarda a ideia de sua vocação, e, ao mesmo tempo, a ideia da Igreja que se
realizará enfim plenamente no Gólgota, depois do Pentecostes, como Igreja propriamente
dita, a Igreja indestrutível de Cristo. Doravante, o universo criado e limitado
trará em si um corpo novo, possuindo uma plenitude incriada e ilimitada que o
mundo não pode conter. Esse corpo novo é a Igreja; a plenitude que ela contém é
a graça, a profusão das energias divinas pelas quais e por meio das quais o
mundo foi criado fora da Igreja, elas agem como causas determinantes
exteriores, como as vontades divinas, criadoras e conservadoras do ser. Somente
na Igreja, na unidade do corpo de Cristo, são elas conferidas e dadas aos
homens pelo Espírito Santo; é na Igreja que as energias aparecem como a graça
na qual os seres criados são chamados a se unir com Deus. Todo o universo é
chamado a entrar na Igreja, a se tornar a Igreja de Cristo para ser
transformado, depois da consumação dos séculos, em Reino eterno de Deus. Criado
a partir do nada, o mundo encontra sua realização na Igreja, na qual a criatura
adquire um fundamento inquebrantável realizando sua vocação.
[1] II
Macabeus 7: 28.
[2]
Citado por P. Florovsky, Os caminhos da
teologia russa, Paris 1937.
[3] De Fide Orthodoxa, I, 13, P.G., t. 94,
col. 853C.
[4]
Romanos 4: 17.
[5] Ibid., I, 8, col. 813A.
[6] In Hexameron, P.G., t. 44, col. 69A.
[7] I
Pedro 1: 25.
[8] De Imaginibus, I, 20, P.G., t. 94, col.
1240-1241.
[9]
Gênesis 1: 26.
[10] De Fide Orthodoxa, II, 2, P.G., t. 94,
col. 865A.
[11] Ibid., col. 837A.
[12] De div. Nomin., V, 8, P.G., t. 3, col.
824C.
[13]
In Psalmorum inscriptiones, P.G., t.
44, col. 441B. Ver Oratio catechetica
magna, c. 6, P.G., t. 45, col.25C.
[14] De div. Nomin., V, 2, 8, P.G., t. 3,
col. 817 e 824.
[15] De Coel. Hier., III, 3, P.G., t. 3, col.
168.
[16] De ambiguis, P.G., t. 91, col. 1260C.
[17]
Salmo 147.
[18] De Ambiguis, P.G., t. 91, col.
1152C-1156B, 1160AD.
[19] Dialogorum liber II, cap. 35, P.L., t.
66, col. 198-200.
[20]
João 1: 3.
[21]
“O céu foi feito com a palavra de Javé, e seu exército com o sopro de sua boca”
(Salmo 32: 6). Epistola ad Serapionem,
§5, P.G., t. 26, col. 632C.
[22] Contra Haereses, IV, praefatio, P.G., t., 7, col 975B.
[23] Liber de Spiritu Sancto, XVI, 38, P.G.,
t. 32, col. 136AB.
[24] In Hexaemeron, homilia I, 6, P.G., t.
29, col. 16C.
[25] De ambiguis, P.G., t. 91, col. 1164BC.
[26] De anima et ressurrectione, P.G., t. 46,
col. 124C.
[27] In Hexameron, P.G., t. 44, col. 104BC; De anima et ressurrectione, P.G., t.46,
col. 28A.
[28] De anima et ressur., ibid., col. 76-77.
[29]
P. G. Florovsky, op. cit., pg. 178.
[30]
São Cirilo de Jerusalém, Catech., XV,
24, P.G., t. 33, col. 904; São Cirilo de Alexandria, Orat. Pasch., XII, 2, P.G., t. 77, col. 673; São João Crisóstomo, Contra anom., P.G., t. 48, col. 714.
[31]
Expressão de Santo Isaac o Sírio.
[32]
São Basílio, In Hexameron, homilia II,
8, P.G., t. 29, col. 49-52.
[33]
São Gregório de Nissa, In Hexameron,
P.G., t. 44, col. 72-73.
[34]
Salmo 93: 1.
[35]
Filarete de Moscou, Sermões e discursos,
Moscou 1877.
[36]
São Máximo, citado por L. Karsavine, Os
Santos Padres e os Doutores da Igreja, Paris, 1926. Cf. De ambiguis, P.G., t. 91, col. 1305AB.
[37] De hominis opifício, XVI, P.G., t. 44,
col. 181-185.
[38]
Romanos 8: 18-22.
[39]
Cf. A. J. Wensinck, Tratados Místicos de
Isaac de Nínive, Amsterdam, 1923.
[40]
G. Florovsky, op. cit., pg. 179.
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