quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Georges Florovsky - Criação e Redenção - I. Introdução: O Vale das Sombras da Morte







Uma gloriosa visão foi concedida ao Profeta Ezequiel. Pela mão do Senhor, o Profeta foi conduzido ao vale da morte, um vale de desespero e desolação. Ali não havia vida alguma. Nada senão ossos secos, completamente secos. Isso era tudo o que restara daqueles que um dia viveram. A vida se fora. Então uma questão foi colocada ao Profeta: “Poderão esses ossos viver novamente? Poderá a vida retornar ainda uma vez?”. A resposta humana a essa questão seria obviamente “não”. A vida jamais retorna. Aquilo que um dia morreu, morreu para sempre. A vida não pode brotar da poeira e das cinzas. “Nós devemos morrer, assim como a água derramada sobre o solo não pode mais ser recolhida[1]”. A morte é o fim último, a completa frustração dos projetos e esperanças humanas. A morte nasce do pecado, da Queda original. Ela não foi instituída divinamente. A morte humana não faz parte da ordem divina da criação. Não era normal, nem natural que o homem morresse. Mesmo a morte física, ou seja, a separação entre a alma e o corpo, constitui um distanciamento anormal de Deus, o Criador e o Mestre do homem. A mortalidade do homem é o estigma, ou o “salário” do pecado[2].

Muitos cristãos de hoje em dia perderam essa concepção bíblica da morte e da mortalidade, e veem a morte mais como uma liberação, a liberação de uma alma imortal da escravidão do corpo. Por mais disseminada que seja tal concepção da morte atualmente, ela é absolutamente estranha às Escrituras. De fato, trata-se de uma concepção gentil grega. A morte não é uma liberação, é uma catástrofe. “A morte é, de fato, um mistério: pois a alma é violentamente separada do corpo, separada de sua conexão e de sua composição natural por uma vontade Divina. Ó maravilha! Por que fomos entregues à corrupção, e por que nos casamos com a morte?[3]”. Um homem morto já não é mais um homem, pois o homem não é um espírito incorpóreo. A alma e o corpo devem permanecer juntos, e sua separação constitui a decomposição do ser humano. Uma alma desencarnada não passa de um fantasma. Um corpo sem alma não passa de uma cadáver. “Pois na morte não há memória de Ti; quem Te dará graças no túmulo?[4]”. E também: “Farás maravilhas para os mortos? Levantar-se-ão eles para louvar-Te? Falarão de amor nas sepulturas, ou de fidelidade em meio à destruição? Poderão Tuas maravilhas ser conhecidas na escuridão, e Tua justiça na terra do esquecimento?[5]”. E o salmista estava absolutamente certo: “Eles foram arrancados de Tua mão[6]”. A morte é sem esperanças. E assim a única resposta razoável que pode ser dada, do ponto de vista humano, sobre os ossos secos é: não, os ossos secos jamais viverão outra vez.

Mas a réplica divina foi diferente disso. E não foi uma resposta expressa em palavras, mas um poderoso ato de Deus. E mesmo a Palavra de Deus foi criativa: “Pois Ele disse, e fez-se; Ele ordenou, e firmou-se[7]”. E agora Deus fala novamente, e age. Ele envia Seu Espírito e renova a face da terra[8]. O Espírito de Deus é o Doador da Vida. E o profeta pôde testemunhar uma maravilhosa restauração. Pelo poder de Deus os ossos secos foram reunidos, ligados, modelados e mais uma vez recobertos com uma carne viva, e o sopro da vida retornou para os corpos. E eles se levantaram de novo, cheios de força, “numa inexcedível e imensa congregação”. A vida retornou, a morte foi vencida.

A explicação dessa visão acompanha a própria visão. Esses ossos era a casa de Israel, o povo escolhido por Deus. Ela estava morta, por seus pecados e sua apostasia, e caíra no fosso que ela mesma cavara, fôra derrotada e rejeitada, perdera sua glória, sua liberdade e sua força. Israel, o povo do Amor Divino e da adoção, o povo obstinado, rebelde e cabeça dura, e ainda assim o povo escolhido. E Deus o conduziu para fora do vale das sombras da morte para os pastos verdejantes, para fora das redes da morte, das águas incontáveis, do fosso horroroso, da argila lamacenta.

Cumpriu-se a profecia. Chegou o dia da libertação prometida. O Libertador prometido, o Redentor, o Messias, chegou no tempo devido, e Seu nome era Jesus: “Pois Ele salvará Seu povo de seus pecados[9]”. Ele era “a luz para iluminar os gentios, e a glória de Israel, Seu povo”.

E então aconteceu algo inacreditável e paradoxal. Ele não foi reconhecido, nem “recebido” pelo Seu povo, ele foi rejeitado e maltratado, foi condenado e mandado para a morte, como um falso profeta, como um mentiroso e um enganador. Pois a concepção carnal de libertação sustentada pelo povo era muito diferente daquela que constituía o desígnio particular de Deus. Ao invés do poderoso príncipe terreno esperado pelos judeus, Jesus de Nazaré veio “manso e humilde de coração”. O Rei Celestial, o próprio Rei dos Reis desceu, o Rei da Glória, mas sob a forma de um servo. E não para dominar, mas para servir a todos “os que trabalham e os oprimidos” e para trazer-lhes o repouso. Ao invés de uma carta de liberdade política e independência, Ele trouxe para Seu povo, e também para todos os homens, uma carta de salvação, o Evangelho da Vida Eterna. Ao invés da libertação política Ele trouxe a liberdade em relação ao pecado e à morte, o perdão dos pecados e a Vida Eterna. Ele veio aos Seus e não foi recebido. Ele foi mandado para a morte, uma morte vergonhosa, e foi “contado junto com os transgressores”. A vida foi mandada para a morte, a Vida Divina foi sentenciada à morte pelos homens – esse é o mistério da Crucificação.

Mais uma vez Deus agiu. “E Deus, com sua vontade e presciência, permitiu que Jesus lhes fosse entregue, e vocês, através de ímpios, o mataram, pregando-o numa cruz. Deus, porém, ressuscitou Jesus, libertando-o das cadeias da morte, porque não era possível que ela o dominasse[10]”. Mais uma vez a Vida libertou-se do túmulo. Cristo levantou-se, deixou Sua sepultura como o Noivo deixa sua câmara. E com Ele toda a raça humana, todos os homens, foram levantados. Ele foi as primícias dos que estavam adormecidos, e todos o seguiram, cada qual em sua ordem[11]. “Para que, assim como o pecado havia reinado através da morte, do mesmo modo a graça reine através da justiça para a vida eterna, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo[12]”.

A profecia de Ezequiel é lida na Igreja Ortodoxa nas Matinas do Grande Sábado, nesse ofício glorioso em que os fiéis são convidados a visitar o túmulo do Senhor, esse Santo e Sagrado Túmulo de onde a Vida brotou abundantemente para toda a Criação. Nos belos hinos reservados a esse dia, os “louvores” – uma das mais maravilhosas criações da poesia devocional – esse tremendo mistério é retratado e adorado: a Vida jazia no túmulo e brilhou fora da sepultura. “Pois aquele que habitava nas alturas foi contado entre os mortos e posto num jazigo apertado[13]”. Os fiéis são chamados para contemplar e adorar esse mistério do sepulcro que suporta e dá a Vida.

E ainda assim, a antiga profecia permanece uma profecia, ou melhor, é tanto uma profecia como um testemunho. A Vida ergue-se do sepulcro, mas a plenitude da vida ainda está por vir. A raça humana, ainda que redimida, e mesmo a própria Igreja, ainda caminham pelo vale das sombras da morte.

A casa da Nova Israel de Deus ainda se parece como ossos secos. Existe muito pouca verdadeira vida em todos nós. A caminhada histórica do homem é ainda trágica e insegura. Todos nós, em tempos recentes, fomos conduzidos de volta ao vale da morte. Todos os que já percorreram as ruínas de cidades antes florescentes entendem o terrível poder da morte e da destruição. O homem continua a espalhar a morte e a desolação. E podemos esperar por coisa piores ainda. Pois a raiz da morte está no pecado. Não é de admirar que exista, em muitas e diferentes frentes, uma crescente compreensão da seriedade do pecado. As antigas palavras de Santo Agostinho encontram novos ecos na alma humana: “Nunca se pode saber até onde vai o peso do pecado”. Mas o poder da morte foi quebrado, ainda assim. Ainda assim, Cristo se levantou. “O Príncipe da Vida, que morrera, reina imortal”. O Espírito de Deus, o Consolador, o Doador da Vida, foi enviado à terra para selar a vitória de Cristo, e, desde o Pentecostes, reside na Igreja. O dom da vida, da verdadeira vida, foi dado ao homem, e vem sendo constantemente concedido, e abundantemente, e crescentemente. Ele vem sendo dado, mas nem sempre é recebido. Pois para ser tocada a pessoa deve superar os desejos da carne, “deixar de lado todos os cuidados mundanos”, o orgulho e o preconceito, o ódio e o egoísmo, a auto complacência, e até seu próprio “eu”. De outro modo esfria-se o Espírito. Deus está perpetuamente batendo à porta do coração do homem, mas somente o homem pode abri-la.

Deus nunca irrompe com violência. Ele respeita, nas palavras de Santo Irineu de Lyon, “a antiga lei da liberdade humana”, estabelecida por Ele próprio. Certamente, sem Ele, sem Cristo, o homem nada pode fazer. Mas existe uma coisa que somente o homem pode fazer: responder ao chamado divino e receber a Cristo. E é isso que a maioria deixa de fazer.

Vivemos numa era sinistra e tensa. O sentido de segurança histórica foi perdido anos atrás. Nossa civilização tradicional parece estar entrando em colapso e se fazendo em pedaços. O próprio senso de direção é confuso. Parece não haver saída para essa situação de impasse, a menos que advenha uma mudança radical. A menos que... Na linguagem cristã lemos: a menos que nos arrependamos, a menos que peçamos pelo dom do arrependimento. A Vida é dada abundantemente ao homem, e ainda assim estamos mortos. “Arrependam-se. Convertam-se e abandonem toda a injustiça, e a injustiça não provocará mais a ruína de vocês. Libertem-se de todas as injustiças cometidas e formem um coração novo e um espírito novo. Por que vocês haveriam de morrer, casa de Israel? Eu não sinto prazer com a morte de ninguém - oráculo do Senhor Javé. Convertam-se e terão a vida[14]”.

Existem dois caminhos. “Veja: hoje eu estou colocando diante de você a vida e a felicidade, a morte e a desgraça. Hoje eu tomo o céu e a terra como testemunhas contra vocês: eu lhe propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolha, portanto, a vida, para que você e seus descendentes possam viver[15]”.

Escolhamos a vida... Primeiramente, devemos dedicar toda nossa vida a Deus, e recebê-Lo ou aceitá-Lo como nosso único Senhor e Mestre, e isso não apenas em espírito ou como uma obediência formal, mas com espírito de amor. Amá-Lo significa servi-Lo, fazer nossos Seus propósitos, compartilhar com Ele Seus desígnios e objetivos. “Eu já não chamo vocês de servos, pois o servo não sabe o que seu senhor faz; eu chamo vocês de amigos, porque eu comuniquei a vocês tudo o que ouvi de meu Pai[16]”.

Nosso Senhor nos deixou Sua própria obra para ser cumprida e levada adiante. Precisamos entrar no verdadeiro espírito de Sua obra redentora. E nos foi dado poder para tal. Foi-nos dado poder para nos tornarmos filhos de Deus. Mesmo ao filho pródigo não foi permitido que perdesse seus privilégios de berço e que fosse contado entre os mercenários. Mais do que isso, somos membros de Cristo, na Igreja, que é Seu Corpo. Sua vida habita em nós pelo Espírito Santo.

Assim, em segundo lugar, devemos nos manter unidos e buscar por toda nossa vida essa unidade que estava na mente de nosso bendito Senhor em Seu último dia, antes da Paixão e da Cruz: que todos sejamos um – um, em fé e amor – Nele.

O mundo continua completamente dividido. Existe muita discórdia e divisão, mesmo entre aqueles que dizem estar em Cristo. A paz entre as nações e, acima de tudo, a unidade entre os cristãos – tais devem ser a obrigação comum a nos unir, a tarefa mais urgente do dia. E certamente o destino último do homem não será decidido nos campos de batalha, nem pelas deliberações de homens habilidosos. O destino do homem será decidido nos corações dos homens. Estarão eles fechados mesmo às batidas do Pai Celestial? Ou conseguirá o homem destrancar as portas em resposta ao chamado do Amor Divino?

Mesmo nesses dias sombrios existem sinais de esperança. Não existem apenas “trevas ao meio dia”, mas também se veem luzes na noite. Existe uma crescente busca pela unidade. Mas a verdadeira unidade só pode estar fundamentada na Verdade, na plenitude da Verdade. “Que cessem os cismas na Igreja. Que se extinga o ódio entre as nações. Que sejam rapidamente destruídas, pelo poder do Espírito Santo, as heresias emergentes[17]”. A Vida é dada em abundância.

É preciso estar atentos, para não perder o dia da visitação, como o antigo Israel perdeu o seu. “Quantas vezes eu quis reunir seus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, mas você não quis![18]”. Escolhamos a vida, no conhecimento do Pai e de Seu Filho único, nosso Senhor, com o poder do Espírito Santo. Então a glória da Cruz e da Ressurreição se revelará em nossas vidas. E a gloriosa profecia de antanho mais uma vez se realizará. “Contemplem, Meu povo, eu abrirei seus sepulcros, e os farei levantar de seus túmulos, e os trarei para a terra de Israel. Então vocês saberão que Eu, o Senhor, disse isso e o realizei, palavra do Senhor[19]”.



[1] II Samuel 14:14.
[2] Romanos 6: 23.
[3] João Damasceno, Ofício Fúnebre.
[4] Salmo 6: 5.
[5] Salmo 88: 10-12.
[6] Idem, 5.
[7] Salmo 33: 9.
[8] Salmo 104: 30.
[9] Mateus 1: 21.
[10] Atos 2: 23-24.
[11] I Coríntios 15: 20, 23.
[12] Romanos 5: 21.
[13] Canon, Ode 8, Irmos.
[14] Ezequiel 18: 30-32.
[15] Deuteronômio 30: 15, 19.
[16] João 15: 15.
[17] Liturgia de São Basílio.
[18] Mateus 23: 37.
[19] Ezequiel 37: 12, 14.

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