“Vê! Eu te gravei nas
palmas de minhas mãos, e tuas muralhas estão sempre diante de mim” (Isaías 49:
16).
O mundo foi criado. Isso significa: o mundo veio do nada. Isso implica
que não havia mundo antes que esse eclodisse e adquirisse existência. Ele
eclodiu e tornou-se existente juntamente com o tempo. Porque, enquanto não
havia mundo, tampouco havia tempo. Porque “o tempo é contado a partir da
criação dos céus e da terra”, conforme disse São Máximo o Confessor[1].
Somente o mundo existe no tempo – na mudança, na sucessão, na duração. Sem o
mundo, não existe tempo. E a gênese do mundo é o começo do tempo. Esse começo,
conforme explica São Basílio o Grande, ainda não é o tempo, nem mesmo uma
fração do tempo, assim como o começo de uma estrada não é ainda a própria
estrada. Esse começo é simples e não-composto. Não existia o tempo; e
subitamente, de repente, ele começou. A criação brotou, veio à existência,
passou do não-ser ao ser. Ela começou a ser, a existir. Como disse São Gregório
de Nissa: “A simples subsistência da criação permitiu que se iniciasse sua
transformação (...) a simples transição do não-ser à existência constituiu uma
mudança, tendo sido a não-existência transformada pelo poder Divino em
existência”. Essa gênese primordial e o começo da mudança e da duração, essa
“transição” do vazio para a existência, é inacessível ao pensamento humano. Mas
ela se torna compreensível e imaginável a partir de seu oposto. Nós sempre
calculamos o tempo na ordem inversa, do passado para o presente, recuando até
os confins dos tempos, andando para trás na sequência temporal; e apenas
secundariamente pensamos o tempo em termos de uma contagem consecutiva.
Caminhando em direção ao passado, paramos em uma determinada data, que é
calculada e calculável a partir do interior de uma série, com uma clara
consciência de que é preciso se deter ali. A simples noção do começo do tempo
implica essa necessidade de detenção, implica a impossibilidade simples de uma
regressão infinita ao passado. Não faz diferença onde podemos ou não podemos
computar esse limite retroativo em termos de séculos ou de dias. A proibição em
si permanece com toda sua força. Uma primeira unidade é absolutamente postulada
na série temporal, antes da qual não existem outros segmentos encadeados,
nenhum momento do tempo, porque não existem mais mudanças, nem sequências de
qualquer tipo. Não é o tempo que precede o tempo, mas a “altura da eternidade
sempre presente”, que transcende a duração – celsitudo semper praesentis aeternitatis, como dizia Santo
Agostinho. O tempo teve início. Mas haverá um tempo “quando não mais existir o
tempo[2]”.
A mudança há de cessar. E, de acordo com São João Damasceno, “o tempo, depois
da ressurreição, já não será contado em dias e noites; na verdade, haverá um
único dia sem entardecer”. A sequência temporal será rompida; haverá nela uma
última unidade. Mas esse fim, e essa cessação da mudança não indicam a abolição
daquilo que começou com o tempo, ou do que foi e que existiu no tempo; ela não
sugere um retorno ou uma recaída no nada. Não haverá mais tempo, mas a criação
estará preservada. O mundo criado pode existir, independentemente do tempo. A criação
teve um início, mas não irá cessar. O tempo consiste numa espécie de segmento
linear, com um começo e um fim. Por isso ele só é incomensurável com a
eternidade, porque o tempo tem um início, mas na eternidade não existe nem
mudança, nem início. A totalidade da temporalidade não coincide com a
eternidade. A “plenitude dos tempos” – omne
tempus – não significa necessariamente “sempre” – semper – como apontou Agostinho. O infinito, o infindável, não
necessariamente implica o sem-começo. A criação pode ser comparada com um
“feixe de raios” matemático, partes iguais de linhas retas estendendo-se de seu
ponto de origem até o infinito. Uma vez extraído do nada e o não-ser, o mundo
teve no fiat criativo um fundamento
imutável e final e um suporte para sua existência. “A palavra criadora é como
uma ponte inquebrantável sobre a qual foram colocadas as criaturas, e assim
elas permanecem sob o abismo da Infinitude Divina e sobre o abismo de sua
própria nulidade”, disse o Metropolita Filarete. “A palavra de Deus não deve
ser imaginada como a palavra falada do homem, a qual, uma vez pronunciada,
cessa imediatamente e desvanece no ar. Em Deus não existe cessação, nada
desvanece. Sua palavra procede, mas não retrocede: “A palavra de Deus dura para
sempre’[3]”.
Deus “criou todas as coisas para que elas tivessem existência[4]”.
E não para a existência no tempo, mas para sempre Ele as criou: Ele trouxe a
criação para a existência com Sua palavra criadora, “pois Ele estabeleceu o
mundo, e esse jamais passará[5]”.
O mundo existe. Mas ele começou
a existir. E isso significa que o
mundo poderia não existir. Não há absolutamente necessidade alguma da
existência do mundo. A existência criada não é autossuficiente, nem independente.
Para o mundo criado em si não existe fundamento, nenhuma base para uma gênese e
uma existência. A criação, por sua simples existência, atesta e proclama sua
“criaturidade”, ela proclama ter sido produzida. Para usarmos as palavras de
Agostinho, “ela clama ter sido criada – ela grita ‘eu não criei a mim própria:
eu existo porque fui criada; e eu não existia e vim a existir, e eu não poderia
ter saído de mim mesma’”. Por sua mera existência a criação aponta para além de
seus próprios limites. A causa e o fundamento do mundo estão fora do mundo. A
existência do mundo só é possível através da supramundana vontade e pala
misericórdia do Deus Onipotente, “Aquele que chamou à existência as coisas que
não existiam[6]”. Mas,
inesperadamente, é precisamente em sua “criaturidade” e em sua condição criada
que se enraíza a estabilidade e a substancialidade do mundo. Isso é porque a
origem a partir do nada determina a alteridade, a “não-consubstancialidade”
entre o mundo e Deus. É insuficiente e inexato dizer que as coisas foram
criadas e dispostas fora de Deus. O “fora” em si mesmo só se coloca na
criação, e a criação “a partir do nada” (ex
nihilo) constitui precisamente essa posição “exterior”, a posição de algo
“outro” lado a lado com Deus. Claro, não no sentido de alguma espécie de
limitação da Divina plenitude, mas no sentido de que, lado a lado com Deus
brota um “outro”, uma substância ou natureza heterogênea, algo diferente Dele,
e, num certo sentido, um objeto autônomo e independente. Aquilo que não existia
brota e passa a existir. Na criação, algo absolutamente
novo, uma realidade extra-divina é disposta e se desenvolve. É precisamente
nisso que consiste o supremamente grande e incompreensível milagre da criação –
que um “outro” brote, que uma gota heterogênea de criação exista lado a lado
com o “ilimitado e infinito Oceano do ser”, como São Gregório de Nazianze fala
de Deus. Existe uma distância infinita entre Deus e a criação, e é uma distância de naturezas. Tudo está
distante de Deus, afastado Dele não pelo lugar, mas pela natureza – outopw, alla fusei, como explica São João
Damasceno. E essa distância não pode jamais ser removida, mas ela pode ser
ultrapassada apenas e tão somente pelo incomensurável amor Divino. Como diz
Santo Agostinho, na criação “não existe nada relacionado com a Trindade, exceto
o fato de que a Trindade a criou”. Mesmo na mais exaltada altura da mais
elevada e íntima oração haverá sempre um limite inultrapassável, sempre será
perceptível a dualidade viva entre Deus e a criação. “Ele é Deus, e ela é
não-Deus”, diz Macário o Grande a respeito da alma. “Ele é o Senhor, ela a
serva; Ele é o Criador, ela a criação; Ele é o Arquiteto, ela a obra; e não
existe nada em comum entre Ele e sua natureza”. Qualquer transubstanciação da
natureza criada para a Divina é tão impossível quanto a transformação de Deus
em criação, e qualquer “coalescência” e “fusão” das naturezas está excluída.
Apenas e unicamente na hipóstase de Cristo – o Deus-Homem – apesar da
completude da mútua interpenetração (pericwresis eis allhlas)
das duas naturezas, ambas permanecem com sua diferença imutável e inalterada:
“sem que a distinção entre as naturezas tenhas sido retirada por essa união,
mas, ao contrário, as propriedades específicas de cada natureza foram preservadas”,
conforme os anais do Concílio de Calcedônia[7].
Os Padres da Calcedônia substituíram o vago “de duas naturezas” pelo forte e
claro “em duas naturezas”, e, por meio da confissão dessa consubstancialidade
dupla e bilateral do Deus-Homem, eles estabeleceram um firme e indiscutível
critério ou regra de fé. A real existência de uma natureza humana criada, vale
dizer, de uma natureza outra fora de Deus e lado a lado com Ele, é um
pré-requisito indispensável para a realização da Encarnação sem mudança alguma
ou transmutação da natureza Divina.
O que foi criado é exterior a Deus, mas está unido a Ele. Os Padres do
século IV, movidos pela controvérsia Arianista a definir o conceito de criação
de modo claro e preciso, insistiram acima de tudo na heterogeneidade entre
criado e Criador em contraste com a “consubstancialidade” da geração; e eles
corrigiram essa heterogeneidade mediante a dependência da criação em relação ao
desejo e à vontade. Todo o criado, escreveu São Atanásio o Grande, “não é em resumo
como seu Criador em substância, mas é exterior a Ele”. A criação “chegou à
existência, produzida desde fora”. E não existe similaridade entre aquilo que
irrompe do nada e o Criador, que verdadeiramente é, Aquele que extrai as criaturas do nada. O desejo e a
vontade precedem a criação. A criação é um ato da vontade (ek qoulhmatos), e assim ela se distingue
nitidamente da geração Divina, que é um ato da natureza (genna kata jusin). Uma interpretação similar
nos foi dada por São Cirilo de Alexandria. A geração está fora da substância (kata jusin). A criação é um ato que não é
feito a partir da própria substância do Criador; e assim a criação é
heterogênea em relação ao seu Criador. Resumindo a interpretação patrística,
São João Damasceno apresenta a seguinte definição: “Gerar implica produzir, a
partir da substância daquele que gera, uma geração cuja substância é similar à
sua. A criação, ou produção, por outro lado, consiste em trazer para a
existência, desde fora e não a partir da substância do criador, um agente de
algo, inteiramente dissimilar [por natureza]”. A geração se realiza por “um
poder natural de gerar” (ths gonimothtos
jisikhs), e a criação consiste num ato de vontade e desejo (Qelhsews
ergon). A “criaturidade” determina a completa dissimilaridade entre a
criação e Deus, sua alteridade, e com mais razão sua independência e
substancialidade. Todo o capítulo de São João é, na realidade, uma réplica
elaborada dos argumentos de Orígenes.
A criação não é um fenômeno, mas uma “substância”. A realidade e a
substancialidade da natureza criada se manifestam, antes de tudo, na liberdade
do ser criado. A liberdade não se esgota na possibilidade de escolha, mas
pressupõe essa possibilidade e começa com ela. E a liberdade do ser criado se
abre, em primeiro lugar, na igual possibilidade de dois caminhos: para Deus e
para longe de Deus. Essa dualidade de caminhos não constitui uma possibilidade
meramente formal ou lógica, mas uma possibilidade real, dependendo da presença
efetiva de potencialidades e capacidades, não apenas para uma escolha entre os
dois caminhos, como para seguir um ou outro. A liberdade consiste não só na
possibilidade, mas também na necessidade de uma escolha autônoma, na resolução,
ou não, da escolha. Sem essa autonomia, nada acontece na criação. Como disse
São Gregório o Teólogo, “Deus legisla a autodeterminação humana (...) Ele
honrou o homem com a liberdade de modo a que o bom pertença àquele que o
escolher, tanto quanto Àquele que plantou sua semente”. A criação deve ascender
e se unir a Deus por meio de seus próprios esforços e aquisições. E, se o caminho
de união requer e pressupõe um movimento prévio de receptividade da
Misericórdia Divina, a “antiga lei da liberdade humana”, como disse uma vez
Santo Irineu, não é abalada por isso. O caminho da desunião, da destruição e da
morte, não está fechado para as criaturas. Não existe uma graça irresistível,
as criaturas sempre podem se perder, todas são capazes, se pudessem, de um
“suicídio metafísico”. Em sua vocação última e primordial, a criação está
destinada à união com Deus, para a comunhão e a participação em Sua vida. Mas
isso não é uma necessidade obrigatória para a natureza criada. É claro que,
fora de Deus, não existe vida para a criação. Mas como disse Agostinho com
grande acerto, “existência e vida não
coincidem” na criação. Por isso, a
existência na morte é possível. Naturalmente, a criação só pode realizar-se
e estabelecer-se superando seu auto-isolamento – ou seja, somente em Deus. Mas
mesmo sem realizar sua verdadeira vocação, e mesmo opondo-se a ela – portanto,
se desfazendo e se perdendo – a criação nem por isso deixa de existir. A
possibilidade de um suicídio metafísico está aberta para ela. Mas não lhe é
dado o poder para aniquilar a si mesma. A criação é indestrutível – e não
apenas essa criação que está enraizada em Deus como numa fonte de existência
verdadeira e vida eterna, como também essa criação que se colocou contra Deus. “Porque
a aparência desse mundo é passageira[8]”,
e deverá passar. Mas o mundo em si não passará. Porque ele foi criado “para que
possa existir”. Suas qualidades e propriedades mudam e se transformam, e devem
mudar; mas seus “elementos” são imutáveis. E imutável, acima de tudo, está o
homem microcósmico, e imutável é a hipóstase do homem, selada que foi e trazida
do nada pela vontade criadora de Deus. De fato, o caminho da rebelião e da
apostasia é o caminho da destruição e da perdição. Mas ele não conduz ao
não-ser, mas à morte; e a morte não é o fim da existência, mas a separação – a separação entre o corpo e
a alma, a separação da criação em relação a Deus. Com efeito, o mal “não é uma
entidade”. O mal não possui “substância” – ele é anousion,
de acordo com São João Damasceno. O mal possui um caráter negativo de privação,
ele consiste na negação e na privação da verdadeira existência. Ao mesmo tempo,
São Gregório de Nissa diz que “é não sendo que ele existe[9]”.
A raiz e o caráter do mal é a ilusão e o terror. O mal, na frase incisiva do
teólogo Alemão Franz Staudenmaier, é uma “mentira mitopoeica[10]”.
É uma espécie de ficção, mas uma ficção carregada de uma energia e um poder
enigmáticos. O mal está ativo no mundo, e nele ele é real. O mal introduz novas
qualidades no mundo, como se adicionasse algo à realidade criada por Deus, algo
não desejado e não criado por Deus, embora tolerado por Ele. E essa inovação,
“não existente” em certo sentido, é, numa aparência enigmática, real e
poderosa. “Pois Deus não criou a morte[11]”,
e, não obstante, toda a criação se tornou objeto da futilidade, e da escravidão
da corrupção[12].
Pelo pecado a morte atingiu todos os homens[13],
e o pecado, sendo ele próprio uma inovação fictícia no mundo, o germe do desejo
de prazer e dos artifícios humanos, criou a morte e como que estabeleceu uma
nova lei para a existência da criação, uma espécie de anti-lei. E, num certo
sentido, o mal não pode ser erradicado. Pois, devido ao fato de que a perdição
final nos tormentos eternos provocados pelo mal na “ressurreição pelo
julgamento” não implica a total aniquilação, nem a supressão dos seres
malignos, é impossível atribuir ao mal esse poder anti-criativo que pudesse
superar o poder criativo de Deus. Em sua devastação da existência, o mal não é
capaz de varrer a própria existência. E essa existência, ainda que devastada,
distorcida, corrompida e falsa, será misteriosamente recebida na eternidade,
mesmo que seja nos tormentos do fogo inextinguível. A eternidade de tormentos
que cairá sobre os filhos da perdição denuncia com especial urgência e agudeza
a realidade da criação como uma realidade segunda e extra-divina. Ela é causada
por uma persistente, embora livre, rebelião, por uma autoafirmação no mal.
Sendo assim, tanto na sua constituição como na sua dissolução, tanto na
santidade como na perdição, na obediência como na desobediência, a criação
manifesta e dá testemunho de sua própria realidade como um sujeito livre de
decretos divinos.
A ideia de criação é estranha à consciência “natural”. O Helenismo
clássico a desconhece. A filosofia moderna a esqueceu. Apresentada na Bíblia,
ela se abre e se manifesta na experiência viva da Igreja. Na ideia de criação
estão justapostos o tema da imutável e intransitória realidade do mundo enquanto
sujeito livre e ativo (mais precisamente, enquanto uma totalidade de sujeitos
interagentes), e o tema de sua total não-autossuficiência, de sua dependência
última em relação ao Outro, seu princípio mais elevado. E assim, quaisquer
suposições a respeito de que o mundo não possua começo, a necessidade de sua
existência, e qualquer admissão sobre sua eliminação, estão excluídas. A
criação não é nem um ser auto-existente, nem um devir transitório; nem uma
“substância” eterna, nem uma “aparência” ilusória. Na “criaturidade” revela-se
uma grande maravilha. O mundo poderia
simplesmente não ter existido. E aquilo que poderia não ter existido, por
não possuir causas ou bases inevitáveis, na verdade existe. Isso constitui um
enigma, uma “loucura” para o pensamento “natural”. E daí provém a tentação de
atenuar e amortecer a ideia de criação e substituí-la por outras noções.
Somente por meio de uma aproximação contrária, o mistério da criação pode ser
esclarecido, pela exclusão e a suspensão de toda especulação e conjectura
evasivas.
***
Deus cria em perfeita liberdade.
Essa proposição foi formulada com notável precisão pelo “Doutor Sutil” do
medievo Ocidental, Duns Scotus: Procedit
autem rerum creatio a Deo, non aliqua necessitate, vel essentiae, vel
scientiae, vel voluntatis, sede ex mera libertate, quae non movetur et multo
minus necessitatur ab aliquo extra se ad causandum. “A criação das coisas é
excutada por Deus, não pode necessidade, nem por essência, conhecimento ou
vontade, mas por pura liberdade, que não é movida – e muito menos obrigada –
por nada exterior que possa ser sua causa”. Ainda assim, para definir a
liberdade de Deus em relação à criação, não é bastante eliminar as grosseiras
concepções de compulsão, de necessidade externa. É obvio que não se pode falar
de nenhum tipo de compulsão externa, porque a própria “exterioridade” só pode
ser colocada em relação à criação. Ao criar, Deus só é determinado por Si
mesmo. Mas não é tão fácil assim demonstrar a ausência de qualquer
“necessidade” interna nessa autodeterminação,
na revelação de Deus ad extra. Aqui o
raciocínio é perturbado por tentações sedutoras. A questão pode ser colocada da
seguinte maneira: deve o atributo de Criador e Sustento ser considerado como
pertencendo às propriedades essenciais e formadoras do Ser Divino? A ideia de
uma imutabilidade Divina pode evitar que apresentemos a isso uma resposta
negativa. Foi exatamente isso que Orígenes pensou em sua época: “É tão ímpio
quanto absurdo dizer que a natureza de Deus consiste em apenas existir e jamais
se mover, quanto supor que houve um tempo em que a Bondade não foi boa, em que
a Onipotência não exerceu seu poder”. A partir da perfeita extratemporalidade e
da imutabilidade do Ser Divino, Orígenes, nas palavras do teólogo russo Vasilii
Bolotov, Orígenes desenha a conclusão de que “todas as Suas propriedades e
predicados sempre pertenceram a Deus in
strictu sensu – in actu, in status
quo”. Esse “sempre”, para Orígenes, tem o significado de “eternidade
extratemporal”, e não apenas de “totalidade da temporalidade”. “Assim como
ninguém pode ser pai sem que tenha um filho, nem senhor se não possuir servo”,
raciocina Orígenes, “da mesma forma não podemos chamar o Deus Onipotente de Pantocrator se não houver criaturas
sobre as quais exerça ele Seu poder. Pois se alguém puder sustentar que tenham
existido idades, ou períodos de tempo, nos quais a Onipotência Divina – ou como
quer que se chame – não tenha existido, por não ter existido a criação, ficaria
provado fora de dúvidas que nessas idades ou períodos Deus não era Onipotente,
mas que Ele se tornou Pantocrator
depois, que ele só se tornou Onipotente a partir do momento em que passaram a
existir criaturas sobre as quais ele pudesse exercer Seu poder. Assim Deus
teria experimentado uma espécie de progresso, pois não há dúvida de que para
Ele é melhor ser Onipotente do que não o ser. Agora, como não considerar
absurdo que Deus não possuísse de início algo que Lhe é próprio, e que só
depois passasse a tê-lo? Mas, se não houve um tempo em que Deus não tenha sido
Onipotente, devem sempre ter existido as coisas em virtude das quais Ele é
Onipotente; e devem ter sempre existido coisas sob seu comando, sobre as quais
Ele era o Ordenador”. Tendo em vista a perfeita imutabilidade Divina, “é
preciso que as criaturas de Deus tenham sido criadas desde o começo, e que não
tenha havido tempo em que elas não existiam”. Como é inadmissível pensar assim,
Deus “teria passado da inação à ação”. Assim sendo, é preciso reconhecer que
“em Deus todas as coisas são sem começo e co-eternas a Ele”.
Não é fácil escapar da rede dialética de Orígenes. Nessa problemática
reside uma dificuldade incontestável. “Quando eu penso que Deus é Senhor desde
a eternidade”, exclama Agostinho, “eu temo nada poder afirmar”. Orígenes
complicou essa questão por causa de sua inabilidade em se colocar completamente
fora do tempo enquanto mudança. Juntamente com a sempiterna e imóvel eternidade
do Ser Divino, ele imaginou um fluxo interminável de eras que tinham que ser
preenchidas. Ademais, nenhuma sequência de predicados Divinos lhe apareceu sob
a forma de real mudança temporal; e assim, tendo excluído a mudança, ele se viu
inclinado a negar toda e qualquer sequência, toda e qualquer interdependência
entre os predicados vistos como um todo; ele afirmou mais do que a mera
co-eternidade do mundo para com Deus; ele afirmou a necessidade de uma
auto-abertura Divina ad extra, a
necessidade da revelação e de um derramamento de bondade Divina sobre o “outro”
por toda a eternidade, a necessidade de uma realização eterna da plenitude e de
todas as potencialidades do Divino poder. Orígenes se viu obrigado a admitir a
necessidade de um concomitante “não Eu” sempre existente e sem começo como
pré-requisito correspondente de uma completude e de uma vida Divina correlativas.
E esse é o nó final da questão. É
perfeitamente possível que o mundo nunca existisse de modo algum – possível
no sentido pleno da palavra, na certeza de que Deus poderia não tê-lo criado. Se, por outro lado, Deus criou sem
necessidade, por causa da completude de Seu Ser, então o mundo tinha que
existir; e assim não era possível que o mundo não existisse. Mesmo se
rejeitarmos a noção Origenista da Infinitude do tempo passado e reconhecermos o
começo do tempo, a questão permanece: não teria, no mínimo, a ideia do mundo se
originado da absoluta necessidade do Ser Divino?
Podemos assumir que o mundo real veio a existir com o tempo, e que
“houve um tempo quando ele não existia”, quando não havia mudança temporal. Mas
a imagem do mundo, não permaneceria ela eterna e perenemente no conhecimento e
na vontade Divina, participando imutável e inelutavelmente da plenitude do
autoconhecimento e da autodeterminação Divina?
A esse respeito, São Metódio de Olímpia apontou contra Orígenes, estabelecendo
que a Perfeição Divina não poderia depender de nada exceto o próprio Deus,
exceto sua própria natureza. Com efeito, Deus criou apenas a partir de Sua
bondade, e nessa bondade Divina reside a única base de Sua revelação ao
“outro”, a única base para que a simples existência do “outro” constitua o
receptáculo e o objeto de Sua bondade. Mas, devemos não pensar que essa
revelação seja eterna? E, se devemos – uma vez que Deus vive na eternidade e na
imutável completude – não significaria isso que, em última análise, a “imagem
do mundo” estava presente, e concomitantemente presente, imutavelmente com Deus
na eternidade, e, mais ainda, na inalterável completude de todos os seus
predicados particulares? Não existirá uma “necessidade do conhecimento ou da
vontade”? Não significa isso que Deus, em Sua eterna autocontemplação contempla
necessariamente também aquilo que Ele não
é, aquilo que não é Ele, mas outro? Não equivaleria isso a limitar Deus em
Sua sempiterna autoconsciência pela imagem de Seu “não Eu”, ao menos como uma
espécie de possibilidade? E, em Sua autoconsciência, não seria Ele forçado a
pensar e a contemplar a Si mesmo como um princípio criador e como fonte do
mundo, e o mundo como um sujeito e como um participante de Seu bel prazer? E,
por outro lado, sobre todo o mundo está gravado o selo Divino, um selo de
permanência, um reflexo da glória Divina. A Divina economia do mundo, a
inalterável e imutável Providência de Deus, transmite – a nosso ver – perfeita
estabilidade e sábia harmonia, e também uma espécie de necessidade. Essa visão
atrapalha nosso entendimento e a compreensão da alegação de que o mundo poderia
não ter existido. Parece que somos incapazes de conceber o mundo como
não-existente sem introduzir uma espécie de ímpia casualidade e arbitrariedade
em sua existência e sua gênese, ambas contraditórias e derrogatórias em relação
à Sabedoria Divina. Não é óbvio que deve haver algum tipo de causa suficiente
para o mundo, cur sit potius quam non sit?
E que essa causa deve consistir na inalterável e sempiterna vontade e no
comando de Deus? Não se segue daí que, sendo o mundo impossível sem Deus,
também Deus será impossível sem o mundo? Dessa maneira, a dificuldade é
protelada, mas não resolvida, se nos limitarmos ao começo cronológico da real
existência do mundo, desde, no caso, a possibilidade do mundo, a ideia do
mundo. O desígnio e o desejo de Deus em relação a ele permanecem eternos e,
enquanto ideia, perenemente unidos com Deus.
E devemos dizer desde logo que qualquer admissão como essa introduz o
mundo na vida intra-Trinitária da Divindade, na qualidade de princípio
co-determinante. Mas devemos rejeitar de modo firme e intransigente esse tipo
de noção. A ideia do mundo, o desígnio e o desejo de Deus concernentes ao
mundo, é obviamente uma coisa eterna, mas em certo sentido não co-eterna, e não
perenemente inseparável Dele, porque é “distinta e separada”, por assim dizer,
de Sua “essência” por Sua volição. Antes é preferível dizer que a ideia Divina
do mundo é eterna, mas de outro tipo
de eternidade do que a Divina essência. Embora paradoxal, essa distinção de
tipos e modos da eternidade é necessária para a expressão da incontestável
distinção entre a essência (natureza) de Deus e a vontade de Deus. Essa distinção não
introduzirá nenhuma espécie de separação ou divisão no Ser Divino, mas, por
analogia, expressará a distinção entre vontade e natureza, essa distinção
fundamental que foi tornada incrivelmente explícita pelos Padres do século IV.
A ideia de mundo tem sua base, não na
essência, mas na vontade de Deus. Deus não propriamente teve, como
“arquitetou” a ideia da criação. E Ele arquitetou em perfeita liberdade; e foi
apenas em virtude dessa “arquitetura” e pelo Seu bel prazer que Ele como que
“se tornou” Criador, ainda que desde sempre. E, não obstante, Ele poderia não
ter criado. Mas nenhuma “desistência” da criação poderia, de modo algum,
alterar ou empobrecer a natureza Divina, nem implicar diminuição, assim como a
simples criação do mundo também não enriqueceu o Ser Divino. Assim é que, por
meio de oposições, chegamos mais perto de entender a liberdade criadora de
Deus. Num certo sentido, seria “indiferente” para Deus que o mundo existisse ou
não – é nisso que consiste a absoluta e total “suficiência” de Deus, a Divina
autarquia. A ausência do mundo significaria uma espécie de subtração daquilo
que é finito do Infinito, que não afetaria a plenitude Divina. E, inversamente,
a criação do mundo não representaria uma adição do finito ao Infinito, que
tampouco afetaria a plenitude Divina. O poder de Deus e a liberdade de Deus
devem ser definidos não apenas como poder de criar e produzir, mas também como
a absoluta liberdade para não criar.
Todas essas palavras e pressuposições, obviamente, são insuficientes e
inexatas. Todas têm o caráter de negações e de proibições, e não de definições
diretas e positivas; mas elas são necessárias para testemunhar essa experiência
de fé na qual se revela o mistério da liberdade Divina. Com inexatidão
tolerável, podemos dizer que Deus é capaz de tolerar e permitir a ausência de
qualquer coisa fora Dele próprio. Com tal suposição, a total
incomensurabilidade do amor Divino não é diminuída, mas, ao contrário, é posta
em relevo. Deus cria a partir da absoluta superabundância de Sua misericórdia e
bondade, e é nisso que se manifesta seu bel prazer e sua liberdade. E, nesse
sentido, podemos dizer que o mundo é uma espécie de supérfluo, ou de acréscimo.
Mais do que isso, trata-se de um
acréscimo que de modo algum enriquece a plenitude Divina; é como se fosse algo
“supererrogatório”, e acrescentado, algo que poderia não ter existido, e que só
existe por causa da soberania e perfeita liberdade, pelo indizível bel prazer e
amor de Deus. Isso significa que o mundo foi criado, e que ele é “a obra da
vontade” de Deus[14].
Nenhuma revelação exterior, seja qual for, pertence à “necessidade” da natureza
Divina, à estrutura necessária da vida intra-Divina. E a revelação criadora não
é algo imposto a Deus por Sua divindade. Ela se realiza em perfeita liberdade,
embora também eternamente. Por isso não se pode dizer que Deus começou a criar, ou “se tornou” Criador,
embora “ser Criador” não pertença a essas definições da natureza Divina que
inclui a Trindade das Hipóstases. Na perene imutabilidade do Ser de Deus não
existe qualquer tipo de origem, nem de devir, nem sequência de espécie alguma.
Não obstante, existe algo como uma ordem harmônica perfeitíssima que pode ser
conhecida e expressa parcialmente no nível dos nomes Divinos. Nesse sentido,
Santo Atanásio o Grande dizia que “criar, para Deus, é secundário; e gerar é primário”,
que “aquilo que pertence à natureza [essência] antecede aquilo que pertence à
volição”. Devemos admitir distinções dentro da simples co-eternidade e
imutabilidade do Ser Divino. Na vida Divina absolutamente simples existe uma
ordem[15]
absolutamente racional e lógica das Hipóstases, que é irreversível e imutável
pela simples razão de que existe um “primeiro princípio”, ou “fonte”, da
Divindade, e que existe uma enumeração de Primeira,
Segunda e Terceira Pessoa. E, do mesmo modo se pode dizer que a estrutura
Trinitária antecede à vontade e ao pensamento de Deus, porque a vontade Divina
constitui a vontade comum e indivisível da Santíssima Trindade, assim como ela
antecede todos os atos Divinos e as “energias”. Porém, mais do que isso, a
Trindade constitui a auto revelação interna da natureza Divina. As propriedades
de Deus são também revelações da mesma espécie, mas quanto a mostrá-las Deus é
livre. A vontade imutável de Deus postula livremente a criação – inclusive a
ideia de criação. Seria um erro tentador ver a “ideação” do mundo por Deus como
uma “criação ideal”, porque a ideia do mundo e o mundo das ideias estão
totalmente em Deus[16],
e em Deus não existe, nem pode existir, algo a ser criado. Mas essa noção
ambígua de uma “criação ideal” define com grande clareza a completa distinção
entre a necessidade do Ser Trinitário de um lado, e a liberdade do desígnio de
Deus– seu bel prazer relativo à criação – de outro. Aqui reside uma distinção
absoluta e irremovível, cuja negação conduz a imaginar toda a economia criada
como feita de atos essenciais e
condições que revelariam a natureza Divina como uma ideia de necessidade, e
isso conduziria a nivelar o mundo – pelo menos o “mundo inteligível[17]”
– a uma altura que não lhe cabe. Podemos, permitindo-nos certa audácia, dizer
que na ideia Divina da criação existe algo de contingente, e que, se ela fosse
eterna, não seria uma eternidade por
essência, mas uma eternidade livre.
Poderíamos explicar a liberdade do desígnio de Deus – Seu bel prazer – por nós
através da hipótese de que essa ideia não precisaria ser postulada de modo
algum. Certamente, trata-se de um casus
irrealis, mas não existe contradição inerente nisso. Certamente, uma vez
que Deus “arquitetou” ou postulou tal ideia, Ele tinha razões suficientes para
fazê-lo. Todavia, podemos pensar que Agostinho estava certo ao proibir qualquer
pesquisa a respeito da “causa da vontade de Deus”. Ela não é limitada por nada
nem preordenada pelo que quer que seja. A vontade Divina não pode ser
constrangida por nada para “arquitetar” o mundo. Desde a eternidade, a Mente
Divina, escreveu entusiasticamente São Gregório o Teólogo, “contemplou a luz
desejada de Sua própria beleza, o esplendor igual e igualmente perfeito da
Divindade triplamente radiante (...) a Mente criadora do mundo, em Seu vasto
pensamento, meditou sobre os padrões do mundo que Ela modelara, sobre o cosmo
que fôra produzido posteriormente, mas que sempre estivera presente para Deus. Tudo,
para Deus, está diante de Seus olhos, o que será, o que foi e o que é (...)
Pois para Deus tudo flui em um, e tudo é
sustentado pelos braços da grande Divindade!”.
A “luz desejada” da beleza Divina não poderia ser realçada por esses
“padrões do mundo”, e a Mente os “produziu” apenas a partir da superabundância
de seu amor. Eles não pertencem ao esplendor da Trindade; eles foram postulados
por Sua vontade e bel prazer. E esses simples “padrões do mundo” constituem em
si um acréscimo e um dom ou “bônus” acrescentado por Aquele que é Amor bendito
e abençoado. A infinita liberdade de
Deus se manifesta no bel prazer de Sua vontade em criar o mundo.
Assim é que Santo Atanásio diz: “O Pai criou a tudo, pelo Verbo e n o
Espírito” – a criação é um ato comum e indivisível da Santa Trindade. Deus cria
pelo pensamento, e o pensamento se torna ato, como diz São João Damasceno[18].
“Ele contemplou a tudo antes de sua existência, refletindo em Sua mente desde a
eternidade; a partir daí cada coisa recebeu sua existência num tempo
determinado de acordo com seu pensamento intemporal, que é predestinação,
imagem e forma[19]”.
Esses padrões e protótipos das coisas que existirão constituem o “conselho
imutável e pré-temporal” de Deus, no qual tudo tem seu caráter distintivo[20]
antes ainda de existir, tudo o que foi desde sempre preordenado por Deus e
então trazido à existência[21].
Esse “conselho” de Deus é eterno e imutável, pré-temporal e sem começo[22],
uma vez que todo Divino é imutável. E é nisso que consiste a imagem de Deus, a segunda forma dessa imagem, a imagem voltada
para a criação. São João Damasceno se refere ao Pseudo-Dionísio. Esses padrões
criadores, diz o Areopagita, “são fundamentos criadores preexistentes
conjuntamente em Deus, e juntos eles compõem os poderes que transformam os
seres em entidades, poderes que a teologia chama de ‘predestinações’, decisões
Divinas e beneficentes que são determinativas e criadoras de todas as coisas
existentes, de acordo com as quais Aquele que está acima de toda existência
preordenou e produziu todas as coisas[23]”.
DE acordo com São Máximo o Confessor esses tipos e ideias são os pensamentos
Divinos perfeitíssimos e perenes do Deus eterno[24].
Esse conselho eterno constitui o desígnio e a decisão de Deus referentes ao
mundo. Ele deve ser rigorosamente distinguido do mundo como tal. A ideia Divina
da criação não é a criação em si; ela não é a substância da criação; não é a
portadora do processo cósmico; e a transição do “desígnio” (ennoma) para o “feito” (ergon) não é um processo interno à ideia
Divina, mas a aparência, a formação e a realização de outro substrato, de uma
multiplicidade de objetos criados. A ideia Divina permanece imutável e
inalterável, ela não está envolvida no processo da formação. Ela permanece
sempre fora do mundo criado, transcendente em relação a ele. O mundo é criado de acordo com a ideia, em concordância
com o padrão – ele é a realização do padrão – mas esse padrão não é objeto de
transformação. O padrão é uma norma e um objetivo estabelecido em Deus. Essa
distinção e essa distância jamais são abolidas, e assim a eternidade do padrão,
que é fixa e jamais se envolve na mudança temporal, é compatível com o começo
do tempo, com o vir-a-ser dos portadores dos decretos externos. “As coisas,
antes de virem a ser, são como que não existentes”, dizia Agostinho – utiquae non erant. E ele explica: elas
tanto eram como não eram antes de serem originadas; “elas existiam no
conhecimento de Deus, mas não em sua própria natureza – erant in Dei scientia, non erant in sua natura. De acordo com São
Máximo, os seres criados “são imagens e similares às ideias Divinas”, das quais
são “participantes”. Na criação, o Criador realiza, “torna substancial” e
“revela” Seu conhecimento, perenemente preexistente em Si próprio. Na criação
uma nova realidade é projetada desde o nada e se torna portadora da ideia
Divina, e ela deve realizar essa ideia desde seu próprio começo. Nesse
contexto, a tendência panteísta da ideologia Platônica e da teoria Estoica das
“razões seminais[25]”
são ambas ultrapassadas e evitadas. Para o Platonismo é característica a
identificação da “essência” de cada coisa com sua ideia Divina, a adoção de
substância com as propriedades e predicados eternos, absolutos e sem começo,
bem como a introdução da “ideia” nas coisas reais. Ao contrário, o núcleo criado das coisas deve ser
rigorosamente distinguido da ideia Divina
sobre as coisas. Somente dessa maneira o mais sequaz realismo lógico pode se
libertar de um certo odor de panteísmo; a realidade do todo, entretanto,
permanecerá como não mais do que uma realidade criada. Junto com isso, o
“pan-logismo” é também ultrapassado: o pensamento de uma coisa e o Divino
pensamento-desígnio dessa coisa não são sua “essência” ou núcleo, ainda que e
própria essência seja caracterizada pelo Logos. O padrão Divino nas coisas não
é sua “substância”, ou sua “hipóstase”; ele não é o veículo de suas qualidades
e condições. Antes, ele pode ser chamado de verdade
da coisa, sua entelequia[26]
transcendental. Mas a verdade de uma
coisa e a substância de uma coisa não são idênticas.
***
A aceitação da absoluta criaturidade e da não autossuficiência do
mundo conduz a distinguir dois tipos de predicados e de atos em Deus. De fato,
nesse ponto alcançamos o limite de nosso entendimento, e todas as palavras de
tornam como se fossem mudas e inexatas, recebendo um sentido indicativo que é
apofático, proibitivo, nunca catafático. Entretanto, o exemplo dos santos
Padres enconraja uma confissão de fé especulativa. Como disse o Metropolita
Filarete, “jamais devemos considerar a sabedoria, mesmo aquela que se oculta
num mistério, como alheia ou além de nós, mas, com humildade, devemos edificar
nossa mente em direção à contemplação das coisas divinas”. Apenas, em nossa
especulação devemos evitar ir além das fronteiras da revelação positiva, e
devemos nos limitar à interpretação da experiência da fé e da regra da fé,
assumindo não fazer mais do que discernir e esclarecer aquelas pressuposições
inerentes através das quais a confissão dos dogmas enquanto verdades
inteligíveis se torna possível. E devemos dizer que toda a estrutura da
doutrina da fé encoraja essas distinções. Em essência, elas já foram dadas nas
distinções primitivas e primárias entre “teologia” e “economia”. Desde o começo
da história Cristã, os Padres e Doutores da Igreja se esforçaram por distinguir
clara e agudamente entre as definições e nomes referentes a Deus no plano
“teológico”, daquelas utilizadas no plano “econômico”. Por trás disso está a
distinção entre “natureza” e “vontade”. E colado a isso está a distinção entre
“essência” (ousia) e “aquilo que
envolve a essência”, “aquilo que está relacionado com a natureza”. Uma
distinção, mas não uma separação.
“O que dizemos a respeito de Deus afirmativamente nos mostra”, explica
São João Damasceno, “não Sua natureza, mas apenas o que está relacionado à Sua
natureza[27]”,
“algo que acompanha sua natureza[28]”.
E “o que Ele é em sua essência e natureza, isso é inatingível e incognoscível”.
São João expressa aqui a premissa básica e constante da teologia Oriental: a
essência de Deus é inatingível; apenas as potências e operações de Deus são
acessíveis ao conhecimento. E, como permanecem questões, existem algumas
distinções a fazer entre elas. Existe uma distinção a ser feita, referente à
relação de Deus para com o mundo. Deus só pode ser conhecido e alcançado na
medida em que Ele se volta para o mundo, apenas em Sua revelação para o mundo,
apenas por intermédio de sua economia ou ordenação do mundo. A vida Divina
interna é cercada pela “luz intransponível”, e só pode ser conhecida no nível
da teologia “apofática”, com a exclusão de definições e nomes ambíguos e
inadequados. Na literatura do período pré-Nicênico, essa distinção nem sempre
possuía um caráter ambíguo e enevoado. Razões cosmológicas eram muitas vezes
utilizadas na definição das relações intra-Trinitárias, e a Segunda Hipóstase
era frequentemente definida a partir da perspectiva da manifestação ou
revelação de Deus ao mundo, como o Deus da revelação, como o Verbo Criador. Por
essa razão o incognoscível e o inacessível foram assinalados primariamente à
Hipóstase do Pai, enquanto Ser irrevelável e inefável. Deus revelou a Si mesmo
apenas no Logos, o “Verbo pronunciado[29]”,
como numa “ideia e poder ativo” emitido além de si para proceder à criação.
Conectada com isso está a tendência ao subordinacionismo na interpretação
teológica pré-Nicênica do dogma Trinitário. Apenas os Padres do quarto século
obtiveram com sua teologia Trinitária a base para uma adequada formulação da
relação entre Deus e o mundo: a “operação” (energeiai)
inteira e indivisa da Trindade consubstancial é revelada nos atos e feitos de
Deus. Mas a simples “essência” (ousia)
da Trindade indivisível permanece além do alcance do conhecimento e do
entendimento. Suas obras, explica São Basílio o Grande, revelam o poder e a sabedoria de Deus, mas não Sua essência em Si. “Nós
afirmamos”, escreve ele para Anfilóquio de Icônia, “que conhecemos nosso Deus
por Suas energias, mas não presumimos que seja possível nos aproximarmos de Sua
essência em Si. Porque, apesar de que Suas desçam até nós, Sua essência
permanece inacessível”. E essas energias são multiformes, ainda que a essência
seja simples. A essência de Deus é insondável para o homem, e só é conhecida do
Filho Unigênito e do Espírito Santo. Nas palavras de São Gregório o Teólogo, a essência
de Deus é “o Santo dos Santos, fechado inclusive aos Serafins, e glorificado
por eles ‘Santo’ que acompanham sua Majestade e sua Divindade”. E a mente
criada é capaz, ainda que imperfeitamente, de “esboçar” um pequeno “diagrama da
verdade” no infinito oceano da entidade Divina, mas não baseado naquilo que
Deus é, mas naquilo que o cerca (ek twn peri
auton). “A essência Divina, totalmente inacessível e incomparável”, diz
São Gregório de Nissa, “só pode ser conhecida por intermédio de Suas energias”.
E todas as nossas palavras referentes a Deus denotam, não Sua essência, mas
Suas energias. A essência Divina é inacessível, inominável e inefável. Os nomes
variados e relativos referentes a Deus não nomeiam Sua natureza ou essência,
mas os atributos de Deus. E mesmo os
atributos de Deus não são as marcas ou os sinais inteligíveis ou cognoscíveis que
constituem nossa noção humana de Deus; eles não são abstrações ou fórmulas
conceituais. Eles são energias, poderes,
ações. Eles são manifestações vivificadoras reais e essenciais da Vida
Divina – imagens reais da relação ou criação de Deus, conectadas com a imagem
da criação no conhecimento e no conselho eternos de Deus. E é isso “que pode
ser conhecido a respeito de Deus” – tognwston
tou Qeou[30].
É como se fosse o domínio particular do individido (ainda que possuindo muitos
nomes) Ser Divino, do “esplendor e da atividade Divina[31]”,
como disse São João Damasceno, seguindo o Areopagita. De acordo com a palavra
Apostólica, “as coisas invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, podem ser
vistas claramente, podem ser entendidas por meio das coisas que foram feitas,
inclusive Seu poder eterno e Sua Divindade[32]”.
E essa revelação ou manifestação de Deus, “Deus as manifestou (efanerwsen) ao homem”. O Bispo Silvestre
explica corretamente ao comentar essas palavras Apostólicas: “AS coisas
invisíveis de Deus, sendo realmente existentes e não meramente imaginárias, se
tornam visíveis, não numa espécie de maneira ilusória, mas certamente,
verdadeiramente; não como um mero fantasma, mas em Seu eterno poder; não
meramente nos pensamentos do homem, mas nos próprios fatos – a realidade de Sua
Divindade”. Elas são visíveis porque são manifestadas e reveladas. Pois Deus
está presente em toda parte, não fantasmagoricamente, não remotamente, mas
realmente presente em toda parte – “presente em toda parte e ocupando todo
lugar, Tesouro dos bens e Dispensador da vida”. Essa ubiquidade providencial
(diferente da presença carismática ou “particular” de Deus, que não está em toda parte) constitui uma “forma de existência” particular de Deus,
distinta da “forma de Sua existência de acordo com a Sua natureza”. Ademais,
essa forma é existencialmente real ou subsistente – trata-se de uma presença
real, não meramente uma onipresença operativa, sicut agens adest ei in quod agit[33].
E, se “não somos capazes de entender particularmente” – no dizer de São João
Crisóstomo – essa onipresença misteriosa, e essa forma ad extra do Ser Divino, não obstante é indiscutível que Deus “está
em toda parte, inteiro e completo”, “tudo em tudo”, como diz São João Damasceno[34].
Os atos vivificadores de Deus no mundo são
o próprio Deus – uma asserção que exclui a separação, sem abolir a
distinção. Na doutrina dos Padres da Capadócia referentes à “essência” e às
“energias” encontramos numa forma elaborada e sistemática o misterioso autor
das Areopagitas que determinou todo o
desenvolvimento subsequente da teologia Bizantina. Dionísio se baseia na
estrita distinção entre os “Nomes Divinos” que se referem à vida Trinitária e
intra-Divina, e aqueles que expressão a relação de Deus ad extra. Mas ambas as séries de nomes falam da imutável realidade
Divina. A vida intra-Divina está oculta a qualquer entendimento, e é conhecida
apenas por meio de negações e proibições; na frase de São Gregório o Teólogo,
“aquele que, ao ver a Deus, entende o que vê, não O viu realmente”. E, não
obstante Deus realmente se revela em atos e está presente na criação através de
Seus poderes e ideias – “em providências e graças que brotam do Deus
incomunicável, que respingam de uma correnteza, e da qual todas as coisas
participam”, “numa processão produzida pela essência[35]”,
“numa providência que produz coisas boas[36]”,
que são distintas, mas não separadas, da entidade Divina “que ultrapassa a
entidade”, do próprio Deus, como São Máximo diz em sua scholia. A base dessas “processões” e da, digamos, processão de
Deus em Suas providências a partir de Si[37]
está em Sua Divindade e Seu Amor. Essas energias não se misturam com as coisas
criadas, e não são elas próprias essas coisas, mas são seus princípios básicos
e vivificadores: são os protótipos, as predeterminações, as razões, os logoi e as decisões Divinas a respeito delas,
das quais elas participam e com as quais devem ser “comunicantes”. Elas não são
apenas o “princípio” e a “causa”, mas também o “desafio” e o objetivo em vista,
que está além e acima de todos os limites. Seria difícil expressar com mais
força, tanto a distinção quanto a indivisibilidade entre a Essência Divina e as
energias Divinas, como o fez o Areopagita – to
tauton kai to eteron. As energias Divinas são o aspecto de Deus que está
voltado para a criação. Não se trata de um aspecto imaginado por nós: não se
trata do que vemos e como o vemos, mas do olhar real e vivo do próprio Deus,
por meio do qual Ele deseja, vivifica e preserva todas as coisas – o olhar do
Onipotente e Superabundante Amor.
A doutrina das energias de Deus recebeu sua formulação final na
teologia Bizantina do século XIV, e acima de tudo com São Gregório Palamas. Ele
se baseou na distinção entre Graça e Essência: “o divino e deificante
esplendor, e a graça, não constituem a essência, mas a energia de Deus[38]”.
A noção da energia Divina recebeu uma definição explícita na série de Sínodos
que aconteceram no século XIV em Constantinopla. Existe uma distinção real, mas
não uma separação, entre a essência
ou a entidade de Deus e Suas energias. Essa distinção se manifesta
acima de tudo no fato de que a Entidade é absolutamente incomunicável e
inacessível às criaturas. As criaturas têm acesso e podem se comunicar apenas
com as Energias Divinas. Mas, por intermédio dessa participação, elas entram em
perfeita e genuína comunhão e união com Deus; elas recebem a “deificação”.
Sendo “a energia e o poder naturais e indivisíveis de Deus[39],
são o poder e a energia Divina comuns ao Deus Tri-Hipostático”. O poder Divino
ativo não se separa da Essência. Essa “processão” (proienai) expressa uma “distinção inefável” que de modo algum
perturba a unidade que “ultrapassa a essência”. O poder ativo de Deus não é a
mera “substância” de Deus, tampouco um “acidente” (sinqeqhkos); por ser imutável e co-eterno a Deus, ele existe
desde antes da criação e revela a vontade criadora de Deus. Em Deus não existe
apenas a essência, mas também aquilo que não é a essência, embora não seja um
acidente – o poder Divino e a vontade Divina – Sua providência e autoridade
real, existencial e produtora da essência. São Gregório Palamas enfatiza que
qualquer recusa em fazer uma distinção de fato entre a “essência” e a “energia”
apaga e confunde a fronteira entre geração e criação – tanto uma como outra
passam a parecer com atos da essência. E, como explicou São Marcos de Éfeso,
“Existência e energia, coincidem total e completamente em equivalente
necessidade. A distinção entre a essência e a vontade (Qelhsis) é abolida; sendo assim, Deus apenas gera, mas não cria,
e não exerce Sua vontade. Então a diferença entre presciência e fazer se torna
indefinida, e a criação parece ser criada co-eternamente”. A essência de Deus
consiste numa auto-existência inerente; e a energia consiste nas Suas relações
com o outro (pros eteron). Deus é Vida, e tem vida; é Sabedoria, e tem sabedoria; e assim por diante. A
primeira série dessas expressões se refere à essência incomunicável, a segunda
às energias distintas e inseparáveis da essência única, que desce à criação.
Nenhuma dessas energias é hipostática, nem constitui uma hipóstase em si, e sua
incalculável multiplicidade não introduz composição alguma no Ser Divino. A
totalidade das “energias” Divinas constitui Sua vontade pré-temporal, Seu
Desígnio – Seu bel prazer – referentes ao “outro”, Seu eterno conselho.
Trata-se de Deus em Si, não Sua Essência, mas Sua vontade. A distinção entre “essência” e “energias” – ou,
podemos dizer, entre “natureza” e “graça” (jusis
e caris) – corresponde à misteriosa
distinção em Deus entre “necessidade” e “liberdade”, entendidas em sentido
próprio. Em Sua misteriosa Essência, Deus é, podemos dizer, “necessitado” –
não, é óbvio, por qualquer necessidade ou constrangimento, mas por uma espécie
de necessidade de natureza, que está, nas palavras de Santo Atanásio o Grande,
“acima e anterior à livre escolha”. E ousamos dizer, se nos é permitido: Deus
não pode ser senão a Trindade das Pessoas. A Tríade de Hipóstases está acima da
Vontade Divina, ela é como se fosse “uma necessidade”, ou “lei” da natureza
Divina. Essa “necessidade” interna está expressa tanto na noção de
“consubstancialidade”, como na da perfeita indivisibilidade das Três Pessoas na
medida em que Elas coexistem e interpenetram umas às outras. No entender de São
Máximo o Confessor, seria impróprio e infrutífero introduzir a noção de vontade
na vida interna da Divindade com o objetivo de definir as relações entre as
Hipóstases, porque as Pessoas da Santíssima Trindade existem juntas acima de
qualquer espécie de relação ou de ação, e por Sua Existência determinam as
relações entre Si mesmas. A Vontade “natural”, comum e individida de Deus é
livre. Deus é livre em suas operações e em seus atos. E assim, para uma
confissão dogmática das relações recíprocas entre as Hipóstases Divinas, devem
ser encontradas expressões tais que excluam quaisquer motivos cosmológicos,
quaisquer relações com os seres criados e seus destinos, quaisquer relações com
a criação ou com a recriação. O patamar do ser Trinitário não está na economia
ou na revelação de Deus ad extra. O
mistério da vida intra-Divina deve ser concebido em total abstração da
dispensação; e as propriedades hipostáticas das Pessoas deve ser definida à
parte de todo relacionamento com a existência da criação, e apenas de acordo
com o relacionamento que subsiste entre Elas. A relação viva entre Deus –
precisamente enquanto Tríade – e a criação não é de modo algum obscurecida: a
distinção nas relações das diferentes Hipóstases perante a criação tampouco é
obscurecida. Ao contrário, uma perspectiva adequada se estabelece assim. Todo o
significado da definição dogmática da Divindade de Cristo, tal como
interpretada pela Igreja, reside na exclusão de todos os predicados relativos à
condescendência Divina que O caracteriza enquanto Criador e Redentor, como
Demiurgo e Salvador, de modo a entender Sua Divindade à luz da Divina Vida
interna, da Natureza e da Essência. O relacionamento criador do Verbo para com
o mundo é explicitamente confessado no Credo Nicênico – “por Quem todas as coisas foram feitas”. E “as coisas” foram feitas
não apenas porque o Verbo é Deus, mas também porque o Verbo é o Verbo de Deus, o Verbo Divino. Ninguém foi tão
enfático na separação entre o momento demiúrgico na ação de Cristo do dogma da
eterna geração do Verbo quanto Santo Atanásio o Grande. A geração do Verbo não
pressupõe a existência – sequer o desígnio – do mundo. Ainda que o mundo não
tivesse sido criado, o Verbo existiria na plenitude de Sua Divindade, porque o
Verbo é Filho por natureza (uios kata
fusin). “Se Deus quisesse não ter criado nenhuma criatura, não obstante
o Verbo estaria com Deus, e o Pai estaria Nele”, como dia Santo Atanásio; e
isso, porque as criaturas não podem receber sua existência senão por intermédio
do Verbo. As criaturas foram criadas pelo Verbo e por meio do Verbi, “à imagem”
do Verbo, “à imagem da imagem” do Pai, como expressou São Metódio de Olímpia. A
criação pressupõe a Trindade, e o selo da Trindade repousa sobre toda a
criação; mas nem por isso devemos introduzir motivos cosmológicos na definição
da Existência intra-Trinitária. Porém, podemos dizer que a plenitude natural da
essência Divina está contida na Trindade, e que assim o desígnio – Seu bel
prazer – referente ao mundo é um ato
criador, uma operação da vontade – uma abundância de amor Divino, um dom e
uma graça. A distinção entre os nomes de “Deus em Si”, em Sua existência
eterna, e os nomes que descrevem Deus na revelação, na “economia”, na ação, não
é apenas uma distinção subjetiva de nosso pensamento analítico; ela tem Um
objetivo e um significado ontológico, e expressa a absoluta liberdade da
criatividade e da operação Divinas. Isso inclui a “economia” da salvação. O
Conselho Divino referente à salvação e redenção constitui um decreto eterno e
pré-temporal, um “propósito eterno[40]”,
o “mistério de que, desde o princípio, o mundo estava oculto em Deus[41]”.
O Filho de Deus está desde sempre destinado à Encarnação e à Cruz, e assim Ele
é o Cordeiro “que estava destinado desde antes da fundação do mundo[42]”,
“o Cordeiro sacrificado desde a fundação do mundo[43]”.
Mas esse “propósito” (proqesis) não
pertence à necessidade “essencial” da natureza Divina; não se trata de uma
“obra da natureza, mas da imagem da condescendência econômica”, como diz São
João Damasceno. Trata-se de um ato do amor Divino – “porque Deus amou tanto o mundo...”. E assim os predicados que se
referem à economia da salvação não coincidem com os predicados pelos quais a
Existência Hipostática da Segunda Pessoa é definida. Na Divina revelação não
existe obrigatoriedade, e isso se expressa na noção da perfeita Divina Beatitude.
A revelação é um ato de amor e liberdade, e assim ela não introduz mudanças na
natureza Divina. Ela não introduz mudanças simplesmente porque não existem
fundamentos “naturais” para a revelação. A fundação do mundo por si só consiste
na liberdade de Deus, a liberdade do Amor.
***
Desde a eternidade, Deus “arquitetou” a imagem do mundo, como um
conselho imutável e inalterável de Sua liberdade e a Seu bel prazer. Mas essa
imutabilidade da vontade realizada não implica minimamente sua necessidade. A imutabilidade
da vontade de Deus jaz em Sua suprema liberdade. E assim Ele também não
compromete Sua liberdade na criação. Podemos aqui recordar a distinção
escolástica entre potentia absoluta e
potentia ordinata.
E, em conformidade com o desígnio – o bel prazer de Deus – a criação,
juntamente com o tempo, foi “produzida” a partir do nada. Através da
transformação temporal, a criação deve avançar por sua livre ascensão de acordo
com o padrão da economia Divina, respeitando-a, conforme o padrão da sua imagem
pré-temporal e de sua predestinação. A imagem Divina do mundo permanece sempre
acima e além da criação por natureza.
A criação é limitada por ela imutável e inseparadamente, inclusive em sua
resistência a ela. Isso é devido a que essa “imagem” ou “ideia” da criação é
simultaneamente a vontade de Deus (Qelhtikh
ennoia) e o poder de Deus por meio do qual a criação é produzida e
sustentada; e o conselho beneficente do Criador não é anulado pela resistência
da criação, mas, por meio dessa resistência ele se torna, para os rebeldes, um
julgamento, a força da ira, um fogo devorador. Na imagem Divina e no conselho
Divino, cada criatura – isso é, toda hipóstase criada em sua forma imperecível
e irreprodutível - está contida. A partir de Sua eternidade Deus vê e quer, por
seu bel prazer, todos e cada um dos seres na plenitude de seus destinos e
peculiaridades, incluindo seu futuro e seus pecados. E se, de acordo com a
visão mística de São Simeão o Novo Teólogo, no século futuro, “Cristo
contemplará as inumeráveis miríades de Santos, sem desviar de nenhum o Seu
olhar, de modo que cada um deles o verá como se estivesse olhando para si,
falando consigo, saudando-o”, e ainda “ao mesmo tempo em que permanece
inalterado, Ele parecerá diferente a um do que o será a outro” – da mesma
forma, a partir da eternidade, Deus, no conselho de Seu bel prazer, contempla a
inumerável miríade de hipóstases criadas, as quer, e a cada uma delas ele Se
manifesta de forma diferente. E é nisso que consiste a “inseparável
distribuição” de Sua graça e Sua energia, “multiplamente hipostáticas”, na audaciosa
expressão de São Gregório Palamas, porque essa graça e essa energia são
beneficamente distribuídas por milhares de miríades de milhares de hipóstases.
Cada hipóstase, em seu ser específico e sua existência, é marcado por um raio
específico da satisfação do amor de Deus e de Sua vontade. E, nesse sentido,
todas as coisas estão em Deus – em “imagem” (en
idea kai paradeigmati) mas não por natureza, pois o “tudo” criado está
infinitamente aquém da Natureza Incriada. Essa distância é superada pelo amor
Divino e sua impenetrabilidade desmontada pela Encarnação do Verbo de Deus. Mas
ainda assim, a distância permanece. A imagem
da criação em Deus transcende a natureza criada e não coincide com a
“imagem de Deus” na criação. Qualquer que seja a descrição que se possa fazer
da “imagem de Deus” no homem, ela corresponderá a um instante característico de
sua natureza criada – ela é criada.
Trata-se de uma “semelhança”, um reflexo. Mas acima da imagem a Proto-imagem
brilha sempre, com uma luz que é às vezes alegre, outras vezes ameaçadora. Ela
brilha como um chamado e como uma lei. Existe na criação um objetivo sobrenaturalmente
desafiador, colocado acima de sua própria natureza – esse objetivo desafiador é
fundamentado na liberdade, na livre participação em Deus e na união com Deus.
Esse desafio transcende a natureza criada, mas apenas ao responder a ele essa
natureza consegue revelar a si própria em sua plenitude. Esse objetivo
desafiador constitui um propósito, que só pode ser realizado por meio da
autodeterminação e dos esforços da criatura. Assim sendo, o processo de
transformação da criação reside realmente em sua liberdade, e é livre em sua
realidade, e é por meio dessa transformação que aquilo-que-não-era encontra sua
plenitude e se completa integralmente. Pois ele é guiado pelo objetivo
desafiador. Nele existe espaço para a criação, a construção, para a reconstrução
– não apenas no sentido de uma recuperação, como também no sentido de gerar o
que é novo. O escopo dessa construtividade é definido pela contradição entre a natureza e o objetivo. Num certo sentido, esse objetivo em si é “natural”, e
próprio daquele que executa as ações construtivas, de modo que a aderência a
esse objetivo é, de certa forma, também a realização do sujeito em si. Não obstante, esse “eu” que
realiza e que se realiza através da construtividade não é o “eu” empírico e
“natural”, ainda mais na medida em que qualquer realização do próprio “eu”
constitui uma ruptura – um salto do plano da natureza para o plano da graça,
porque essa realização é a aquisição do Espirito, é participação em Deus.
Apenas nessa “comunhão” com Deus o homem pode se tornar “si mesmo”; na
separação de Deus e no auto-isolamento, ao contrário, ele desce a um plano
inferior a si. Mas ao mesmo tempo, ele não se realiza a partir de si mesmo.
Devido ao fato de que o objetivo está além da natureza, ele se apresenta como
um convite a um vivo e livre encontro e uma união com Deus. O mundo é
substancialmente diferente a partir de Deus. E assim o plano de Deus para o
mundo pode ser realizado apenas pela transformação criada – porque esse plano
não consiste num substrato ou numa substantia
que chega à existência e se completa, mas ele é o padrão e o coroamento da
transformação do “outro”. Por outro lado, o processo criador não constitui
assim um desenvolvimento, ou, ao menos, ele não é apenas um desenvolvimento;
seu significado não consiste no mero desdobramento e na manifestação de fins
“naturais” inatos, ou não apenas nisso. Mais do que isso, a última e suprema
autodeterminação da natureza criada emerge em seu fervoroso impulso para
exceder a si própria numa kinhsis uper fusin[44],
conforme diz São Máximo. E um derramamento de unção da graça responde a essa
inclinação, coroando os esforços das criaturas.
O limite e o objetivo do esforço e da transformação do ser criado é a
divinização (Qeoisis) ou a deificação (Qeopoihsis). Mas mesmo nisso, o imutável e
inalterável hiato entre as naturezas permanecerá: qualquer “transubstanciação”
da criatura está excluída. É verdade que, de acordo com a frase de Basílio o
Grande preservada por São Gregório o Teólogo, a criação “foi ordenada a que se
tornasse Deus”. Mas essa “deificação” consiste apenas numa comunhão com Deus,
numa participação (metousia) em Sua vida e Seus dons, e, por
conseguinte, numa certa aquisição de alguma similaridade com a Realidade
Divina. Ungido e marcado pelo Espírito, os homens se tornam conformes à Imagem
Divina, ou protótipos de si mesmos; e por intermédio disso eles se tornam
“conformes a Deus” (summorfoi Qew). Com
a Encarnação do Verbo, o primeiro fruto da natureza humana foi inalteravelmente
enxertado na Vida Divina, e desde então o caminho para a comunhão com essa Vida
se abriu para todas as criaturas, o caminho da adoção por Deus. Na frase de
Santo Atanásio, o Verbo “se tornou homem para nos deificar (Qeopohsh) Nele”, para que “os filhos dos homens
pudessem se tornar filhos de Deus”. Mas essa “divinização” só pode ser
adquirida porque Cristo, o Verbo Encarnado, nos tornou “receptivos ao
Espírito”, porque Ele preparou para nós tanto a ascensão e a ressurreição como
a habitação e a apropriação do Espírito Santo. Através do “Deus feito carne”
nos tornamos “homens portadores do Espírito”; nós nos tornamos filhos “pela
graça”, “filhos de Deus à semelhança do Filho de Deus”. E assim se recupera o
que havia sido perdido desde o pecado original, quando “a transgressão do
mandamento volveu o homem para aquilo que ele era por natureza”, acima da qual
ele havia sido elevado em sua primeira adoção ou nascimento a partir de Deus,
coincidente com sua criação inicial. A expressão tão cara a Santo Atanásio e a
São Gregório, Qeon genesqai[45],
encontra sua explicação complementar num dito de dois outros Santos capadócios:
omoiwsis
pros ton Qeon[46].
Se Macário o Egípcio ousa falar em “transformação” das almas portadoras do
Espírito “Na natureza Divina”, em “participação na natureza Divina”, ele,
entretanto, entende essa participação como kpasis di olon, ou seja, como uma espécie de
“mistura” das duas naturezas, preservando as propriedades e entidades de cada
uma em particular. Mas ele também sublinha que “a Trindade Divina vem habitar
na alma que, pela cooperação com a Divina Graça, se mantém pura – Ele vem
habitar não tal como Ele é em Si,
porque ele não pode ser contido por nenhuma criatura – mas de acordo com a
medida da capacidade e da receptividade do homem”. Uma fórmula explícita
referente a isso não foi estabelecida de início, mas desde o princípio o abismo
impassível entre as naturezas foi rigorosamente marcado, e a distinção entre as
noções de kata ousian (ou kata fusin) e kata
metousian foi rigorosamente observada e mantida. O conceito de
“divinização” só foi cristalizado quando a doutrina das “energias” de Deus foi
estabelecida de uma vez por todas. A esse respeito o ensinamento de São Máximo é
significativo: “A salvação dos que são salvos é realizada pela graça, não pela natureza”, e “se em Cristo a total plenitude
da Divindade habita corporalmente de
acordo com a essência, em nós, ao contrário, não existe senão a plenitude
da Divindade de acordo com a graça”.
A desejada “divinização” que virá consiste numa semelhança pela graça, kai fanwmen
autw kata thn ek caritos qeosin. E, ainda que se tornando participante
da Vida Divina, “na unidade do amor”, “total e inteiramente coerdeira de Deus”
(olos olw pericwpesas olikws tw
Qew), apropriando-se de tudo o que é Divino, a criatura “ainda assim
permanece fora da essência de Deus” – cwris ths ousian
tautothta. E o que é mais notável nisso é o fato de que São Máximo
identifica diretamente a graça deificante com o Divino bel prazer no que tange
à criação, com o “fiat” criador. Em
seus esforços para adquirir o Espírito, a hipóstase humana se torna veículo e
vaso da Graça; ele é de certo modo imbuído, de modo a que assim a vontade
criadora de Deus se realiza – a vontade que trouxe aquilo-que-não-era à
existência para que receba aqueles que
virão em Sua comunhão. E o próprio bel prazer referente a cada um em
particular já constitui desde sempre por si só um fluxo descendente de Graça –
mas nem todos abrem ao Criador e Deus que bate à porta. A natureza humana deve
ser livremente descoberta por meio de um movimento de resposta, superando o
auto-isolamento de sua própria natureza; e, negando a si própria, podemos
dizer, ela recebe essa misteriosa, terrível e indizível dupla natureza por cuja
causa o mundo foi feito. Pois ele foi feito para se tornar a Igreja, o Corpo de
Cristo.
O sentido da história consiste nisso – que a liberdade da criação deve
responder, aceitando o conselho pré-temporal de Deus, tanto em palavras como em
atos. Na dupla natureza prometida à Igreja a realidade da natureza criada é afirmada
desde o princípio. A criação é o outro,
uma outra natureza desejada por Deus a seu bel prazer, e trazida do nada pela
Divina liberdade por causa da liberdade da própria criação. Ela deve se
conformar livremente ao padrão criador pelo qual ela vive, se move, e deve sua
existência. A criação não é esse padrão, e esse padrão não é a criação. De
alguma maneira misteriosa, a liberdade humana se torna uma espécie de
“limitação” da onipotência Divina, porque Deus quis salvar a criação, não
compulsoriamente, mas livremente apenas. A criação é “o outro”, e desse modo o
processo de ascensão a Deus deve se realizar por seus próprios poderes – com a
ajuda de Deus, certamente. Através de Deus os esforços dos seres criados são
coroados e salvos. E a criação é restaurada à sua plenitude e realidade. E a
Igreja segue, ou antes, retrata o mistério e o milagre das duas naturezas. Como
Corpo de Cristo, a Igreja é uma espécie de “plenitude” de Cristo – como diz
Teófano o Recluso, “assim como a árvore é a plenitude da semente”. E a Igreja
está unida à sua Cabeça. “Assim como normalmente não vemos o ferro quando ele
está ao rubro, porque suas qualidades são completamente escondidas pelo fogo”,
diz Nicholas Cabasilas em seu Comentário à Divina Liturgia, “da mesma forma, se
você pudesse ver a Igreja de Cristo em sua verdadeira forma, unida a Cristo e
participando de Sua carne, você a veria como nada além do próprio Corpo do
Senhor”. Na Igreja a criação está para sempre confirmada e estabelecida, por
todos os séculos, em união com Cristo, no Espírito Santo.
[3] I
Pedro 1: 25.
[4]
Sabedoria 1: 14.
[5]
Salmo 93: 1.
[6]
Romanos 4: 17.
idiothtos ekateras
fusews.
[8] I
Coríntios 7: 31.
[10]
Lit. uma mentira “criadora de mitos”, eine
dichtende Lüge.
[11]
Sabedoria 1: 13.
[12]
Romanos 8: 20, 21.
[13]
Romanos 5: 12.
proufestwtas logous, ous h Qeologia proopismous kalei, kai Qeia kai agaqa qelhmata, twn ontwn
aforistika kai poihtika, kaqous o Uperousious ta onta panta kai prowpise kai parhgagen.
[26]
Entelequia ou enteléquia, na filosofia aristotélica, é a realização plena e
completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural, concluindo um
processo transformativo de todo e qualquer ser animado ou inanimado do
universo. É o ser em ato, isto é, plenamente realizado, em oposição ao ser em
potência.
[30]
Romanos 1: 19.
[33]
Como o ator está presente naquilo em que ele age.
[40]
Efésios 3: 11.
[41]
Efésios 3: 9.
[42] I
Pedro 1: 19-20.
[43]
Apocalipse 13: 8.
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