A existência do Mal enquanto paradoxo
Num mundo que foi criado por Deus e cujas leis e propósitos foram
estabelecidos pela sabedoria e a bondade Divinas – como é possível que exista o
mal? Pois o mal é precisamente aquilo que se opõe e resiste a Deus, que
perverte Seus desígnios e repudia Seus mandamentos. O mal é aquilo que não foi
criado por Deus. E, uma vez que a vontade Divina estabelece as razões para tudo
o que existe – e somente essa Soberania pode estabelecer “razões suficientes” –
podemos afirmar que o mal, enquanto mal, existe apesar da falta de razões, que
ele existe sem que haja uma única razão para suportar sua simples existência.
Como colocou São Gregório de Nissa, ele é “uma erva que não foi plantada, sem
sementes e sem raízes”. Podemos dizer: phaenomenon
omnino non fundantum. Somente Deus pode estabelecer os fundamentos do
mundo.
Certamente, sempre existem, e em toda parte, causas e razões para que
haja o mal. Mas a causalidade do mal
é profundamente particular. As causas e razões do mal são sempre um absurdo,
mais ou menos velado. Essa estranha causalidade não está incluída na “cadeia”
ideal da causalidade universal de Deus; ela a fende e desfigura. Trata-se de
uma causalidade rival àquela do Criador, como se provinda de um destruidor do
mundo. E esse poder destruidor, de onde vem ele? Pois todo poder real pertence
somente a Deus. Podemos nos perguntar em que medida e existência do mal é
compatível com a existência de Deus. Mas, não obstante, esse poder ilegítimo
não constitui de modo algum um fantasma anêmico. Ele é realmente uma força, uma
energia violenta. E a oposição do mal a Deus é extremamente ativa. O Bem é
seriamente limitado e oprimido pela insurreição do mal. O próprio Deus está
engajado numa luta contra os poderes das trevas. E, nessa luta, existem perdas
reais, existe uma perpétua diminuição do Bem. O mal constitui um perigo
ontológico. A harmonia universal, desejada e estabelecida por Deus, é de fato
decomposta. O mundo entra em queda. Todo o mundo se vê cercado pela luz
crepuscular do nada. Já não se trata daquele mundo que foi concebido e criado
por Deus. Aparecem inovações mórbidas, novas existências – falsas existências,
mas reais. O mal acrescente algo àquilo que fôra criado por Deus, ele possui
uma força “milagrosa” de imitação da
criação – de fato, o mal é produtivo em sua destruição. No mundo decaído existe
um incompreensível excedente, um excedente que penetrou na existência contra a
vontade de Deus. Num certo sentido, o mundo foi roubado de seu Mestre e
Criador. Trata-se de algo mais do que um paradoxo intelectual: é, na verdade,
um escândalo, uma tentação terrível para a fé, porque, acima de tudo, essa
destruição da existência pelo mal é, em larga medida, irreparável. A arrogante
esperança “universalista” nos é proibida pelo testemunho direto da Santa
Escritura e pelo ensinamento explícito da Igreja. Para os “filhos da perdição”
estão reservadas as trevas exteriores no século futuro! No caso da perseverança
do mal, todas as devastações e perversões produzidas por ele ficarão
preservadas para sempre na paradoxal eternidade do inferno. O inferno é um
testemunho sinistro do assombroso poder do mal. No chamado final dessa
histórica luta entre a Bondade Divina e o mal, toda devastação produzida pelos
seres não arrependidos só será conhecida pelo decreto final de condenação. A
fenda perversa, introduzida no mundo de Deus por um poder usurpador, parece
eterna. A unidade do mundo está comprometida para sempre. O mal parece ter sua
conquista eterna. A obstinação no mal, sua decidida impenitência, não é nunca
apagada pela onipotente compaixão de Deus. Estamos agora em pleno reino do
mistério completo.
A existência do Mal enquanto mistério.
Deus tem Sua resposta ao mundo do mal. “A antiga lei da liberdade
humana”, como diz Santo Irineu, é sempre respeitada por Deus, que desde o
princípio concedeu essa dignidade aos serres espirituais. Toda e qualquer
coerção ou compulsão de parte da Divina Graça está excluída. De fato, Deus respondeu
ao autoritarismo do mal de uma vez por todas através de Seu Filho amado, que
veio à terra para carregar os pecados do mundo e os pecados de toda a
humanidade. A resposta absoluta de Deus ao mal foi a Cruz de Jesus, os
sofrimentos do Servo de Deus, a Morte do Filho encarnado. “O mal começou sobre
a terra, mas ele inquietou os céus, e provocou a descida do Filho de Deus à
terra”, disse um pregador Russo do século XIX. O mal fez sofrer o próprio Deus,
e Ele aceitou esse sofrimento até o final. E a glória da vida eterna brilhou
vitoriosamente desde o sepulcro do Deus encarnado. A Paixão de Jesus foi um
triunfo, uma vitória decisiva. Mas foi principalmente um triunfo do Amor Divino
que chamou e aceitou sem coerção alguma. Desde esse momento, a existência do
mal passou a nos ser dada apenas no contexto da estrutura desse Amor de Deus
que sofre conosco. E mesmo esse Amor, mesmo essa sublime majestade de Deus, se
revelam a nós na enigmática estrutura do mal e do pecado... Felix culpa quae tantum et talem meruit habere
Redemptorem[1].
Costuma-se definir o mal como uma ausência, um nada. Certamente, o mal
jamais existirá por si mesmo, mas apenas dentro da Bondade. O mal é uma pura
negação, uma privação ou uma mutilação. Indubitavelmente, o mal é uma falta, um
defeito, um dejectus. Mas a estrutura
do mal é, antes, antinômica. O mal não é
um vazio feito de nada, mas um vazio que existe, que engole e devora as coisas.
O mal é desprovido de potência: ele é incapaz de criar, mas sua energia
destrutiva é enorme. O mal nunca é ascendente, ele é sempre descendente. Mas o
simples rebaixamento que ele provoca é assustador. Entretanto, existe uma
grandeza ilusória em si, nesse rebaixamento do mal. Ocasionalmente, pode haver
algo de gênio no mal e no pecado. O mal é caótico, ele consiste numa separação,
numa decomposição em progresso constante, numa desorganização de toda a
estrutura da existência. Mas o mal é também, sem dúvida, vigorosamente
organizado. Tudo, em seu triste domínio de corrupção e ilusão, é ambíguo e
anfibólico. Sem dúvida, o mal vive apenas por intermédio da vontade de Deus,
que ele deforma, e que adapta às suas necessidades. Mas esse “Universo”
deformado constitui uma realidade que afirma a si própria.
Na verdade, o problema do mal não é simplesmente uma questão
filosófica, e é por isso que ele nunca pode ser resolvido no plano neutro de
uma teoria da existência. Ele tampouco constitui uma questão ética, e no plano
da moral natural é impossível superar a correlatividade entre o bem e o mal. O
problema do mal só adquire seu verdadeiro caráter sobre o plano religioso. E o
significado do mal consiste numa oposição radical a Deus, uma revolta, uma
desobediência, uma resistência. E a única fonte do mal, no sentido estrito do
termo, é o pecado, a oposição a Deus e a trágica separação em relação a Ele. As
especulações a respeito da liberdade de escolha são sempre estéreis e ambíguas.
A liberdade de escolha, a libertas minor
de Santo Agostinho e o Qelhema gnwmikon
(vontade gnômica) de São Máximo o Confessor, constitui uma liberdade
desfigurada, uma liberdade diminuída e empobrecida, uma liberdade tal como
existe depois da queda, entre os seres decaídos. A dualidade de propósitos, as
direções correlativas, não pertencem à essência da liberdade primordial dos
seres inocentes. Esta deve ser restaurada nos pecadores renitentes por meio do
ascetismo e da Graça. E o pecado original não apenas constituiu uma escolha
errada, uma opção na direção errada, como uma recusa à ascensão a Deus, uma
deserção do serviço a Deus.
De fato, tal escolha não era possível ao primeiro pecador porque o mal
ainda não existia como uma possibilidade ideal. Claro, se ele se tornou uma
escolha, não foi uma escolha entre o bem e o mal, mas uma escolha entre Deus e
si mesmo, entre o serviço e a indolência. E é precisamente nesse sentido que
Santo Atanásio interpreta a queda e o pecado original em sua obra Contra Gentes. A vocação do homem
primordial, inata em sua própria natureza, era de amar a Deus com devoção
filial e servi-Lo no mundo no qual o homem tinha sido designado como profeta,
sacerdote e rei. Era um apelo do amor paterno de Deus ao amor filial do homem.
Sem dúvida, seguir a Deus envolvia uma rendição total aos braços Divinos. Não
era ainda um sacrifício. O homem inocente não possuía nada que pudesse
sacrificar, pois tudo o que ele tinha provinha da Graça de Deus. Existe aqui
algo de mais profundo do que a voluptuosa ligação com o mundo. Antes, o que
aconteceu foi um engano amoroso. De acordo com Santo Atanásio, a queda do homem
consistiu precisamente no fato de que o homem se limitou a si próprio, que o
homem se tornou como que apaixonado por si mesmo. E por meio dessa concentração
sobre si mesmo o homem se separou de Deus e quebrou o contato livre e
espiritual que tinha para com Ele. Foi uma espécie de delírio, uma obsessão
auto-erótica, um narcisismo espiritual. E com isso esse homem se isolou de
Deus, e logo se tornou consciente de ter se envolvido num fluxo cósmico exterior.
Podemos dizer quer isso foi uma desespiritualização da existência. Todo o resto
veio como resultado disso – a morte e a decomposição da estrutura humana. De
qualquer modo, a queda aconteceu primeiro no domínio do Espírito, assim como já
acontecer ano mundo angélico. O significado do pecado original é o mesmo em
toda parte – autoerotismo, orgulho e vaidade. Todo o demais não passa de uma
projeção dessa catástrofe espiritual nas diferentes áreas da estrutura humana.
O mal veio de cima, não de baixo: do espírito criado, não da matéria. Isso é
mais profundo do que uma falsa escolha ou direção, mais profundo mesmo do que a
escolha entre um bem inferior e outro superior. Antes, foi a infidelidade do
amor, a insana separação em relação ao Único digno de afeição e amor. Essa
infidelidade foi a fonte única do caráter negativo do mal. Ela foi a negação
primordial, e foi fatal.
É necessário tomar precauções e não identificar a enfermidade da
natureza decaída com a imperfeição inerente da natureza criada. Não existe nada
de mórbido ou sinistro na “imperfeição natural” da natureza criada, exceto
aquilo que a penetrou “desde cima” depois
de consumada a queda. Na natureza anterior à queda, talvez pudéssemos falar em
falhas ou faltas; mas no mundo decaído passa a existir algo mais – uma
perversão, uma revolta, uma blasfêmia vertiginosa, uma violência. É o domínio
da usurpação. A escura maré desse amor pervertido engole todas as criaturas e o
cosmo inteiro. Por detrás de todas as negações do mal podemos sempre discernir algo
quase positivo, essa licenciosidade inicial, a arbitrariedade egoísta das
personalidades finitas. O mundo decaído é descentralizado, ou antes, ele é
orientado em torno de um centro imaginário e fictício. Podemos talvez dizer que
o círculo (com um centro único) foi deformado, tornando-se uma elipse com dois
pontos de referência – Deus e o anti-Deus. A existência, em qualquer caso, foi
dinamicamente dividida em dois. Passam a existir duas tendências que se
interceptam e se cruzam, embora permanecendo ambas radicalmente distintas.
Podemos dizer que existem dois mundos dentro de um: existem Duas Cidades de
Santo Agostinho. O mal, começando como um ateísmo prático, colocou-se no lugar
de Deus, resultando daí num ateísmo teórico e, consequentemente, numa decidida
deificação de si mesmo. E nesse mundo dualizado a verdadeira liberdade não
existe. A liberdade de escolha é apenas um remoto e pálido reflexo da liberdade
real.
O mal é criado por agentes pessoais. O mal, no sentido estrito, só
existe nas pessoas ou em suas criações e atos. O mal físico e cósmico também se
origina em atos pessoais. E é por isso que o mal tem poder, que ele pode ser
ativo. Pois o mal é uma atividade pessoal perversa. Mas essa atividade se
espalha inevitavelmente num nível impessoal. O mal despersonaliza a própria
personalidade. A completa despersonalização, é claro, jamais pode ser
alcançada; existe um limite potencial que jamais pode ser atingido. Mas a
tendência e a aspiração ao mal rumo a esse limite de total desintegração se
acentuam energicamente por toda parte. Mesmo os demônios nunca deixam de ser
pessoas. A forma intrínseca de sua existência não pode ser perdida. Mas, como a
personalidade é a “imagem de Deus” nos seres espirituais, o caráter pessoal só
pode ser preservado numa constante conversação com Deus. Separada de Deus a
personalidade evanesce, é ferida por uma esterilidade espiritual. A
personalidade isolada, que se fecha sobre si, em geral perde a si mesma. No
estado de pecado existe sempre uma tensão entre duas solicitações interiores: o
“eu” e algo impessoal, representado por instintos, ou antes, por paixões.
As paixões são o lugar, o assento do mal na pessoa humana. As
“paixões” – ta paqh – dos Padres e dos
mestres da espiritualidade Grega, são ativas, elas capturam – é a pessoa
possuída pelas paixões que é passiva, é ela que sofre o constrangimento. As
paixões são sempre impessoais: elas constituem uma concentração de energias
cósmicas que tornam a pessoa humana prisioneira, escrava. Elas são cegas e
cegam aqueles a quem possuem. O homem passional, o “homem das paixões” não age
mais por si, mas é agido desde fora: fata
trahunt. Ele frequentemente perde sua consciência de ser um agente livre.
Ele duvida da existência e da possibilidade da liberdade em geral. Ele antes
adota um conceito de realidade “necessarionista” (na expressão de Charles
Rénouvier). Como consequência, ele perde sua personalidade, sua identidade
pessoal. Ele se torna caótico, com múltiplas faces, ou antes: máscaras. O
“homem das paixões” de modo algum é livre, embora possa dar a impressão de
atividade e energia. Ele não passa de uma “bola” de influências impessoais. Ele
está hipnotizado por essas influências que de fato têm poder sobre si.
Arbitrariedade não é liberdade. Ou talvez seja uma liberdade imaginária que
gera servidão. A vida espiritual começa exatamente com a luta contra as
paixões. E a “impassibilidade” é, com efeito, o principal objetivo da ascensão
espiritual.
A “impassibilidade” – a apaqeia
dos Gregos – é, em geral, mal entendida e interpretada. Não se trata de uma
indiferença, de uma fria insensibilidade do coração. Ao contrário, ela é um
estado ativo, um estado de atividade espiritual, que só se pode adquirir depois
de muitas lutas e experiências difíceis. A impassibilidade é, antes, uma
independência em relação às paixões. O “eu” de cada pessoa é finalmente
resgatado, liberto de uma escravidão fatal. Mas só é possível resgatar a si
mesmo em Deus. A verdadeira impassibilidade só pode ser adquirida mediante um
encontro com o Deus vivo. O caminho que conduz até aí é um caminho de
obediência, até mesmo de servidão a Deus, mas essa servidão gera a verdadeira
liberdade, uma liberdade concreta, a real liberdade dos filhos adotivos de
Deus. No mal, a personalidade humana é absorvida pelo meio impessoal, e mesmo
um pecador pode pretender que é livre. Em Deus, a personalidade é restaurada e
reintegrada no Espírito Santo, embora uma severa disciplina seja imposta ao
indivíduo.
O mal se revela a nós no mundo, em primeiro lugar, sob os aspectos do
sofrimento e da tristeza. O mundo é vazio, frio, indiferente (conforme e
“natureza indiferente” de Pushkin). É como uma terra devastada onde não há
resposta. Todos nós sofremos por causa do mal. Disseminado por toda parte no
mundo, o mal causa sofrimento. E a contemplação desse sofrimento universal nos
leva às vezes à beira do desespero. O sofrimento universal não foi descoberto
pela primeira vez por Schopenhauer. Ele já havia sido atestado por São Paulo[2],
que nos forneceu uma explicação bastante clara: o mal se introduziu na criatura
por meio do pecado. Toda a criação sofre. Existe um sofrimento cósmico. Todo o
mundo está envenenado pelo mal e pelas energias maléficas, e todo o mundo sofre
por causa disso.
O intrincado problema da Teodiceia foi primeiramente inspirado pela
questão do sofrimento. Essa foi uma das questões primárias de Dostoievsky. O
mundo é duro, cruel e impiedoso, e é também terrível e assustador: temor antiquus. Existe um caos no mundo,
tempestades subterrâneas, uma desordem elemental. E o homem se sente frágil e
perdido nesse mundo inóspito. Mas o mal não vem ao nosso encontro apenas de
fora, do meio exterior, mas também internamente, em nossa própria existência.
Também estamos doentes – nós próprios – e então sofremos por causa disso. E,
mais uma vez, nos deparamos com uma descoberta inesperada: nós não apenas
sofremos com o mal, mas fazemos o
mal. E algumas vezes nos sentimos deliciados com o mal e a infelicidade. Às
vezes somos capturados pelas Fleurs du
mal, as “flores do mal”. Sonhamos com o “ideal de Sodoma”. O abismo possui
um apelo sinistro. Às vezes amamos as escolhas ambíguas, ficamos encantados com
elas. É mais fácil fazer o mal do que o bem. Todos podem descobrir em si essa
escuridão “subterrânea”, um subconsciente cheio de sementes malignas, de
crueldade e dolo. As análises de Dostoievsky – e de muitos outros – não são
sonhos mórbidos de um pessimista que vê a vida através de óculos embaçados. Elas
são uma revelação verdadeira da triste realidade de nossa situação existencial.
E podemos encontrar as mesmas revelações nos antigos mestres da espiritualidade
Cristã. Existe um delírio, uma febre espiritual, uma libido no cerne “desse mundo”, no núcleo de nossa existência. Não
se pode exigir razões, de uma pessoa insana ou maníaca; ela não possui razões
para sua loucura, ela perdeu sua razão, ela está insana. Orígenes esteve muito
perto da solução correta quando atribuiu a origem do mal, no mundo dos espíritos,
tanto ao tédio e à falta de propósito (desídia
et lahoris taedium in servando bono), como à saciedade da contemplação
Divina e do amor[3].
De qualquer modo, olhando para nos agora, encontramos em nosso coração e em
nossa inteligência muitas revivescências do mesmo paroxismo ou delírio, os
mesmos absurdos. Libido não é a mesma coisa que a concupiscência carnal.
Trata-se de um termo mais amplo, sinônimo do autoerotismo, que se origina no
pecado. O mal, no homem, é uma ignorância (agnoia),
uma insensibilidade, uma cegueira da razão e um endurecimento do coração. O
homem se fecha, encerra-se em si mesmo, se isola e se separa. Mas o mal é
multiforme e caótico. Existem formas contrastantes do mal: a forma agressiva,
sádica; e existe a solipsista, indiferente – o “coração gelado”. O mal tem uma
divisão interna: existe nele um desacordo e uma desarmonia, inordinatio. O mal é ambíguo, volúvel,
variável: ele não possui um caráter próprio estável. A sede do mal no homem
está nas profundezas de seu coração, e não apenas no plano empírico, a própria
natureza é afetada, e já não é mais pura. Antes, ela se torna dinâmica, mas de
um dinamismo que consiste numa perversão funcional incapaz de se consolidar
numa transformação metafísica. A existência do mal é parasitária: o mal existe
por causa do Bem, ex ratione boni. Os
mesmos elementos estão presentes no mundo original e no mundo decaído, mas o
princípio da organização mudou. E, embora dinâmica, a perversão é inconversível:
aquele que desceu voluntariamente aos abismos do mal não tem como subir de lá
por si próprio. Sua energia é exaurida. Sem dúvida, mesmo nas profundidades
demoníacas da criatura permanece ainda a obra de Deus e os traços do desígnio
Divino nunca se apagam. A imagem de Deus, obscurecida pela infidelidade do
pecado, está, não obstante, preservada intacta, e é por isso que sempre existe,
mesmo no abismo, um receptáculo ontológico para o apelo Divino, para a Graça de
Deus. Isso é verdadeiro mesmo para aqueles que se colocaram obstinadamente de
costas para o apelo da Cruz, que se tornaram incapazes de receber os dons
vivificantes do Amor Divino, os dons do Paráclito. A identidade Metafísica não
pode ser destruída, mesmo entre os demônios. De acordo com a frase de São
Gregório de NIssa, os demônios são ainda anjos por natureza, e a dignidade
angélica não pode jamais ser completamente abolida neles.
Mas talvez possamos dizer que essa imagem de Deus no homem se torna
paralisada num certo sentido, e tornada inefetiva depois da separação em
relação Àquele que deveria se refletir nessa imagem, nesse espelho vivo e
pessoal. Não é bastante começar outra vez a ascensão a Deus – é preciso ter a
cooperação viva do próprio Deus, que restaura a circulação da vida espiritual
no homem morto, escravizado e paralisado pelo pecado e o mal. O paradoxo do mal
reside precisamente nessa divisão da existência humana e de toda a estrutura
cósmica; ele reside na divisão dinâmica da vida em duas, uma divisão resultante
da separação em relação a Deus. É como se existissem duas almas convivendo numa
mesma pessoa. O Bem e o mal estão estranhamente misturados, mas não existe
síntese possível nisso. O Bem “natural” é por demais fraco para resistir ao
mal. E o mal só existe a partir do Bem. A unidade humana fica seriamente
comprometida, senão perdida. Somente a Graça de Deus é capaz de superar o
impasse humano.
Uma análise formal do mal não é suficiente. A existência do mal é uma
realidade no plano religioso. E apenas através de um esforço espiritual é
possível entender e resolver esse paradoxo, superar esse escândalo e penetrar
no mistério do Bem e do Mal.
V. REDENÇÃO: Encarnação e Redenção
A Encarnação e a Redenção
“O Verbo se fez carne”: essa é a alegria máxima da fé Cristã. É a
plenitude da Revelação. O mesmo Senhor Encarnado é perfeito Deus e perfeito
homem. Todo o significado e o propósito último da existência humana estão
revelados e realizados na Encarnação
e através da Encarnação. Ele desceu
dos céus para redimir a terra, para unir o homem a Deus para sempre. “E se fez
homem”. Iniciou-se uma nova era. Agora contamos em anni Domini. Como escreveu Santo Irineu: “o Filho de Deus se tornou
Filho do Homem, para que o homem possa se tornar filho de Deus”. Não se trata
apenas da plenitude original da natureza humana restaurada ou restabelecida
pela Encarnação. Não se trata apenas do retorno da natureza humana para sua
comunhão perdida com Deus. A Encarnação é também a nova Revelação, o novo e
próximo passo. O primeiro Adão era uma alma vivente. Mas o último Adão é o
Senhor dos Céus[1]. E
na Encarnação do Verbo a natureza humana não foi simplesmente ungida com um
superabundante fluxo de Graça, mas foi assumida numa unidade hipostática e
íntima com a própria Divindade. Nesse reerguimento da natureza humana a uma
duradoura – para sempre – comunhão com a Vida Divina, os Padres da Igreja
antiga viram unanimemente a verdadeira essência da salvação, a base de toda a
obra de redenção de Cristo. “Pois é salvo o que está unido a Deus”, diz São
Gregório de Nazianze. E o que não está unido não pode ser salvo de modo algum.
Essa foi sua principal razão para insistir, contra Apolinário, na plenitude da
natureza humana, assumida pelo Filho Unigênito na Encarnação. E essa foi a
causa fundamental de toda a teologia antiga, de Santo Irineu, Santo Atanásio,
dos Padres Capadócios, de São Cirilo de Alexandria e São Máximo o Confessor. Toda
a história do dogma Cristológico foi determinada por essa concepção
fundamental: a Encarnação do Verbo como Redenção. Na Encarnação a história
humana se completa. A vontade eterna de Deus se realiza, “o mistério da
eternidade oculto e desconhecido até dos anjos”. Os dias de espera terminaram.
O Prometido e Esperado chegou. E doravante, para usarmos a frase de São Paulo,
a vida do homem “está oculta com Cristo em Deus[2]”.
A Encarnação do Verbo constituiu-se numa manifestação absoluta de
Deus. E acima de tudo estava a revelação da Vida. Cristo é o Verbo de Vida (o Logos ths zwhs): “e manifestou-se a vida, e
nós a vimos, e damos testemunho, e proclamamos a vocês a vida, a vida eterna,
que estava com o Pai e foi manifestada a nós[3]”.
A Encarnação é o reavivamento do homem, como se fosse uma ressurreição da
natureza humana. Mas o clímax do Evangelho é a Cruz, a morte do Encarnado. A
Vida se revelou inteiramente por intermédio da morte. Esse é o mistério
paradoxal da fé Cristã: a vida através da morte, a vida no sepulcro e a partir
do sepulcro, o mistério do sepulcro vivificador. E nós nascemos para a vida
real e eterna por intermédio de nossa morte batismal e de nosso sepultamento em
Cristo; somos regenerados com Cristo na fonte batismal. Essa é a lei invariável
da verdadeira vida. “Aquilo que tu semeias não volta à vida, a menos que morra[4]”.
“Grande é o mistério da divindade: Deus manifestou-se na carne[5]”.
Mas Deus não se manifestou para recriar o mundo pelo exercício de Seu poder
Onipotente, ou para iluminá-lo e transfigurá-lo pela luz transbordante de Sua
glória. Essa Revelação da Divindade foi forjada na mais extrema humilhação. A
vontade Divina não aboliu o status original da liberdade humana, ou de seu
“autopoder” (to autexousion), ela não
destruiu ou aboliu a “antiga lei da liberdade humana”. Aqui se revela uma certa
autolimitação, ou “kenosis” do poder
Divino. Mais do que isso, uma kenosis
do próprio Amor Divino. O amor Divino como que se restringe e se limita na manutenção
da liberdade da criação. O amor não impõe a cura por compulsão, como poderia
fazer. Nunca existiu evidência de obrigação nessa manifestação de Deus. Nem
todos reconheceram o Senhor da Glória sob “o aspecto do servo” com o qual Ele
deliberadamente Se apresentou. E quem O reconheceu, o fez, não por uma intuição
natural, mas pela revelação do Pai[6].
O Verbo Encarnado apareceu sobre a terra como um homem entre os homens. Nisso
consistiu a assunção redentora da plenitude humana, não apenas da natureza humana,
mas de toda a plenitude da vida humana. A Encarnação tinha que se manifestar em
toda a plenitude da vida, na plenitude das eras humanas, para que todas as
plenitudes fossem santificadas. Esse é um dos aspectos da ideia da “síntese” de
tudo em Cristo (recapitulatio, anakefalaiwsis), que foi assumida com tanta
ênfase por Santo Irineu a partir de São Paulo. Nisso consistiu a “humilhação[7]”
do Verbo. Mas essa kenosis não constituiu uma redução de Sua Divindade, que
permaneceu inalterada (aneutrophs) na
Encarnação. Ela consistiu, na verdade, num reerguimento do homem, na
“deificação” da natureza humana, na “theosis”.
Como disse São João Damasceno, na Encarnação “três coisas se realizaram
simultaneamente: a assunção, a existência e a deificação da humanidade pelo
Verbo”. Devemos sublinhar que na Encarnação o Verbo assume a natureza humana
original, inocente e livre do pecado original, sem mácula alguma. Isso não
violou a plenitude da natureza, nem afetou a semelhança do Salvador para
conosco, povo pecador. Pois o pecado não pertence à natureza humana, mas
trata-se de um tumor parasitário e anormal. Esse ponto foi vigorosamente
sublinhado por São Gregório de NIssa, e particularmente por São Máximo o
Confessor, em conexão com seus ensinamentos sobre a sede do pecado. Na Encarnação,
o Verbo assume a natureza do primeiro humano formado, criado “à imagem de
Deus”, e assim a imagem de Deus foi novamente restabelecida no homem. Ainda não
se tratava da assunção do homem sofredor ou da humanidade sofrida. Foi a
assunção da vida humana, mas não ainda da morte humana. A liberdade de Cristo
em relação ao pecado original constituiu também Sua liberdade em relação à
morte, a qual é “o salário do pecado”. Cristo permaneceu intocado pela
corrupção e a mortalidade desde Seu nascimento. E, assim como o primeiro Adão
antes da Queda, Ele era capaz de não morrer, em absoluto, potens non mori, embora obviamente ele pudesse ainda morrer, potens autem mori. Ele estava isento da
necessidade da morte, porque Sua humanidade era pura e inocente. Dessa forma, a
morte de Cristo foi – e só poderia ser – voluntária, não pela necessidade de
uma natureza decaída, mas por Sua livre escolha e aceitação.
Devemos fazer uma distinção entre a assunção da natureza humana e a
aceitação do pecado por Cristo. Cristo é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo[8]”.
Mas Ele não tira o pecado do mundo pela Sua Encarnação. Essa foi um ato da
vontade, não uma necessidade da natureza. O Salvador carrega o pecado do mundo (mais do que o assume) por uma livre
escolha de amor. Ele o carrega de tal maneira que o pecado não se torna Seu
próprio pecado, nem viola a pureza de Sua natureza e vontade. Ele o carrega
livremente; doravante essa “aceitação” do pecado passa a ter um poder redentor,
como um ato livre de compaixão e amor. Mas assumir o pecado não constitui
meramente uma forma de compaixão. Nesse mundo, que “jaz em pecado”, mesmo a
pureza em si implica sofrimento, é uma fonte ou uma causa de sofrimento. Assim
é que o coração justo se aflige e dói por causa da injustiça, e sofre pela
injustiça desse mundo. A vida do Salvador, enquanto vida de justiça e pura
existência, como vida pura e sem pecado, foi inevitavelmente nesse mundo a vida
de alguém sofredor. O bem é opressivo para esse mundo, e esse mundo é opressivo
para o bem. O mundo resiste ao bem e não procura a luz. Assim, ele não aceita
Cristo, ele O rejeita tanto quanto rejeita Seu Pai[9].
O Salvador submeteu-Se à ordem desse mundo, suportou-a, e a oposição desse
mundo foi encoberta por Seu amor que a tudo perdoou: “Eles não sabem o que
fazem[10]”.
Toda a vida de nosso Senhor foi uma Cruz. Mas o sofrimento não foi ainda toda a
Cruz: a Cruz é mais do que meramente o sofrimento do Bem. O sacrifício de
Cristo não se esgotou por Sua obediência e capacidade de suportar, por sua
paciência, sua compaixão, seu perdão universal. A obra única de redenção de
Cristo não pode ser separada em partes. A vida terrestre de nosso Senhor
constitui um todo orgânico, e Sua ação redentora não pode ser conectada
exclusivamente a um ou outro aspecto particular dessa vida. É claro que o clímax dessa vida foi Sua
morte. E o Senhor deu um testemunho claro para essa hora da morte: “Para isso
Eu vim ao mundo[11]”.
Pois a morte redentora é o propósito último da Encarnação.
O mistério da Cruz está além de nossa compreensão racional. Esse
“terrível espetáculo” parece estranho e surpreendente. Toda a vida de nosso
Senhor consistiu-se num grande ato de paciência, misericórdia e amor. E tudo
foi iluminado pela eterna irradiação da Divindade, embora essa irradiação fosse
invisível para o mundo de carne e de pecado. Mas a Salvação se completou no
Gólgota, não no Tabor, e a Cruz de Jesus foi prevista desde o Tabor[12].
Cristo veio, não apenas para ensinar com autoridade e falar ao povo em nome do
Pai, não apenas para que pudesse realizar obras de misericórdia. Ele veio para
sofrer e morrer, e para se levantar novamente. Ele próprio, mais de uma vez,
deu testemunho disso diante dos discípulos perplexos e surpresos. Ele não
apenas profetizou a Paixão e a morte por vir, mas disse claramente que era
preciso, que Ele tinha que fazê-lo, que Ele
precisava sofrer e ser morto. “E
Ele começou a ensiná-los que o Filho do Homem deveria sofrer muitas coisas e
ser rejeitado pelos anciãos, pelos sacerdotes e pelos escribas, e ser morto, e
ressuscitar dentro de três dias[13]”.
“Era preciso” não apenas segundo a lei desse mundo, no qual o bem e a verdade
são perseguidos e rejeitados, não apenas de acordo com a lei do ódio e do m al.
A morte de nosso Senhor aconteceu com plena liberdade. Ninguém tirou Sua vida.
Ele próprio ofereceu Sua alma, por sua suprema vontade e sua suprema
autoridade. “Eu tenho autoridade” – exousian
ecw[14].
Ele sofreu e morreu, “Não porque não pudesse escapar ao sofrimento, mas porque
Ele escolheu sofrer”, conforme coloca o Catecismo Russo. Escolha, não apenas no
sentido de suportar voluntariamente, de não resistir, não apenas no sentido de
que Ele permitiu que o furor do pecado e da injustiça desabassem sobre Ele, ele
não apenas o permitiu, como o quis.
Ele tinha que morrer de acordo com a lei
da verdade e do amor. A crucificação não foi em absoluto um suicídio passivo, nem
um simples assassinato. Ela foi um sacrifício e uma oblação. Ele tinha que
morrer. Não se tratava de uma necessidade desse mundo. Era uma necessidade do
Amor Divino. O mistério da Cruz começa na eternidade, “no santuário da Santa
Trindade, inacessível às criaturas”. Desse modo o mistério transcendente da
sabedoria de Deus e de Seu amor é revelado e cumprido na história. Por isso
Cristo é chamado de Cordeiro, “que era conhecido antes da fundação do mundo[15]”,
e mesmo, que “foi sacrificado desde a fundação do mundo[16]”.
“A Cruz de Jesus, composta pela inimizade dos Judeus e a violência dos Gentios,
não é outra coisa do que a imagem e a sombra de sua Cruz de amor celestial”. A
“necessidade Divina” da morte na Cruz sobrepuja todo entendimento possível. E a
Igreja jamais tentou qualquer definição racional desse mistério supremo. Os
termos escriturários pareceram ser – e ainda parecem – os mais adequados. Em
qualquer caso, nenhuma simples categoria ética o dará. As concepções morais, e
mais ainda as legais e jurídicas, jamais passam de um desbotado
antropomorfismo. Isso também é verdade em relação à ideia do sacrifício. O
sacrifício de Cristo não pode ser considerado como uma mera oferenda, ou uma
rendição. Isso não explica a necessidade da morte. Pois toda a vida do
Encarnado foi um contínuo sacrifício. Então, por que essa vida puríssima foi
ainda insuficiente para a vitória sobre a morte? Por que a morte só pôde ser
vencida pela morte? E terá sido a morte realmente uma perspectiva aterradora
para o Justo, para o Encarnado, especialmente diante da suprema presciência da
Ressurreição que viria ao terceiro dia? Mas mesmo os simples mártires Cristãos
aceitaram seus tormentos e sofrimentos, e a própria morte, com calma e alegria,
como uma coroa de triunfo. O Chefe dos mártires, o Protomártir Cristo, não foi
menor do que eles. E, pelo mesmo "decreto Divino”, pela mesma “necessidade
Divina”, Ele “tinha” não somente que ser executado e maltratado, como tinha que
morrer e se levantar ao terceiro dia. Qualquer que seja nossa interpretação da
Agonia no Jardim, um ponto está perfeitamente claro. Cristo não foi uma vítima
passiva, mas o Conquistador, mesmo na sua mais extrema humilhação. Ele sabia
que essa a humilhação não consistia numa mera persistência ou obediência, mas
que ela era o próprio caminho para a Glória e a vitória derradeira. Tampouco a
ideia da justiça Divina, sozinha, justitia
vindicativa, é capaz de revelar o significado último do sacrifício da Cruz.
O mistério da Cruz não pode ser adequadamente apresentado em termos de
transação, de recompensa ou de resgate. Se o valor da morte de Cristo foi
infinitamente amplificado por Sua Divina Personalidade, o mesmo se aplica à
totalidade de Sua Vida. Todos os Seus feitos possuíram um valor infinito e um
significado, enquanto feitos do Verbo Encarnado de Deus. E com efeito eles
cobriram de forma superabundante todos os delitos e faltas da raça humana
decaída. Finalmente, dificilmente poderia haver qualquer tipo de justiça
retributiva na Paixão e morte do Senhor, como talvez pudesse acontecer na morte
de qualquer homem justo. Pois não se tratava ali do sofrimento e da morte de um
mero homem, graciosamente suportada pela ajuda Divina por causa de sua fé e
persistência. Essa morte constituiu o sofrimento do próprio Filho Encarnado de
Deus, o sofrimento de uma natureza humana sem mácula, já deificada desde que
assumiu a hipóstase do Verbo. Também não cabe a explicação por meio da ideia da
satisfação substituta, a satisfactio
vicaria dos escolásticos. Não porque a substituição não fosse possível.
Cristo de fato tomou sobre Si os pecados do mundo. Mas porque Deus jamais busca
o sofrimento de alguém, ao contrário, Ele se aflige pelos que sofrem. Como
poderia a pena de morte do Encarnado, puríssimo e incorruptível, constituir-se
na abolição do pecado, se a própria morte é o salário do pecado, e se a morte
só existe no mundo pecador? Pode a Justiça reger o Amor e a Misericórdia, e
seria a Crucificação necessária para abrir o amor perdoador de Deus, que de
outro modo permaneceria fechado, sem se manifestar, pela limitação de uma
justiça vindicatória? SE tivesse que haver uma limitação de qualquer tipo,
seria antes uma restrição do amor. E a justiça se realizou, e a Salvação foi
forjada pela condescendência, pela kenosis,
e não por um poder onipotente. Talvez a recriação da humanidade decaída pela
poderosa intervenção da Divina onipotência pudesse nos parecer mais simples e
mais caridosa. Estranhamente, a plenitude do Amor Divino, que deseja preservar
nossa liberdade humana, nos parece mais como uma exigência severa da justiça
transcendente, simplesmente porque ela implica um apelo à cooperação da vontade
humana. Assim, a Salvação se torna uma tarefa também do próprio homem, e só
pode se consumar em liberdade, mediante a resposta do homem. A “imagem de Deus”
se manifesta na liberdade. E a própria liberdade é frequentemente um peso para
o homem. Num certo sentido ela é de fato um dom e uma exigência sobre-humanos,
um caminho sobrenatural, o caminho da “deificação”, da theosis. Não é essa theosis
um peso para o ser egoísta, autossuficiente e autoaprisionado? E, no entanto,
esse opressivo dom da liberdade é a marca definitiva do amor Divino e da
benevolência em relação ao homem. A Cruz não é um símbolo da Justiça, mas um
símbolo do Amor Divino. São Gregório de Nazianze expressa todas essas dúvidas
com grande ênfase em seu notável Sermão da Páscoa:
“Para quem, e por que, foi esse sangue derramado e vertido, o grande e
preciosíssimo sangue de Deus, Sumo Sacerdote e Vítima? (...) Estávamos sob o
poder do Maligno, vendidos ao pecado, a atraímos esse mal sobre nós mesmos por
causa da sensualidade (...) Se o preço do resgate foi pago a qualquer outro que
não aquele cujo poder nos sujeitava, então eu pergunto, a quem e por que razão
esse preço foi pago? (...) Se foi para o Maligno, quão ultrajante é isso! O
ladrão recebe o valor do resgate; ele não apenas o recebeu de Deus, como
recebeu o próprio Deus. Por sua tirania ele recebeu um preço tão alto que só
mereceria quem tivesse piedade de nós (...) Se foi para o Pai, então, em
primeiro lugar, de que maneira? Não estávamos cativos Dele? (...) Em segundo
lugar, por que motivo? Por qual razão o sangue do Filho Único agradaria ao Pai,
que não aceitou o de Isaac, oferecido por seu pai, mas trocou a oferenda pela
vítima do cordeiro?”.
Com essas questões, São Gregório tenta deixar claro que é impossível
explicar a Cruz em termos de justiça vindicatória. E ele conclui: “Fica assim
evidente que o Paio aceitou (o sacrifício), não porque Ele o exigiu ou
precisasse dele, mas pela economia e porque o homem tinha que ser santificado
pela humanidade de Deus”.
A Redenção não é simplesmente o perdão dos pecados, não é apenas a
reconciliação do homem com Deus. A Redenção é a abolição total do pecado, a
libertação do homem do pecado e da morte. E a Redenção se realizou na Cruz,
“pelo sangue em Sua Cruz”. Não apenas pelo sofrimento na Cruz, mas precisamente
pela morte na Cruz. E a vitória última foi forjada, não pelo sofrimento e a
persistência, mas pela morte e a ressurreição. Chegamos aqui numa profundeza
ontológica da existência humana. A morte de nosso Senhor foi a vitória sobre a
morte e a mortalidade, não apenas a remissão dos pecados, não meramente a
justificação do homem, tampouco a satisfação de alguma justiça abstrata. E a
verdadeira chave do Mistério só pode ser dada por uma doutrina coerente sobre a
morte humana.
***
O Mistério da Morte e Redenção
Ao se separar de Deus a natureza humana se torna instável,
desarmônica, como se estivesse descomposta. A própria estrutura do homem se
torna instável. A unidade entre a alma e o corpo se torna insegura. A alma
perde seu poder vital, e já não é capaz de estimular o corpo. O corpo se torna
um túmulo e uma prisão para a alma. E a morte física se torna inevitável. O
corpo e a alma já não estão, por assim dizer, seguros e ajustados um ao outro. A
transgressão do mandamento “recolocou o homem no estado de natureza”, diz Santo
Atanásio – eis to kata fusin epestrefen - “na qual ele fôra feito a
partir do nada, de modo que em sua existência de fato ele sofresse no devido
tempo a corrupção de acordo com toda a justiça”. Pois, tendo sido feito do
nada, a criatura sempre existe sobre o abismo do nada, ela está sempre pronta a
cair nele. A natureza criada, diz Santo Atanásio, é mortal e enferma, “fluindo
e sujeita à decomposição” – fusis reusth kai dialuomenh. Ela só pode ser salva
da “corrupção natural” pelo poder da Graça celeste, “pela habitação do Verbo”.
Assim sendo, a separação de Deus conduz a criatura à decomposição e degradação.
“Pois todos precisamos morrer, somos como a água derramada sobre o solo, que não
pode ser recolhida novamente[17]”.
Na experiência Cristã, a morte é primeiramente revelada como uma
profunda tragédia, como uma dolorosa catástrofe metafísica, como uma misteriosa
falha do destino humano. Pois a morte não é o fim normal da existência humana.
Ao contrário. A morte do homem é anormal, é uma falha. Deus não criou a morte;
Ele criou o homem para a incorrupção e a existência verdadeira, aquela que
“deveríamos ter sido” – eis to einai[18].
A morte do homem é “o salário do pecado[19]”.
É uma perda e uma corrupção. E, desde a Queda, o mistério da vida foi deslocado
pelo mistério da morte. O que significa “morrer” para o homem? O que de fato
morre, é obviamente o corpo, porque somente o corpo é mortal, e falamos sempre
da alma “imortal”. Nas filosofias de hoje em dia, a “imortalidade da alma” é
enfatizada a um ponto tal, que a “mortalidade do homem” é quase ignorada. Na
morte, essa existência externa, visível e corporalmente terrena cessa. Mas, por
algum instinto profético, dizemos que quem morre “é o homem”. Pois a morte
certamente interrompe a existência humana, embora se admita que a alma humana
seja “imortal” e que a personalidade seja indestrutível. Assim, a questão da
morte é, em primeiro lugar, a questão do corpo humano, da corporeidade do
homem. E o Cristianismo proclama não apenas a vida póstuma da alma imortal,
como ainda a ressurreição do corpo. O homem se tornou mortal depois da Queda, e
ele realmente morre. E a morte do homem se torna uma catástrofe cósmica. Pois
no homem que morre a natureza perde seu centro imortal, e é como se ela
morresse no homem. O homem foi extraído da natureza, ele foi feito do pó da
terra. Mas de certa forma ele foi retirado da natureza, porque foi Deus quem
soprou nele o sopro da vida. São Gregório de Nissa comenta da seguinte forma a
narrativa do Gênesis: “Pois Deus, tomou o pó da terra, moldou o homem e com Seu
próprio sopro colocou vida na criatura formada, de modo a que os elementos
terrestres pudessem ser elevados por sua união com o Divino, e de forma que a
Divina graça num mesmo plano pudesse se estender uniformemente a toda a
criação, misturando a natureza inferior com aquela que está acima do mundo”. O
homem é uma espécie de “microcosmo”, todos os tipos de vida se encontram
combinados nele, e somente nele o mundo todo entra em contato com Deus.
Consequentemente, a hipóstase do homem é capaz de alienar de Deus toda a
criação, devastá-la e privá-la de Deus. A Queda do homem fragmentou a harmonia
cósmica. O pecado é desordem, desacordo, ausência de lei. Estritamente falando,
somente o homem morre. A morte, com efeito, é uma lei da natureza, uma lei da
vida orgânica. Mas a morte do homem implica sua queda ou emaranhamento dentro
do movimento cíclico da natureza, exatamente o que não era para ter ocorrido.
Como disse São Gregório, “a mortalidade foi transferida da natureza dos animais
irracionais para a natureza que fôra criada para a imortalidade”. Somente para
o homem a morte é contrária à natureza e a mortalidade consiste num mal.
Somente o homem é ferido e mutilado pela morte. Na vida genérica dos animais
irracionais, a morte constitui antes um momento natural no desenvolvimento das
espécies; ela é mais uma expressão do poder regenerador do que de uma
enfermidade. Naturalmente, com a queda do homem, a mortalidade, mesmo na
natureza, assumiu um significado trágico e maligno. A natureza em si foi, por
assim dizer, envenenada pelo veneno fatal da decomposição do homem. Entre os
animais irracionais, a morte não passa da descontinuação da existência
individual. No mundo humano, a morte atinge a personalidade, e a personalidade
é maior do que a mera individualidade. É o corpo que se torna corruptível e
sujeito à morte através do pecado. Apenas o corpo pode se desintegrar. Mas não
é o corpo que morre, senão o homem todo, pois o homem é organicamente composto
por corpo e alma. Nem o corpo, nem a alma, representam separadamente o homem.
Um corpo sem alma não passa de um cadáver, e uma alma sem corpo é um fantasma. O
homem não é um fantasma sem cadáver, e o cadáver não é uma parte do homem. O
homem não é um “demônio sem corpo”, simplesmente confinado na prisão de um
corpo. Tão misteriosa quanto a união entre alma e corpo de fato é, a
consciência imediata do homem atesta a inteireza orgânica de sua estrutura
psicofísica. Essa inteireza orgânica da composição humana foi desde o início
enfatizada por todos os mestres Cristãos. É por isso que a separação da alma e
do corpo constitui a morte do homem em si, a descontinuação de sua existência,
de sua inteireza, isso é, de sua existência enquanto homem. Por conseguinte, a
morte e a corrupção do corpo são uma espécie de desbotamento, de desfalecimento
da “imagem de Deus” no homem. São João Damasceno, em dos seus hinos gloriosos
do Serviço do Sepultamento, diz a respeito disso: “Eu choro e me lamento,
quando contemplo a morte, e vejo nossa beleza, moldada à imagem de Deus, jazendo
desfigurada na tumba, desonrada, despojada de sua forma”. São João não fala do
corpo do homem, mas do próprio homem. “Nossa beleza à imagem de Deus” – h kata eikona Qeou plasqeisa wpaioths – não se refere ao corpo, mas ao homem. Ele é ainda uma “imagem da insondável
glória” de Deus, ainda que ferido pelo pecado – eikwn
arrhtou doxhs. E na morte se revela que o homem, essa “estátua racional”
modelada por Deus, para usarmos a expressão de São Metódio, não passa de um
cadáver. “O homem não passa de ossos secos, mau odor e comida para vermes”.
Esse é o enigma e o mistério da morte. “A morte é realmente um mistério: pois a
alma é arrancada do corpo com violência, ela é separada, pela vontade Divina,
da sua conexão e composição naturais (...) Ó maravilha! Por que fomos nós
entregues à corrupção, e por que fomos casados com a morte?”. No medo da morte,
frequentemente tão mesquinho e covarde, revela-se um profundo alarme
metafísico, não apenas uma ligação pecaminosa com a carne terrestre. No medo da
morte o pathos da totalidade humana
fica manifesto. Os Padres costumavam ver na unidade entre alma e corpo no homem
uma analogia com a unidade indivisível das duas naturezas na hipóstase única de
Cristo. A analogia pode ser enganosa. Mas, ainda por analogia, podemos falar do
homem como sendo simplesmente “uma hipóstase em duas naturezas”, não apenas de, mas precisamente em duas naturezas. E na morte essa
hipóstase humana única se quebra. Por isso se justificam o luto e as lágrimas.
O terror da morte só pode ser rebatido pela esperança na ressurreição e na vida
eterna.
Naturalmente, a morte não é apenas a auto-revelação do pecado. A morte
em si é desde logo, podemos dizer, a antecipação da ressurreição. Com a morte,
Deus não apenas pune, como cura a natureza humana decaída e arruinada. E isso
não apenas no sentido de que Ele, por meio da morte, corta pela raiz a vida
pecadora, prevenindo assim a propagação do pecado e do mal. Deus transforma a
própria mortalidade do homem num meio de cura. Na morte, a natureza humana é
purificada, como se fosse pré-ressuscitada. Essa era a opinião comum dos
Padres. Essa concepção foi colocada com grande ênfase por São Gregório de
Nissa. “A Divina Providência introduziu a morte na natureza do homem com um
desígnio específico”, disse ele, “para que, pela dissolução do corpo e da alma,
o vício possa ser apagado e para que o homem possa ser remodelado outra vez
através da ressurreição, são, livre de paixões, puro e sem nenhuma mescla com o
mal”. Nisso constitui-se especificamente a cura do corpo. Na opinião de São
Gregório, a jornada do homem além-túmulo consiste num meio de purificação. A
estrutura corporal do homem é purificada e renovada. Na morte, podemos dizê-lo,
Deus aprimora o vaso de nosso corpo numa fornalha refinadora. Pelo exercício
livre de sua vontade pecadora o homem entrou em comunhão com o mal, e nossa
estrutura misturou-se com o veneno do vício. Na morte o homem é feito em pedaços,
como um vaso cerâmico, e seu corpo é decomposto novamente na terra, de maneira
que, pela purificação da sujeira acumulada, ele possa ser restaurado em sua
forma normal, através da ressurreição. Consequentemente a morte não é um mal,
mas um benefício – euergesia. A morte é
o salário do pecado, mas ao mesmo tempo é também um processo de cura, uma
medicina, uma espécie de têmpera abrasadora da débil estrutura humana. A terra
é como que semeada com as cinzas humanas, para que possa brotar no último dia,
pelo poder de Deus; essa era a analogia Paulina. Os restos mortais são
confiados à terra para a ressurreição. A morte implica em si mesma a
potencialidade da ressurreição. O destino do homem só pode ser realizado na
ressurreição, e na ressurreição geral. Mas apenas a Ressurreição de nosso
Senhor ressuscita a natureza humana e torna possível a ressurreição geral. A
potencialidade da ressurreição inerente a cada morte foi realizada apenas em
Cristo, “primícias dos que estão adormecidos[20]”.
A redenção é, acima de tudo, um escape à morte e à corrupção, a
libertação do homem da “escravidão da corrupção[21]”,
a restauração da integridade original e da estabilidade da natureza humana. A
plenitude da redenção está na ressurreição. Ela será realizada plenamente no
“impulso” geral, quando “o último inimigo for abolido, a morte” – escatos ecqoos.
Mas a restauração da unidade interna da natureza humana só é possível pela
restauração da união do homem com Deus. A ressurreição só é possível em Deus.
Cristo é a Ressurreição e a Vida. “A menos que o homem se uma a Deus, ele
jamais poderá participar da incorruptibilidade”, diz Santo Irineu. O caminho e
a esperança da ressurreição só se revelam por meio da Encarnação do Verbo.
Santo Atanásio expressa esse ponto mais enfaticamente. A misericórdia de Deus
não permite “que a criatura que foi feita racional, e que participou do Verbo,
se arruíne e retorne à não-existência por causa da corrupção”. A violação da
lei e a desobediência não eliminam o propósito original de Deus. A abolição
desse propósito equivaleria a violar a verdade de Deus. Mas o arrependimento
humano não é suficiente. “A penitência não liberta do estado de natureza (ao
qual o homem foi relegado pelo pecado), ela apenas descontinua o pecado”. Pois
o homem não apenas pecou, como ele mergulhou na corrupção. Consequentemente o
Verbo de Deus desceu e se tornou homem, assumindo nosso corpo, “de tal maneira
que, tendo o homem se voltado para a corrupção, Ele os pudesse guiar novamente
para a incorrupção, e impulsioná-los para fora da morte pela apropriação de seu
corpo e pela graça da Ressurreição, banindo deles a morte, como uma palha
retirada do fogo”. A morte foi enxertada no corpo, e assim a vida tem que ser
outra vez enxertada nele, para que o corpo possa jogar fora a corrupção e se
revestir de vida. De outro modo, o corpo não poderá ser erguido. “Se a morte
tivesse sido afastada do corpo por um simples comando, nem por isso ele
deixaria de ser mortal e corruptível, de acordo com a natureza de nossos
corpos. Mas como isso não pode ser, ele se reveste do incorpóreo Verbo de Deus,
e assim ele já não teme a morte nem a corrupção, pois ele possui a vida como
uma vestimenta, e a corrupção foi afastada dele”. Assim, de acordo com Santo
Atanásio, o Verbo se tornou carne para abolir a corrupção na natureza humana.
Claro, a morte foi vencida, não pela irrupção da Vida no corpo mortal, mas
antes pela morte voluntária da Vida Encarnada. O Verbo se tornou encarnado
tendo em vista a morte na carne, como enfatiza Santo Atanásio. “Para aceitar a
morte, Ele tomou um corpo”, e somente através de Sua morte a ressurreição se
tornou possível.
A razão última para a morte de Cristo pode ser vista na mortalidade do
homem. Cristo sofreu a morte, mas passou por ela e superou a mortalidade e a
corrupção. Ele próprio vivificou a morte. Com Sua morte Ele aboliu o poder da
morte. “O domínio da morte foi cancelado com Tua morte, ó Poderoso”. E o
sepulcro se tornou a vivificadora “fonte de nossa ressurreição”. A partir daí,
todo sepulcro se tornou um “leito de esperança” para os fiéis. Com a morte de
Cristo, a própria morte recebeu um novo sentido e um novo significado. “Ele
destruiu a morte com a morte”.
***
Imortalidade, Ressurreição e Redenção
A morte é uma catástrofe para o homem; esse é o princípio básico de
toda a antropologia Cristã. O homem é um ser “anfíbio”, tanto espiritual como
corpóreo, e é assim que Deus o quis criar. O corpo pertence organicamente à
unidade da existência humana. E talvez seja essa a novidade mais contundente da
mensagem Cristã original. A pregação da Ressurreição, assim como a pregação da
Cruz, era uma loucura e um entrave para os Gentios. O corpo sempre repugnou a
mente Grega. A atitude geral do Grego nos primeiros tempos do Cristianismo era
fortemente influenciada pelas ideias Platônicas e Órficas, e havia uma opinião
corrente de que o corpo era uma espécie de “prisão” na qual a alma decaída
estava encarcerada e confinada. Os Gregos sonhavam mais com uma desencarnação
final completa. O famoso lema Órfico era: swma
-shma[22].
E a crença Cristã numa Ressurreição por vir só poderia confundir e aterrorizar
a mente do Gentio. Ela implicava que a prisão seria perene, que o
aprisionamento seria renovado outra vez e para sempre. A expectativa de uma
ressurreição corporal viria a calhar para os vermes da terra, sugeriu Celsus, e
ele zombava em nome do senso comum. Essa coisa sem sentido a respeito de uma
ressurreição futura parecia a ele tanto irreverente como não-religiosa. Deus
jamais faria algo tão estúpido, não realizaria um desejo tão criminoso e
caprichoso, que parecia inspirado por um amor carnal impuro e fantástico.
Celsus apelidou os Cristãos de filoswmaton
genos, “a turma do amor à carne”, e se
referia aos Docetistas[23]
com muito mais simpatia e compreensão. Tal era a atitude geral diante da
Ressurreição.
São Paulo já havia sido chamado de “tagarela” pelos filósofos
Atenienses justamente por ter pregado entre eles “Jesus e a Ressurreição[24]”.
Na opinião geral daqueles dias infiéis, um desgosto quase físico do corpo era
frequentemente expresso. Havia ainda uma influência disseminada do Oriente mais
longínquo; podemos lembrar da inundação que foi o Maniqueísmo ao se espalhar
por todo o Mediterrâneo. Santo Agostinho, ele próprio um fervente Maniqueu de
início, insinuou em suas Confessiones
que essa aversão ao corpo tinha sido a principal razão para que ele tivesse
hesitado por tanto tempo em abraçar a fé da Igreja, a fé na Encarnação.
Porfírio, em sua Vida de Plotino,
disse que este, ao que parece, “envergonhava-se por ser de carne”, e é a partir
daí que Porfírio começa sua biografia. “Dentro desse quadro mental, ele se
recusava a falar, tanto de seus antepassados e de seus pais, como de sua terra
natal. Ele jamais posaria para um escultor ou um pintor para fazer uma imagem
permanente dessa forma perecível”. “Já é suficiente que tenhamos que carregá-la
agora[25]”.
Esse ascetismo filosófico de Plotino, naturalmente, deve ser distinguido do
ascetismo Oriental, Gnóstico ou Maniqueísta. O próprio Plotino escreveu
energicamente “contra os Gnósticos”. É claro que o q eu temos aqui é apenas uma
diferença de motivos e métodos. A questão prática nos dois casos era uma só e a
mesma, a “fuga” desse mundo corpóreo, era escapar do corpo. Plotino sugeria a
seguinte analogia: dois homens vivem numa mesma casa. Um deles acusa o
construtor e sua obra, por ser feita de madeira e pedra inanimadas. O outro
elogia a sabedoria do arquiteto porque o edifício foi erguido tão habilmente.
Para Plotino, esse mundo não é mau em si, ele é a “imagem” ou o reflexo do
mundo acima dele, e talvez seja mesmo a melhor das imagens. Mesmo assim,
devemos aspirar além das imagens, da imagem para o protótipo, do mundo mais
baixo para o mais alto. E Plotino louva, não a cópia, mas o modelo. “Ele sabe
que, quando vier o tempo, ele sairá e já não terá necessidade de uma casa”.
Essa frase é muito característica. A alma deve ser liberada dos laços do corpo,
deve despir-se, e então poderá ascender à sua própria esfera. “O verdadeiro
despertar consiste na verdadeira ressurreição em relação ao corpo, não com o
corpo. Pois a ressurreição com o corpo seria não mais do que uma passagem de um
sono para outro, para alguma outra morada. O único despertar verdadeiro
consiste em escapar de todo e qualquer corpo, uma vez que o corpo é, por
natureza, oposto à natureza da alma. Tanto a origem, como a vida e a decadência
dos corpos mostram que eles não correspondem à natureza das almas”. Em todos os
filósofos Gregos o medo da impureza era mais forte do que o receio do pecado.
De fato, o pecado, para eles, significava impureza. A “natureza inferior”,
corpo e carne, a substância corporal e densa, era geralmente apresentada como a
fonte e a sede do mal. O mal provinha da poluição, não da perversão da vontade.
A pessoa deveria se libertar e se lavar dessa vergonha.
Sobre esse ponto o Cristianismo também trouxe uma nova concepção do
corpo. Desde o início, o Docetismo foi rejeitado como a mais destrutiva das
tentações, uma espécie de anti-Evangelho tenebroso, procedente do Anti-Cristo,
do “espírito da falsidade[26]”.
Isso foi fortemente enfatizado por Santo Inácio, Santo Irineu e Tertuliano. “Porque
não queremos ser despojados da nossa veste, mas revestir a outra por cima
desta, e assim, aquilo que é mortal seja absorvido pela vida[27]”.
Isso constitui precisamente a antítese do pensamento de Plotino. “Ele colocou
um ponto final aqui para aqueles que depreciam a natureza física e injuriam a
nossa carne”, comentou São João Crisóstomo. “Não é da carne, como ele disse,
que nos livramos, mas da corrupção; o corpo é uma coisa, a corrupção é outra.
Nem o corpo é a corrupção, nem a corrupção é o corpo. É verdade que o corpo é
corrupto, mas ele não é a corrupção. O corpo morre, mas ele não é a morte. O
corpo é obra de Deus, mas a morte e a corrupção penetraram nele pelo pecado.
Desse modo, diz ele, eu vou me livrar dessa coisa estranha que não me pertence.
E essa coisa estranha não é o corpo, mas a corrupção. A vida futura esmaga e
abole, não o corpo, mas o que se agarrou a ele, a corrupção e a morte”. Sem
dúvida alguma, Crisóstomo expressou aqui o sentimento comum da Igreja. “Devemos
esperar pela primavera do corpo”, como colocou um apologista Latino do século
II – expectandun nobis etiam et cor ports
ver est. Um acadêmico russo, Vladimir Ern, falando sobre as catacumbas,
relembrou alegremente essas palavras em suas cartas desde Roma. “Não existem
palavras que melhor possam descrever a impressão de sereno júbilo, o sentimento
de repouso e a inabalável tranquilidade dos primeiros locais Cristãos de
enterramento. Aqui o corpo jaz, como trigo sob a mortalha do inverno,
aguardando, antecipando e prevendo a Primavera eterna do outro mundo”. Isso é
similar ao que foi posto por São Paulo. “Assim é a ressurreição dos mortos. Ele
é semeado na corrupção, mas se ergue na incorrupção[28]”.
É como se a terra fosse semeada com cinzas humanas para que possa dar frutos,
pelo poder de Deus, no Grande Dia. “Como sementes lançadas ao solo, não
perecemos ao morrer, mas, tendo sido semeados, erguemo-nos novamente”. Cada
sepulcro é desde já o altar da incorrupção. É como se a morte fosse iluminada
pela luz de uma esperança triunfante.
Existe uma distinção profunda entre o ascetismo Cristão e o ascetismo
pessimista do mundo não-Cristão. O Padre Pavel Florenskii descreve esse
contraste da seguinte maneira: “Um está baseado na má notícia de um mundo
dominado pelo mal, ou outro na boa notícia da vitória, da conquista sobre o mal
no mundo. O primeiro oferece superioridade, o segundo, santidade. O primeiro
tipo de asceta se retira de modo a escapar, a se esconder, o segundo se retira
para se tornar puro, para conquistar. A continência pode ser inspirada por
diferentes motivos e com diferentes propósitos. Certamente havia alguma verdade
nas concepções, tanto Órficas como Platônicas. E também de fato frequentemente
a alma vive sob a escravidão da carne. O Platonismo estava certo em seu esforço
para libertar a alma racional da escravidão dos desejos da carne, em sua luta
contra a sensualidade. E alguns elementos desse ascetismo Platônico foram
absorvidos pela síntese Cristã. Mas, ainda assim, o objetivo era muito
diferente nos dois casos. O Platonismo anseia pela purificação apenas da alma.
O Cristianismo insiste na purificação do corpo igualmente. O Platonismo prega a
desencarnação final. O Cristianismo proclama a transfiguração cósmica última. A
existência corporal em si deve ser espiritualizada. Existe a mesma antítese que
há entre a expectativa e a aspiração escatológicas: “despir-se” e
“revestir-se”, novamente e para sempre. E, por estranho que possa parecer, a
esse respeito Aristóteles está mais perto do Cristianismo do que Platão.
Na interpretação filosófica de sua esperança escatológica, a teologia
Cristã se apega a Aristóteles desde o princípio. Sobre esse ponto, o escritor
de prosa entre uma multidão de poetas, sóbrio entre inspirados, vai mais alto
do que o “divino” Platão. Essa preferência tendenciosa pode parecer ao mesmo
tempo inesperada e estranha. Pois, estritamente falando, não existe, nem pode
existir em Aristóteles qualquer destino humano post mortem. Em sua interpretação, o homem é um ser inteiramente
terrestre. Nada que seja realmente humano passa além do túmulo. O homem é
completamente mortal, centímetro por centímetro, assim como tudo o mais na
terra; ele morre para jamais retornar. Aristóteles simplesmente nega a
imortalidade pessoal. Seu ser singular não é uma pessoa. E o que de fato
sobrevive não é propriamente humano e não pertence ao indivíduo, mas é um
elemento “divino”, imortal e eterno. Mas na própria fraqueza de Aristóteles
reside sua força. Aristóteles tem um entendimento real da unidade da existência
humana. Para Aristóteles, o homem é acima de tudo um ser individual, um
organismo, uma unidade viva. E o homem é uno em sua dualidade, como um “corpo
animado” (to enyukon); os dois
elementos que existem nele só existem juntos, numa correlação concreta e
indivisível. No “corpo”, a matéria é “conformada” pela alma, e a alma só se
realiza em seu corpo. “A partir daí não há necessidade de inquirir em que
medida a alma e o corpo são uma só coisa, do mesmo modo como a cera e o timbre (to schma) são um só, ou, em geral, assim como
a matéria de alguma coisa é a mesma coisa que aquilo que é feito dessa matéria[29]”.
A alma é justamente a “forma” do corpo (eidos kai morjnn, 407b 23; logos tis kai eidos, 411ª 12), ela é seu “princípio” e
seu “termo” (aqrch e telos), seu ser de fato e verdadeiro. E
Aristóteles cunha um novo termo para descrever essa correlação peculiar: a alma
é enteleceia, “a primeira realidade do
corpo natural” (enteleceia h prwth swmatos fusikon,
412a 27). Alma e corpo não são para Aristóteles dois elementos, combinados ou
conectados entre si, mas simplesmente dois aspectos da mesma realidade
concreta. “Juntos, a alma e o corpo constituem o animal. Assim, não é preciso
provar que a alma não pode ser separada do corpo[30]”.
A alma constitui a realidade funcional do correspondente corpo. “Alma e corpo
não podem ser definidos fora dessa relação mútua; um corpo morto é propriamente
somente matéria; pois a alma é a essência, a verdadeira existência daquilo a
que chamamos corpo”. Uma vez que essa unidade funcional entre alma e corpo é
rompida pela morte, já não subsiste nenhum organismo, e o cadáver já não
constitui um corpo, e um homem morto já não pode ser chamado de homem, de forma
alguma. Aristóteles insistia na completa unidade de cada existência concreta,
tal como dada hic et nunc. A alma
“não é o corpo, mas algo que pertence ao corpo (swmatos deti), e que assim reside no corpo, e, o que
é mais importante, num corpo específico (kai en
swmati toioutw). Nossos predecessores estavam errados em se esforçar
para vestir a alma num corpo sem uma determinação posterior da natureza e das
qualidades desse corpo, embora não possamos sequer encontrar qualquer das duas
coisas ao acaso sem que uma implique a outra (tou
tucontos ... to tucon). Pois a
realidade de cada coisa naturalmente se desenvolve na potencialidade de cada
coisa; em outras palavras, de maneira apropriada” (th eikeia ulh, 414a 20).
A ideia da “transmigração” das almas estava assim igualmente excluída
para Aristóteles. Cada alma habita seu “próprio” corpo, que ela cria e forma, e
cada corpo possui sua “própria” alma, como seu princípio vital, “eidos” ou forma. Essa antropologia era
ambígua e sujeita a perigosas interpretações. Ela conduz facilmente a
simplificações biológicas e a se transformar num naturalismo cru, no qual o
homem é quase completamente igualado aos outros animais. Essa era também a
conclusão de alguns seguidores do Stagirita, de Aristoxenos e Dikaerkos, para
quem a alma não passava de uma “harmonia”, ou de uma disposição do corpo (armonia ou tonos,
“tensão), e também de Strato, etc. Já não se fala mais de uma alma imaterial,
de uma razão separada, de um puro pensamento. O objeto da ciência é a alma incorporada,
a alma unida ao corpo. A imortalidade é negada abertamente. A alma desaparece
na medida em que o corpo morre; eles possuem um destino comum. Mesmo Teofrastes
e Eudemo não acreditam na imortalidade. Para Alexandre de Afrodisias, a alma
era apenas um eidos enulon - um “tipo de eidos”. O próprio Aristóteles teve dificuldades para escapar a
esses perigos inerentes à sua concepção. É certo que o homem, para ele, era um
“ser inteligente”, e que a faculdade de pensar constituía sua marca distintiva.
Ainda assim, a doutrina do Nous não
cabia muito bem no quadro geral da psicologia Aristotélica. Ele é obviamente a
parte mais obscura e complicada do sistema. Qualquer que seja a explicação
dessa incoerência, o percalço está aí. “O fato é que a posição do Nous no sistema é anômala”. O
“intelecto” não pertence à unidade concreta do organismo individual, e ele não
é um enteleceia de nenhum corpo
natural. Ele é antes um elemento “divino” e alienígena, que provém de fora, de
certo modo. Trata-se de uma “espécie distinta de alma” (fushs genos eteron), separado do corpo, que “não se
mistura” com a matéria. Ele é impassível, imortal e eterno e, portanto,
separável do corpo, “assim como aquilo que é eterno o é do que é perecível”.
Esse intelecto impassível ou ativo sobrevive de fato a toda existência
individual, mas não pertence propriamente aos indivíduos e não transmite imortalidade
alguma aos seres particulares. Alexandre de Afrodisias parece ter captado a
ideia principal do Mestre. Ele inventou o termo: nous poihtikos. ele não é de modo algum uma parte
ou um poder da alma humana. Ele sobrevém como algo que realmente provém de
fora. Trata-se de uma fonte comum e eterna de todas as atividades intelectuais
nos indivíduos, mas que não pertence a nenhum deles. Antes, trata-se de uma
substância auto-existente, eterna, imperecível, de uma energia imaterial,
desprovida de toda matéria e potencialidade. E, obviamente, não pode haver
senão uma única substância assim. O nous poihtikos não é apenas “divino”, ele deve ser
de fato identificado com a própria divindade, com a causa primeira de toda
energia e movimento.
A verdadeira falha de Aristóteles não estava em seu “naturalismo”, mas
no fato de que ele não via nenhuma permanência no indivíduo. Mas essa era
realmente uma falha de toda a filosofia antiga. Platão tinha a mesma estreiteza
de visão. Para além do tempo, o pensamento Grego só conseguia enxergar o
“tipo”, e nada realmente pessoal. A própria personalidade era pouco conhecida
nos tempos pré-Cristãos. Hegel sugeriu, em seu Aesthetics, que a escultura fornecia a chave para toda a
mentalidade Grega. Recentemente, um acadêmico Russo, Alexei Fedorovich Losev,
colocou que toda a filosofia Grega constituía um “simbolismo escultural”; ele
estava pensando especificamente no Platonismo. “Contra um fundo escuro, como
resultado de uma interação e um conflito entre luz e sombra, ali está um
orgulhoso e majestoso corpo, cego, sem cor, frio, marmóreo e divinamente belo,
uma estátua. E o mundo é essa estátua, e os deuses são estátuas; também a
cidade-estado, os heróis, os mitos, as ideias, tudo oculta sob si essa intuição
escultural originária (...) Não existe personalidade, nem olhos, nem uma
individualidade espiritual. Existe um “algo”, mas não um “alguém”, existe um
“isto” individualizado, mas não uma pessoa com seu próprio nome (...) Não
existe ninguém, na verdade. Existem corpos, existem ideias. O caráter
espiritual das ideias foi morto pelo corpo, mas o calor do corpo está
restringido pela ideia abstrata. O que existe são estátuas, belas, mas frias e
ditosamente indiferentes”. E ainda assim, no esquema geral dessa mentalidade
impessoalista, Aristóteles sentiu e entendeu p indivíduo mais do que qualquer
outro. Ele chegou mais perto do que todos à verdadeira concepção da personalidade
humana. Ele proveu os filósofos Cristãos de todos os elementos sem os quais uma
concepção adequada da personalidade não poderia ser construída. Sua força
consistiu justamente em seu entendimento da totalidade empírica da existência
humana.
A concepção de Aristóteles foi radicalmente transformada em sua
adaptação Cristã, pois então abriram-se novas perspectivas, e todos os termos
receberam novos significados. Mesmo assim, não se pode deixar de reconhecer a
origem Aristotélica das principais ideias escatológicas da teologia Cristã
primitiva. Encontramos essa cristianização do Aristotelismo em Orígenes, e em
certa medida em São Metódio de Olímpia e mais tarde em São Gregório de NIssa. A
própria ideia de enteleceia passou a
receber uma nova profundidade na experiência da vida espiritual. O termo em si
nunca foi utilizado pelos Padres, mas não há dúvidas quanto às raízes
Aristotélicas de suas concepções. A quebra entre o intelecto, impessoal e
eterno, e a alma, individual, porém mortal, foi curada e superada pela nova
autoconsciência de uma personalidade espiritual. A própria ideia de
personalidade constituiu uma grande contribuição Cristã para a filosofia. E
mais uma vez, estamos aqui diante também de um agudo entendimento da tragédia
da morte.
O primeiro grande ensaio sobre a Ressurreição foi escrito na metade do
século II por Atenágoras de Atenas. Dentre os muitos argumentos colocados por
ele, sua referência à unidade e à integridade do homem é de particular
interesse. Atenágoras prossegue desde o fato dessa unidade até a futura
ressurreição. “Deus não concedeu uma existência independente, tampouco uma
vida, nem para a natureza da alma em si, nem para a natureza do corpo
separadamente, mas para o homem, composto de corpo e alma, de tal maneira a que
essas mesmas partes das quais ele se compõe, uma vez que ele nasce e vive,
possam elas alcançar ao término de sua vida um fim comum; a alma e o corpo
compõem no homem uma única entidade viva”. Não se pode falar em homem, enfatiza
Atenágoras, se a inteireza dessa estrutura se romper, pois então a identidade
do indivíduo se rompe também. A estabilidade do corpo, sua continuidade em sua
própria natureza, deve corresponder à imortalidade da alma. “A entidade que recebe
o intelecto e a razão é o homem, e não apenas a alma. Por conseguinte, o homem
deve permanecer para sempre composto de alma e corpo. E isso não é possível se
não houver ressurreição. Pois, se não houver ressurreição, a natureza humana já
não é mais humana”.
Aristóteles concluiu da mortalidade do corpo que a alma individual,
que não passa do poder vital do corpo, é também mortal. Ambos perecem juntos.
Atenágoras, ao contrário, infere a ressurreição do corpo a partir da
imortalidade da alma racional. Ambos se mantêm sempre juntos. A ressurreição,
entretanto, não consiste num simples retorno ou repetição. O dogma Cristão da
Ressurreição Geral não constitui um “eterno retorno”, como era professado pelos
Estoicos. A ressurreição é uma verdadeira renovação, a transfiguração, a
reforma da totalidade da criação. Ela não é apenas um retorno ao que se passou,
mas um soerguimento, um incremento, um aprimoramento de algo melhor e mais
perfeito. “O que é semeado não é a planta que virá a ser, mas a semente nua
(...) O que é semeado é um corpo físico, o que cresce é um corpo espiritual[31]”.
Nisso está implicada uma mudança considerável. E existe aqui uma real
dificuldade filosófica. Como é possível pensar nessa “mudança” de modo a que a
“identidade” não se perca? Encontramos nos textos antigos não mais do que uma
asserção sobre essa identidade. A distinção de São Paulo entre o corpo
“natural” (swma fusikon) e o corpo
“espiritual” (swma pneumatikon)
obviamente requer interpretações posteriores[32].
No período das primeiras controvérsias com os Docetistas e os
Gnósticos, tornou-se urgente uma resposta precisa e cuidadosa. Orígenes foi
provavelmente o primeiro a tentar. A escatologia de Orígenes foi, desde o
começo, vigorosamente denunciada por muitos, até com boas razões, e sua
doutrina sobre a Ressurreição foi talvez a razão principal pela qual a
Ortodoxia foi interpelada. O próprio Orígenes jamais reclamou para si uma
autoridade formal por sua doutrina. Ele meramente ofereceu algumas explicações,
para serem testadas e checadas pela Igreja. Para ele não era o bastante
simplesmente referir-se à onipotência Divina, como o fizeram os primeiros
autores, ou citar algumas passagens da Santa Escritura. A preocupação maior era
a de mostrar como a doutrina da Ressurreição cabia na concepção geral do
destino e da finalidade da vida humana. Orígenes explorava o caminho do meio
entre a concepção carnal dos simpliciores[33]
e a negação dos Docetistas: fugere se et
nostrorum carries, et haereticorum phantasmata, como colocou São Jerônimo.
E ambos ficaram insatisfeitos e ofendidos.
A Ressurreição é, de fato, um artigo de fé. Os mesmos indivíduos
levantar-se-ão, e a identidades individual dos corpos será preservada. Mas,
para Orígenes, isso não implica identidade alguma com a substância material, nenhuma
identidade de estado. O corpo será, de fato, transfigurado ou transformado na
Ressurreição. De qualquer modo, o corpo que irá se levantar será um corpo
“espiritual”, e não um corpo carnal. Orígenes retoma a comparação de São Paulo.
Esse corpo carnal, o corpo da vida terrena, é sepultado na terra, como uma
semente é semeada, e se desintegra. Uma coisa é semeada, e outra nasce. O poder
germinador não se extingue no corpo morto, e, no tempo devido, pela palavra de
Deus, o novo corpo se levantará, como o broto que se projeta da semente. Algum
princípio corporal permanece indestrutível e não é afetado pela morte. O termo
usado por Orígenes era obviamente Aristotélico: “to
eidos”, “espécie” ou “forma”. Mas não era a alma que Orígenes
considerava como sendo a forma do corpo. Antes, tratava-se de algum tipo de
corporeidade potencial, pertencente a cada alma e a cada pessoa. Seria o
princípio formador e vivificador do corpo, assim como uma semente capaz de
germinar. Orígenes também utilizou o termo logos
spermatikos, ratio seminalis. É impossível esperar que todo o corpo seja
restaurado na ressurreição, uma vez que a substância material muda tão
rapidamente, e não é a mesma no corpo depois de dois dias, e certamente não
poderá jamais reintegrar-se outra vez. A substância material nos corpos
ressuscitados não será a mesma dos corpos dessa vida (to ulikon upokeimenon oudepote ecei tauton). Ainda assim, será o
mesmo corpo, assim como nosso corpo é o mesmo ao longo dessa vida, apesar de
todas as mudanças que acontecem em sua composição geral. E, mais uma vez, um
corpo deve estar adaptado ao meio, às condições de vida, e, obviamente, no
Reino dos Céus os corpos não poderão ser os mesmos, como são aqui na terra. A
identidade individual não é comprometida, porque o “eidos” de cada corpo não é destruído (to eidos to carakter izon to
swma). Trata-se do próprio principium
individuationis. Para Orígenes “o próprio corpo é seu princípio vital”. Seu
eidos corresponde de perto à enteleceia de Aristóteles. Mas, para
Orígenes, essa “forma” ou poder germinativo é indestrutível; isso torna
possível a construção de uma doutrina da ressurreição. Esse “´princípio de
individuação” é também um principium
surgendi. Nesse corpo definido as partículas materiais estão compostas ou
arranjadas por essa “forma” individual, ou logos.
Portanto, seja lá qual for o tipo de partícula com o qual é formado o corpo
ressuscitado, a identidade estrita da individualidade psicofísica não é
modificada, uma vez que o poder germinativo permanece inalterado. Orígenes
presume que a continuidade da existência individual é suficientemente
assegurada pela identidade do princípio reanimador.
Esse ponto de vista foi mais de uma vez repetido posteriormente,
especialmente sob a influência renovada de Aristóteles. E a questão permanece
aberta da moderna teologia Romana: em que medida o reconhecimento da identidade
material dos corpos ressuscitados com os corpos mortais pertence à essência do
dogma? Toda a questão gira mais em torno
de uma interpretação do que de um problema de fé. Podemos mesmo sugerir que em
seu tempo Orígenes não expressou tanto sua opinião, quanto refletiu uma opinião
corrente. Existem muitas coisas questionáveis nas opiniões escatológicas de
Orígenes. Elas não podem ser vistas como um todo coerente. E não é fácil
reconciliar sua concepção “Aristotélica” sobre a Ressurreição com uma teoria da
pré-existência das almas, ou com a concepção dos ciclos recorrentes e
periódicos de mundos até a aniquilação final da matéria. Não existe uma
concordância total entre essa teoria da Ressurreição e a doutrina da “apokatastasis[34]
geral”. Muitas das ideias escatológicas de Orígenes podem ter sido mal
compreendidas. Mesmo assim, sua especulação sobre a relação entre o corpo
carnal dessa vida e o corpo permanente da ressurreição foi um passo importante
na direção da concepção sintética da Ressurreição. Seu maior opositor, São
Metódio de Olímpia, parece não o ter entendido bem. A crítica de São Metódio
chegou ao ponto da completa rejeição de toda a concepção de eidos. Não será a forma do corpo tão mutável
quanto a substância material? Pode a forma realmente sobreviver ao próprio
corpo, ou antes, não se dissolverá e se decomporá ela, quando o corpo do qual é
forma morre e cessa de existir como um todo? Em qualquer caso a identidade da
forma não constitui garantia da identidade pessoal, se a totalidade do
substrato material for inteiramente diferente. Para São Metódio a “forma”
significa antes meramente o aspecto externo do corpo, e não seu poder vital
interno, como o é para Orígenes. E muitos de seus argumentos simplesmente
esquecem esse ponto. Mas sua ênfase na inteireza da composição humana foi um
complemento real ao excessivo formalismo de Orígenes.
Em sua doutrina escatológica, São Gregório de Nissa se esforçou para
reunir essas duas concepções, para conciliar as verdades de Orígenes e Metódio.
E sua tentativa de síntese teve uma importância excepcional. São Gregório
começou pela unidade empírica do corpo e da alma, sua dissolução e sua morte. E
o corpo separado da alma, despojado de seu “poder vital” (zwtikh dunamis),
por meio do qual os elementos corpóreos são mantidos e enlaçados juntos durante
a vida, se desintegra e é levado pela circulação geral da matéria. A própria
substância material, naturalmente, não é destruída – apenas o corpo morre, não
seus elementos. Além disso, na própria desintegração as partículas do corpo em
dissolução preservam em si certos “sinais” ou “marcas” de sua primitiva conexão
com sua alma (ta shmeia tou hmeterou
sugcrimatos). Uma vez mais, em cada alma algumas “marcas corporais” são
preservadas, como num pedaço de cera, alguns sinais de união. Por meio de um
“poder de reconhecimento” (gnwstikh th dunamei),
mesmo na separação causada pela morte, a alma de algum modo permanece próxima
dos elementos de seu próprio corpo decomposto (tou
oikeiou ejaptomenh). No dia da Ressurreição, cada alma será capaz de
“reconhecer” seus elementos familiares por meio dessas marcas duplas. Esse é o
“eidos” do corpo, sua “imagem
interior”, ou “tipo”. São Gregório compara esse processo de restauração do
corpo com a germinação de uma semente, com o desenvolvimento do feto humano.
Ele difere radicalmente de Orígenes na questão da substância que irá constituir
os corpos da ressurreição, e aqui ele se aproxima de São Metódio. Se os corpos
ressuscitados fossem inteiramente construídos a partir de novos elementos, isso
“não seria uma ressurreição, mas a criação de um novo homem” – kai ouketi an eih to toiouton anastasis, alla kainou anqrwpou dhmiourgia. O corpo ressuscitado deverá ser reconstruído
a partir de seus elementos originais, marcados ou selados pela alma no dia de
sua encarnação; de outro modo, ele seria simplesmente outro homem. Não
obstante, a ressurreição não constituirá um mero retorno, nem será, em
absoluto, uma repetição da existência presente. Essa repetição seria realmente uma “miséria
interminável”. Na ressurreição, a natureza humana será restaurada não à sua condição
presente, mas à sua condição normal e “original”. Estritamente falando, ela
será conduzida a esse estado pela primeira vez, no qual ela deveria ter sempre
estado (mas nunca o fez no passado), se o pecado não tivesse entrado no mundo
pela Queda. E tudo na existência humana, que está conectado com essa
instabilidade, não constitui tanto um retorno, quanto uma consumação. Esse é o
novo modo da existência humana. O homem ressuscita para a eternidade, a forma
do tempo desaparece. E na corporeidade ressuscitada toda sucessão e toda
mudança será abolida e condensada. Não se tratará apenas de uma apokatastasis, mas de uma recapitulatio. O excedente do mal,
aquilo que pertence ao pecado, é eliminado. Mas de modo algum isso constitui
uma perda. A plenitude da personalidade não é prejudicada por essa subtração,
pois esse excedente não pertence de modo algum à personalidade. De qualquer
modo, nem tudo da composição humana deverá ser restaurado. E, para São
Gregório, a identidade material do corpo da ressurreição para com o corpo
mortal significa, antes, a realidade última da vida que foi vivida, que deve
ser transferida para a era futura. Aqui, mais uma vez, ele difere de Orígenes,
para quem a vida empírica e terrestre constituía apenas um episódio transitório
a ser finalmente esquecido. Para São Gregório, a identidade da forma, isso é, a
unidade e a continuidade da existência humana, era o único ponto importante.
Ele manteve a mesma concepção “Aristotélica” da conexão única e íntima entre a
alma individual e o corpo.
A própria ideia de algo único foi radicalmente modificada na filosofia
Cristã, se comparada com a filosofia Grega pré-Cristã. Na filosofia Grega,
tratava-se de uma singularidade “escultural”, uma cristalização invariável de
uma imagem congelada. Na experiência Cristã, trata-se da singularidade da vida
que foi experimentada e vivida. No primeiro caso, havia uma identidade
atemporal, no segundo, uma singularidade no tempo. A concepção total do tempo é
diferente nos dois casos.
***
Tempo, Eternidade e Redenção
A filosofia Grega não conhecia, nem estava preparada para admitir
nenhuma passagem do tempo para a eternidade – o temporal parecia-lhe, eo ipso, transitório. Aquilo que está
acontecendo não pode jamais se tornar perene. O que nasce deve,
inevitavelmente, morrer. Somente o que não nasce ou que não tem origem pode
persistir. Tudo o que tem um começo deve ter um fim. Somente o que não tem
começo pode ser permanente, ou “eterno”. Assim sendo, para um filósofo Grego
admitir a imortalidade futura implicava por princípio pressupor uma
preexistência eterna. Sendo assim, todo o significado do processo histórico se
mostra como uma espécie de descida desde a eternidade para o tempo. O destino
do homem depende mais de seu germe inato do que se suas aquisições criativas.
Para um Grego, o tempo era simplesmente um modo de existência rebaixado e
reduzido. Estritamente falando, dentro do tempo nada é produzido ou adquirido,
nem tampouco existe nada a ser produzido ou adquirido. As realidades “eternas”
e invariáveis são meramente como que “projetadas” numa esfera inferior. Nesse
sentido, Platão chamou o tempo de “imagem móvel da eternidade” – eikwn kinhton
tina aiwnos poihsai[35].
Platão se referia ao tempo astronômico, ou seja, na rotação dos céus. Não se
visualizava nenhuma progressão. Ao contrário, o tempo “imitava” a eternidade, e
“se desenrolava de acordo com as leis do número[36]”,
de modo a se parecer ao máximo possível com a eternidade. O tempo não passa de
uma permanente reiteração de si mesmo. A ideia básica é de uma reflexão, não de
uma realização. Pois tudo aquilo que merece existir, existe realmente de um
modo mais perfeito antes de todos os tempos, numa invariabilidade estática
atemporal, e não há nada que possa ser acrescentado a essa plenitude perfeita. Por
conseguinte, tudo o que acontece deve ser absolutamente transitório. Tudo é
perfeito e completo, e nada há que precise ser aperfeiçoado ou completado.
Sendo assim, todo peso do tempo, com sua rotação de inícios e fins, se torna
enfadonho e sem sentido. Não existe sentido numa obrigação criativa na mente
Grega. A impassibilidade, e mesmo a indiferença do sábio, constituem o clímax
da perfeição. O sábio não está implicado nem se distrai com as vicissitudes da
ordem temporal. Ele sabe que tudo está acontecendo de acordo com as eternas
leis e medidas invioláveis. Em meio ao tumulto dos eventos, ele aprendeu a
contemplar a harmonia eterna e invariável do Cosmo. O antigo filósofo sonhava
com a eternidade, enquanto vivia fora do tempo. Ele sonhava com escapar desse
mundo para um outro, imóvel, impassível e permanente. Daí advém o sentido de
destino que era tão típico antes de Cristo. Esse era o clímax e o limite da
filosofia antiga. A perspectiva temporal da filosofia antiga estava para sempre
fechada e limitada. Ainda assim, sendo o Cosmo eterno, não existirá fim para as
“revoluções” cósmicas. O Cosmos tem uma existência periódica, como um relógio.
O mais elevado símbolo da vida consiste num círculo recorrente. Como colocou
Aristóteles, “o círculo é uma coisa perfeita” – e apenas o círculo, não
qualquer linha reta. Isso explica também a voz corrente que afirma que os
assuntos humanos formam um círculo, e que existe um círculo em todas as coisas
que possuem um movimento natural, tanto vindo à existência quanto deixando-a.
Isso é devido ao fato de que todas as coisas são discriminadas pelo tempo, e os
fins e começos são pensados como formando um círculo; pois o próprio tempo é
pensado como um círculo. Toda essa concepção está obviamente baseada na
experiência astronômica. De fato, os movimentos celestes são periódicos e
recorrentes. Toda rotação se cumpre dentro de um dado período – o “Grande Ano”,
megas eniautos.
A partir daí inicia-se uma repetição, um novo círculo, ou ciclo. Não existe uma
progressão contínua no tempo, mas um “eterno retorno”, uma “cicloforia”. Os
Pitagóricos parecem ter sido os primeiros a professar com clareza uma exata
repetição. Eudemo se refere a essa concepção Pitagórica: “Se acreditarmos em
Pitágoras, então, dentro de um certo tempo eu estarei mais uma vez lendo isso
para vocês, com a mesma vara nas mãos, e todos vocês, então como agora, estarão
sentados diante de mim, e da mesma maneira tudo o mais acontecerá novamente”.
Em Aristóteles, essa concepção periódica do Universo recebe um desenho
científico estrito e é elaborado dentro de um sistema coerente da Física. Mais
tarde, essa ideia de retornos periódicos será retomada pelos Estoicos.
Os primeiros Estoicos professaram uma dissolução periódica (ekpurwsis) e a palingenesis de todas as coisas, de modo a que cada minuto seria
reproduzido exatamente. Haverá outra vez um Sócrates, o filho de Sofrônico e
Fenarete, e ele se casará com Xantipa, e será outra vez traído por Anitos e
Meletes. A mesma ideia podemos encontrar em Cleanto e Crísipo, em Poseidônio e
Marco Aurélio, e em muitos outros. Esse retorno era o que os Estoicos chamavam
de “restauração universal” – apokatastasis twn pantwn. Esse era obviamente um termo
astronômico. Certamente existe alguma diferença, mas evidentemente progresso
algum, seja qual for. E num círculo todas as posições são relativas de fato.
Trata-se de uma espécie de perpetuum
mobile cósmico. Todas as existências individuais são envolvidas sem
esperança nessa rotação cósmica perpétua, nesses ritmos cósmicos e nesses
“cursos astrais” – isso é precisamente o que os Gregos costumavam chamar de
“destino” ou “fado”, h eimarmenh: vis positionis astrorum. Devemos ter em
mente que essa repetição exata de mundos não implica necessariamente
continuidade alguma de existências individuais, qualquer sobrevivência ou permanência
dos indivíduos, nenhuma imortalidade individual. O próprio Universo continua a
ser numericamente o mesmo, suas leis continuam imutáveis e invariáveis, e cada
mundo seguinte se assemelhará exatamente ao anterior em todos os detalhes. Mas,
estritamente falando, não se exige para tanto, que haja alguma sobrevivência
individual. As mesmas causas inevitavelmente produzirão os mesmos efeitos. Nada
de realmente novo pode acontecer. Existe uma continuidade no Cosmo, mas de modo
algum uma verdadeira continuidade de indivíduos.
Pelo menos, essa era a visão de Aristóteles, dos Aristotélicos e de
alguns Estoicos. Essa ideia periódica foi também mantida pelos Neoplatônicos.
Tratava-se de uma miserável caricatura da ressurreição. A permanência dessas
rotações, esse pesadelo de uma predestinação cósmica invariável, um verdadeiro
aprisionamento de todas as existências, fizeram dessa teoria algo de assustador
e tedioso. Não existe uma história real. “O movimento cíclico e a transmigração
das almas não é história, observa Losev espirituosamente. “Tratava-se de uma
história construída segundo um padrão astronômico, na verdade, era como se
fosse em si uma espécie de astronomia”. O próprio sentimento ou a apreensão do
tempo foi radicalmente transformado pelo Cristianismo. O tempo tem começo e
fim, mas é no tempo que o destino humano se realiza. O próprio tempo é essencialmente
único, e nunca retorna. E a Ressurreição Geral constitui o limite final desse
tempo único, desse destino único de toda a criação. Na filosofia Grega, um
ciclo, ou uma rotação, eram os símbolos do tempo. Na filosofia Cristã o tempo é
simbolizado antes por uma linha, uma lança ou uma flecha. Mas a diferença é
ainda mais profunda. De um ponto de vista Cristão, o tempo não consiste nem
numa rotação infinita, nem numa infinita progressão que nunca atinge sua meta[37].
O tempo não é meramente uma sequência de momentos, nem uma forma abstrata da
multiplicidade. O tempo é vetorial e finito. A ordem temporal é organizada
desde dentro. A concretude do propósito conecta por dentro o fluxo de eventos
num todo orgânico. Os eventos são precisamente eventos, não meros
acontecimentos que passam. A ordem temporal não é p reino da privação, como o
era para a mente Grega. Ela é mais do que uma correnteza. Trata-se de um
processo criativo, no qual aquilo que foi trazido do nada à existência pela
Vontade Divina, ascende em direção à sua consumação última, quando o Divino
propósito se realizar, no último dia. E o centro da história é a Encarnação e a
vitória do Senhor Encarnado sobre a morte e o pecado. Santo Agostinho apontou
essa mudança trazida pelo Cristianismo: viam
rectam sequentes, quae nobis est Christus, eo duce ac Salvatore, a vano et inepto
impiorium circuitu iter fidem mentemque avertamus[38].
São Gregório de Nissa descreve nos seguintes termos a vetorialidade da
história: “Quando a humanidade alcançar sua plenitude, então infalivelmente,
esse fluxo móvel da natureza cessará, por ter encontrado seu necessário fim; e
essa vida será substituída por outro modo de existência, distinto do atual, que
consiste em nascimento e destruição. Quando nossa natureza, na devida ordem,
preencher o curso do tempo, então, infalivelmente, esse movimento fluido,
criado pela sucessão das gerações, chegará a um fim. O preenchimento do
Universo tornará impossível qualquer avanço ou progresso ulterior, e então a
plenitude total das almas retornará do estado informal e disperso para um
estado coeso, e os mesmos elementos serão reunidos na mesma combinação que lhes
é própria”. Esse fim e objetivo final consiste na Ressurreição Geral. São
Gregório fala de um cumprimento interior da história. O tempo chegará ao seu
fim. Pois, cedo ou tarde, todas as coisas se cumprirão. As sementes irão
amadurecer e brotar. A ressurreição dos mortos é o destino, o único destino de
todo o mundo, de todo o Cosmo, de uma vez por todas e por todos, num equilíbrio
universa e católico. Não existe nada de naturalístico nessa concepção. O poder
de Deus levantará os mortos. Acontecerá a nova e definitiva revelação de Deus,
do poder e glória Divinos. A Ressurreição Geral é a consumação da Ressurreição
de nosso Senhor, a consumação de Sua vitória sobre a morte e a corrupção. E,
para além do tempo histórico, haverá o Reino futuro, “a vida no século por
vir”. Estamos ainda in via, na era da
esperança e da expectativa. Mesmo os Santos nos céus ainda “esperam pela
ressurreição dos mortos”. A consumação final virá primeiro para toda a raça
humana. Então, no fim, para toda a criação, será inaugurado de uma vez para
sempre o “Sábado Bendito”, o “dia do repouso”, o misterioso “Sétimo dia da
criação”. Por ora, o esperado é ainda inconcebível. “Ainda não se manifestou o
que há de vir[39]”.
Mas a promessa está feira. Cristo ressuscitou.
***
Sumo Sacerdote e Redentor
Na Epístola aos Hebreus, a obra de redenção de nosso Senhor é descrita
como o ministério do Suma Sacerdote. Cristo veio ao mundo para cumprir a
Vontade de Deus. Através do Espírito eterno Ele ofereceu a Si próprio a Deus,
ofereceu Seu sangue para a remissão dos pecados humanos, e realizou isso por
meio de Sua Paixão. Por Seu sangue, o sangue do Novo Testamento, da Nova
Aliança, Ele entrou nos céus e no interior mesmo do Santo dos Santos, além do
véu. Depois do sofrimento e da morte, Ele foi coroado com honra e glória, e
sentou-se à direita do Pai para sempre. A oferenda sacrificial começou na terra
e se consumou nos céus, onde Cristo nos apresentou e segue nos apresentando a
Deus, como eterno Sumo Sacerdote – “o Sumo Sacerdote das boas coisas que virão”
(arciereus twn mellontwn agaqwn) – como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote de
nossa confissão, como o ministro do verdadeiro tabernáculo e santuário de Deus.
Em resumo, como o Mediador da Nova Aliança. Por intermédio da morte de Cristo
revelou-se a Vida Eterna, “os poderes do século futuro” foram abertos e
revelados (dunameis te mellontos
aiwnos). No sangue de Jesus revelou-se
o caminho novo e vivo, o caminho para o eterno Sábado, quando Deus descansou de
seus feitos formidáveis.
Assim é que a morte na Cruz constitui uma oferenda sacrificial. E
oferecer um sacrifício não significa apenas entregar-se. Mesmo do ponto de
vista meramente moral, o significado total do sacrifício não consiste numa
negação em si, mas no poder sacrificial do amor. O sacrifício não constitui
simplesmente uma oferta, ele é antes uma dedicação, uma consagração a Deus. O
poder efetivo do sacrifício está no amor[40].
Mas a oferta do sacrifício é mais do que a evidência do amor, ela é também uma
ação sacramental, um ofício litúrgico, e mesmo um mistério. A oferta do
sacrifício da Cruz é de fato o sacrifício do amor, “como Cristo nos amou, e Se
entregou por nós, como uma oferenda e um sacrifício a Deus com perfume
agradável[41]”.
Mas esse amor não foi apenas simpatia ou compaixão e misericórdia para com os
caídos e os oprimidos. Cristo entregou a Si mesmo não apenas “pela remissão dos
pecados”, mas também para nossa glorificação. Ele Se entregou não apenas pela
humanidade pecadora, mas também pela Igreja: para lavá-la e consagrá-la, para
torná-la santa, gloriosa e sem mácula[42].
O poder da oferenda sacrificial está na sua capacidade de lavar e consagrar. E
o poder do sacrifício da Cruz está em que a Cruz é um caminho de glória, na
Cruz o Filho do Homem foi glorificado e Deus foi com ele também glorificado[43].
Nisso reside a plenitude do sacrifício. “Não deveria porventura Cristo ter
sofrido essas coisas, e entrado em Sua glória?[44]”.
A morte na Cruz foi efetiva, não como a morte de um Inocente, mas como
a morte do Senhor Encarnado. “Nós precisávamos de um Deus Encarnado: Deus foi
morto, para que pudéssemos viver” – para usar a frase corajosa de São Gregório
de Nazianze. Esse é “o terrível e mais glorioso mistério” da Cruz. NO Gólgota,
o Senhor Encarnado celebrou o Santo Ofício, in
ara crucis, e ofereceu Sua própria natureza humana em sacrifício, a mesma
que desde sua concepção “no seio da Virgem” fôra assumida na indivisível
unidade de Sua Hipóstase, e que, ao ser assumida, foi restaurada à sua pureza
original impecável. Não existe hipóstase humana em Cristo. Sua personalidade é
Divina, ainda que encarnada. O que existe é a completa plenitude da natureza
humana, “a totalidade da natureza humana”, e assim Cristo é o “perfeito homem”,
conforme afirmou o Concílio de Calcedônia. Mas não existiu uma hipóstase
humana. Por conseguinte, não foi um homem que morreu na Cruz. “Pois aquele que
sofreu não era um homem comum, mas Deus feito homem, lutando por suportar o
sofrimento”, como disse São Cirilo de Jerusalém. Pode ser apropriado dizer que
Deus morreu na Cruz, mas em Sua própria humanidade. “Aquele que habitava nas
alturas foi contado entre os mortos, e alojado n um pequeno sepulcro”. Essa é a
morte voluntária Daquele que é em Si a Vida Eterna, que é verdadeiramente a
Ressurreição e a Vida. Ele sofreu de fato uma morte humana, mas obviamente uma
morte na hipóstase do Verbo, do Verbo Encarnado. Portanto, uma morte
ressuscitadora.
“Eu vim trazer o fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse
aceso! Eu tenho um batismo no qual serei batizado; e quão ansioso estou para
que isso se cumpra[45]”.
O fogo – o Espírito Santo – descendo do alto em línguas ardentes, no “temível e
impenetrável mistério do Pentecostes”. Esse foi o Batismo no Espírito. E o
Batismo consiste na morte na Cruz e no derramamento de sangue, “o batismo do
martírio e do sangue, com o qual o próprio Cristo foi batizado”, como sugeriu
São Gregório de Nazianze. A morte na Cruz como batismo de sangue é a própria
essência do mistério redentor da Cruz. O Batismo é uma limpeza. E o Batismo na
Cruz é como se fosse a limpeza da natureza humana, que marchava no caminho da
restauração na Hipóstase do Verbo Encarnado. Nisso consistiu a lavagem da natureza
humana – no derramamento do sangue sacrificial do Cordeiro Divino. E, em
primeiro lugar, numa limpeza do corpo: não apenas numa limpeza dos pecados, mas
numa limpeza das enfermidades humanas e da própria mortalidade. É a limpeza da
natureza humana para a ressurreição por vir: uma limpeza de toda a natureza
humana, de toda a humanidade na pessoa de seu novo e místico Primogênito, no
“Segundo Adão”. Esse é o batismo de sangue de toda a Igreja. “Tu adquiriste Tua
Igreja pelo poder da Tua Cruz”. E a totalidade do Corpo tem que ser e precisa
ser batizado com o batismo da Cruz. “Da taça que eu beber, beberão vocês; e com
o batismo com que eu for batizado, serão vocês batizados[46]”.
Mais do que isso, a morte na Cruz perfaz a limpeza da totalidade do
mundo. Trata-se do batismo de sangue de toda a criação, a limpeza do Cosmo por
meio da limpeza do Microcosmo. “A purificação, não para uma pequena parcela do
mundo do homem, não por um curto período de tempo, mas para todo o Universo, e
por toda a Eternidade”, para citarmos ainda uma vez São Gregório de Nazianze.
Dessa forma, toda a criação partilha misteriosamente da Paixão do Mestre e
Senhor Encarnado. “Toda a criação mostrou terror em sua face quanto Te
contemplou pregado à Cruz, ó Cristo (...) O sol obscureceu-se e as fundações da
terra foram sacudidas: todas as coisas sofreram Contigo em simpatia, Contigo
que criaste todas as coisas”. Isso não consistiu num co-sofrimento de compaixão
ou piedade, mas num co-sofrimento de temor e terror. “As fundações da terra tremeram
de terror ante Teu poder”, também sofrendo na alegre apreensão do grande
mistério da morte ressuscitadora. “Pois pelo sangue de Teu Filho foi a terra
abençoada”. “Muitos foram, com efeito, os milagres desse tempo”, disse São
Gregório de Nazianze, “o Deus crucificado, o sol apagando-se e reacendendo;
pois era preciso que as criaturas sofressem junto com seu Criador. O véu se
partiu em dois, sangue e água jorraram de Seu flanco – sangue, porque Ele era
homem, água porque era mais do que homem. A terra tremeu, as pedras se
despedaçaram por causa da Rocha. Os mortos se levantaram como uma promessa da
ressurreição final e geral. Os milagres antes do sepulcro, os milagres no
sepulcro – quem os poderá cantar? Mas nenhum foi como o milagre de minha
salvação. Umas poucas gotas de sangue recriaram o mundo todo e se tornaram para
nós o que o coalho é para o leite, aglutinando-nos a todos e amalgamando-nos
numa unidade”.
A morte na Cruz é um sacramento, ela não possui apenas um sentido
moral, mas também um significado sacramental e litúrgico. Ela foi a Travessia,
Páscoa do Novo Testamento. E seu significado sacramental foi revelado na Última
Ceia. Pode parecer estranho que a Eu8caistia tenha precedido o Calvário, e que
na Câmara Superior o próprio Salvador tenha dado Seu corpo e Seu sangue aos
discípulos. “Esse é o cálice do novo testamento em meu sangue que é derramado
por vós[47]”.
É claro que a Última Ceia não foi apenas um rito profético, assim como a
Eucaristia não constitui uma mera lembrança. Trata-se de um verdadeiro
sacramento. Pois Cristo, que o realiza, é o Sumo Sacerdote do Novo Testamento.
A Eucaristia é o sacramento da Crucificação, o Corpo partido e o Sangue
derramado. E, junto com isso, é ainda o sacramento da transfiguração, a
misteriosa e sacramental “conversão” da carne no alimento espiritual glorioso (metabolh). O Corpo partido, com efeito
morrendo na própria morte, e ressuscitando outra vez. Pois o Senhor subiu por
Sua própria vontade à Cruz, à Cruz da vergonha e da glória. São Gregório de
Nissa fornece a seguinte explicação: “Cristo não esperou pelo constrangimento
da traição, assim como não esperou pelo ataque rapace dos Judeus, ou pelo
julgamento ilegal de Pilatos, para que esses males fossem a fonte da salvação
geral dos homens. Por Sua própria economia Ele antecipou suas transgressões
através de um tiro hierúrgico, inefável e incomum. Ele apresentou a Si mesmo
como uma oferenda e um sacrifício por nós, fazendo-se ao mesmo tempo Sacerdote
e Cordeiro de Deus, o que “tira” os pecados do mundo. Ao oferecer Seu corpo
como alimento, Ele mostrou claramente que a oferenda sacrificial do Cordeiro já
havia sido realizada. Pois o corpo sacrificial não poderia ser utilizado como
alimento se ainda estivesse animado. Assim sendo, quando Ele deu aos discípulos
o Corpo a comer e o Sangue a beber, então, pela livre vontade e o poder do
sacramento, Seu Corpo já havia sido oferecido em sacrifício, de modo inefável e
invisível, e Sua alma, juntamente com o poder Divino unido a ela, estavam já em
outro lugar, para onde os transportara o poder Daquele que o ordenara”. Em
outras palavras, a separação voluntária da alma em relação ao corpo, a agonia
sacramental, por assim dizer, do Encarnado, é como se já tivesse começado ali.
E o Sangue, livremente derramado pela salvação de todos, se tornou uma
“medicina de incorrupção”, uma medicina de imortalidade e de vida.
O Senhor morreu na Cruz, e essa foi uma morte verdadeira. Mas, com
efeito, não foi uma morte como a nossa, simplesmente porque se tratava da morte
do Senhor, a morte do Verbo Encarnado, a morte no interior da indivisível
Hipóstase do Verbo feito homem. Mais uma vez, foi uma morte voluntária, uma vez
que na natureza humana não corrompida, livre do pecado original, que fôra
assumida pelo Verbo na Encarnação, não havia necessidade inerente de morte. E a
livre “assumpção” pelo Senhor do pecado do mundo não constituiu para Ele
nenhuma necessidade irrevogável de morte. A morte foi aceita apenas pelo desejo
do Amor redentor. Sua morte não consistiu no “salário do pecado”. E o ponto
principal é que se tratou da morte no interior da Hipóstase do Verbo, a morte
da humanidade “enipostatizada”. De modo geral a morte constitui uma separação,
e também na morte do Senhor seu corpo precioso e sua alma foram separados. Mas
a Hipóstase única do Verbo Encarnado não foi dividida, a “união Hipostática”
não foi quebrada ou destruída. Em outras palavras, embora separados pela morte,
a alma e o corpo permaneceram ainda unidos através da Divindade do Verbo, da
qual nenhum dos dois foi alienado. Isso não alterou o caráter ontológico da
morte, mas mudou seu significado. Foi uma “morte incorrupta”, e desse modo a
corrupção e a morte foram superadas nela
própria, e aí teve início a ressurreição. A própria morte do Encarnado
revelou a ressurreição da natureza humana. E a Cruz se manifestou como
vivificadora, como anova árvore da vida, “pela qual a lamentação da morte foi
consumida”. A Igreja coloca uma ênfase especial nisso no Sábado de Aleluia.
“Embora Cristo tenha morrido como homem, e Sua santa alma tenha se
separado de Seu puríssimo corpo”, diz São João Damasceno, “Sua Divindade
permaneceu tanto com a alma como com o corpo, que continuaram inseparáveis
dela. E assim a hipóstase única não foi dividida em duas hipóstases, pois desde
o início tanto o corpo como a alma existiram com a hipóstase do Senhor. Embora,
na hora da morte, o corpo e a alma tenham se separado, cada um deles foi
preservado, tendo a hipóstase única do Verbo. Assim, a hipóstase única do Verbo
foi igualmente a hipóstase do corpo e a da alma. Pois nem o corpo, nem a alma,
jamais receberam uma hipóstase própria, diferente da do Verbo. Assim, a
hipóstase do Verbo permanece sempre uma, e jamais existem no Verbo duas
hipóstases. De acordo com isso, a Hipóstase de Cristo é sempre única. E embora
a alma tenha se separado do corpo no espaço, ainda assim eles permaneceram
hipostaticamente unidos por meio do Verbo”.
Existem dois aspectos do mistério da Cruz. Em primeiro lugar, há um
mistério de tristeza e de alegria, um mistério de desonra e glória. É um
mistério de tristeza e angústia mortais, um mistério de deserção, de humilhação
e desonra. “Hoje o Mestre da Criação e o Senhor da Glória foi pregado à Cruz
(...) foi espancado nos ombros, recebeu cusparadas e feridas, indignidades e
bofetadas na face”. O Deus-homem padeceu e sofreu no Getsêmani e no Calvário
até que se cumprisse o mistério da morte. A partir Dele foi revelada toda a
raiva e a cegueira do mundo, toda a obstinação e a loucura do mal, todo o
desamparo e a mesquinhez dos discípulos, toda a “justiça” da pseudoliberdade
humana. E a tudo ele cobriu com Seu amor compassivo e pesaroso, que a tudo
perdoou e que sofreu conjuntamente, rezando por aqueles que o crucificaram,
porque eles não sabiam o que estavam fazendo. “Ó meu povo, o que foi que eu fiz
contra vós? Quando eu vos aborreci?[48]”.
A salvação do mundo se realizou por meio desses sofrimentos e dessas tristezas
e lamentações: “por Suas feridas fomos curados[49]”.
E a Igreja nos guarda contra a atitude docética de subestimar a realidades e a
plenitude desses sofrimentos – ina mh kenwqh o
stauros tou Cristou[50].
E a Igreja ainda nos protege contra todo exagero oposto, contra todo excesso de
ênfase kenótica. Pois o dia da vergonhosa Crucificação, quando nosso Senhor foi
contado entre os ladrões, esse é o dia da glória. “Hoje festejamos, porque
nosso Senhor foi pregado à Cruz”, na aguda frase de São João Crisóstomo. E a
madeira da Cruz é “o eternamente glorioso lenho”, a verdadeira Árvore da Vida,
“por meio da qual a corrupção foi destruída”, “pela qual a lamentação da morte
foi abolida”. A Cruz é o “selo da salvação”, um sinal de poder e de vitória.
Não apenas um símbolo, mas o próprio poder da salvação, “o fundamento da
salvação”, como disse Crisóstomo – upoqesos
ths swthrias.
A Cruz é o sinal do Reino. “Eu o chamei de Rei, porque eu O vi crucificado,
pois é característico do Rei morrer por Seus súditos” – mais uma vez, João
Crisóstomo. A Igreja conserva dos dias da Cruz e honra-os com solenidades – não
apenas como um triunfo de humildade e amor, mas também como uma vitória da
imortalidade e da vida. “A Igreja saúda Tua Cruz como a vida da criação, ó
Senhor”. Pois a morte de Cristo é em si a vitória sobre a morte, a destruição
da morte, a abolição da mortalidade e da corrupção. “Tu morreste e me
vivificaste”. E a morte na Cruz constitui uma vitória sobre a morte, não apenas
por ter sido seguida e coroada pela Ressurreição. A Ressurreição simplesmente
revelou e estabeleceu a vitória conquistada na Cruz. A Ressurreição se realizou
na própria dormição do Deus-homem. E o poder da Ressurreição é precisamente o
“poder da Cruz”, o “inconquistável, indestrutível e Divino poder da honrada e
vivificadora Cruz”, o poder da Paixão e morte voluntárias do Deus-homem. Como estabeleceu
Gregório da Nazianze: “Ele deixou Sua vida, mas Ele tinha o poder de
recuperá-la; e o véu se rasgou, porque as misteriosas Portas dos Céus foram
abertas; as rochas se partiram, os mortos se levantaram (...) Ele morreu, mas
Ele deu a vida, e por meio de Sua morte destruiu a morte. Ele foi sepultado,
mas levantou-se novamente. Ele desceu aos Infernos, e trouxe de lá as almas”.
Sobre a Cruz, o Senhor “restaurou nossa santidade original”, e “pela Cruz veio
a felicidade para todo o mundo”. Sobre a Cruz o Senhor não apenas sofreu e se
esvaiu, mas repousou, “tendo adormecido, como se estivesse morto”. E ele
concedeu o repouso ao homem também, restaurou-o e renovou-o, “e repousando
sobre o madeiro, Tu me concedeste o repouso, a mim que estava sobrecarregado
com o peso dos pecados”. Desde a Cruz, Cristo derrama a imortalidade sobre os
homens. Com seu sepultamento Ele abriu as portas da morte, e renovou a natureza
humana corrompida. “Toda ação e todo milagre de Cristo são divinos e
maravilhosos”, diz João Damasceno, “mas o mais maravilhoso de todos foi Sua
honorável Cruz. Pois nenhuma outra coisa subjugou a morte, expiou o pecado dos
primeiros antepassados, despojou o Hades, trouxe a ressurreição, concedeu poder
a nós para condenar a própria morte, preparou o retorno à santidade original,
abriu as portas do Paraíso, concedeu à nossa natureza um assento à direita de
Deus, tornou-nos filhos de Deus, senão a Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. A
morte de Cristo sobre a Cruz nos revestiu com a Sabedoria hipostática e o Poder
de Deus”. O mistério da Cruz ressuscitadora é especialmente comemorado no
Sábado de Aleluia. Conforme explica o Synaxarion
desse dia, “no Grande e Santo Sábado, celebramos o sepultamento divinamente
corpóreo de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e Sua descida aos Infernos,
por meio da qual, tendo sido resgatada de sua corrupção, nossa raça passou para
a vida eterna”. Isso não constituiu simplesmente a véspera da salvação – foi o
próprio dia de nossa salvação. “Esse é o Sábado bendito, o dia do repouso, no
qual o Filho Unigênito de Deus descansou de todos os Seus feitos”. Esse é o doa
da Descida aos Infernos. E a Descida aos Infernos é, desde logo, a
Ressurreição.
Os grandes “três dias da morte” (triduum
mortis) constituem os misteriosos dias sacramentais da Ressurreição. Em Sua
carne o Senhor permaneceu no sepulcro, mas Sua carne não foi abandonada por Sua
Divindade. “Embora Seu Templo tivesse sido destruído na hora da Paixão, mesmo
então ele era a Hipóstase de Sua Divindade e de Sua Carne”. A carne do Senhor
não sofreu corrupção, ela permaneceu incorruptível mesma na própria morte, ou
seja, viva, como se nunca houvesse morrido, pois ela residia no próprio seio da
Vida, na Hipóstase do Verbo. Como está dito em um dos hinos ortodoxos, “Tu
provaste a morte, mas não conheceste a corrupção”. São João Damasceno sugeriu
que a palavra “corrupção” (jqora) possui
um duplo significado. Primeiramente, ela significa “todos os estados passivos
do homem” (ta paqh), como a fome, a
sede, a fadiga, a prisão, a própria morte – ou seja, a separação da alma e do
corpo. Nesse sentido, podemos dizer que o corpo do Senhor estava sujeito à
corrupção (jqarton) até a Ressurreição.
Mas a corrupção também significa a completa decomposição do corpo e sua
destruição. Essa é a corrupção no sentido próprio – ou antes, a “destruição” (diajqtora) – mas o corpo do Senhor de modo
algum experimentou esse modo de corrupção, e permaneceu “incorrupto” mesmo na
morte. Vale dizer, ele nunca se tornou um cadáver. E nessa incorrupção o Corpo
foi transfigurado em um estado de glória. A alma de Cristo desceu aos Infernos,
também inseparada de Sua Divindade, “no Inferno, em alma, como Deus” – a “alma
deificada” de Cristo, como sugeriu São João Damasceno – yuxh teqewmenh.
Essa descida aos Infernos significou antes de tudo uma entrada ou uma
penetração no domínio da morte, no domínio da mortalidade e da corrupção. Nesse
sentido, ela aparece simplesmente como um sinônimo da morte em si. É difícil
identificar esse Inferno, ou Hades, ou “morada subterrânea” ao qual desceu o
Senhor, com o “inferno” de sofrimentos dos pecadores e dos ímpios. Em toda sua
realidade objetiva o inferno dos sofrimentos e tormentos corresponde certamente
a um modo espiritual de existência, determinado pelo caráter pessoal de cada
alma. E ele não consiste em algo que virá, mas, numa grande medida, ele já se
encontra constituído para o pecador obstinado, pelo simples fato de sua
perversão e apostasia. Os ímpios encontram-se de fato no inferno, na escuridão
e na desolação. Em qualquer caso, não podemos imaginar que as almas dos
pecadores renitentes, e as dos Profetas da Antiga Aliança, que falaram pelo
Espírito Santo e pregaram a vinda do Messias, como o próprio São João Batista,
estivessem no mesmo “inferno”. Nosso Senhor desceu até as trevas da morte. O
Inferno, ou Hades, consiste apenas na escuridão e nas sombras da morte, antes
um lugar de angústia mortal do que um lugar de tormentos penais, um escuro
“sheol”, um lugar de descorporificação e desencarnação sem esperanças, escassa
e fracamente iluminado pelos raios oblíquos de um Sol ainda não nascido, por
esperança e expectativas não cumpridas. Por causa da Queda e do Pecado
Original, toda a humanidade caiu na mortalidade e na corrupção. E mesmo a mais
alta justiça sob a Lei é incapaz de salvar o homem, seja da inevitabilidade da
morte empírica, seja da desesperança e impotência para além do túmulo, que
resultam da impossibilidade de uma ressurreição natural e da incapacidade de
restaurar a inteireza esfacelada da existência humana. É como se fosse uma
espécie de enfermidade ontológica da alma, a qual, ao se separar na morte,
tivesse perdido sua faculdade de representar a verdadeira “entelechia[51]”
de seu próprio corpo, a incapacidade, de uma natureza decaída e machucada, de
se defender. E, nesse sentido, todos desceram “ao inferno”, às trevas
infernais, podemos dizer, ao próprio Reino de Satanás, o príncipe da morte e o
espírito da negação; e todos estiveram sob seu poder, ainda que os justos não
participassem de suas perversões demoníacas e malignas, porque estavam
confinados na morte pelas garras de uma impotência ontológica, mas não por
causa de sua perversão pessoal. Eles eram realmente “espíritos aprisionados”. E
foi a essa prisão, a esse Inferno, que o Senhor e Salvador
desceu. Por entre as trevas da paliçada da morte brilhou a inextinguível luz da
Vida, da Vida Divina. Foi isso que destruiu o Inferno e que destruiu a
mortalidade. “Embora tiveste descido ao túmulo, ó Misericordioso, ainda assim
destruíste o poder do Inferno”. Nesse sentido, o Inferno foi simplesmente
abolido, “e já não existem mortos nos túmulos”. Pois “Ele cobriu-se de terra, e
ainda assim encontrou o céu”. A morte foi superada pela Vida. “Quando desceste
à morte, ó Vida Eterna, flagelaste o Inferno com o brilho de Tua Divindade”.
A descida de Cristo ao Inferno constitui a manifestação da Vida em
meio à desesperança da morte, a vitória sobre a morte. De modo algum implica
que Cristo tenha “tomado sobre si” os “tormentos infernais dos esquecidos de
Deus”. O Senhor desceu aos Infernos como Vitorioso, Christus Victor, como o Mestre da Vida. Ele desceu em Sua glória,
não humilhado, embora tenha sido através da humilhação. Mas até a morte, Ele a
assumiu voluntariamente e com autoridade. “Não foi por causa de nenhuma fraqueza
do Verbo, que nele existisse, que Seu corpo morreu, mas para que nele o poder
da morte fosse derrotado pelo poder do Salvador”, disse Santo Atanásio. O
Senhor desceu aos Infernos para anunciar a boa nova e para pregar às almas que
estavam ali aprisionadas[52],
para, pelo poder de Sua aparição e de Sua pregação, libertá-las, para mostrar a
elas sua libertação. Em outras palavras, a descida aos Infernos foi a
ressurreição do “Adão total”. Uma vez que “o Inferno se lamentou” e “se
afligiu”, com Sua descida Cristo “destruiu os grilhões eternos” e restituiu
toda a raça humana. Ele destruiu a própria morte, “a garra da morte se partiu e
o poder de Satanás foi aniquilado”. Nisso consistiu o triunfo da Ressurreição.
“E arrebentaste as portas de ferro, e nos conduziste para fora da escuridão e
da sombra da morte, e rompeste nossas cadeias”. “Esvaziaste a morada da morte
com Tua morte e iluminaste a tudo com Tua luz da Ressurreição”. Assim a própria
morte foi transmutada em Ressurreição. “Eu sou o primeiro e o último: Eu sou
Aquele que vive, e que estava morto; e vede, estou vivo para todo o sempre,
Amém. E eu possuo as chaves da morte e do Hades[53]”.
A Crucificação, a Ressurreição e a Redenção
A impotência da morte sobre Ele se revelou na morte do Salvador. Na
plenitude de Sua natureza humana nosso Senhor era mortal, uma vez que a potentia mortis é inerente mesmo à
natureza humana original e pura. O Senhor foi morto e morreu. Mas a morte não O
reteve. “Não era possível que Ele fosse retido por ela[54]”.
São João Crisóstomo comentou: “Ele próprio o permitiu (...) Ao toma-lo, a
própria morte sofreu dores como num parto, e foi magistralmente ferida (...)
Então, Ele se ergueu como se nunca tivesse estado morto”. Ele é a Vida Eterna,
e destruiu a morte com o próprio fato de Sua morte. Sua simples descida ao
Inferno, ao reino da morte, foi uma poderosa manifestação da Vida. Com Sua
descida ao Inferno Ele vivificou a própria morte. A impotência da morte ficou
manifesta na Ressurreição. A alma de Cristo, separada pela morte, cheia do
poder Divino, uniu-se outra vez ao corpo, que permanecera incorruptível ao
longo de toda a separação mortal, durante a qual ele não sofreu nenhuma
decomposição física. Na morte do Senhor ficou manifesto que Seu puríssimo corpo
não estava sujeito à corrupção, que ele estava livre da mortalidade que
envolveu a natureza humana original desde a Queda.
No primeiro Adão a potencialidade da morte pela desobediência foi
inaugurada e realizada. No segundo Adão a potencialidade da imortalidade pela
pureza e a obediência foi sublimada e realizada numa impossibilidade de morte.
“Pois assim como tudo morreu em Adão, em Cristo tudo é vivificado[55]”.
Toda a construção da natureza humana em Cristo mostrou-se estável e forte. A
saída da alma do corpo não se consumou como uma ruptura. Mesmo na banal morte
do homem, como observou São Gregório de Nissa, a separação entre a alma e o
corpo jamais é absoluta; uma certa conexão sempre se mantém. Na morte de
Cristo, essa conexão provou não ser apenas uma “conexão de conhecimento”; sua
alma em nenhum momento deixou de ser a “força vital” do corpo. Sendo assim, Sua
morte, em toda a sua realidade, enquanto verdadeira separação e
descorporificação, foi como um adormecer. “Foi então que a morte do homem se
mostrou como um sono”, conforme disse São João Damasceno. A realidade da morte
não foi de fato abolida, mas sua impotência foi revelada. O Senhor morreu de
fato e verdadeiramente. Mas em Sua morte, manifestou-se em eminente medida a “dynamis da ressurreição”, que está
latente e é inerente a toda morte. A gloriosa comparação com o grão de trigo[56]
pode ser aplicada à Sua morte em sua total extensão. E em Sua morte
manifestou-se a glória de Deus. “Eu O glorifiquei e vou glorificá-Lo de novo[57]”.
No corpo do Encarnado esse intervalo entre a morte e a ressurreição foi
abreviado. “Semeado em desonra, ele se levanta em glória; semeado em fraqueza,
levanta-se em poder; semeado num corpo natural, levanta-se num corpo espiritual[58]”.
Na morte do Encarnado esse misterioso crescimento da semente realizou-se em
três dias – triduum mortis.
Ele não permitiu que o templo de Seu corpo permanecesse por muito
tempo morto, mas, tendo-o apresentado morto pelo contato com a morte,
rapidamente ressuscitou-o ao terceiro dia, e, com ele, ergueu o sinal da
vitória sobre a morte, vale dizer, a incorrupção e a impassibilidade
manifestadas no corpo”. Com essas palavras, Santo Atanásio estabelece o caráter
vitorioso e ressuscitador da morte de Cristo. Nesse misterioso triduum mortis, o corpo de nosso Senhor
foi transfigurado em corpo de glória, e revestiu-se de poder e de luz. A
semente amadureceu. O Senhor levantou-se de entre os mortos, como um Noivo que
deixa a câmara nupcial. Isso se realizou pelo poder de Deus, como acontecerá no
último dia com a ressurreição geral, que será também realizada pelo poder de
Deus. E na Ressurreição a Encarnação se completa, como uma vitoriosa
manifestação da Vida no seio da natureza humana, um “enxerto” de imortalidade
na composição humana.
A Ressurreição de Cristo foi uma vitória, não apenas sobre Sua morte,
como sobre a morte em geral. “Celebramos a morte da Morte, a ruína do Inferno,
e o começo de uma vida nova e eterna”. Em Sua Ressurreição, toda a humanidade,
toda a natureza humana, ressuscitou junto com Cristo, “a raça humana revestiu-se
de incorrupção”. A ressurreição conjunta não significou que todos se levantem
dos túmulos. Os homens continuam a morrer: mas a desesperança da morte foi
abolida. A morte foi destituída de seu poder, e a toda natureza humana foi dado
o poder, ou a “potentia” da
ressurreição. São Paulo deixou isso bem claro: “Se não existir a ressurreição
dos mortos, então Cristo não ressuscitou (...) Pois se os mortos não
ressuscitam, tampouco Cristo ressuscitou[59]”.
São Paulo quer dizer que a Ressurreição de Cristo não teria significado, se não
fosse uma realização universal, se a totalidade do Corpo não estivesse
implicitamente “pré-ressuscitado” junto com a Cabeça. E a própria fé em Cristo
perderia o sentido e se tornaria vazia e vã: não haveria nada em que acreditar.
“Se Cristo não ressuscitou, vossa fé é em vão[60]”.
Sem a esperança da Ressurreição Geral, a crença em Cristo seria vã e sem
sentido, não passaria de vanglória. “Mas agora Cristo ressuscitou dos mortos, e
se tornou as primícias dos que adormeceram[61]”.
É nisso que reside a vitória da vida. “É verdade que ainda morremos, como
antes”, diz São João Crisóstomo, “mas não permanecemos mortos; e isso não é
morrer (...) É nisso que consiste o poder e a própria realidade da morte, no
fato de que um homem morto não tem possibilidade de voltar a viver (...) Mas se
após a morte ele ressuscita, e, mais do que isso, recebe uma vida melhor, então
essa não é a morte, mas um adormecer apenas”. Encontramos a mesma definição em
Santo Atanásio. A “condenação da morte” foi abolida. “Tendo cessado a
corrupção, tendo sido afastada pela graça da Ressurreição, somos daqui por
diante dissolvidos apenas por algum tempo, de acordo com a natureza mortal de
nossos corpos; como sementes lançadas à terra, não perecemos, mas semeados na
terra voltamos a nos erguer, pois a morte foi reduzida a nada pelo Salvador”.
Nisso constituiu-se a cura e a renovação da natureza, e doravante se torna de
certo modo uma compulsão; todos irão ressuscitar, todos serão restaurados à
plenitude de seu ser natural, ainda que transformados. Daqui por diante, toda
descorporificação não passará de temporária. O vale escuro do Hades foi abolido
pelo poder da vivificadora Cruz.
São Gregório de Nissa enfatiza veementemente a interdependência
orgânica entre Crucificação e Ressurreição. A Ressurreição não se resume a uma
consequência, mas trata-se de um fruto da morte na Cruz. São Gregório aponta
dois aspectos em especial: a unidade da Hipóstase Divina, na qual a alma e o
corpo de Cristo estão unidos, mesmo em sua separação pela morte; e a absoluta
ausência de pecado do Senhor. E ele prossegue: “Quando nossa natureza, ainda
que estando Nele, segue seu próprio curso e avança para a separação da alma e
do corpo, Ele outra vez une os elementos desconexos, cimentando-os uns aos outros,
como se fosse com o cimento de Seu Divino poder, e recombina o que foi
danificado numa união que já não poderá ser quebrada. Nisso consiste a
Ressurreição – ou seja, o retorno, depois de terem sido dissolvidos – desses
elementos que antes se encontravam ligados uns aos outros, numa união
indissolúvel por meio de uma incorporação mútua; dessa forma, a graça
primordial que ungia a humanidade pode ser reativada, e nós podemos ser
restaurados à vida eterna, quando o vício que se misturara à nossa espécie se
evapora junto com nossa dissolução (...) Pois, assim como o princípio da morte
surgiu numa pessoa e passou sucessivamente a toda a espécie humana, da mesma
forma o princípio da Ressurreição se expande de uma pessoa para toda a
humanidade (...) Pois quando, nessa humanidade concreta que Ele tomou para Si,
a alma retornou ao corpo após a dissolução, a partir daí essa reunião das
diversas partes passou, como por meio de um novo princípio, com igual força
para toda a raça humana. Esse é o mistério do plano de Deus em relação à Sua
morte e à Sua Ressurreição após a morte”. Em outra parte, São Gregório explica
seu significado pela analogia do junco partido ao meio. Quem juntar as duas
metades partindo de uma das pontas, necessariamente, ajuntará a outra ponta, “e
o junco partido ficará completamente rejuntado”. Assim também, a união da alma
e do corpo em Cristo, restaurando-se, permitiu a reunião “de toda a natureza
humana, que havia sido dividida em duas partes pela morte”, uma vez que a
esperança da ressurreição restabelece a conexão entre as partes que estavam
separadas. Em Adão, nossa natureza foi fendida ou cortada em dois pelo pecado.
Mas em Cristo esse rasgo foi completamente curado. Nisso consiste a abolição da
morte, ou antes, da mortalidade. Em outras palavras, trata-se da restauração
dinâmica e potencial da plenitude e da inteireza da existência humana. É a
recriação da totalidade da raça humana, a “nova criação” (h cainh ktisis), a nova revelação do amor e
do poder Divinos, a consumação da criação.
É preciso distinguir cuidadosamente entre a cura da natureza e a cura
da vontade. A natureza foi curada e restaurada quase que compulsoriamente, pelo
poder da graça onipotente e invencível de Deus. Podemos dizer, por uma certa
“violência da graça”. A inteireza, a totalidade, a completude foi como que
forçada sobre a natureza humana. Pois em Cristo toda a natureza humana (a
“semente de Adão”) foi plena e completamente curada de sua incompletude e
mortalidade. Essa restauração será atualizada e revelada em sua plena extensão
na Ressurreição Geral, a ressurreição de tudo, tanto dos justos como dos
iníquos. Ninguém, até onde alcança a natureza, pode escapar da regra soberana de
Cristo, pode excluir-se do invencível poder da ressurreição. Mas a vontade do
homem não pode ser curada da mesma maneira irresistível; pois todo o sentido da
cura da vontade está na sua livre conversão. A vontade do homem deve voltar-se
por si só para Deus; deve haver uma resposta livre e espontânea de amor e
adoração. A vontade do homem só pode ser curada em liberdade, no “mistério da
liberdade”. Somente por meio desse esforço livre e espontâneo o homem é capaz
de penetrar na nova e eterna vida revelada em Jesus Cristo. Uma regeneração
espiritual só pode ser forjada em perfeita liberdade, na obediência ao amor,
pela autoconsagração e a autodedicação a Deus. Essa distinção foi enfatizada
com grande insistência no notável tratado A
vida em Cristo, de Nicolas Cabasilas. A ressurreição é a “retificação da
natureza” (h anastasis jusews estin
epanorqwsis), e isso é concedido gratuitamente por Deus. Mas o Reino dos
Céus, a visão beatífica, a união com Cristo, pressupõem o desejo (trofh estin ths
qelhsews), e, portanto, só estão à disposição daqueles que desejaram,
amaram e esperaram por isso. DessaA imortalidade será concedida a todos, assim
como todos desfrutarão da Divina providência. Não depende de nossa vontade se
iremos ou não ressuscitar depois da morte, assim como não foi por nossa vontade
que nascemos. A morte e a ressurreição de Cristo trouxeram a imortalidade e a
incorrupção para todos da mesma maneira, porque todos possuímos a mesma
natureza que o Homem Jesus Cristo. Mas ninguém pode ser forçado a desejar.
Assim sendo, a Ressurreição é um dom comum a todos, mas a beatitude só será
concedida e alguns. Mais uma vez, o caminho da vida é o caminho da renúncia, da
mortificação, do auto-sacrifício e da auto-oblação. É preciso morrer para si
para viver em Cristo. Cada qual deve associar-se a Cristo livremente e pessoalmente,
a Cristo, o Senhor, Salvador e Redentor, numa confissão de fé, numa escolha de
amor, num juramento de lealdade. Cada qual deve renunciar a si próprio, deve
“perder sua alma” por Cristo, deve tomar sua cruz e segui-Lo. O esforço Cristão
está em “seguir” a Cristo, seguir o caminho de Sua Paixão e Cruz, mesmo na
morte, e, acima de tudo, segui-Lo com amor. “Dessa forma percebemos o amor de
Deus, porque Ele deu Sua vida por nós; e devemos dar nossas vidas por nossos
irmãos (...) Nisso está o amor, não em amarmos a Deus, mas em que Deus nos
amou, e enviou Seu Filho para a remissão de nossos pecados[62]”.
Quem não morre com Cristo não pode viver com Ele. “A menos que, por nossa livre
escolha, aceitemos morrer com Sua Paixão, Sua vida não estará em nós”, disse Santo
Inácio de Antioquia. Não se trata de uma mera regra ascética ou moral, não é
uma simples disciplina. Trata-se da lei ontológica da existência espiritual,
diremos mesma da própria vida.
Simbolismo Batismal e Realidade Redentora
A vida Cristã se inicia com um novo nascimento, pela água e pelo
Espírito. Primeiramente, requer-se o arrependimento, “h metanoia”, uma mudança interior, íntima e resoluta.
O simbolismo do Santo Batismo é complexo e múltiplo. O Batismo deve
ser realizado em nome da Santa Trindade; e a invocação Trinitária é vista
unanimemente como a condição mais necessária para a validade e a eficácia do
sacramento. Acima de tudo, o Batismo consiste em revestir-se de Cristo[63],
na incorporação ao Seu Corpo[64].
A invocação Trinitária é requerida porque fora da fé Trinitária é impossível
conhecer a Cristo, reconhecer em Jesus o Senhor Encarnado, “Um da Santíssima
Trindade”. O simbolismo do Batismo é acima de tudo um simbolismo de morte e
ressurreição, da morte e ressurreição de Cristo. “Ou não sabeis que todos os
que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados em Sua morte? Dessa forma,
fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte; para que, assim como Cristo
ressuscitou da morte pela glória do Pai, também nós caminharemos numa vida nova[65]”.
Podemos dizer que o Batismo é a ressurreição sacramental de Cristo, uma
ressurreição com Ele e Nele para uma vida nova e eterna: “Sepultados com Ele no
batismo, no qual também com Ele ressuscitastes por meio da fé no poder de Deus,
que O ressuscitou dos mortos[66]”.
Somos co-ressuscitados com Ele exatamente através do sepultamento: “porque, se
morremos com Ele, também viveremos com Ele[67]”.
Pois no Batismo o fiel se torna um membro de Cristo, enxertado em Seu Corpo,
“enraizado e edificado Nele[68]”.
Dessa forma, a graça da Ressurreição é derramada sobre todos. Antes de ser
consumada na Ressurreição Geral, a Vida Eterna se manifesta no renascimento
espiritual dos fiéis, concedida e realizada no Batismo, e a união com o Senhor
Ressuscitado constitui a iniciação da ressurreição e da Vida futura. “Pois
todos nós que com a face descoberta contemplamos como num espelho a glória do
Senhor, somos transformados por essa mesma imagem, de glória em glória, pelo
Espírito do Senhor (...) Sempre trazendo no corpo a morte do Senhor Jesus, para
que a vida de Jesus possa também se manifestar em nosso corpo (...) Sabendo que
Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também a nós ressuscitará por Jesus, e
nos apresentará juntamente convosco (...) Pois sabemos que, se a morada
terrestre desse tabernáculo for dissolvida, teremos um edifício em Deus, uma
morada não feita por mãos, eterna nos Céus. Por isso aqui suspiramos, confiantemente
desejosos de nos revestirmos dessa nossa morada que está nos Céus (...) não
porque queiramos nos despir, mas sim revestirmo-nos, para que a mortalidade
possa ser tragada pela vida[69]”.
Não apenas seremos, como somos de fato transformados. A
regeneração batismal e a ascese caminham juntas: a morte com Cristo e a
ressurreição são desde já operacionais entre os fiéis. A ressurreição é
operativa não apenas como um retorno à vida, mas também como uma elevação ou
uma sublimação à glória. Não se trata apenas de uma manifestação do poder e da
glória de Deus, mas também de uma transfiguração do homem, na medida em que ele
morre com Cristo. Ao morrer com Ele, o homem também vive. Todos ressuscitarão,
mas somente ao fiel fervoroso a ressurreição será uma verdadeira “ressurreição
para a vida”. Ele não passará pelo Juízo, mas passará da morte para a vida[70].
Somente em comunhão com Deus e por meio de uma vida em Cristo a restauração da
totalidade do homem terá sentido. Para aqueles que estão na total escuridão,
que por sua própria vontade confinaram-se “fora de Deus”, fora da Luz Divina, a
Ressurreição em si poderá ser vista como desnecessária e imotivada. Mas ela
virá, a “ressurreição para o Juízo[71]”.
E com isso se completará o mistério e a tragédia da liberdade humana.
Estamos aqui ainda no limiar do inconcebível e do incompreensível. A apokatastasis da natureza não elimina a
vontade livre. A vontade deve ser movida desde dentro pelo amor. São Gregório
de Nissa tinha um entendimento muito claro a esse respeito. Ele antecipou uma
espécie de “conversão” (conversio)
universal das almas no pós-vida, quando a Verdade de Deus se revelar e se
manifestar com evidência convincente e definitiva. Nesse ponto ficam óbvias as
limitações do pensamento Helenístico. Para este, a evidência parece ter sido a
razão ou o motivo decisivo para a vontade, como se o “pecado” fosse meramente
uma “ignorância”. O pensamento Helenístico teve que passar por uma longa e
difícil experiência de ascetismo, de um autoexame e de um autocontrole
ascéticos, para ser capaz de se libertar dessa ingenuidade e dessa ilusão
intelectualistas, e descobrir um escuro abismo na alma decaída. Somente em
Máximo o Confessor, depois de séculos de preparação ascética, encontramos uma
interpretação da apokatastasis nova,
remodelada e mais profunda. Toda a natureza, todo o Cosmo, serão restituídos.
Mas as almas mortas ainda permanecerão insensíveis à própria revelação da Luz.
A Luz Divina brilhará para todos, mas aqueles que deliberadamente
passaram sua vida terrestre entre desejos carnais, “contra a natureza”, serão
incapazes de perceber ou desfrutar da felicidade eterna. A Luz é o Verbo que
ilumina as mentes naturais dos fiéis; mas para os outros ela é o fogo devorador
do julgamento – th kausei ths crisews. Este irá punir aqueles que, através
do amor à carne, se apegaram à escuridão noturna dessa vida. São Máximo admite
uma apokatastasis no sentido da
restituição de todos os seres a uma integridade de natureza, da manifestação
universal da Vida Divina, que será percebida por todos; mas isso não significa
que todos participarão igualmente dessa revelação do Bem. São Máximo estabelece
uma clara distinção entre um epigwsis, conhecimento,
e uma meqexis, compreensão. Os dons
divinos são concedidos na proporção das capacidades dos homens. A plenitude dos
poderes naturais será restaurada em todos, e Deus estará de fato em todos; mas
apenas nos Santos Ele estará presente com a graça, dia thn carin. Nos ímpios ele estará presente sem a graça, nekran thn
carin.
Nenhuma graça será outorgada aos ímpios, porque a união definitiva com
Deus requer a determinação da vontade. Os ímpios serão separados de Deus por
sua falta de uma resoluta decisão pelo bem. Temos aqui a mesma dualidade que
existe entre natureza e vontade. Na ressurreição toda a criação será
restaurada. Mas o pecado e o mal estão enraizados na vontade. O pensamento
Helenístico conclui daí que o mal é instável e que ele deve inevitavelmente
desaparecer por si só. Pois nada pode ser perpétuo, a menos que esteja
enraizado num decreto Divino. Assim, o mal não pode deixar de ser transitório.
Entretanto, a inferência Cristã é o oposto. Existe uma estranha inércia e
obstinação da vontade, e essa obstinação pode permanecer incurável mesmo depois
da restauração universal. Deus nunca violenta o homem, e a comunhão com Deus
não pode ser forçada nem imposta aos obstinados. Como coloca São Máximo, “o
Espírito não produz resolução indesejada, mas transforma um objetivo escolhido
numa theosis”. Pois o pecado e o mal
não provêm de uma impureza externa, mas de uma falha interna, de uma perversão
da vontade. Consequentemente, o pecado só pode ser superado por uma conversão e
uma mudança interiores, e o arrependimento é selado pela graça nos sacramentos.
A morte física entre a humanidade não é ab-rogada pela Ressurreição de
Cristo. A morte é tornada impotente, de fato; a mortalidade e superada pela
esperança e pela promessa da ressurreição futura. E ainda assim cada qual deve
justificar essa ressurreição para si. Isso só pode ser feito por meio de uma
livre comunhão com o Senhor. A imortalidade da natureza, a permanência da
existência, deve ser atualizada na vida no Espírito. A plenitude da vida não
consiste meramente numa existência sem fim. No batismo somos iniciados nessa
real ressurreição da vida, que será consumada no último dia.
São Paulo fala de uma “similaridade” com a morte de Cristo[72],
mas essa “similaridade” significa mais do que uma semelhança. Trata-se de algo
mais do que um mero sinal ou lembrança. O significado dessa “similaridade” para
o próprio São Paulo era que em cada um de nós Cristo pode e deve ser “formado[73]”.
Cristo é a Cabeça e os fiéis são Seus membros, e Sua vida se atualiza neles.
Todos são chamados e cada um é capaz de acreditar, e de ser impulsionado pela
fé e o batismo a viver Nele. O Batismo é a regeneração, anagennhsis, um nascimento novo, espiritual e carismático. Como
diz Cabasilas, o Batismo é a causa de uma vida beatífica em Cristo, não
meramente de uma vida. São Cirilo de Jerusalém explica lucidamente a verdadeira
realidade de todo o simbolismo batismal. É verdade, diz ele, que na fonte
batismal morremos e somos sepultados apenas “em imitação”, apenas
“simbolicamente” (dia sumbolou). Não
levantamos de um sepulcro verdadeiro (oud alhqws etafhmen), mas, ainda assim, “se a imitação
é uma imagem, a salvação está ali verdadeiramente”, en alhqeia de h swthria. Cristo foi realmente crucificado e
sepultado, e realmente levantou-se do sepulcro. O termo Grego empregado para
isso é ontws. É algo mais, e mais
forte, do que simplesmente alhqws – “em
verdade”; é algo que enfatiza o caráter sobrenatural da morte e ressurreição de
nosso Senhor. Doravante Ele nos concedeu essa chance, por meio de uma
participação “imitativa” em Sua Paixão, para que possamos adquirir a “salvação
em realidade” (th mimhsei twn pawhmatwn koina chsantes). Não se trata apenas de uma “imitação”, mas antes de
uma participação, de uma similitude. “Cristo foi realmente crucificado e
sepultado, mas a você é dado ser crucificado, sepultado e ressuscitado com Ele
em similitude” (en omoiwmati). Devemos
nos lembrar que São Cirilo menciona não apenas a morte, mas também o
sepultamento. Isso significa que no batismo o homem desce “sacramentalmente”
até a escuridão da morte, e então, junto com o Senhor Ressuscitado, ele se
ergue novamente e passa da morte para a vida. “E a imagem se completa em todos
vocês, pois são vocês a imagem de Cristo”, conclui São Cirilo. Em outras
palavras, todos são enlaçados por e em Cristo, a partir da possibilidade de
fato da “semelhança” sacramental.
São Gregório de Nissa atenta para o mesmo ponto. Existem dois aspectos
no batismo. O batismo é um nascimento e uma morte. O nascimento natural é o
começo da existência mortal, que começa e termina na corrupção. O outro, o novo
nascimento, precisa ser descoberto, e começa na vida eterna. No batismo, “a
presença do poder Divino transforma aquilo que nasceu com uma natureza
corrutível, num estado de incorrupção”. Essa natureza se transforma seguindo e
imitando; e assim, o que foi prenunciado pelo Senhor se realiza. Apenas
seguindo a Cristo a pessoa pode passar pelo labirinto da vida e sair dele.
“Pois eu chamo de labirinto a inescapável guarda da morte, na qual a humanidade
sombria se vê aprisionada” (thn adiexodon
tou qanatou
frouran). Cristo escapou daí depois de
três dias morto. Na fonte batismal “ se realiza a imitação de tudo o que Ele
fez”. A morte é “representada” pelo elemento água e, assim como Cristo se
levantou novamente para a vida, quem é batizado, unido a Ele numa natureza
corporal, “imita a ressurreição ao terceiro dia”. Trata-se apenas de uma
“imitação”, não de uma “identidade”. No batismo o homem não ressuscita de fato,
mas apenas se livra do mal natural e da inescapabilidade da morte. A
continuidade do vício é cortada. Ele não ressuscitou, porque ele não morreu,
mas permanece nessa vida. O batismo apenas antecipa a ressurreição. No batismo,
antecipamos a graça da ressurreição final. O batismo constitui uma
“ressurreição homiomática[74]”,
para usarmos a frase de um acadêmico Russo. Mas de certa forma, no batismo a
ressurreição se inicia. “O batismo é o começo, arch,
e a ressurreição é o final e a consumação, peras
(...) e tudo o que vier a acontecer na grande Ressurreição tem seu início e sua
causa n batismo”. São Gregório não quer dizer com isso que a ressurreição seja
apenas uma remodelagem de nossa composição. A natureza humana avança em direção
para esse objetivo como uma espécie de necessidade. Ele fala de uma plenitude
da ressurreição, de uma “restauração para um estado bendito e divino, livre de
toda culpa e tristeza. Essa é a apokatastasis,
a verdadeira ressurreição para a vida”.
Devemos observar que São Gregório enfatiza particularmente a
necessidade de manter e assegurar a graça batismal, pois no batismo não é
apenas a natureza, mas também a vontade, que é transformada e transfigurada,
tornando-se livre por meio dele. Se a alma não for lavada e purificada no livre
exercício da vontade, o batismo se mostra infrutífero; a transfiguração não se
atualiza; a nova vida não é consumada. Isso não subordina a graça batismal a
uma permissão humana. A graça, de fato, desce no batismo. Mas ela não pode ser
forçada a uma pessoa que é livre e feita à imagem de Deus, ela deve ser
correspondida e corroborada pela sinergia entre o amor e a vontade. A graça não
impulsiona e abrilhanta as almas fechadas e obstinadas, as “almas mortas”. É
preciso que haja resposta e cooperação. Isso acontece porque o batismo consiste
numa morte sacramental com Cristo, numa participação à Sua morte voluntária, em
Seu Amor sacrificial, e, assim, ele só pode ser realizado com liberdade. Por
isso o batismo de morte de Cristo na Cruz é refletido e reproduzido como numa
imagem viva e sacramental. O Batismo é em primeiro lugar uma morte e um
nascimento, um sepultamento e um “banho de regeneração”, “um tempo de morte e
um tempo de vida”, para citarmos São Cirilo de Jerusalém.
A Eucaristia e a Redenção
Na Igreja Primitiva o rito da iniciação Cristã não era dividido. Três
dos sacramentos estavam unidos: o Batismo, o Santo Crisma (Confirmação) e a
Eucaristia. A Iniciação descrita por São Cirilo, e mais tarde por Cabasilas,
incluía os três.
Os sacramentos foram instituídos para capacitar o homem a participar
da morte redentora de Cristo e assim receber a graça de Sua ressurreição. Essa
era a ideia central de Cabasilas. “Somos batizados a fim de morrer por Sua
morte e ressuscitar por Sua ressurreição. Somos ungidos com o crisma para
podermos partilhar de Sua unção real de deificação. E quando somos alimentados
com o santíssimo Pão e bebemos do santíssimo e Divino Cálice, participamos da
mesma carne e do mesmo sangue que nosso Senhor assumiu, e assim nos unimos a
Ele, que se encarnou por nós, que morreu e ressuscitou (...) O Batismo é um
nascimento, o Crisma é a causa dos atos e dos movimentos, e o Pão da vida e o
Cálice da ação de graças são nossos verdadeiros alimento e bebida. Em toda a
vida sacramental e devocional da Igreja, a Cruz e a Ressurreição são “imitadas”
e refletidas em diversos símbolos e ritos. Todo simbolismo é realista. Esses
símbolos não apenas nos relembram algo do passado. Por intermédio desses
símbolos sagrados, a Realidade última é verdadeiramente revelada e transmitida.
Todo esse simbolismo hierático culmina no augusto mistério do Santo Altar. A
Eucaristia é o coração da Igreja, o Sacramento da Redenção em sentido eminente.
Ela é mais do que uma “imitação” (imitatio).
Ela é a própria Realidade, velada e revelada no Sacramento.
Trata-se do “Sacramento perfeito e final”, diz Cabasilas, “e não é
possível ir além, nem existe nada que possa ser acrescentado”. Ela é “o limite
da vida” – zwhs to peras. “Depois da Eucaristia não há mais nada a desejar;
devemos apenas permanecer ali e aprender sobre como preservar esse tesouro até
o final”.
A Eucaristia é a Última Ceia, sempre e sempre repetida, mas não
representada em cada nova celebração – ela é
a mesma “Ceia Mística” que foi celebrada pela primeira vez pelo próprio
Divino Sumo Sacerdote, “na noite em que foi entregue, ou antes, que Se entregou
pela vida do mundo”.
O verdadeiro Celebrante de cada Liturgia é o próprio Nosso Senhor.
Isso foi enfatizado cm grande destaque por São João Crisóstomo em várias
ocasiões. “Acredite, portanto, que mesmo agora se dá a mesma Ceia, na qual Ele
próprio se sentou. Pois essa não difere em nada daquela. Pois não é o homem que
celebra esta, enquanto Ele celebra a outra, mas ambas são obra Dele. Assim,
quando você vê o sacerdote que entrega a comunhão a você, não pense que é esse
sacerdote que o faz, mas que é a mão de Cristo que se estande a você”. E ele
retoma, em outra parte: “O Mesmo que fez essas coisas naquela Ceia, é Ele que
opera agora. Nós ocupamos o cargo de ministros. Aquele que santifica e
transubstancia é o Mesmo. E a mesa é a mesma, nada mais, nada menos. Pois não é
que Cristo tenha feito aquilo, e que o homem faça isso, mas é Ele que opera as
duas coisas. E tudo acontece na Câmara Alta, onde estavam todos então”. E
“Cristo está presente também agora, Ele que adornou aquela mesa e que agora
adorna essa (...) O sacerdote investe-se da figura, mas o poder e a graça são
de Deus”.
Tudo isso é de fundamental importância. A Última Ceia foi um
oferecimento do sacrifício da Cruz. A oferenda continua ainda agora. Cristo
continua agindo como Suma Sacerdote em Sua Igreja. O Mistério é ainda
totalmente o mesmo. O Sacrifício é único, a Mesa é única. O sacerdote é o
mesmo. E não é que um Cordeiro é morto e oferecido nesse dia, e outro outrora;
nem é um aqui, outro em outra parte. Ele é o mesmo, sempre e em todo lugar.
Somente um verdadeiro Cordeiro de Deus, “que tira os pecados do mundo”, o mesmo
Senhor Jesus.
A Eucaristia é um sacrifício, não porque Jesus seja morto mais uma
vez, mas porque o mesmo Corpo e o mesmo Sangue estão de fato sobre o Altar, apresentados
e ofertados. E o Altar é realmente o Santo Sepulcro, no qual o Mestre Celestial
adormeceu. Nicolas Cabasilas expressa isso da seguinte maneira: “Ao Se oferecer
e Se sacrificar de uma vez por todas, Ele não encerrou Seu sacerdócio, mas
passou a exercer seu ministério perpétuo por nós, no qual Ele é nosso advogado
junto a Deus para sempre, e por essa razão foi dito dele, que ‘és Tu sacerdote
para todo o sempre’”.
O poder e o sentido da morte de Cristo se tornam plenamente manifestos
na Eucaristia. O Cordeiro é morto, o Corpo é ferido, o Sangue derramado, e
ainda assim tudo isso constitui um alimento celestial, e “a medicina da
imortalidade e o antídoto para que já não morramos, mas vivamos para sempre em
Jesus Cristo”, para usarmos a famosa frase de Santo Inácio de Antioquia.
Trata-se realmente do “Pão celestial e do Cálice da vida”. Esse tremendo
Sacramento consiste para o fiel nas verdadeiras “Bodas da Vida Eterna”. Pelo
fato de que a Morte de Cristo em si constituiu a Vitória e a Ressurreição, essa
Vitória e esse Triunfo é o que observamos e celebramos no Sacramento do Altar.
Eucaristia significa ação de graças. Trata-se de um hino, mais do que de uma
prece. É o serviço de uma alegria triunfante, a Pascoa perpétua, a festa real
do Senhor da Vida e da glória. “E assim toda a celebração do Mistério constitui
uma imagem da totalidade da economia de nosso Senhor”, diz Cabasilas.
A Santa Eucaristia é o clímax de nossas aspirações. O começo e o fim
estão aqui ligados: as reminiscências do Evangelho e as profecias da Revelação,
ou seja, a totalidade do Novo Testamento. A Eucaristia é uma antecipação
sacramental, um antegozo da Ressurreição, uma “imagem da Ressurreição” (o tupos ths anapausews: a frase é da prece de
consagração de São Basílio). A vida sacramental dos fiéis constitui a
construção da Igreja. Por intermédio dos sacramentos, e nesses sacramentos, a
nova vida de Cristo se estende e é concedida aos membros de Seu Corpo. Através
dos Sacramentos a Redenção é apropriada e se revela. Podemos acrescentar: nos
Sacramentos consuma-se a Encarnação, a verdadeira união do homem com Deus em
Cristo.
Ó Cristo, grande e santíssima Pascoa! Ó Sabedoria, Verbo e Poder de
Deus! Concede-nos que Te comunguemos mais intimamente no dia de Teu Reino que
não conhece o ocaso[75]!
[1]
Cf. I Coríntios 15: 47.
[2]
Colossenses 3: 3.
[3] I
João 1: 1-2.
[4] I
Coríntios 15: 36.
[5] I
Timóteo 3: 16.
[6]
CF. Mateus 16: 17.
[7]
Cf. Filipenses 2: 7.
[8]
João 1: 29.
[9]
João 15: 23-24.
[10]
Lucas 23: 24.
[11]
João 12: 27.
[12]
CF. Lucas 9: 31.
[13]
Marcos 8: 31; Mateus 16: 21; Lucas 9: 22, 24: 26.
[14]
João 10: 18.
[15]
Pedro 1: 20.
[16]
Apocalipse 13: 8.
[17]
II Samuel 14: 14.
[18]
Sabedoria 6: 18; 2: 23.
[19]
Romanos 6: 23.
[20] I
Coríntios 15: 20.
[21]
Romanos 8: 21.
[22]
Literalmente: corpo-prisão.
[23]
Docetismo é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada
herética pela Igreja primitiva. Antecedente do gnosticismo, acreditavam que o
corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas
aparente.
[24]
Atos 17: 18; 32.
[25] Vida de Plotino, 1.
[26] I
João 4: 2-3.
[27]
II Coríntios 5: 4.
[28] I
Coríntios 15: 42.
[29] De anima, 417b.
[30] De Anima, 413a 4)
[31] I
Coríntios 15: 37, 44.
[32]
Cf. o contraste entre o corpo “de nossa humilhação”, ths tapeinwsews hmwn, e o corpo “de Sua glória”, ths doxhs
autou, em Filipenses 3: 21.
[33]
O antropomorfismo, um dos dogmas mais populares e igualmente bíblicos do cristianismo
antigo, foi difundido não apenas entre os simpliciores
(os simples) da ecclesia primitiva,
mas também entre seus eruditi (seus
membros educados), particularmente partidários do estoicismo, como Tertuliano. Os
autores Cristãos Platonizantes, (Orígenes no Oriente e Marius Victorinus no
Ocidente), desenvolveram uma campanha de promoção da doutrina de um Deus
incorpóreo. Numa época em que o próprio clero concebia em grande parte Deus
como uma entidade corpórea, os platonistas cristãos empregavam a retórica da
erudição para defender uma agenda antiantropomorfista. Orígenes de Alexandria
foi dos primeiros a relacionar a posição antropomorfista com os membros
ignorantes da comunidade cristã, os simplicistas. Mais tarde, Cassiano,
Sócrates, Sozomeno e Palladio comentarão os eventos do debate origenista por
meio da mesma distinção entre simpliciores
e eruditi. (Harvard Theological Review, 2015)
[34]
Apocatástase é o termo criado por Orígenes de Alexandria (185-253 d.C.) para
designar a restauração final de todas as coisas em sua unidade absoluta com
Deus. A apocatástase representa a redenção e salvação final de todos os seres,
inclusive os que habitam o inferno. É, assim, um evento posterior ao próprio
apocalipse.
[35]
Timeu 37d.
[36]
Ibid., 38a, b.
[37] “Die schlechte Unendlinchkeit” da
terminologia Hegeliana, ou apeiron,
para os filósofos Gregos.
[38]
“...seguindo a Via reta, que para nós é o Cristo, com ele, Guia e Salvador, do
vão e molesto círculo dos ímpios a mente e o caminho da fé desviemos”.
[39] I
João 3: 2.
[40]
Cf. I Coríntios 13: 3.
[41]
Efésios 5: 2.
[42]
CF. Efésios 5: 25.
[43]
Cf. João 13: 31.
[44]
Lucas 24: 26.
[45]
Lucas 12: 49-50.
[46]
Marcos 10: 39; Mateus 20: 23.
[47]
Lucas 22: 20.
[48]
Miqueias 6: 3. Parafraseado e aplicado ao Senhor no Ofício da Sexta-Feira da Paixão, Matinas, Antífona XII, Tropário.
[49]
Isaías 53: 5.
[50]
“A fim de que não se torne inútil a Cruz de Cristo” (I Coríntios 1: 17).
[51]
No aristotelismo, a enteléquia designa a realização plena e completa de uma
tendência, potencialidade ou finalidade natural, com a conclusão de um processo
transformativo até então em curso em qualquer um dos seres animados e
inanimados do universo.
[52]
En w kai tois en fulakh pneumasin poreuqeis (I Pedro 3: 19 – “Ele proclamou a
vitória, inclusive aos espíritos aprisionados”); nekrois
euhggelisqh (I Pedro 4: 6 – “Por que o
Evangelho foi anunciado também aos mortos”).
[53]
Apocalipse 1: 17-18.
[54]
Atos 2: 24.
[55] I
Coríntios 15: 22.
[56]
João 12: 24.
[57]
João 12: 28.
[58] I
Coríntios 15: 43-44.
[59] I
Coríntios 15: 13, 16.
[60] Ibid., 17.
[61] Ibid. 20.
[62] I
João 3: 16; 4: 10.
[63]
Gálatas 3: 27.
[64] I
Coríntios 12: 13.
[65] Romanos
6: 3-4.
[66] “Suntafentes autow
en tw baptismati, en j kai sunhgepqhte
dia ths pistews ths energeias
tou Qeou tou egeirantos auton ek nekrwn” (Colossenses 2: 12).
[67]
II Timóteo 2: 11.
[68]
Colossenses 2: 7.
[69]
II Coríntios 3: 18; 4: 10, 14; 5: 1, 2.
[70]
João 5: 24-29; 8: 51.
[73]
Cf. Gálatas 4: 19.
[74]
"Homiomático", termo criado por Florovsky a partir de "ὁμοίωμα"
– "homoiôma, atos", objeto semelhante, imagem. Não foi possível
identificar o acadêmico Russo a que o autor se refere, mas o termo eslavônico e
russo “подобие” aparece frequentemente como tradução de ὁμοίωμα nas fontes russas.
„Подобие" significa “similitude/similar/ semelhante/semelhança".
[75]
Hino da Comunhão, repetido pelo sacerdote a cada celebração da Divina Liturgia.
[1] “Ó
culpa feliz, que mereceu tal e tamanho Redentor” (São Tomás de Aquino).
[2]
Romanos 8: 20-22.
[3] De princ.. II, 9-2; 8-3.
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