Existem dois aspectos do conhecimento religioso: a Revelação e a
Experiência. A Revelação é a voz de Deus que fala ao homem. E o homem ouve essa
voz, escuta-a, aceita a Palavra de Deus e a compreende. É exatamente para isso
que Deus fala: para que o homem possa ouvi-lo. Pela Revelação, no sentido
próprio, entendemos precisamente essa palavra de Deus como deve ser ouvida. E
ainda que se possa interpretar o caráter inspirado da Escritura, deve-se ter
consciência de que a Escritura preserva e apresenta para nós a voz de Deus numa
linguagem humana. Ela nos apresenta a palavra de Deus tal como ela ressoa na
alma receptiva do homem. Revelação e teofania. Deus desce até o homem e se
revela a ele. E o homem vê e contempla a Deus. E ele descreve aquilo que viu e
ouviu; ele dá testemunho do que foi revelado a ele. O maior mistério e milagre
da Bíblia consiste no fato de que ela constitui a Palavra de Deus na linguagem
do homem. Com muita propriedade os primeiros exegetas Cristãos viram nas
escrituras do Antigo Testamento uma antecipação e um protótipo da futura
Encarnação de Deus. Já no Antigo Testamento a Palavra Divina se torna humana,
Deus fala ao homem na linguagem do homem. É isso que constitui o autêntico
antropomorfismo da Revelação. Porém, esse antropomorfismo não é meramente uma
acomodação. De modo algum a linguagem humana reduz o caráter absoluto da
Revelação, nem limita o poder da Palavra de Deus. A Palavra de Deus pode ser
expressa precisa e adequadamente em linguagem humana, pois o homem foi criado à
imagem de Deus. É precisamente por essa razão que o homem é capaz de perceber a
Deus, de receber a palavra de Deus e de preservá-la. A Palavra de Deus não se
diminui quando ressoa na linguagem humana. Ao contrário, é a palavra humana que
é transformada e como que transfigurada pelo fato de que agrada a Deus falar em
linguagem humana. O homem é capaz de ouvir a Deus, de captar, receber e
preservar as palavras de Deus. De qualquer modo, a Santa Escritura nos fala não
apenas de Deus, mas também do homem. Assim a Revelação histórica se torna plena
precisamente com o aparecimento do Deus-Homem. Tanto no Antigo, como no Novo
Testamento, vemos não apenas a Deus, como também o homem. Vemos Deus se
aproximar e aparecer ao homem; e vemos pessoas humanas que encontraram a Deus e
que ouviram atentamente sua Palavra – e, o que é mais importante, responderam
às suas palavras. Ouvimos também na Escritura a voz do homem, respondendo a
Deus nas palavras da oração, nas ações de graça e nos louvores. Em relação a
isso, basta mencionar os Salmos. E Deus quer, espera e exige essa resposta.
Deus quer que o homem não apenas ouça suas palavras, mas que responda a elas.
Deus quer envolver o homem numa “conversação”. Deus desce até o homem – e ele
desce de modo a elevar o homem até ele. Na Escritura ficamos espantados, acima
de tudo, com essa proximidade íntima entre Deus e o homem, entre o homem e
Deus, essa santificação de toda a vida humana pela presença de Deus, esse manto
de proteção Divina que envolve toda a terra. Na Escritura ficamos espantados
com a história sagrada em si. Na Escritura revela-se que a própria história se
torna sagrada, que a história pode ser consagrada, que a vida pode ser
santificada. E, certamente, não apenas no sentido de uma iluminação externa à
vida – vinda desde fora – mas no sentido mesmo de sua transfiguração. A
Revelação se torna de fato completa com a fundação da Igreja e com a descida do
Espírito Santo ao mundo. Desde aquele tempo o Espírito de Deus habita no mundo.
Subitamente, a fonte da vida se estabeleceu no próprio mundo. E a Revelação
será consumada com a aparição do novo céu e da nova terra, com a transformação
cósmica e universal da existência criada. Pode-se sugerir que a Revelação é o
caminho de Deus na história – podemos ver como Deus caminha entre as fileiras
dos homens. Contemplamos a Deus não apenas na majestade transcendente de Sua
glória e onipotência, mas também na Sua amorosa proximidade com a criação. Deus
Se revela não apenas como Senhor e Pantocrator,
mas acima de tudo como Pai. E o fato cabal é que a Revelação escrita é
história, a história do mundo como criação de Deus. A Escritura se inicia com a
criação do mundo e se encerra com a promessa de uma nova criação. E podemos
perceber a tensão dinâmica entre esses dois momentos, entre o primeiro “fiat” e aquele que virá: “Vede, Eu fiz
novas todas as coisas[1]”.
Não cabe aqui tratar em detalhe as questões básicas da exegese
bíblica. Não obstante, uma coisa deve ficar bem estabelecida. A Escritura pode
ser vista desde uma dupla perspectiva: fora da história e como história. No primeiro
caso a Bíblia é interpretada como um livro contendo imagens e símbolos eternos
e sagrados. E ela deve ser revelada e interpretada precisamente como símbolo,
de acordo com as regras do método simbólico e alegórico. Na Igreja antiga os
partidários do método alegórico interpretavam a Bíblia dessa maneira. Os
místicos da Idade Média e da Reforma também entenderam a Bíblia dessa maneira. Muitos
teólogos contemporâneos, especialmente Católicos Romanos, seguem o entendimento
nessa mesma direção. A Bíblia surge assim como uma espécie de Livro de Leis,
como um código de mandamentos e ordenações divinas, como uma coleção de textos
ou “leis teológicas”, como uma coleção de imagens e ilustrações. A Bíblia se
torna assim um livro autossuficiente e autorreferenciado – um livro, por assim
dizer, escrito para ninguém, um livro com sete selos... Não é necessário
rejeitar essa perspectiva: certamente existe alguma verdade nessa
interpretação. Mas a totalidade do espírito da Bíblia contradiz essa
interpretação, pois ela contradiz o sentido direto da Escritura. Mas o erro
básico desse entendimento consiste na abstração do homem. É certo que a Palavra
de Deus é verdade eterna e que Deus fala na Revelação para todos os tempos. Mas
se se admite a possibilidade de vários significados para a Escritura, e se se
entende na Escritura uma espécie de significado interno, abstrato e
independente do tempo e da história, corre-se o risco de destruir o realismo da
Revelação. É como se Deus tivesse falado de tal modo aos primeiros a quem falou
diretamente, que esses não O tivessem entendido – ou, no mínimo, que não O
tivessem tal como Ele pretendia. Essa forma de entendimento reduz a história à
mitologia. E, finalmente, a Revelação não constitui simplesmente um sistema de
palavras divinas, mas também um sistema de ações divinas; e precisamente por
essa razão ela consiste, acima de tudo, em história, história sagrada ou
história da salvação, na história da aliança entre Deus e o homem. Somente
dessa perspectiva histórica a plenitude da Escritura se abre para nós. A
textura da Escritura é uma textura histórica. As palavras de Deus são sempre, e
acima de tudo, relativas ao tempo – elas possuem sempre, e acima de tudo, um
significado direto. Deus vê diante de si, por assim dizer, aquele a quem Ele
fala, e Ele fala, por causa disso, de um modo a que possa ser ouvido e
entendido. Pois Ele sempre fala para a salvação do homem, para o homem. Existe
um simbolismo na Escritura – mas ele é antes profético do que alegórico.
Existem imagens e alegorias na Escritura, mas na sua totalidade ela não
consiste em imagem e alegoria, mas em história. É preciso distinguir entre
simbolismo e tipologia. No simbolismo é possível abstrair a história. A
tipologia, por sua vez, é sempre histórica; é um tipo de profecia – quando os
eventos profetizam por si próprios. Pode-se dizer também que a profecia é
sempre um símbolo – um sinal que aponta para o futuro – mas ela é sempre um
símbolo histórico que dirige a atenção para os eventos futuros. A Escritura
contém uma teleologia histórica: tudo aponta para um ponto-limite histórico,
para um telos histórico. Por isso
existe essa tensão do tempo na Santa Escritura. O Antigo Testamento é o tempo
da espera messiânica – é esse o tema básico do Antigo Testamento. E o Novo
Testamento é, acima de tudo, história – a história evangélica do Verbo Divino e
o começo da história da Igreja, que se dirige para a expectativa da plenitude
Apocalíptica. “Plenitude” constitui a categoria básica da Revelação.
A Revelação e a Palavra de Deus e a Palavra a respeito de Deus. Mas,
ao mesmo tempo, e além disso, a Revelação é sempre uma Palavra dirigida ao
homem, um chamado e um apelo ao homem. E na Revelação também o destino do homem
se revela. Em qualquer caso, a Palavra de Deus nos é dada em nossa linguagem
humana. Nós a conhecemos apenas na medida em que ela ressoa através de nossa
receptividade em nossa consciência, em nosso espírito. E a substância e
objetividade da Revelação é apreendida não porque o homem faça ele próprio uma
abstração de si, não porque ele se despersonalize, não porque ele se reduza a
um ponto matemático, transformando-se assim num “sujeito transcendente”. O que
acontece é precisamente o contrário: o “sujeito transcendente” não é capaz nem
de perceber, nem de entender a voz de Deus. Não é para o “sujeito
transcendente”, para alguma “consciência geral” que Deus fala. O “Deus dos
vivos”, o Deus da Revelação fala para pessoas vivas, para sujeitos empíricos,
apoiados numa experiência vivida. A face de Deus se revela apenas a
personalidades vivas. E quanto melhor, mais plena e claramente vê o homem a
face de Deus, quanto mais distinta e viva se torna sua própria face, mais plena
e clara a “imagem de Deus” aparece e se realiza nele. A mais elevada objetividade
em ouvir e entender a Revelação é adquirida na medida do maior esforço exercido
pela personalidade criativa, por meio do crescimento espiritual, pela
transfiguração da personalidade, que se torna “a sabedoria da carne”,
ascendendo à “medida da estatura da plenitude de Cristo[2]”.
Não se exige do homem uma auto-abnegação, mas um vitorioso movimento de avanço,
não uma autodestruição, mas uma transformação ou um renascimento, de fato, uma theosis. Sem o homem, a Revelação seria
impossível – porque ninguém estaria ali para ouvir e Deus não teria com quem
falar. E Deus criou o homem de maneira a que o homem pudesse ouvir suas
palavras, recebê-las, crescer nelas e com elas e se tornar participante da
“vida eterna”. A Queda do homem não alterou a intenção original de Deus. O
homem não perdeu completamente a capacidade de ouvir a Deus e de louvá-lo. E
finalmente: cessaram o domínio e o poder do pecado. “E o Verbo se fez carne e
habitou entre nós (...) e nós contemplamos Sua glória, a glória do Filho único
do Pai, cheio de graça e verdade[3]”.
O caminho da vida e da luz se abriu. E o espírito humano agora se torna capaz
de escutar a Deus completamente e receber Suas palavras.
***
Mas Deus falou ao homem não apenas para que esse guardasse e
recordasse suas palavras. Não se pode simplesmente armazenar a Palavra de Deus
na memória. É preciso preservá-la, acima de tudo, num coração vivo e ardente. A
Palavra de Deus é preservada no espírito humano como uma semente que cresce e
logo dá muitos frutos. Isso significa que a verdade da divina Revelação deve se
abrir dentro do pensamento humano, deve se desenvolver num sistema inteiro de
confissão de fé, num sistema de perspectiva religiosa – podemos dizer, num
sistema de filosofia religiosa e numa filosofia da Revelação. Nisso não existe
subjetividade. O conhecimento religioso permanece sempre heteronômico em sua
essência, uma vez que consiste numa visão e numa descrição da realidade divina
que foi e é revelada ao homem por meio da entrada do Divino no mundo. Deus
desce ao mundo – e revela não apenas revela ao homem Seu semblante, como
realmente aparece para ele. A Revelação é compreendida pela fé, e a fé consiste
na visão e na percepção. Deus aparece ao homem e o homem contempla a Deus. As
verdades da fé são verdades da experiência, verdades de um fato. Isso constitui
precisamente o fundamento da certeza apodítica da fé. A fé é uma confirmação
descritiva de determinados fatos – “assim é”, “assim foi”, “assim será”.
Precisamente por essa razão a fé é também indemonstrável – a fé é a evidência
da experiência. Devemos distinguir claramente entre as épocas da Revelação. E
não se deve atestar a essência da fé Cristã com base nos precedentes
veterotestamentários. O Velho Testamento foi um tempo de espera: todo o pathos do homem do Antigo Testamento
estava direcionado para um “futuro” – esse “futuro” era a categoria básica de
sua experiência religiosa e de sua vida. A fé do homem do Antigo testamento era
uma expectativa – a expectativa daquilo que ainda não existia, do que ainda não
chegara a acontecer, ou daquilo que ainda era “invisível”. Mas o tempo da
espera chegou ao fim. As profecias se realizaram. O Senhor veio. E Ele veio de
modo a permanecer junto àqueles que acreditaram nele “para sempre, até o fim
das eras[4]”.
Ele concedeu ao homem “o poder de se tornar filho de Deus[5]”.
Ele enviou o Espírito Santo ao mundo para conduzir os fiéis “para a verdade[6]”,
e para fazê-los “recordar tudo o que o Senhor disse[7]”.
Por isso os fiéis têm “a unção do Espírito Santo, e conhecem tudo (...) e não
precisam que ninguém os ensine[8]”.
Eles possuem a “unção da verdade”, charisma
veritatis, como disse Santo Irineu. Em Cristo a possibilidade e o caminho
para uma vida espiritual se abriu para o homem. E a estatura da vida espiritual
é feita de conhecimento e de visão, Gnwsis
e Qewria. Isso altera o sentido da fé.
A fé Cristã não está dirigida primariamente para “o futuro”, mas para aquilo
que já se encontra realizado – a bem dizer, para o Eterno Presente, para a
plenitude divina que foi e é revelada por Cristo. Num certo sentido pode-se
dizer que Cristo tornou o conhecimento religioso possível pela primeira vez;
vale dizer, o conhecimento de Deus. E Ele realizou isso não como pregador ou
como profeta, mas como “Príncipe da Vida” e como Alto Sacerdote da Nova
Aliança. O conhecimento de Deus se tornou possível através da renovação da
natureza humana que Cristo realizou por meio de Sua morte e ressurreição. Essa
renovação foi também a renovação da razão e do espírito humanos. Isso
significa, em resumo, a renovação da visão do homem.
E o conhecimento de Deus se torna possível na Igreja, no corpo de
Cristo enquanto unidade da vida de graça. Na Igreja, a Revelação se torna uma
Revelação interior. Num certo sentido a Revelação se torna a confissão da
Igreja. É muito importante lembrar que os textos do Novo Testamentos são mais
novos do que a Igreja. Esses textos constituem um livro que foi escrito na Igreja. Eles são o registro escrito
da fé da Igreja, da fé que foi preservada pela Igreja. E a Igreja confirma a
verdade da Escritura, confirma sua autenticidade – verificando-a por meio da
autoridade do Espírito Santo que habita na Igreja. Não devemos nos esquecer
disso em relação ao Evangelho. Nos Evangelhos escritos, a imagem do Salvador
está colocada com firmeza, essa mesma imagem que viveu desde o início na
memória viva da Igreja, na experiência da fé – não simplesmente na memória
histórica, mas verdadeiramente na memória da fé. Essa é uma distinção
essencial. Porque conhecemos Cristo não apenas por memórias e relatos. Não é só
sua imagem que está viva na memória dos fiéis – ele próprio habita entre eles,
presente diante da porta de cada alma. É Precisamente nessa experiência da
comunidade viva com Cristo que o Evangelho se torna vivo como livro santo. A
Revelação Divina vive na Igreja – e de que outra maneira ela poderia ser
preservada? Ela foi esboçada e reforçada pelas palavras da Escritura. Para
sermos precisos, ela foi esboçada – mas essas palavras não exauriram a inteira
plenitude da Revelação, não exauriram a inteira plenitude da experiência
Cristã. E a possibilidade de novas e diferentes palavras não foi, tampouco,
excluída. Em qualquer caso, a Escritura sempre demanda interpretação.
E as verdades invariáveis da experiência podem ser expressas de
diferentes maneiras. A realidade divina pode ser descrita em imagens e
parábolas, na linguagem da poesia devocional e na da arte religiosa. Assim era
a linguagem dos profetas do Antigo Testamento, assim o modo como os
Evangelistas costumavam falar, assim o modo como os Apóstolos pregaram, assim a
maneira como a Igreja ora ainda hoje em seus hinos e no simbolismo de seus atos
sacramentais. Essa é a linguagem da proclamação e das boas novas, a linguagem
da prece e da experiência mística, a linguagem da teologia “da proclamação” (kerugma). E existe outra linguagem, a
linguagem da compreensão do pensamento, a linguagem do dogma. O dogma é o
testemunho da experiência. Todo o pathos
do dogma reside no fato de que ele aponta para a realidade divina; nisso, o
testemunho do dogma é simbólico. O dogma é o testemunho do pensamento a
respeito do que foi visto e revelado, sobre o que foi contemplado na
experiência da fé – e esse testemunho se expressa em conceitos e definições. O
dogma constitui uma “visão intelectual”, a verdade da percepção. Podemos dizer
que ele consiste numa imagem lógica, num “ícone lógico” da realidade divina. E
ao mesmo tempo o dogma é uma definição – e é por isso que a forma lógica é tão
importante para o dogma, essa “palavra interior” que adquire sua força numa
expressão exterior. É por isso que o aspecto exterior do dogma – sua formulação
em palavras – é tão essencial. O dogma de modo algum constitui uma nova
Revelação. Ele é apenas um testemunho. Todo o sentido da definição dogmática
consiste em atestar a verdade imutável, a verdade que foi revelada e preservada
desde o princípio. Por isso, falar em “desenvolvimento do dogma”, revela uma
total incompreensão. Dogmas não se desenvolvem; eles são inalteráveis e
invioláveis, mesmo em seu aspecto externo – sua expressão verbal. Menos ainda
se pode alterar sua linguagem dogmática e sua terminologia. Por estranho que
possa parecer, podemos ainda dizer: os dogmas surgem, eles são estabelecidos,
mas eles não se desenvolvem. E, uma
vez estabelecido, o dogma é perene e se torna uma “rega de fé” (regula fidei,
ou o kanwn ths pistews) imutável. O
dogma constitui uma verdade intuitiva, não um axioma discursivo que é
inacessível a um desenvolvimento lógico. Todo o sentido do dogma reside no fato
de que ele expressa a verdade. A revelação se abre e é recebida no silêncio da
fé, numa visão silenciosa – esse é o primeiro e apofático passo para o
conhecimento de Deus. A total plenitude da verdade está desde logo contida
nessa visão apofática, mas a verdade tem
que ser expressa. O homem, por sua vez, é chamado não apenas ao silêncio,
mas para falar, para comunicar. O silentium
mysticum não esgota a inteira plenitude da vocação religiosa do homem.
Também existe espaço para a expressão do louvor. Em sua confissão dogmática a
Igreja se expressa e proclama a verdade apofática que ela preserva. A busca por
definições dogmáticas é, assim, uma busca por termos. Precisamente por causa
disso as controvérsias doutrinas consistem em disputas a respeito de termos. É
preciso encontrar palavras claras e precisas capazes de descrever e expressar a
experiência da Igreja. É preciso expressar essa “visão espiritual” que se
apresenta ao espírito do fiel na experiência e na contemplação.
Isso é necessário, porque a verdade da fé é também uma verdade para a
razão e para o pensamento – o que não significa, é claro, que seja a verdade do
pensamento, a verdade da razão pura. A verdade da fé é fato, realidade – aquilo
que é. Nessa “busca por palavras” o pensamento humano muda, a própria essência
do pensamento se transforma e é santificada. A Igreja atestou indiretamente o
fato ao rejeitar a heresia de Apolinário. O Apolinarismo consiste, no fundo,
numa falsa antropologia, num falso ensinamento sobre o homem e, sendo assim,
num falso ensinamento sobre o Homem-Deus, Cristo. O Apolinarismo é a negação da
razão humana, o medo do pensamento – conforme Gregório de Nissa, “é impossível
que não exista pecado no pensamento humano[9]”.
E isso implica que a razão humana é incurável (Aqepateuton
esti), ou seja, que ela deve ser afastada. A rejeição ao Apolinarismo
significa, assim, ao mesmo tempo, a justificação fundamental da razão e do
pensamento. Não no sentido, é claro, de que a “razão natural” seja certa e sem
pecado por si mesma, mas no sentido de que ela está aberta à transformação, que
ela pode ser curada, que pode ser renovada. A não apenas ela pode, como deve ser curada e renovada. A razão é chamada ao conhecimento de Deus. “Filosofar” a respeito de Deus não
é apenas uma habilidade de inquirição ou uma espécie de curiosidade audaciosa.
Ao contrário, é a plenitude do chamado de do dever religioso do homem. Não é
uma aquisição suplementar, uma espécie de opus
supererogatorium, mas um momento necessário e orgânico da conduta
religiosa. Por essa razão, a Igreja “filosofou” sobre Deus – ela “formulou em
dogmas aquilo que os primeiros pescadores expuseram em palavras simples[10]”.
Os chamados “dogmas dos Padres” reapresentaram o conteúdo imutável da “pregação
apostólica” em categorias intelectuais. A experiência da verdade não se altera,
ela sequer cresce; de fato, o pensamento que penetra no “entendimento da
verdade” transforma a si mesmo por meio desse processo.
Podemos simplesmente dizer: ao estabelecer dogmas, a Igreja expressou
a Revelação na linguagem da filosofia Grega – ou, se se preferir: ela traduziu
a Revelação do hebraico, de uma linguagem poética e profética, para o Grego.
Isso implica, em certo sentido, uma “Helenização” da Revelação. Na realidade,
por outro lado, o que aconteceu foi uma “Igrejização” do Helenismo. Podemos
falar indefinidamente sobre esse tema – de fato, esse tema já foi tratado e
discutido até em demasia, discutido e disputado mais do que o suficiente. Aqui,
o essencial é levantar apenas uma questão. A Antiga Aliança passou. Israel não
aceitou o Cristo Divino, não O reconheceu nem O confessou, de modo que a
“promessa” passou aos Gentios. A Igreja é, acima de tudo, ecclesia ex gentibus. Devemos reconhecer esse fato fundamental da
história Cristã, com humildade diante da vontade de Deus, que se realiza no
destino das nações. E o “chamado aos Gentios” significa que o Helenismo foi
abençoado por Deus. Aqui não existe “acidente da história” – não reside aí
nenhum acidente. No destino religioso do homem não existem “acidentes”. De
qualquer modo, permanece o fato de que o Evangelho foi transmitido a todos na
língua Grega. É somente nessa linguagem que podemos escutar o Evangelho em sua
inteireza e plenitude. Isso não significa, nem pode significar, que ele seja
intraduzível – mas ele tem sempre que ser traduzido a partir do Grego. E,
precisamente, existiu tão pouco “acaso” ou “acidente” nessa “seleção” da língua
Grega (enquanto proto-linguagem imutável do Evangelho Cristão), quanto na
“seleção”, por parte de Deus, do povo Judeu, dentre todos os povos da
antiguidade, para ser “Seu” Povo; tão pouco “acaso” ou “acidente” na “seleção”
da língua Grega quanto no fato de que “a salvação vem dos Judeus[11]”.
Recebemos a Revelação de Deus tal como ela ocorreu. E é ocioso se preguntar
sobre o que poderia ter sido se fosse de outro modo. Na seleção dos “Helenos”
devemos reconhecer as decisões da vontade oculta de Deus. De qualquer modo, a
apresentação da Revelação na linguagem do Helenismo histórico de modo algum
restringe a Revelação. Ao contrário, prova-se exatamente o oposto – ou seja,
que essa linguagem possuía certos poderes e recursos que ajudaram a expor e
expressar a verdade da Revelação.
Quando a verdade divina é expressa em linguagem humana, as próprias
palavras são transformadas. E o fato de que as verdades da fé são veladas sob
imagens lógicas e conceitos atesta a transformação da palavra e dos pensamentos
– as palavras se tornam santificadas por meio dessa utilização. As palavras das
definições dogmáticas não são “simples palavras”, não são palavras “acidentais”
que podem ser substituídas por outras palavras. Elas são palavras eternas,
impossíveis de serem substituídas. Isso significa que determinadas palavras –
certos conceitos – são eternizadas pelo próprio fato de que expressam verdades
divinas. Isso implica que existe uma philosophia
perennis, como se diz – que existe algo no pensamento que é eterno e
absoluto. Mas isso de modo algum implica a existência de uma “eternalização” de
um “sistema” filosófico específico. Para colocarmos de modo mais preciso – a
dogmática Cristã não constitui o único verdadeiro “sistema” filosófico. Podemos
recordar que os dogmas estão expressos em linguagem filosófica – de fato, numa
linguagem filosófica específica – mas de modo algum na linguagem de alguma
escola filosófica em particular. Ao contrário, podemos falar de um “ecletismo”
filosófico da dogmática Cristã. E esse “ecletismo” possui um significado mais
profundo do que lhe é comumente atribuído. Todo o seu significado consiste no
fato de que os temas particulares da filosofia Helênica foram recebidos e,
através dessa recepção, eles se transformaram essencialmente; eles mudaram e já
não são reconhecíveis. Porque agora, na terminologia da filosofia Grega, uma
experiência nova, totalmente nova, é expressada. Embora os temas e motivos do
pensamento Grego tenham sido mantidos, as respostas às questões são diferentes;
elas são dadas a partir de uma nova experiência. Por esse motivo, o Helenismo
recebeu o Cristianismo como algo novo e estrangeiro, e o Evangelho Cristão
pareceu “loucura” para os Gregos[12].
O Helenismo, forjado no fogo de uma nova experiência e de uma nova fé,
foi renovado; o pensamento Helênico se transformou. Usualmente não percebemos o
bastante o inteiro significado dessa transformação que o Cristianismo
introduziu no domínio do pensamento. Isso acontece porque, numa certa medida,
continuamos a ser filosoficamente como os antigos Gregos, não tendo ainda
experimentado o batismo do pensamento pelo fogo. E, em parte, ao contrário,
porque estamos também acostumados a uma nova visão de mundo, que conservamos
como se fosse uma “verdade inata”, quando, de fato, ela nos foi dada apenas
através da Revelação. Basta apontarmos alguns exemplos: a ideia do mundo
enquanto criação, não apenas no seu aspecto transitório e perecível, como
também em seus princípios primordiais. Para o pensamento grego o conceito de
“ideias criadas” era impossível e ofensivo. E ligado a isso estava a intuição
Cristã da história como uma realização criativa única (algo que só acontece uma
vez), o sentido de um movimento a partir de um “inicio” de fato até um fim
derradeiro, um sentimento pela história que de modo algum se permite vincular
ao pathos estático do pensamento
Grego arcaico. Também o conceito o homem como pessoa, o conceito de personalidade, era inteiramente inacessível
ao Helenismo, que considerava como pessoa apenas a máscara. E, finalmente, está a mensagem da Ressurreição na carne –
glorificada, mas real – um pensamento que poderia apenas aterrorizar os Gregos,
que viviam na esperança de uma desmaterialização futura do Espírito. Essas
foram algumas das perspectivas que se abriram pela nova experiência a partir da
Revelação. Elas são as pressuposições e categorias de uma noiva filosofia
Cristã. Essa filosofia está encerrada na dogmática da Igreja. Na experiência da
fé o mundo se revela diferentemente do que ele é na experiência do “homem
natural”. A Revelação não é apenas uma Revelação sobre Deus, mas também sobre o
mundo. Pois a plenitude da Revelação está na imagem do Deus-Homem; ou seja, no
fato da inefável união entre Deus e o homem, do Divino com o humano, do Criador
com a criatura – na indivisível, mas não confundida, união para todo o sempre.
É precisamente o dogma da Calcedônia sobre a unidade do Deus-Homem que
constitui o verdadeiro e decisivo ponto da Revelação, e da experiência da fé e
da visão Cristã. Estritamente falando, um claro entendimento de Deus é
impossível para o homem, se ele estiver comprometido com as vagas e falsas
concepções a respeito do mundo e de si mesmo. Não há nada de surpreendente
nisso. Pois o mundo é a criação de Deus e, consequentemente, se alguém forma
uma falsa compreensão do mundo, atribuirá a Deus uma obra que ele não produziu,
estabelecendo um julgamento distorcido a respeito da atividade e da vontade de
Deus. A esse respeito, uma filosofia verdadeira é necessária à fé. E, por outro
lado, a fé está comprometida com pressupostos metafísicos específicos. A
teologia dogmática, enquanto exposição e explanação da verdade divinamente
revelada no domínio do pensamento, é precisamente a base da filosofia Cristã,
ou filosofia sagrada, ou filosofia do Espírito Santo.
Mais uma vez, devemos insistir: o dogma pressupõe a experiência, e
somente na experiência da visão e da fé o dogma atinge sua plenitude e se torna
vivo. E mais uma vez: o dogma não esgota a experiência, assim como a Revelação
não é esgotada pelas “palavras”, ou pela “letra” da Escritura. A experiência e
o conhecimento da Igreja são mais abarcantes e plenos do que seu pronunciamento
dogmático. A Igreja dá testemunho de inúmeras coisas que não são colocações
“dogmáticas”, mas imagens e símbolos. Em outras palavras, a teologia
“dogmática” não pode nem diminuir, nem substituir a teologia “da proclamação” (kerugma). Na Igreja, a plenitude do
conhecimento e do entendimento é dada, mas essa plenitude só se abre e é
professada gradual e parcialmente – e, em geral, o conhecimento nesse mundo é
sempre um conhecimento “parcial”, e sua plenitude será revelada apenas na
Parúsia: “Agora eu conheço em parte[13]”.
Essa “incompletude” do conhecimento provém do fato de que a Igreja está ainda
“em peregrinação”, ainda em processo de provir; ela dá testemunho da essência
mística do tempo, no qual o crescimento da humanidade se realiza de acordo com
a medida da imagem de Cristo. E mais ainda: a Igreja não se empenha em
expressar e declarar nada. A Igreja não se empenha em cristalizar sua
experiência num sistema fechado de palavras e conceitos. Não obstante, essa
“incompletude” de nosso conhecimento aqui e agora não enfraquece seu caráter
autêntico e apodítico. Um teólogo Russo descreveu essa situação da seguinte
maneira: “A Igreja não fornece um plano fixo da Cidade de Deus a seus membros,
antes ela lhes dá a chave da Cidade de Deus. E aquele que nela entra, sem ter
um esquema fixo, pode ocasionalmente se perder; e mesmo assim, tudo o que ele
observar, ele contemplará tal como é, em sua plena realidade. É claro também
que, aquele que estudar a Cidade de acordo com um plano, sem que possua a chave
da cidade verdadeira, jamais chegará à Cidade[14]”.
***
A Revelação encontra-se preservada na Igreja. Ela foi dada por Deus à
Igreja, não a indivíduos isolados, assim como as “palavras de Deus” no Antigo
Testamento não foram confiadas a pessoas, mas ao Povo de Deus. A Revelação foi
dada, e está acessível, apenas na Igreja; ou seja, somente através da vida na
Igreja, através de um pertencimento real e vivo ao organismo místico do Corpo
de Cristo. Isso significa que o conhecimento genuíno só é possível como
elemento da Tradição. A Tradição
constitui um conceito muito importante, e que usualmente é entendido de modo
muito estreito, como “Tradição oral”, em contraste com a Escritura. Esse
entendimento não apenas limita, como também distorce o sentido da Tradição. A
Sagrada Tradição, enquanto “tradição da verdade” – traditio veritatis, como disse Santo Irineu – não é apenas a
memória histórica, não apenas um chamado à antiguidade e à imutabilidade
empírica. A Tradição é a memória da Igreja, interior e mística. Ela é, acima de
tudo, a “unidade do Espírito”, a unidade e a continuidade da experiência
espiritual e da vida da graça. É a conexão viva com o dia de Pentecostes, o dia
em que o Espírito Santo desceu ao mundo como “Espírito da Verdade”. A
fidelidade à Tradição é não somente a lealdade à antiguidade, mas, mais ainda,
o vivo relacionamento com a plenitude da vida Cristã. O apelo da Tradição não é
tanto o chamado aos padrões primitivos, mas um apelo à experiência “católica”
da Igreja, à plenitude de seu conhecimento. Conforme a conhecida fórmula de São
Vicente de Lerins: quod semper, quod
ubique, quod ab amnibus creditum est [15],
tão frequentemente utilizada, mas que
contém uma ambiguidade essencial. “Semper”
e “ubique” não devem ser entendidos
literal e empiricamente. E “omnes”
não inclui todos os que se dizem Cristãos, mas apenas os “verdadeiros”
Cristãos, aqueles que preservam a doutrina correta e a interpretam
corretamente. Evidentemente, os heréticos, os perdidos e os fracos na fé não
estão incluídos no conceito de “todos”. A fórmula de São Vicente está baseada
numa tautologia. O escopo da Tradição não pode ser estabelecido simplesmente
por meio de uma pesquisa histórica. Esse seria um caminho demasiado perigoso.
Significaria uma desconsideração completa da natureza espiritual da Igreja. A
Tradição só pode ser conhecida e compreendida no pertencimento à Igreja, na
participação à sua vida “católica”, comum a todos. O termo “católico” costuma
ser entendido de forma errônea e imprecisa. Ele não significa uma
universalidade externa – não se trata de um critério quantitativo, mas
qualitativo. “Católico” não significa “universal”: kaqolikos não é idêntico a oikomenikos.
A “Igreja Católica” sempre pode ser vista historicamente como o “pequeno
rebanho”. Existem provavelmente mais “heréticos” do que “fiéis Ortodoxos” no
mundo atual, e podemos dizer que os “heréticos” estão por toda parte – ubique – e que a Igreja foi empurrada
para os fundos da história, para o “deserto”. Esse foi o caso, muitas vezes, e
parece estar acontecendo outra vez. Mas essa situação e essa limitação empírica
de modo algum é capaz de destruir a natureza “católica” da Igreja. A Igreja é
católica por ser o Corpo de Cristo, e na unidade desse Corpo o se dá o crescimento
comum dos seus membros individuais; a seclusão e o isolamento mútuos são
superados, e a verdadeira “comunidade”, ou a “vida comum[16]”
se realiza. E isso diz respeito também ao pensamento. A catolicidade da
consciência é também realizada na unidade da Igreja. É nisso que está contido o
verdadeiro mistério da Igreja: “Que todos sejam um, assim como o Pai está em
Mim e Eu estou no Pai, e que estejam eles em Nós (...) para que sejam perfeitos
na unidade...”[17].
Essa “plenitude de unidade” na imagem da Trindade é precisamente a
catolicidade da Igreja. Ao explicar a oração sacerdotal de nosso Senhor, o
Metropolita Antonii de Kiev colocou: “Essa oração não diz respeito senão ao
estabelecimento de uma nova e única existência da Igreja na terra. Essa
realidade possui sua imagem não na terra, onde não existe unidade, mas apenas
divisão, mas, ao contrário, sua imagem está nos céus, onde a unidade entre o
Pai, o Filho e o Espírito Santo une as Três Pessoas num só Ser. Assim é que não
existem três deuses, mas Um Deus que vive Uma vida. A Igreja constitui a nova,
específica e única existência sobre a terra, a única existência que não se pode
definir claramente por meio de conceitos extraídos da vida profana. A Igreja é
a imagem da existência Trinitária, uma imagem na qual diferentes pessoas se
tornam um só ser. Por que essa existência – assim como a existência da Santa
Trindade – é nova, e por que ela era inacessível ao homem antigo? Pelo seguinte
motivo: a autoconsciência natural encerra a pessoa dentro de si mesma, e se
opõe radicalmente às demais pessoas[18]”.
Em outra parte, o Metropolita Antonii diz: “Por isso o Cristão deve se
libertar, na medida de sua perfeição espiritual, da oposição direta entre o
“eu” e o “não eu”, para ser capaz de transformar a estrutura da autoconsciência
humana desde o seu fundamento[19]”.
Essa transformação da “autoconsciência humana” também acontece na
Igreja, na consciência “católica” ou “comunal” da Igreja. A consciência
“católica” não consiste numa consciência coletiva, ela não é uma consciência
comunitária universal ou profana – e tampouco é um conglomerado de consciências
unitárias individuais; não se trata de uma “consciência geral” impessoal. A
“catolicidade” consiste na “unidade de pensamento” concreta, e na “comunidade
de pessoas”. A “catolicidade” é estrutura e estilo, a “determinação da
consciência pessoal”, que supera sua limitação e seu isolamento e amadurece a
um nível “católico” – a “catolicidade” é o padrão ideal, ou o ponto limite, o telos da consciência pessoal que se realiza
na afirmação, não na abolição, da personalidade. E a medida da “catolicidade”
só pode ser realizada através de uma vida em Cristo. E isso não significa
realizar em nossa consciência uma “consciência geral” abstrata, ou uma forma de
natureza impessoal do pensamento lógico, mas implica realizar a “catolicidade”
por meio de uma experiência concreta, ou pela Visão da Verdade. A unidade é
realizada por meio da participação na Verdade única; ela se realiza na Verdade,
em Cristo. A partir daí a consciência se transforma. Como a mais clara
expressão dessa transformação devemos reconhecer essa misteriosa superação do
tempo que tem seu lugar na Igreja. Em Cristo, os fiéis de todas as eras e
gerações se unem e se unificam, encontrando-se uns aos outros como se fossem
contemporâneos misticamente unidos. É nisso que consiste o significado
metafísico da “comunhão dos santos” – communio
sanctorum. E é por isso que a memória da Igreja não está voltada para o
passado que se foi, mas para aquilo que foi adquirido e “completado” – a
memória da Igreja se volta para aqueles que passaram como contemporâneos na
plenitude da Igreja do Corpo de Cristo, que abarca todos os tempos. A Tradição
é o símbolo dessa “temporalidade de todos os tempos”. Conhecer ou perceber
através da Tradição implica conhecer ou perceber a partir da realização dessa
experiência de “temporalidade de todos os tempos”. E isso só pode ser conhecido
dentro da Igreja por cada pessoa em sua experiência pessoal, de acordo com a
medida de sua maturidade espiritual. Voltar-se para a Tradição implica
voltar-se para essa plenitude. A “transformação Católica” da consciência torna
possível para cada pessoa conhecer – não apenas por si mesma, mas por todos:
ela torna possível a plenitude da experiência. E esse conhecimento é livre de
toda e qualquer restrição. Na natureza católica da Igreja existe a
possibilidade do conhecimento teológico, e não de algo apenas fundamentado em
“opiniões” teológicas. Eu sustento que cada pessoa pode realizar o padrão
católico em si mesma. Não digo que todo mundo realiza isso de fato. Isso depende da medida da maturidade espiritual de cada
um. Cada pessoa, obviamente, é chamada. E os que realizam isso são chamados de
Padres e Doutores da Igreja, pois deles ouvimos não apenas suas opiniões
pessoais como os verdadeiros testemunhos
da Igreja – porque eles falam a partir da plenitude Católica. Essa plenitude é
inesgotada e inexaurível. E nós somos chamados a atestá-lo, e é então que a
vocação do homem se realiza. Deus se revelou e se revela ao homem. E somos
chamados a testemunhar aquilo que vimos e que vemos.
[3]
João 1: 14.
[4]
Mateus 28: 20.
[5]
João 1: 12.
[6]
João 16: 13.
[8] I
João 2: 20; 27.
[10]
Do Ofício em honra dos Três Hierarcas (Basílio o Grande, Gregório o Teólogo e
Joao Crisóstomo).
[11]
João 4: 22.
[12] I
Coríntios 1: 23.
[14]
Melioranskii, B.M. – Lectures on the
History of the Ancient Christian Church, Strannik, Junho de 1910.
[15]
“[O que foi admitido] sempre, em toda parte e por todos”.
[18]
Arcebispo Antonii Khrapovitskii, Obras
Escolhidas, II, 2 (São Petersburgo, 1911) – “A ideia moral do dogma da
Igreja”, pgs. 17-18.
[19] Ibid., pg. 65.
Quero apenas dizer que teus blogs são a minha principal fonte de estudo, num mundo onde não encontrei um pai espiritual que me guie, as leituras que aqui faço tem me ajudado muito.
ResponderExcluirAtt
André A. Coltre