segunda-feira, 8 de julho de 2019

São João Crisóstomo - Tratado do Sacerdócio - Livros Quinto e Sexto


1.      “Já demonstrei suficientemente o quanto os combates aplicados à defesa da verdade exigem, em matéria de habilidade e experiência da parte daquele que os sustenta. Entretanto, ainda tenho algo a acrescentar àquilo que eu já disse; algo que é causa de infinitos perigos, ou antes, que pode se tornar, para aqueles o manejam mal, ocasião para os maiores perigos; pois essa coisa é em si das mais salutares e benéficas, quando utilizada por homens virtuosos e capazes. Falo do trabalho bastante considerável que o pregador emprega na composição dos discursos que fará em público”.

“A maior parte dos ouvintes não gosta de se colocar na disposição que convém aos discípulos em relação ao mestre que os instrui. Pensando que o papel de discípulos está muito abaixo deles, acreditam se elevar comportando-se como espectadores de teatro ou circo. E, assim como nesses espetáculos do mundo a multidão se divide em facções, uns favorecendo esse, outros aquele, também nos templos se dividem as assembleias cristãs: uns são por cicrano, outros por beltrano; o ouvinte já chega favorável ou hostil ao pregador, antes mesmo de que esse tenha aberto a boca; outro perigo, não menor: por pouco que o pregador misture à trama de seu discurso qualquer coisa do trabalho de algum outro, levantará contra si mais clamores e insultos do que se tivesse roubado dinheiro dele. Frequentemente, sem que tenha roubado nada, apenas por uma suspeita sem motivo, é tratado como se tivesse sido pego em flagrante delito de plágio. Mas que digo eu, de empréstimos feitos a outrem? Não lhe é permitido sequer utilizar, como bem entender e tanto quanto quiser, dos frutos de sua própria invenção e trabalho. Pois não é para sua edificação, mas para seu deleite, que a maior parte dos ouvintes vêm buscar seus discursos, aos quais eles assistem, como se fosse uma tragédia ou um concerto, na qualidade de juízes. Resulta daí que a espécie de eloquência que eu reprovava com São Paulo, passa a ser ainda mais exigida na cátedra evangélica do que entre sofistas obrigados a medir suas forças”.

“É preciso assim uma alma fortemente aguerrida, bem superior à fraqueza que encontro em mim, que seja capaz de colocar um freio a essa paixão da multidão por um prazer infrutífero, e dirigir sua atenção para um objeto mais útil. Assim é que o orador da cátedra, em lugar de seu o joguete fácil dos caprichos da multidão, caminhará como um chefe e um guia à frente de seu povo dócil que o segue. Ora, esse resultado só pode ser obtido mediante duas condições: o desprezo pelos elogios e o talento da palavra”.

2.      A ausência de uma dessas condições torna a outra inútil. Se, ao desprezo pelos elogios, o pregador não acrescenta o talento de instruir com uma palavra temperada de graça e sal, ele sucumbirá infalivelmente sob o desdém da multidão, sem que a grandeza de sua alma possa salvá-lo. Se, ao contrário, ele tem tudo de que precisa em matéria de talento, mas o favor popular o domina a ponto de torná-lo escravo, o prejuízo é ainda o mesmo, tanto para ele como para o povo, porque, em seus discursos, ele se propõe mais a agradar do que a ser útil aos ouvintes, tanto a sede dos elogios o atormenta e perde. Pode haver um homem que, em verdade, é insensível à atração pelo renome; mas, se ele não sabe falar, que poderá fazer? Ele não cederá aos caprichos da multidão, é verdade, mas de que servirá essa magnanimidade, se ele não puder ser de nenhuma utilidade ao povo, pela incapacidade de dizer alguma coisa? Outro pode possuir o talento necessário para tornar melhores os homens, mas tem a infelicidade de não poder resistir ao amor pelos elogios, e o que lhe acontece, senão que sonha mais em deleitar seu auditório do que em salvá-lo, e isso porque os aplausos, reverberando ao seu redor, deliciam docemente seus ouvidos”.

3.      “O pastor perfeito terá assim um caráter igual ao seu talento, e um talento igual ao seu caráter, e assim, sustentado dos dois lados, ele não falhará em sua missão. Um pregador se levanta no meio da multidão, e começa a pronunciar palavras capazes de impressionar os corações débeis e indolentes; mas de súbito ele vacila e se interrompe: ele sente sua indigência, ele se perturba e enrubesce; todo o fruto de suas primeiras palavras se perde e se dissipa incontinenti; aqueles a quem ele acaba de repreender, excitados pelas feridas dolorosas feitas ao seu amor próprio, e não vendo outra maneira de se vingar, atacam sua ignorância com sarcasmo; esse é, aliás, um modo de lançar um véu sobre seus opróbrios”.

“É preciso, portanto, que o orador sagrado, tal como um hábil condutor, consiga regrar tão bem essas duas belas qualidades, que seja capaz de fazê-las marchar à sua frente para um objetivo útil. Quando ele não der mais motivo para crítica, então ele poderá, com tanta facilidade quanta quiser, repreender com severidade ou tratar com indulgência os fiéis submetidos à sua conduta; sem essa condição ser-lhe-á difícil agir com tal autoridade. A grandeza de alma não deve se limitar ao desprezo pelos elogios, é preciso ir mais longe para evitar que esse mérito fique imperfeito”.

4.      “O que mais é preciso desprezar? O ciúme e a inveja. Todas essas falsas acusações, e até as inverossímeis, das quais costumam ser vítimas os chefes da Igreja, é preciso não as temer, nem se alarmar além da medida, nem tampouco desdenhá-las pura e simplesmente; mas, ainda que elas não passem de mentiras inventadas por um qualquer, é preciso tentar extingui-las o mais depressa possível; pois, para exagerar para o bem ou para o mal a reputação de um homem, não existe nada parecido com a multidão sem freio em seus propósitos. Escutar e repetir a tudo sem examinar, dizer ao acaso tudo o que se apresenta, sem ter olhos para a verdade, o povo é isso. Então, longe de desprezar os clamores populares que nos são desvantajosos, é preciso cortá-los pela raiz desde o começo, confundindo os caluniadores, ainda que suas mentiras sejam evidentes por si sós, e nada omitindo do que possa consolidar nossa reputação. E, quando tivermos feito tudo ao nosso alcance, se nossos acusadores não quiserem se render, só então é o caso de desprezá-los. Qualquer um que logo no início se deixe abater por essas contrariedades não poderá fazer nada de belo nem de grande, porque a amargura e os cuidados contínuos produzirão nele uma prostração das forças da alma, reduzindo-a à completa impotência”.

“A conduta do sacerdote para com seu povo, deve ser a mesma de um pai em relação aos seus filhos menores. Os insultos, os golpes e o choro das crianças de berço não emocionam mais o pai do que o enchem de vaidade o brilho de suas risadas alegres e suas carícias. Da mesma forma, um sacerdote não deve nem se orgulhar com os elogios, nem se deixar abater pela reprovação do povo, porque este é pródigo tanto em um como no outro, aleatoriamente. É difícil, meu amigo, e talvez mesmo impossível: não sentir nenhum prazer ao ser louvado constitui um grau de perfeição ao qual talvez não seja dado ao homem alcançar. Ora, o prazer gera o desejo da fruição; e o desejo da fruição, em caso de insucesso, produz necessariamente a aflição, o desgosto, a indignação, a dor. Assim como aqueles que colocam toda sua alegria nas riquezas caem em aflição se empobrecem, também os que estão acostumados a uma vida folgada consideram insuportável ser reduzidos a uma vida frugal; assim, aqueles que são ávidos por elogios, não apenas quando são reprovados sem razão, como também quando não são louvados continuamente, sentem sua alma como que devorada por uma fome cruel, sobretudo se, por assim dizer, se alimentam de elogios desde sua infância, e principalmente se testemunham elogios feitos a outros. A quantos desgostos e decepções não está exposto aquele que entra para o ministério da palavra evangélica com tal desejo no coração? A alma desse sacerdote não é capaz de se isentar de tristezas e inquietações, tanto quanto o mar de ondas e tempestades”.

5.      “Mesmo supondo nele um grande talento natural para a palavra, o que é bem raro, isso não lhe diminui a necessidade de trabalhar sem descanso. Com efeito, sendo a eloquência menos um dom da natureza do que o produto do trabalho e do estudo, mesmo que nos tenhamos elevado até o cume da perfeição, podemos decair bem depressa se negligenciarmos o necessário para nos mantermos aí por meio do estudo e pelo continuo exercício. Segue-se daí que os melhores oradores estão obrigados a mais trabalho do que os que não são tão bons, porque esses têm menos a perder do que os primeiros. É a diferença entre os méritos que estabelece a diferença entre as obrigações. Nenhum crítico repreende um talento medíocre, ainda que este não produza nada de notável; mas do talento superior, sempre que aparece, exige-se que ultrapasse a opinião que se tem dele, caso contrário o descontentamento aparecerá de todos os lados. Os menores sucessos atraem para o primeiro grandes elogios; mas se o segundo não criar a admiração, se não colocar os ouvintes fora de si, todo elogio lhe será recusado, e nenhuma crítica será poupada. O auditório julga menos o orador por seu discurso do que por sua reputação. É assim evidente que o mais eloquente dos pregadores deve ser o mais laborioso; a ele não se perdoa aquilo que é, entretanto, inseparável da natureza humana, que é o fato de não reunir em si todas as qualidades; e, se seu discurso não corresponde, ponto por ponto, à grandeza de seu renome, ele se retirará sob uma chuva de sarcasmos e de flechas maldosas lançadas pela multidão. Ninguém atenta para o fato de que uma infelicidade, uma ansiedade, uma perturbação qualquer, talvez mesmo a cólera, possa turvar a lucidez de seu espírito, e empanar a clareza e a precisão habituais de suas concepções; enfim, que o orador, por ser homem, não possa ser sempre e em toda parte o mesmo, e que não possa atravessar, por assim dizer, senão dias serenos; que, ao contrário, ele está sujeito, pela própria natureza, a falhar às vezes, e ficar abaixo de seu próprio talento; essas coisas não são levadas em conta: ele é tratado como se pudesse ter a perfeição dos anjos. É, de resto, uma disposição infelizmente muito natural, a de dar pouca atenção ao tudo o que os outros fazem de bem, qualquer que seja seu brilho. Temos os olhos mais vigilantes para observar suas faltas, mesmo as menores, mesmo aquelas cuja lembrança o tempo deveria apagar; estamos prontos a redescobri-las, ávidos por agarrá-las, teimosos em retê-las. Pode ser pouco, pode ser nada, e, no entanto, mais de uma vez essas coisas bastaram para diminuir a glória de muitos homens de méritos verdadeiros”.

6.      “Você vê, meu generoso amigo, que quanto mais talento possui um pregador, mais necessidade tem ele de trabalhar, para não se deixar decair. Acrescento ainda que ele necessitará de uma paciência à toda prova. Uma multidão de maledicentes o assaltará sem cessar a torto e a direito, sem ter nenhuma crítica legítima a lhe fazer, mas apenas porque não podem suportar sua reputação e ficam importunados com o sucesso que ela faz. É preciso que ele tenha coragem para suportar essa inveja amarga. O ódio execrável que lhe dedicam sem razão, não podendo permanecer por muito tempo concentrado dentro dos corações, logo se externaliza; ele explode em injúrias, em detrações, nas calúnias semeadas nas sombras e espalhadas pelo público. Uma alma que, a cada tentativa, começasse a se afligir, a se irritar, não tardaria a sucumbir à tristeza. Não apenas seus próprios inimigos a agridem, como ainda empregam para isso mãos estrangeiras. Vê-los-emos tomar um homem incapaz de dizer duas palavras em sequência, e colocá-lo nas nuvens com elogios hiperbólicos e com uma admiração fingida; alguns o farão apenas pela paixão, outros por ignorância ou inveja; mas eles não mais do que um objetivo, que é o de derrubar uma reputação existente, e absolutamente de favorecer uma impossível”.

“Além de seus inimigos, o valente defensor da Igreja terá muitas vezes que lutar contra a ignorância de todo o povo. Uma grande plateia não pode ser composta unicamente de homens letrados; as pessoas sem instrução costumam ser a grande maioria nas reuniões de nossas Igrejas; sem contar essa primeira categoria, resta uma minoria que podemos ainda dividir em duas partes, aqueles cuja cultura mediana os separa um pouco dos ignorantes, embora ainda afastados dos homens verdadeiramente capazes de julgar um discurso; se tomarmos apenas esses últimos, ficaremos reduzidos a um ou dois conhecedores. Daí resulta que aquele que melhor falar será o menos aplaudido, e algumas vezes não o será em absoluto. Ele deve desde logo se resignar com esse resultado bizarro; desculpar aqueles que agem por ignorância, lamentar os que são movidos pela inveja, como os infelizes dignos de piedade, e estar persuadido de que nem uns, nem outros, são capazes de lhe roubar o talento. Um grande pintor, um mestre em sua arte, poderá ver maus conhecedores zombar de uma de suas obras primas, e ele não deverá se desencorajar, porque a crítica dos tolos não pode tornar ruim um bom quadro, da mesma forma como seus elogios e sua admiração não podem tornar bom um quadro ruim”.

7.      “Sim, que o gênio seja o juiz de suas próprias obras; não as consideremos boas ou ruins, sem que o espírito que as concebeu diga se elas são boas ou más. As opiniões emitidas ao acaso por pessoas estranhas à arte não merecem sequer que nos detenhamos nelas. Assim, aquele que está encarregado da rude missão de ensinar os demais, não deve ligar importância alguma aos votos da multidão, e não se desencorajar, caso eles faltem. Quando ele tiver elaborado seus discursos com o objetivo de agradar a Deus (pois é Deus a regra e o tipo supremo da perfeição, não o mundo com seus aplausos e seus elogios), depois disso, se houver elogios também de parte dos homens, muito bem, que ele não os recuse. Se os ouvintes não o concederem, que renuncie a eles sem se lamentar. Não faltará uma bela recompensa, a maior de todas, aos seus esforços, vale dizer, o testemunho de sua consciência por não ter buscado senão a glória de Deus, ao compor e elaborar seus discursos”.
 
8.         “Porém, se ele começar a se deixar levar pelo desejo de vãos elogios, nem seus infinitos trabalhos, nem seus talentos de eloquência lhe servirão para alguma coisa; incapaz de desdenhar as críticas injustas da multidão, ele desanima e perde o gosto pelo estudo. Portanto, ele deve primeiro aprender a desprezar os elogios, uma ciência sem a qual o exercício da palavra não bastará para conservar esse belo talento”.

“Àquele que possui uma eloquência medíocre, o desdém pelos elogios não é menos necessário do que ao mais eloquente; pois ele cometerá necessariamente muitas faltas, se não possuir um caráter forte o bastante para passar de bom grado sem o favor do público. Em sua impotência para igualar oradores mais renomados, ele não recuará de lhes estender armadilhas, de invejá-los, de caluniá-los e de se rebaixar às mais odiosas manobras; ainda que tivesse que perder sua alma, estaria pronto a tudo ousar pata usurpar sua glória fazendo-a descer até o nível de sua própria mediocridade. Eu acrescento que sua alma, pesada de torpor, logo se recusará a toda espécie de fadiga e de trabalho. Com efeito, esforçar-se para não merecer mais do que uma pequena colheita de elogios, o que é mais propício para lançar numa espécie de sono letárgico o homem que não tem forças para desprezar os elogios? Sendo assim, o trabalhador, obrigado a trabalhar numa terra estéril e cavar valas num solo pedregoso, logo suspende seu labor, a menos que a paixão da arte o cative, ou que o temor da necessidade o obrigue a retomar os esforços”.

“Se o homem mais ricamente provido de eloquência necessita de um estudo continuo para conservar suas vantagens, quanta dificuldade não experimentará aquele que possui pouca, e que se vê obrigado, ao falar, de meditar sobre as coisas que deve dizer? Que embaraço, que violenta contenção de espírito para chegar a produzir laboriosamente um mau discurso! E, se dentre os ministros de um nível inferior, se encontra algum cujo talento eclipsa o de seu bispo, não precisará esse de uma virtude mais do que humana para não se deixar dominar pela inveja e se consumir pelo desalento? Sentir-se inferior em mérito a alguém sobre quem se possui um nível mais alto de dignidade, e se resignar com coragem, isso não é para as almas comuns, à minha, por exemplo, mas a uma alma de têmpera mais forte. Se ao menos aquele cujo mérito nos faz sombra, o faz pela doçura ou a modéstia, isso ainda é uma desgraça, mas é tolerável; mas se ele é de caráter ousado, fanfarrão e vaidoso, deseja-se sua morte todos os dias, de tanta amargura derramada sobre a vida de seu infortunado superior, alardeando por toda parte suas vantagens, zombando por trás, usurpando tanto quanto pode sua autoridade e pretendendo ser tudo. Em tudo o que ele faz, tem por apoio e defesa sua palavra livre e fácil, as graças do povo, a afeição que todas as classes demonstram por ele”.

“Não vê você o quanto a eloquência faz furor entre os Cristãos? Tanto entre nós, como entre os pagãos, não há honrarias senão para aqueles que a cultivam. Que vergonha pode ser mais insuportável, do que ver, enquanto falamos, todo mundo sem demonstrar o menor sinal de aprovação, mostrando tédio, aguardando o final do discurso como se fosse uma libertação, enquanto que, quando o rival toma a palavra, todos os escutam com atenção e, por mais longo que seja o discurso, todos aguentam até que termine, e dão mostras de despontamento, caso ele guarde silêncio? Essas contrariedades podem lhe parecer leves e fáceis de superar, a você que ainda não as experimentou; mas nem por isso elas deixam de ser feitas para extinguir o fogo do gênio, paralisar as forças da alma, a menos que, libertando-se de todas as miseráveis paixões do homem, a pessoa se eleve às alturas das potências celestes e incorpóreas, que são por natureza inacessíveis à inveja, ao amor pela gloria, às diversas enfermidades da alma. Se um mortal chega a esse ponto de perfeição, capaz de pisotear esse monstro indomável da glória humana, e de cortar as cabeças sempre renascentes dessa hidra – ou antes, de impedi-las de germinar em seu coração – ele poderá repelir vitoriosamente os numerosos assaltos aos quais será entregue, e repousar, como num porto, ao abrigo da tempestade. Mas enquanto ele não estiver inteiramente liberto desse inimigo, ele será assaltado de mil maneiras diferentes; sua alma estará continuamente perturbada, destroçada e se tornará o joguete de uma infinidade de paixões. De que vale enumerar todas as outras dificuldades que se encontram no exercício do santo ministério? Para se ter uma ideia deles, seria preciso tê-los experimentado pessoalmente”.


LIVRO SEXTO

1.      “Eis, quanto à vida presente, as provas pelas quais deve passar um sacerdote. Mas o que é isso, em comparação com o que deveremos sofrer em outro lugar, quando tivermos que prestar contas de todas as almas que nos foram confiadas – sim, de todas – umas após as outras? A culpa não será o único perigo que estaremos correndo, mas, depois da culpa, existirá ainda para nós o suplício eterno. Há uma palavra que eu já citei: ‘‘Obedecei aos vossos superiores, e sede-lhes submissos, porque eles velam por vossas almas, como se delas prestassem contas [1]’; mas não posso me impedir de repeti-las, porque elas contêm uma ameaça que transtorna continuamente minha alma. Se é verdade que mais vale, para aquele que escandalizar o menor dos irmãos, que se lhe ponham ao pescoço uma pedra de moinho e o precipitem no fundo do mar[2], se todos os que ferem a consciência de seus irmãos pecam contra o próprio Jesus Cristo[3], que sorte devem esperar os que perdem não uma, duas, ou três almas, mas povos inteiros? Sim, eu lhe pergunto, que suplícios lhes estarão reservados? Não cabe aqui escusá-los por sua inexperiência, alegar sua ignorância, pretextar a necessidade ou a violência dos outros. Se esses meios fossem cabíveis, os simples fiéis poderiam utilizá-los para desculpar suas próprias faltas, do que recorrer aos pastores para obter o perdão dos pecados cometidos contra os outros”.

“Por que isso? Porque aquele que está encarregado de corrigir a ignorância dos povos, e de adverti-los da guerra que terão que sustentar contra o demônio, perderá a graça se disser que não escutou soar o alarme, que sequer previra a guerra, pois ele não foi ali estabelecido, como diz o profeta Ezequiel[4], senão para soar a trombeta a todo o povo e advertir quanto aos perigos que o ameaçam. Assim, a punição é inevitável, ainda que uma única alma fosse perdida. Diz ainda o Profeta, que, se uma sentinela, ao perceber o avanço das espadas, não soa a trombeta para dar o alerta ao povo, e que, chegando as espadas perde-se a vida de um único homem, esse homem terá caído por causa de sua iniquidade; e seu sangue será cobrado à mão da sentinela[5]. Pare então de me empurrar a um castigo inevitável. Não se trata do comando de uma armada ou de um império, mas de um ministério que exige a virtude de um anjo”.

2.      “É preciso que a alma do sacerdote seja mais pura do que os raios do sol, a fim de que o Espírito Santo nela faça sua morada permanente, e que ele possa dizer: ‘Eu vivo, ou antes não sou eu quem vive, mas é Jesus Cristo que vive em mim[6]’. Se os que vivem no deserto, longe da cidade, dos lugares públicos e das agitações tumultuosas, e cuja vida flutua, por assim dizer, sobre águas sempre abrigadas e tranquilas, se esses estão sempre precavidos, malgrado a segurança de suas vidas; se, ao contrário, eles multiplicam as precauções, cercando-se de todos os meios de defesa, observando uma regra extremamente severa, seja em suas palavras, seja em suas ações, a fim de poder se aproximar de Deus com toda a confiança e a pureza que permite a fraqueza humana, de quanta virtude, de quanta força não necessita um sacerdote para preservar sua alma de toda mancha, e conservar pura e sem mácula sua beleza espiritual? Ele precisa de uma santidade em muito superior à dos solitários. Muito mais exposto do que eles a toda sorte de necessidades perigosas, ele não salvaguardará a pureza de sua alma senão por meio de uma vigilância contínua e de uma grande firmeza. Um belo rosto, alguns movimentos voluptuosos, um caminhar estudado, uma voz melodiosa, olhos e maçãs do rosto cujo brilho natural são ainda mais salientados por cores aplicadas com arte, elegantes tranças de cabelos habilmente tingidos, ricas vestes, ouro prodigado sob todas as formas, diamantes faiscantes, perfumes de odores exóticos, tantos artifícios que as mulheres sabem tão bem pôr a trabalhar, tudo isso é por demais capaz de perturbar a alma, a menos que ela tenha sido endurecida por laboriosos exercícios de temperança. A emoção que tudo isso pode causar não tem nada de espantoso. Mas que o demônio tenha sucesso em ferir, por meios contrários, os corações dos homens, eis certamente algo surpreendente e quase inconcebível”.

3.      “Existem homens, com efeito, que, depois de haver resistido àqueles meios de sedução, se deixaram capturar por outros completamente diferentes. Assim, um rosto descuidado, cabelos mal penteados, vestes sórdidas, um exterior em desordem, maneiras simples, um linguajar comum, um caminhar sem estudo nem arte, uma voz inculta, uma vida miserável, desprezada, sem apoio, o mais completo abandono, toda essa equipagem de miséria, que de início não despertaria mais do que a compaixão do espectador, acabou por levá-los à mais deplorável catástrofe. Aqui também encontramos um grande número de homens que, depois de triunfar sobre a sedução armada de todos os prestígios do ouro, dos perfumes, das roupas magníficas, encontraram seu refúgio nas coisas mais contrárias, e aí se destruíram”.

“Pois a pobreza e a riqueza, o adorno e a negligência das vestimentas, a polidez refinada ou a rudeza inculta das maneiras iluminam igualmente a guerra na alma daqueles que têm esse espetáculo sob seus olhos, e porque o caminho por onde caminhamos é semeado de armadilhas; sendo assim, como cessar de vigiar um só instante, como respirar em paz no meio de tantos embustes colocados ao nosso redor? E onde poderemos nos esconder, já não digo para nos subtrairmos à força explícita, que não é a mais difícil, mas para poupar nossa alma das perturbações que nela semeiam os pensamentos impuros? Não mencionarei as honras que se prestam normalmente aos sacerdotes, e que são para eles ocasião de uma infinidade de males. As que recebemos das mulheres corroem em nós a virtude da temperança, e acabam por extingui-la, a menos que estejamos continuamente em guarda contra esse gênero de armadilhas. As honras que nos prestam os homens têm também seus perigos, se não mantivermos uma verdadeira grandeza de alma; elas nos expõem aos assaltos de duas paixões contrárias, a adulação servil e a tola arrogância. Curvamo-nos até o chão diante dos grandes, para obtermos suas homenagens, para depois, empanzinados com as que tivermos recebido, voltarmo-nos contra os pequenos, a quem oprimimos com desdém, e assim caímos no abismo do orgulho. Nada mais direi a esse respeito; é preciso experiência para conhecer toda a extensão desse mal”.

“Esses perigos não são os únicos; existem muitos outros aos quais está necessariamente exposto aquele que vive no mundo. O solitário está isento disso, pois ainda que algum mau pensamento se ofereça ao seu espírito, ainda que sua imaginação lhe pinte um objeto perigoso, o que sempre é possível, não será essa mais do que uma representação bastante fraca, fugidia; o fogo que ela acende no coração, não sendo alimentado pela vista das realidades, não passa de um fogo fátuo que se extingue ao menor sopro. Um solitário só teme por si mesmo. Caso haja outras pessoas a quem guiar no caminho da salvação, seu número será sempre pequeno; por numerosas que sejam, são sempre menos do que os fiéis de uma igreja. De resto, os cristãos pelos quais um solitário deve velar lhe dão – não só em razão de seu pequeno número, mas ainda devido ao seu desembaraço das coisas do mundo – muito menos preocupações do que uma igreja dá ao seu pastor; eles não possuem, de fato, nem esposas, nem filhos, nem nada que os preocupe. Essa condição os torna submissos e dóceis ao seu superior, além do fato de que a vida em comunidade lhe permite descobrir facilmente todas as suas faltas e corrigi-las; uma supervisão contínua dos mestres contribui poderosamente para o progresso das virtudes”.

4.      “Mas as pessoas que estão sob a direção de um bispo estão, na maior parte, amarradas por uma multitude de lações e preocupações que diminuem seu ardor para os exercícios espirituais. Daí, para o mestre, a necessidade de distribuir quase todos os dias a semente evangélica, a fim de que o grão da doutrina prevaleça, por sua abundância, nas almas dos seus ouvintes. O excesso das riquezas, a grandeza do poder, a languidez gerada pela preguiça, e muitas outras coisas do gênero afogam nas almas os germes do bem, e muitas vezes os espinhos são tão densos que não deixam as sementes sequer chegarem à terra. De outro lado, o excesso de miséria, a servidão causada pela pobreza, as injúrias e as respostas às quais ela expõe, e mil males da mesma natureza, desviam da aplicação das coisas divinas”.

“Quanto aos pecados, o bispo não conhece senão uma pequena parte deles. Como poderia ele, que não conhece mais do que de vista a maior parte de seu rebanho? Tais são as grandes dificuldades que ele experimenta, da parte de seu povo. Mas elas ainda lhe parecerão pouca coisa, se ele considerar suas obrigações para com Deus, tanto essas exigem de sua parte um zelo maior, uma vigilância mais atenta. Com efeito, aquele que faz as vezes de embaixador diante de Deus de toda uma cidade – eu disse, cidade? – de todo o universo, e que ora para que Deus seja indulgente para com os pecados de todos os homens, não apenas dos vivos, como ainda dos mortos, eu lhe pergunto, que homem deve ser esse?”.

“Duvido que a liberdade da qual um Moisés, um Elias, desfrutavam diante do Senhor, fosse suficiente para semelhante prece. Representante do mundo todo, Pai comum a todos, é com esse título que o sacerdote se aproxima de Deus, para lhe pedir a extinção das guerras em todo lugar, a pacificação dos conflitos, a paz, a prosperidade e o pronto afastamento das calamidades que ameaçam tanto os impérios como os indivíduos. Encarregado de orar por nós, ele deve ser superior a todos, tanto quanto um protetor deve ser naturalmente superior àqueles a quem protege”.

“E quando ele invoca o Espírito Santo e celebra o temível sacrifício, quando ele sustenta em suas mãos o Mestre de toda a natureza, eu lhe pergunto, em que nível o colocaremos nós? Quanta pureza, quanto piedade não exigiremos dele? Como não devem ser essas mãos, instrumentos de tais mistério! Como não deve ser a língua encarregada de articular as palavras que sabemos! Existirá algum grau de santidade, de pureza, ao qual não deva se elevar uma alma que recebe em si o Espírito de Deus? E é nessa hora que os anjos assistem ao sacerdote, que todo o exército das potências celestes canta, preenchendo todo o espaço ao redor do altar, para prestar honras à vítima que aí jaz. Podemos duvidar disso, quando consideramos a grandeza do mistério que se realiza nesse momento?”.

“Contaram-me o caso a seguir, testemunhado por um venerável ancião, homem de santidade admirável e acostumado às revelações do alto. Eis a visão com que foi ele honrado: assegurou ele que, no momento em que se realizavam os mistérios sagrados, apareceu subitamente uma multidão de anjos; embora ofuscados por tal espetáculo, seus olhos mortais puderam distinguir suas vestes de uma brancura brilhante; eles se colocaram ao redor do altar e se inclinaram como soldados diante de seu rei. Eu o creio. Ou me contou algo que não ouviu de terceiros, mas que ele próprio viu e ouviu: que, no momento de deixar esse mundo, aqueles que participaram dos santos mistérios com uma consciência pura são colocados sob a proteção de uma guarda de anjos, que os escoltam nessa passagem, por causa Daquele que receberam em seu seio. Você não sente um arrepio diante da ideia de empurrar a tão grande mistério uma alma como a minha, de elevar à dignidade dos sacerdotes um homem como eu, cujas vestes ainda estão cheias de manchas, um homem a quem Jesus Cristo expulsaria da assembleia dos convivas[7]? A alma dos sacerdotes deve resplandecer como o astro que ilumina o mundo. Mas a minha está de tal maneira envolta nos negros vapores que exalam de uma consciência impura, que ela não ousa se mostrar, nem pousar um olhar de confiança sobre seu divino Mestre. Os sacerdotes são o sal da terra, e eu não me faço notar senão pela pouca sabedoria e uma incapacidade universal que ninguém seria capaz de tolerar, exceto aqueles que estão cegos pela excessiva amizade que me têm”.

“Ora, não basta ainda ser puro pata ser digno de tão grande mistério, é preciso ainda unir a uma prudência natural uma extensa experiência; é preciso conhecer os interesses e os assuntos ao redor dos quais se agita o turbilhão do mundo, e, conhecendo-os, ser mais desembaraçado deles do que os solitários que habitam nas montanhas. Obrigado a estar em relação com homens que possuem esposas, que alimentam crianças, que possuem servidores, que desfrutam de riquezas imensas, que administram os negócios públicos e gerenciam os grandes encargos do Estado, o dignitário eclesiástico dever ser, por assim dizer, multiforme; emprego esse termo tendo o cuidado de descartar todos os maus sentidos, tais como os de enganador, bajulador, hipócrita; entendo por ‘multiforme’ que, sem nada perder de sua nobre franqueza, se sua sincera liberdade, ele deve saber condescender convenientemente, ou seja, quando as circunstâncias o pedirem, mas sendo ao mesmo tempo bom e firme. Nem todas as pessoas devem ser governadas segundo um método uniforme, nem todos os doentes podem ser curados pelos mesmos remédios, nem todos os ventos podem ser combatidos pelo piloto com as mesmas manobras. Ora, tempestades vindas de todos os lados assaltam o navio da Igreja, mas nascem também em seu seio. É preciso, assim, ao mesmo tempo a condescendência e a severidade”.

5.      Essas qualidades tendem todas, malgrados sua diversidade, a um mesmo fim, que é a glória de Deus e a edificação da Igreja. Os solitários, é verdade, têm que sustentar grandes combates, e sua vida é penosa; mas, se compararmos seus trabalhos com as funções plenas do sacerdócio, encontraremos tanta diferença quanta existe entre um rei e um simples cidadão. Se os exercícios de um solitário são rudes, em compensação o espírito e o corpo trabalham nele em consonância, e podemos dizer que o corpo participa deles até mais do que o espírito. Quando o corpo é mal constituído, toda a força do espírito permanece concentrada em si mesma, não encontrando uma obra na qual possa se desenvolver exteriormente. De fato, jejuar sempre, dormir sobre o chão duro, velar, privar-se de banho, cobrir seus membros de suores abundantes, e outras práticas que são observadas para mortificar o corpo, a tudo isso é preciso renunciar, a partir do momento em que o corpo não tem forças para suportar o castigo a que o submetemos. A arte de governar a Igreja, ao contrário, não procede senão da alma, que não tem a mesma necessidade de saúde que o corpo, para mostrar toda sua virtude. No que contribui o vigor corporal para que não sejamos orgulhosos, nem coléricos, nem incontinentes, mas sóbrios, temperantes, cheios de decência e de todas as qualidades que São Paulo reuniu para compor o retrato do sacerdote completo[8]? Já não podemos dizer o mesmo do solitário, nem da perfeição que lhe é própria”.

Um malabarista tem necessidade de diversos instrumentos, como rodas, aros, espadas, mas o filósofo, ao contrário, traz toda sua arte no espírito, e dispensa todo auxílio exterior; essa é a mesma diferença que existe entre o solitário e o sacerdote; o primeiro necessita ter saúde e uma moradia apropriada ao gênero de vida que pretende levar, para não se afastar demasiado da sociedade dos homens, nem privado da tranquilidade da solidão. É preciso ainda que ele viva num clima temperado, pois nada pode ser mais contrário ao corpo esgotado pelo jejum do que uma temperatura sujeita a anomalias, mesmo que de pouca monta. Não preciso mencionar aqui as penas que deve suportar para encontrar roupas e alimento, ciente que está de que a tudo deve prover por suas próprias mãos”.

6.      “O sacerdote não tem necessidade de todo esse aparelhamento, de todo esse material, por assim dizer. Simples, e vivendo como todo mundo, desde que esse não lhe faça mal, ele mantém toda sua riqueza encerrada nos tesouros de sua alma. Mas, dir-me-ão, é bom viver inteiramente por si só e isolado da sociedade dos homens; esse gênero de vida denota uma certa virtude de temperança naqueles que o praticam, e eu concordo; entretanto, não constitui um sinal no qual eu reconheça a presença segura de um mérito realizado. Não é no interior do porto que o piloto, mesmo que ao leme, dá provas incontestáveis de seu talento; mas se ele for capaz de, em pleno mar, resistir à tempestade e salvar seu navio, ninguém poderá recusar-lhe o título de bom piloto”.

7.      “Assim sendo, não devemos ter uma admiração exagerada, hiperbólica, pelo solitário; se ele dirige constantemente a atenção sobre si mesmo, sem se deixar seduzir por distração alguma, se ele não peca com frequência, nem gravemente, é porque também ele está ao abrigo de tudo o que pode excitar ou despertar as paixões de sua alma; mas que um homem que vive no meio do mundo, obrigado a suportar a influência perniciosa dos pecados do povo, que tal homem permaneça firme e inabalável, governe sua alma na tempestade como na calmaria, eu direi: eis alguém que merece os aplausos e a admiração do mundo: ele deu provas suficientes de seu mérito e de sua virtude”.

“Quanto a mim, você estará enganado por me admirar, se, depois de ter deixado as cortes e dito adeus ao mundo, eu não tenha deixado o que falar contra mim. Não pecar quando se dorme, não ser derrubado quando não se luta, não ser ferido quando não se combate, o que há de maravilhoso nisso? Quem então, eu lhe pergunto, poderá falar contra mim, e divulgar minhas misérias? Talvez a porta, talvez as paredes de meu quarto? Mas elas não falam. Seria minha mãe, que conhece minhas ações melhor do que ninguém? Mas nós não temos nada juntos e em comum, e jamais se ergueu entre nós a menor sombra de dissensão. E suponhamos que fosse diferente: mas que mãe seria tão desnaturada, tão inimiga de seu filho a ponto de difamar, sem razão e sem ser forçada a isso, aquele a quem ela carregou em seu seio, a quem trouxe ao mundo e o criou?”.

“Não é menos verdade que, se eu for examinado com seriedade, não serão encontradas muitas fraquezas; você não o ignora, tão apressado que está em me cumular de elogios em todas as ocasiões. E não falo assim por falsa modéstia; para convencê-lo disso, lembre-se de quantas vezes, em nossas frequentes conversas a respeito disso, eu lhe disse que, se me fosse dado escolher a carreira que eu preferisse seguir com honra, se no governo da Igreja ou na vida solitária, eu preferiria sem dúvida a primeira. Eu não cesso de invejar a felicidade daqueles que são capazes de cumprir como se deve esse santo ministério. E como eu invejo a felicidade dos ministros da Igreja, é claro que eu não recusaria abraçar esse estado, se me sentisse capaz de cumprir com seus deveres”.

“Mas, que fazer? Nada é menos apropriado ao governo da Igreja do que essa inatividade, essa despreocupação, que outros tomam por uma virtude ascética, mas que eu considero como um véu sob o qual se dissimula minha incapacidade, sob o qual eu escondo a maior parte de minhas faltas, feliz de poder assim ocultá-las aos olhos dos homens. O homem acostumado a desfrutar de um lazer completo e levar uma vida tranquila, ainda que dotado de uma natureza grande e forte, se perturba e se embaraça por sua inexperiência, e a falta de exercício lhe rouba uma grande parte de sua força. Mas se ele ainda por cima tem um espírito pesado, e sem experiência dos deveres e das lutas do sacerdócio, como eu, mais vale tomar uma estátua de pedra para transformá-la em sacerdote. Eis porque a solidão não envia para a armada sacerdotal senão pouquíssimas pessoas que chegam a ocupar brilhantemente seu posto. A maior parte não chega lá senão para se mostrar tal como é, ou seja, incapaz, e para experimentar quão difíceis e desagradáveis são os encargos. Não há com que se espantar; é como um homem que se especializou num dado tipo de exercícios, e que é de súbito chamado a participar de um gênero de combate de natureza totalmente diferente – é como se ele nunca houvesse se exercitado. Acima de tudo, cheio de desdém pela glória, aquele que entra no estádio das lutas sacerdotais deve ainda ser superior à cólera, e de uma consumada prudência. Ora, a vida solitária não fornece aos que se dedicam a ela nenhuma ocasião de exercer essas virtudes. O solitário não tem ao redor de si todos esses tipos de pessoas que o irritam e lhe dão oportunidades para exercitar seu domínio sobre o enraivecimento, nem os bajuladores incensando-o sem parar, que o ensinam a desdenhar dos aplausos populares. Quanto à prudência, que é tão necessária no governo da Igreja, essa não possui grande valor para os solitários. Então, o que acontece? Chamados a sustentar lutas para as quais não foram preparados por nenhum exercício, esses homens se veem em grande embaraço, ofuscados, impedidos; e, longe de avançar na perfeição, eles perdem inclusive o que ganharam na solidão”.

8.      Basílio me perguntou: “Deveremos chamar para o governo da Igreja homens que vivem em pleno mundo, que não se ocupam mais do que com assuntos do século, que estão, por assim dizer, enrolados em meio a querelas e injúrias, cheios de astúcias infinitas e hábeis, sobretudo, na arte de viver alegremente?”.

Eu lhe respondi: “Devagar, meu amigo, por favor. Essas pessoas não devem nem ser lembradas, quando se trata de buscar sacerdotes para a Igreja de Deus. O homem que é preciso escolher entre mil, é aquele que, no meio do mundo e do comércio com os homens, sabe conservar a pureza, a serenidade da alma, a santidade, a temperança e a sobriedade, qualidades, numa palavra, que distinguem os solitários; conservá-las, repito, intactas e inabaláveis, ainda mais do que aqueles que vivem na solidão. Mas um indivíduo, cheio de muitos defeitos – que ele poderia facilmente ocultar na solidão, impedindo que se traduzissem em atos –, o que ganharia ele em se mostrar no teatro do mundo? Nada além de se tornar o riso do público, sem contar outros perigos aos quais se exporia imprudentemente. É o que aconteceria a mim, se a bondade de Deus não houvesse desviado o golpe que ameaçava minha cabeça. Um homem assim não poderia jamais contar com que suas misérias permanecessem ignoradas, tendo sua pessoa em evidência e exposta à luz, ocupando um cargo público importante; ao contrário, ele seria logo descoberto e prontamente julgado”.

“O fogo prova os metais, e as funções sacerdotais provam as almas dos homens; é o que descobrimos imediatamente se alguém é colérico, pusilânime, vaidoso, presunçoso, ou não importa o que; nada permanece oculto; todos os defeitos são postos a nu; e não somente postos a nu, como agravados e tornados incorrigíveis. As feridas do corpo se tornam mais difíceis de curar quando mexemos nelas; e o mesmo acontece com as afecções da alma: irritadas pelo atrito com as contrariedades exteriores, elas se inflamam, se exasperam, e empurram aos maiores excessos os enfermos atingidos por elas”.

“Se não estivermos em guarda, elas conduzem ao desejo da glória, à presunção, ao amor pelas riquezas; elas trazem consigo a preguiça, o relaxamento, a indolência e, pouco a pouco, as desordens que se lhes seguem e que delas nascem ordinariamente. Existem inúmeras coisas no mundo que podem dissolver a energia sólida da alma e interromper sua marcha em direção a Deus. A primeira de todas, é a conversação com as mulheres. Tendo recebido o encargo de guardar o rebanho, o pastor não pode prodigar seus cuidados aos homens e negligenciar as mulheres, cujo sexo demanda uma atenção mais específica, por causa de sua propensão ao pecado. É preciso assim que a salvação das mulheres produza no ministro a quem coube o episcopado, senão mais, pelo menos tanta inquietação quanto a dos homens. Ele deve visitá-las quando adoecem, consolá-las em suas aflições, animar as indolentes, auxiliar as que necessitam socorro. No cumprimento desses deveres, o espírito maligno não perderá ocasião para se insinuar no coração que não estiver cercado de uma vigilância atenta. Pois o olhar da mulher fere e perturba a alma, e não apenas o da mulher impudica, como também o da virtuosa; as bajulações das mulheres nos amolecem, suas deferências nos escravizam; o zelo pela caridade, fonte de todo bem, se torna muitas vezes, entre elas, a causa de uma infinidade de males, se não puderem ser regradas”.

“Frequentemente também as solicitações contínuas desgastam a agudeza da inteligência, e dão ao espírito, tão atento por natureza, a pesandez do chumbo. Algumas vezes a bile toma o lugar do zelo e, como uma fumaça negra, obscurece a alma com seus vapores. Quem poderia contar tantas discórdias e injúrias, quantos insultos e calúnias, da parte de grandes e pequenos, de sábios e insensatos?”.

9.      “Sobretudo esses últimos, que não possuem o correto julgamento, jamais deixam de se lamentar; e, se tentamos nos justificar, eles não querem ouvir. Um pastor faz bem em não desdenhar dos propósitos desse tipo de homens, em destruir suas acusações, usando de bondade e de mansidão, perdoando as críticas injustas ao invés de mostrar ressentimento e cólera. O próprio São Paulo receava ser acusado de roubo por seus discípulos, e, por esse motivo, ele se uniu a outras pessoas para controlar o emprego das somas de dinheiro entregues pelos fiéis à sua disposição: para evitar, disse ele, que alguém os pudesse repreender a respeito daquela esmola abundante da qual eram guardiões[9]. Se o próprio São Paulo tomou tais precauções, que não devemos nós fazer para evitar as suspeitas maldosas, por mais mentirosas, absurdas e indignas de nossa reputação que sejam. Certamente não existe pecado do qual estejamos tão distantes quanto estava São Paulo distante do roubo. Embora fosse ele mais incapaz dessa má ação do que qualquer pessoa no mundo, nem por isso ele deixou de prevenir-se das suspeitas do povo, ainda que fossem implausíveis e insensatas; pois, evidentemente, era preciso ser louco para lançar tal suspeita sobre uma cabeça tão santa e admirável. E, no entanto, uma suspeita tão absurda, que não poderia nascer senão do cérebro de um insensato, lhe pareceu merecer atenção a ponto de levá-lo a suprimir tudo o que poderia dar a ela pretexto ou ocasião. Ele não pensou estar a coberto dessa imputação extravagante da pare do vulgo. Ele não disse para si: No espírito de quem poderia nascer semelhante suspeita a meu respeito, sobre mim que, por meus milagres e pela santidade de minha vida, atraí todo o respeito e a admiração universais? Ao contrário, ele se precaveu contra essa suspeita maldosa, aguardando até arrancá-la pela raiz, ou antes, não lhe deu tempo de germinar. Por que isso? Ele mesmo apresentou a razão em outra ocasião: ‘Devemos ter o cuidado de fazer o bem, não apenas diante de Deus, mas também diante dos homens’[10], disse ele”.

“Dessa magnitude, e talvez maior ainda, deve ser nossa atenção, não apenas para desenraizar e destruir as suspeitas maldosas, quando essas aparecem, mas ainda para preveni-las por distantes que pareçam estar de nós, para suprimir antecipadamente os pretextos que as fazem nascer, sem esperar que eles tomem consistência ao passar de boca em boca. Pois então já não será fácil fazê-las desaparecer, e será muito difícil, para não dizer impossível: e acrescento que não se poderá fazê-lo sem prejudicar muitas pessoas. Mas por que pretender esgotar um tema inesgotável? Enumerar todas as dificuldades do santo ministério não é tarefa menor do que medir o mar. Ainda que um homem conseguisse – coisa impossível – libertar sua alma de todas as enfermidades naturais, ainda assim encontraria infinitas dificuldades para curar as almas dos demais; quão mais difícil seria isso, se ele próprio estivesse enfermo? Vê você em que abismo de penas e de preocupações deve ele mergulhar, e quantos tormentos terá que sofrer para superar seus males particulares, bem como os dos outros?”.

10.   Basílio me perguntou: “Mas não tem você combates a combater, ou preocupações a suportar, sendo solitário como é, e inteiramente dono de si mesmo?”.

Eu lhe respondi: “A tudo isso enfrento, mesmo no estado em que estou. Continuo sendo homem, sempre viajando por esse vale de lágrimas a que chamam de vida, e assim não cabe perguntar-me se não tenho minha parte dos cuidados e das angústias. Porém, não é a mesma coisa ter que atravessar um rio, ou ser embarcado num oceano sem limite. Pois essa é a diferença que vejo entre a vida do sacerdote e a do simples fiel. Não é que eu, se pudesse ser útil aos outros, não o desejaria de todo coração; esse, na verdade, seria meu mais caro desejo; mas, não podendo ajudar meus irmãos, se eu conseguir salvar a mim mesmo e me retirar das ondas, já poderei me considerar muito feliz”.

Basílio retrucou: “Você está bem certo de poder se salvar, sem em nada contribuir para a salvação dos demais?”.

Disse eu: “Essa observação é excelente; não, não creio que eu possa me salvar sem trabalhar pela salvação dos meus irmãos. Sei que de nada serviu, ao infeliz de que fala o Evangelho, ter conservado intacto o talento que lhe havia sido confiado, mas que ele o perdeu por não tê-lo feito frutificar, fazendo-o render dois por um[11]. Entretanto, eu espero incorrer numa punição menor, se for condenado por não ter salvo ninguém, do que se tiver perdido a muitos comigo, depois que a dignidade sacerdotal só tenha servido para me tornar pior. Tal como eu sou hoje, tenho confiança de que não sofrerei mais do que o castigo rigorosamente exigido pela gravidade dos meus pecados, enquanto que, aceitando o sacerdócio, eu me exporei a um suplício, não digo duas ou três vezes, mas mil vezes mais rigoroso, em razão dos escândalos provocados nos homens e das ofensas feitas a Deus, que terá me honrado com seus mais altos favores”.

11.   “Dentre as repreensões que Deus dirigiu aos Israelitas, ele mostrou claramente que os via como os mais dignos de punição, por terem pecado depois de todos os favores com que tinham sido cumulados. Eis o que Ele disse: ‘Eu não sou conhecido senão de vós, dentre todas as nações da terra; é por isso que eu punirei todas as vossas iniquidades[12]’. E mais: ‘Fiz profetas de vossos filhos, e dos jovens, homens consagrados a Deus. E mesmo antes dos profetas, Deus, na ordenação dos sacrifícios, querendo mostrar que os pecados dos sacerdotes seriam punidos com mais severidade do que os dos homens do povo, ordenou para a expiação dos pecados dos sacerdotes um sacrifício igual ao que era oferecido por todos os pecados de todo o povo[13]’.Isso não significa outra coisa senão que as chagas espirituais de uma alma sacerdotal são de uma gravidade extraordinária; e, como essa gravidade não está em sua natureza própria, é preciso que ela provenha do caráter sagrado do sacerdote pecador. E disso não escaparam nem os filhos dos ministros da religião, os quais eram submetidos a punições mais severas pelas mesmas faltas, por causa da dignidade de seus pais, embora não tivessem eles próprios participação no sacerdócio. Assim, para um mesmo pecado, para a fornicação, por exemplo, a lei determinava um castigo muito mais severo para as filhas dos sacerdotes do que contra as filhas dos cidadãos comuns[14]”.

12.   “Poderia Deus nos mostrar de maneira mais notável, que ele exige uma pena mais severa daquele que governa do que daqueles que são governados? Certamente que Deus, que pune a filha com mais severidade do que as outras mulheres, não tratará também como cidadão comum o pai, que causou à sua filha um aumento de tormentos. Não: seu castigo será ainda mais terrível. E nada mais justo: pois o prejuízo de seu pecado não recai apenas sobre ele, mas também sobre as almas fracas que são testemunhas de sua má conduta. É o que Ezequiel nos ensina quando separa o julgamento dos bodes daquele dos cordeiros[15]”.

“Você ainda pensa que minhas lamentações são exageradas? Depois de tudo o que eu lhe disse, ainda me resta abrir-lhe meu coração; você será testemunha dos esforços que fui obrigado a fazer para não me deixar vencer inteiramente por minhas paixões. Confesso, porém, que esse trabalho não esteve acima de minhas forças, e que eu jamais pensei em fugir diante dos inimigos que combati”.

“A vanglória me toma, nesse mesmo instante em que falo disso; mas eu logo escapo às suas presas, e, retornado à sabedoria, eu me repreendo por ter me deixado prender, e repreendo minha alma que esteve subjugada por instantes. Desejos desregrados assaltam minha alma; mas eles não acendem senão um fogo languidescente e fácil de se extinguir, porque os olhos do corpo, ao se abrirem, não encontram nenhuma matéria inflamável que os alimente. Porque, no que diz respeito a maldizer ou a de dar ouvidos à maledicência, disso eu me preservei por inteiro, por não ter com quem conversar; poderiam essas paredes falar?”.

“O mesmo não acontece com a cólera, que eu não posso evitar, embora não tenha ninguém para me irritar. Mas basta uma lembrança que ressurge e que lembra certos personagens tão absurdos como suas obras, basta isso para me sufocar o coração, sem, no entanto, que eu chegue a explodir; logo eu me esforço para conduzir essa efervescência à sua calma normal, convenço-a a que se acalme, dizendo a mim mesmo que é demasiado irracional e que isso equivale a ter prazer na infelicidade, esquecendo-me de meus males para tomar sobre os do próximo um cuidado inútil; mas, se eu estivesse no mundo, ocupado com mil coisas, eu já não escutaria os avisos dessa voz íntima, não desfrutaria de seus conselhos que me instruem e me guiam. Semelhante àqueles a quem a violência de uma torrente ou de qualquer outra força empurra para um precipício, e que podem prever o fim terrível ao qual lhes conduzirá sua queda, sem que, entretanto, vejam socorro em parte alguma, se um dia eu caísse no tumulto das paixões, eu poderia ver crescer a cada dia a some dos suplícios que me aguardariam; mas, permanecer na solidão, como o faço agora, e afastar de todos os lados os ataques furiosos das paixões, nada disso eu poderia fazer com a mesma facilidade de antes. Com efeito, tenho a alma fraca, estreita, quase sem defesa, não apenas contra as paixões de que lhe falei, com contra a mais amarga de todas, a inveja; nem as injúrias, nem as distinções, nada eu tomo com moderação, pois algumas me elevam enquanto outras me rebaixam, além das medidas. As bestas ferozes, bem nutridas e vigorosas derrubam com facilidade aqueles que combatem contra elas, sobretudo quando esses não são fortes nem hábeis; mas enfraqueça-as cortando-lhes o alimento, e logo seu ardor se extingue, seu vigor diminui, e, ainda que pouco robusto, um homem poderá combatê-las e vencê-las; a mesma coisa acontece com as paixões da alma; extenue essas feras pela falta de alimento, e você as subjugará facilmente ao mando da razão; se, ao contrário, você as alimentar, dificilmente poderá suportar sua impetuosidade; você as terá tornado tão terríveis contra si próprio que passará toda sua vida em servidão e terror”.

“E qual é o alimento desses monstros? A vanglória se sacia com as distinções e os elogios; o orgulho, com o poder e as altas dignidades; a inveja, com a reputação de outrem; a avareza, com as liberalidades e as larguezas; a luxúria, com a preguiça e os contínuos encontros com as mulheres; e por aí vai. Assim que eu me engajo no mundo, esses animais ferozes se atiram sobre mim, despedaçam meu coração como uma presa, e eu sou atirado numa situação terrível, e colocado numa guerra muito mais formidável do que eu. Eu sei que, permanecendo na minha solidão, ainda tenho que fazer esforços para domá-los; mas conseguirei domá-los, com a ajuda de Deus, e não lhes restará mais do que a liberdade de urrar”.

“Eis porque eu me guardo em minha cela, não permitindo a entrada a ninguém, não vivendo nem me comunicando com ninguém, resolvido a sofrer todas as reprimendas que essa atitude pode atrair sobre mim; ficarei feliz de fazer cessar essas reprimendas, mas, sendo isso impossível, tudo o que posso fazer é me afligir e gemer. Existe maneira de estar a um só tempo convivendo pela sociedade e conservar o retiro seguro do qual desfruto presentemente? Então, meu amigo, em lugar de me condenar, chore comigo pela situação crítica em que me encontro”.

Mas vejo que você ainda não está persuadido. É, pois, o momento de lhe revelar o único segredo que me resta. O que vou dizer poderá parecer inacreditável a muitos; seja como for, não enrubescerei por anunciá-lo publicamente, ainda que essa confissão possa ser tomada como a marca de uma má consciência e como o sinal de uma alma carregada de numerosos pecados. Deus, que há de me julgar, sabe de tudo com exatidão – assim, que proveito posso extrair da ignorância dos homens?”.

“Qual é esse segredo? Desde o dia em que, informado por você de que nos miravam, eu comecei a temer ser elevado ao sacerdócio, e muitas vezes senti meu corpo a ponto de desfalecer por completo, tanto era o terror e o abatimento que dominaram minha alma! Eu via de um lado a glória da Esposa de Jesus Cristo, sua santidade, sua beleza espiritual, sua admirável sabedoria e o brilho de suas vestimentas divinas; de outro, eu via minha miséria, e essa comparação me arrancava lágrimas por sua infelicidade e pela minha; eu suspirava sem cessar, e, presa de uma cruel perplexidade, dizia: Quem pôde aconselhar semelhante coisa? Que grande crime terá cometido a Igreja de Deus? Em que terá ela ofendido tão gravemente seu Senhor, que a condenou à vergonha de ser entregue ao mais indigno dos homens? Preocupado com essas reflexões, e não podendo suportar sequer o pensamento de tão estranha coisa, eu era um homem atingido por uma súbita paralisia, com a boca aberta, não podendo ver nem ouvir. Eu não saía desse atordoamento, que passava por intervalos, senão para me afogar outra vez na tristeza e nas lágrimas; e quando eu estava saciado do pranto, retornava o terror, agitando, perturbando e derrubando minha alma. Eu sentia os golpes dessa horrível tempestade, da qual você nada sabia, e você acreditava que eu estivesse na mais profunda calma! Por isso eu tentei lhe revelar inteiramente as tempestades de meu coração, e talvez você estivesse disposto mais a me perdoar do que a me acusar. Mas como revelá-los? Para mostrá-los tais como são, não havia senão um meio: seria despojar esse coração de todas as suas envoltórias e colocá-lo sob seus olhos. Como isso não era possível, tentei, no que estava ao meu alcance, mostrar a você através do véu escuro de uma comparação, a fumaça dessa fogueira de tristeza que está em mim; com a ajuda dessa alegoria, você poderá ter uma ideia de minha tristeza, mas só de minha tristeza”.

“Suponhamos que se destine a alguém, por esposa, a filha de um monarca, mestre de todas as terras sob o sol, e que ela seja de uma beleza incomparável, superior a tudo o que a natureza humana pode produzir de mais perfeito, e ultrapassando de muito, por seus atrativos, a todas as mulheres do mundo; que, de resto, ela possua uma alma infinitamente mais perfeita do que a de qualquer homem dos tempos passados, presentes ou futuros; em uma palavra, que por seus costumes ela sobrepuje todas as perfeições morais reverenciadas pelos sábios, ao mesmo tempo em que o brilho de sua figura ofusque toda beleza corporal imaginável; que o príncipe que deverá esposá-la queime de amor por ela com tamanha paixão que os amantes mais inflamados nem se lhe possam comparar; que, em tais circunstâncias, ele venha a saber que a princesa admirável que possui seu coração deverá passar, por casamento, a um homem sem qualidades, da laia do povo, sem nascimento e cheio de defeitos, numa palavra, ao último dos homens. Pois bem! Consegui eu lhe dar uma ideia da minha dor, levando a comparação até esse extremo? Penso que isso basta para fazê-lo compreender, ao menos, minha tristeza; pois é apenas essa face de minha desastrosa posição que eu quis lhe mostrar por essa similitude”.

“Agora, para que você veja a medida de meu terror e de minha estupefação, vamos pintar um novo cenário. Imaginemos uma armada composta por infantaria, cavalaria e marinha; o mar desaparece sob a multitude de navios, as vastas planícies e as altas montanhas estão igualmente cobertas pelas falanges da infantaria e da cavalaria; o aço das armas reflete o fogo do sol, cujos raios, incidindo sobre os capacetes e os escudos, produzem um brilho ofuscante; o barulho das armas e os relinchos dos cavalos ecoam até o céu; não se vê mar nem terra, mas ferro e bronze por toda parte. Diante dessa armada estão arrumados para batalha os inimigos, homens ferozes e ávidos por carnificina; essas massas vão se entrechocar”.

“Nesse momento tomamos um jovem que cresceu nos campos, que não conhece nada além das pelotas e das zarabatanas; armamo-lo dos pés à cabeça, e o fazemos passar em revista as tropas; mostramos-lhe as diversas companhias com seus respectivos comandos: arqueiros, fundistas, taxiarcas, generais, oplitas, cavaleiros, lanceiros; as trirremes com seus trierarcas, os soldados que as acompanham, as numerosas máquinas que elas carregam; mostramos-lhe ainda todos os planos de batalha dos inimigos, a esquisitice de suas figuras, a variedade de suas armaduras; sua multitude infinita, acampada nas terras baixas pantanosas, em imensos precipícios e por trás de montanhas inacessíveis; mostramos-lhe ainda, do lado dos inimigos, os cavalos alados e os combatentes que viajam pelos ares por meios mágicos, e que dispõem de encantamentos tão variados como poderosos. Enumeramos-lhe a seguir todos os acidentes da guerra: uma chuva de lanças, nuvens de dardos, um dilúvio de flechas que interceptam os raios do sol, e transformam a claridade do dia em noite profunda; uma poeira espessa, não menos incômoda do que as trevas; torrentes de sangue, gemidos dos moribundos, gritos dos combatentes; montes de mortos, as rodas dos carros banhadas em sangue; cavalos que tropeçam e caem sobre os cadáveres e sobre seus cavaleiros; sobre a terra uma pavorosa confusão: sangue, arcos, flechas, patas de cavalos e cabeças de homens que jazem uns ao lado dos outros; braços, pescoços. Pernas, troncos semiabertos, miolos grudados nas espadas, um olho na ponta de uma flecha partida. Acrescentamos a esse cenário os horrores de uma batalha naval, com navios queimando em meio das águas; outros, afundando com seus defensores; o rugir das vagas, o tumulto das ondas, o grito dos soldados, a espuma misturada com sangue que entra nos barcos; aqui, cadáveres estendidos sobre o convés; lá, corpos submersos ou que flutuam sobre as águas, ou que o mar rejeita sobre a praia; a marcha dos navios é detida pela enorme massa de corpos mortos. Ao espetáculo de tantas cenas trágicas, acrescentamos o relato dos males que se seguem à garra, o cativeiro e a escravidão piores do que a morte. E, depois de tudo isso, dizemos ao jovem que monte a cavalo e que assuma imediatamente o comando o comando da armada; não pensa você que ele estará apavorado pelo simples relato que lhe fizemos, e que sentirá seu coração desfalecer no primeiro momento?”.

13.   “Não estou exagerando. Os corpos nos quais estamos encerrados como numa prisão, nos impedem de perceber as coisas espirituais; mas se a armada tenebrosa dos demônios, e os combates que ele trava contra nós, pudessem ser submetidos à nossa vista, seríamos testemunhas de um espetáculo ainda mais terrível do que aquele que eu lhe descrevi. Você não veria ferro, nem bronze, nem cavalos, carros, rodas, fogos, flechas, nem nada visível, mas máquinas de guerra muito mais mortíferas. Esses inimigos não precisam de couraças, nem de escudos, espadas ou lanças; mas seu aspecto é suficientemente formidável sem essas coisas, para gelar de terror uma alma, a menos que ela seja dotada de grande coragem, e também que seja sustentada por uma graça especial da parte de Deus”.

Se pudéssemos nos despojar desse corpo material, ou se, conservando-o, pudéssemos observar claramente e com sangue frio a armada do demônio, e ver com nossos olhos a guerra que ele trava contra nós, não seriam as torrentes de sangue, nem os corpos mortos oferecidos aos nossos olhos, mas os grandes massacres de almas, tão grande é o número de feridos a cada dia sobre esse campo de batalha. Ora, essas feridas causam uma morte bem mais lamentável do que as outras; pois, entre a morte da alma e a do corpo existe a mesma diferença que há entre essas duas substâncias. Quando a alma cai mortalmente ferida, ela não jaz como o corpo, privada de sentimentos, mas, ao contrário, seus tormentos começam ainda nessa vida pelos remorsos da consciência; e, depois da morte, no dia do Juízo, ela é entregue a um suplício eterno”.

“Se uma alma não sente as feridas causadas pelo demônio, essa própria insensibilidade agrava sua infelicidade. Quem não sente dor na primeira ferida, receberá facilmente a segunda, depois a terceira. Nosso cruel adversário não para de bater, até o último suspiro, numa alma indolente que não se apercebe disso desde os primeiros ataques. E se você considerar agora o modo desses ataques, verá que sua tática é muito mais impetuosa e esperta. Não há inimigo mais fértil em ardis, em estratagemas, do que esse espírito impuro. É acima de tudo nisso que reside sua força. A raiva mais implacável que um mortal pode nutrir contra seus maiores inimigos não se compara ao encarniçamento furioso que o demônio coloca em perseguir a natureza humana”.

“O ardor que o impulsiona, quando ele combate, é tal, que seria ridículo compará-lo com os homens sob esse aspecto. Escolha os animais mais ferozes e mais cruéis, e sua ferocidade parecerá doce e aprazível em comparação com a dele, tamanho é o furor que ele respira quando se atira sobre nossas almas”.

“Os combates entre os homens não são longos, e mesmo essa curta duração é muitas vezes interrompida por tréguas e armistícios. A noite que cai, a fadiga em matar, a necessidade de comer, e muitas outras coisas permitem naturalmente ao soldado tomar algum repouso; ele pode depor os arreios, respirar alguns instantes, refrescar-se comendo e bebendo, numa palavra, ele pode reparar suas forças por uma série de cuidados pessoais. Mas quando se trata do demônio, é impossível deixar as armas um só momento, nem desfrutar de um instante de sono, se quisermos evitar sermos feridos”.

“Das duas uma: ou se morre desarmado, ou se permanece todo o tempo em armas, sempre alerta. Nosso inimigo se mantém constantemente à frente de seus batalhões, espionando sem cessar nossos descuidos, mais vigilante em nos pôr a perder do que nós em nos salvarmos. A natureza invisível do inimigo, seus ataques imprevistos, causas fecundas de infelicidades para aqueles que não estão constantemente em guarda, tornam essa guerra mais difícil do que todas”.

“E é numa guerra assim que você queria que eu me colocasse à cabeça dos soldados de Jesus Cristo? Pois, quando aquele que deve dispor os demais em ordem de batalha acontece de ser o mais incapaz e inepto de todos, ele trai com sua incapacidade aquele a quem deveria salvar, e podemos dizer que ele seria assim o general de Satanás, não o de Jesus Cristo”.

“Mas, por que você suspira assim? Por que chora? Minha situação não é daquelas sobre as quais devemos derramar lágrimas, antes ela merece excitar a alegria e a felicidade”.

Basílio então me disse: “Não é a sua situação que me aflige, mas a minha. Eu não havia compreendido ainda toda a profundidade dos males em que você me colocou.  Eu vim a você apenas para saber de você como eu deveria responder aos que o acusam; e você se despede de mim depois de me desembaraçar de uma pena para me lançar em outra. O que me inquieta já não é a sua justificação, mas saber como eu poderei responder a Deus por minha própria conta e pelas ações de minha vida. Entretanto, eu lhe suplico, eu o conjuro, por mim, por meu interesse, se ainda este lhe toca, por nosso Senhor Jesus Cristo, pela caridade cristã, pelas entranhas e a compaixão de um amigo por seu amigo, não se esqueça que foi sobretudo você que me lançou nesse grande perigo, e estende-me uma mão segura, sustenta-me com todo o seu poder, com seus discursos e com suas ações; não me abandone um só instante jamais, mas a partir de hoje permaneceremos mais unidos e inseparáveis do que antes”.

Eu lhe respondi sorrindo: “E de que auxílio, de que utilidade posso eu ser para você nessa imensidão de cuidados e deveres? Mas, tenha coragem, caro amigo, porque, se isso lhe agrada, quando as solicitações inseparáveis de seu cargo lhe permitirem respirar, eu estarei ao seu lado, eu o confortarei e farei tudo o que depender de mim”.

Diante dessas palavras, suas lágrimas redobraram, e ele se levantou; eu o abracei com ternura, beijei sua fronte, e o conduzi exortando-o a suportar corajosamente o que lhe acontecera. Minha confiança em nosso Senhor Jesus Cristo que o chamara e o colocara na condução de Seu rebanho, disse-lhe eu, me fizeram esperar que seu santo ministério lhe daria muitos créditos perante Deus, para que, no meu derradeiro dia, na hora do perigo supremo, eu pudesse, seguindo-o e sob sua proteção, penetrar nos tabernáculos eternos.

***



[1] Hebreus 13: 17.
[2] Cf. Mateus 18: 6.
[3] 1 Coríntios 8: 12.
[4] Cf. Ezequiel 33: 3.
[5] Cf. Ezequiel 33: 6.
[6] Gálatas 2: 20.
[7] Cf. Mateus 22: 13.
[8] Cf. 1 Timóteo 3: 2.
[9] 2 Coríntios 8: 20.
[10] Romanos 12: 17.
[11] Cf. Mateus 25: 24.
[12] Amós 3: 2.
[13] Levítico 4: 3, 13.
[14] Cf. Levítico 21: 9; Deuteronômio 22: 29.
[15] Cf. Ezequiel 34: 17.

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