1. “Já
demonstrei suficientemente o quanto os combates aplicados à defesa da verdade
exigem, em matéria de habilidade e experiência da parte daquele que os
sustenta. Entretanto, ainda tenho algo a acrescentar àquilo que eu já disse;
algo que é causa de infinitos perigos, ou antes, que pode se tornar, para
aqueles o manejam mal, ocasião para os maiores perigos; pois essa coisa é em si
das mais salutares e benéficas, quando utilizada por homens virtuosos e
capazes. Falo do trabalho bastante considerável que o pregador emprega na
composição dos discursos que fará em público”.
“A maior
parte dos ouvintes não gosta de se colocar na disposição que convém aos
discípulos em relação ao mestre que os instrui. Pensando que o papel de
discípulos está muito abaixo deles, acreditam se elevar comportando-se como
espectadores de teatro ou circo. E, assim como nesses espetáculos do mundo a
multidão se divide em facções, uns favorecendo esse, outros aquele, também nos
templos se dividem as assembleias cristãs: uns são por cicrano, outros por
beltrano; o ouvinte já chega favorável ou hostil ao pregador, antes mesmo de
que esse tenha aberto a boca; outro perigo, não menor: por pouco que o pregador
misture à trama de seu discurso qualquer coisa do trabalho de algum outro,
levantará contra si mais clamores e insultos do que se tivesse roubado dinheiro
dele. Frequentemente, sem que tenha roubado nada, apenas por uma suspeita sem
motivo, é tratado como se tivesse sido pego em flagrante delito de plágio. Mas
que digo eu, de empréstimos feitos a outrem? Não lhe é permitido sequer
utilizar, como bem entender e tanto quanto quiser, dos frutos de sua própria
invenção e trabalho. Pois não é para sua edificação, mas para seu deleite, que
a maior parte dos ouvintes vêm buscar seus discursos, aos quais eles assistem,
como se fosse uma tragédia ou um concerto, na qualidade de juízes. Resulta daí
que a espécie de eloquência que eu reprovava com São Paulo, passa a ser ainda
mais exigida na cátedra evangélica do que entre sofistas obrigados a medir suas
forças”.
“É preciso
assim uma alma fortemente aguerrida, bem superior à fraqueza que encontro em
mim, que seja capaz de colocar um freio a essa paixão da multidão por um prazer
infrutífero, e dirigir sua atenção para um objeto mais útil. Assim é que o
orador da cátedra, em lugar de seu o joguete fácil dos caprichos da multidão,
caminhará como um chefe e um guia à frente de seu povo dócil que o segue. Ora,
esse resultado só pode ser obtido mediante duas condições: o desprezo pelos
elogios e o talento da palavra”.
2. A ausência
de uma dessas condições torna a outra inútil. Se, ao desprezo pelos elogios, o
pregador não acrescenta o talento de instruir com uma palavra temperada de
graça e sal, ele sucumbirá infalivelmente sob o desdém da multidão, sem que a
grandeza de sua alma possa salvá-lo. Se, ao contrário, ele tem tudo de que
precisa em matéria de talento, mas o favor popular o domina a ponto de torná-lo
escravo, o prejuízo é ainda o mesmo, tanto para ele como para o povo, porque,
em seus discursos, ele se propõe mais a agradar do que a ser útil aos ouvintes,
tanto a sede dos elogios o atormenta e perde. Pode haver um homem que, em
verdade, é insensível à atração pelo renome; mas, se ele não sabe falar, que
poderá fazer? Ele não cederá aos caprichos da multidão, é verdade, mas de que
servirá essa magnanimidade, se ele não puder ser de nenhuma utilidade ao povo,
pela incapacidade de dizer alguma coisa? Outro pode possuir o talento
necessário para tornar melhores os homens, mas tem a infelicidade de não poder
resistir ao amor pelos elogios, e o que lhe acontece, senão que sonha mais em
deleitar seu auditório do que em salvá-lo, e isso porque os aplausos,
reverberando ao seu redor, deliciam docemente seus ouvidos”.
3. “O pastor
perfeito terá assim um caráter igual ao seu talento, e um talento igual ao seu
caráter, e assim, sustentado dos dois lados, ele não falhará em sua missão. Um
pregador se levanta no meio da multidão, e começa a pronunciar palavras capazes
de impressionar os corações débeis e indolentes; mas de súbito ele vacila e se
interrompe: ele sente sua indigência, ele se perturba e enrubesce; todo o fruto
de suas primeiras palavras se perde e se dissipa incontinenti; aqueles a quem
ele acaba de repreender, excitados pelas feridas dolorosas feitas ao seu amor
próprio, e não vendo outra maneira de se vingar, atacam sua ignorância com
sarcasmo; esse é, aliás, um modo de lançar um véu sobre seus opróbrios”.
“É preciso,
portanto, que o orador sagrado, tal como um hábil condutor, consiga regrar tão
bem essas duas belas qualidades, que seja capaz de fazê-las marchar à sua
frente para um objetivo útil. Quando ele não der mais motivo para crítica,
então ele poderá, com tanta facilidade quanta quiser, repreender com severidade
ou tratar com indulgência os fiéis submetidos à sua conduta; sem essa condição
ser-lhe-á difícil agir com tal autoridade. A grandeza de alma não deve se
limitar ao desprezo pelos elogios, é preciso ir mais longe para evitar que esse
mérito fique imperfeito”.
4. “O que mais
é preciso desprezar? O ciúme e a inveja. Todas essas falsas acusações, e até as
inverossímeis, das quais costumam ser vítimas os chefes da Igreja, é preciso
não as temer, nem se alarmar além da medida, nem tampouco desdenhá-las pura e
simplesmente; mas, ainda que elas não passem de mentiras inventadas por um
qualquer, é preciso tentar extingui-las o mais depressa possível; pois, para
exagerar para o bem ou para o mal a reputação de um homem, não existe nada
parecido com a multidão sem freio em seus propósitos. Escutar e repetir a tudo
sem examinar, dizer ao acaso tudo o que se apresenta, sem ter olhos para a
verdade, o povo é isso. Então, longe de desprezar os clamores populares que nos
são desvantajosos, é preciso cortá-los pela raiz desde o começo, confundindo os
caluniadores, ainda que suas mentiras sejam evidentes por si sós, e nada
omitindo do que possa consolidar nossa reputação. E, quando tivermos feito tudo
ao nosso alcance, se nossos acusadores não quiserem se render, só então é o
caso de desprezá-los. Qualquer um que logo no início se deixe abater por essas
contrariedades não poderá fazer nada de belo nem de grande, porque a amargura e
os cuidados contínuos produzirão nele uma prostração das forças da alma,
reduzindo-a à completa impotência”.
“A conduta
do sacerdote para com seu povo, deve ser a mesma de um pai em relação aos seus
filhos menores. Os insultos, os golpes e o choro das crianças de berço não
emocionam mais o pai do que o enchem de vaidade o brilho de suas risadas
alegres e suas carícias. Da mesma forma, um sacerdote não deve nem se orgulhar
com os elogios, nem se deixar abater pela reprovação do povo, porque este é
pródigo tanto em um como no outro, aleatoriamente. É difícil, meu amigo, e
talvez mesmo impossível: não sentir nenhum prazer ao ser louvado constitui um
grau de perfeição ao qual talvez não seja dado ao homem alcançar. Ora, o prazer
gera o desejo da fruição; e o desejo da fruição, em caso de insucesso, produz
necessariamente a aflição, o desgosto, a indignação, a dor. Assim como aqueles
que colocam toda sua alegria nas riquezas caem em aflição se empobrecem, também
os que estão acostumados a uma vida folgada consideram insuportável ser
reduzidos a uma vida frugal; assim, aqueles que são ávidos por elogios, não
apenas quando são reprovados sem razão, como também quando não são louvados
continuamente, sentem sua alma como que devorada por uma fome cruel, sobretudo
se, por assim dizer, se alimentam de elogios desde sua infância, e
principalmente se testemunham elogios feitos a outros. A quantos desgostos e
decepções não está exposto aquele que entra para o ministério da palavra
evangélica com tal desejo no coração? A alma desse sacerdote não é capaz de se
isentar de tristezas e inquietações, tanto quanto o mar de ondas e
tempestades”.
5. “Mesmo
supondo nele um grande talento natural para a palavra, o que é bem raro, isso
não lhe diminui a necessidade de trabalhar sem descanso. Com efeito, sendo a
eloquência menos um dom da natureza do que o produto do trabalho e do estudo,
mesmo que nos tenhamos elevado até o cume da perfeição, podemos decair bem
depressa se negligenciarmos o necessário para nos mantermos aí por meio do
estudo e pelo continuo exercício. Segue-se daí que os melhores oradores estão
obrigados a mais trabalho do que os que não são tão bons, porque esses têm
menos a perder do que os primeiros. É a diferença entre os méritos que
estabelece a diferença entre as obrigações. Nenhum crítico repreende um talento
medíocre, ainda que este não produza nada de notável; mas do talento superior,
sempre que aparece, exige-se que ultrapasse a opinião que se tem dele, caso
contrário o descontentamento aparecerá de todos os lados. Os menores sucessos
atraem para o primeiro grandes elogios; mas se o segundo não criar a admiração,
se não colocar os ouvintes fora de si, todo elogio lhe será recusado, e nenhuma
crítica será poupada. O auditório julga menos o orador por seu discurso do que
por sua reputação. É assim evidente que o mais eloquente dos pregadores deve
ser o mais laborioso; a ele não se perdoa aquilo que é, entretanto, inseparável
da natureza humana, que é o fato de não reunir em si todas as qualidades; e, se
seu discurso não corresponde, ponto por ponto, à grandeza de seu renome, ele se
retirará sob uma chuva de sarcasmos e de flechas maldosas lançadas pela
multidão. Ninguém atenta para o fato de que uma infelicidade, uma ansiedade,
uma perturbação qualquer, talvez mesmo a cólera, possa turvar a lucidez de seu
espírito, e empanar a clareza e a precisão habituais de suas concepções; enfim,
que o orador, por ser homem, não possa ser sempre e em toda parte o mesmo, e
que não possa atravessar, por assim dizer, senão dias serenos; que, ao contrário,
ele está sujeito, pela própria natureza, a falhar às vezes, e ficar abaixo de
seu próprio talento; essas coisas não são levadas em conta: ele é tratado como
se pudesse ter a perfeição dos anjos. É, de resto, uma disposição infelizmente
muito natural, a de dar pouca atenção ao tudo o que os outros fazem de bem,
qualquer que seja seu brilho. Temos os olhos mais vigilantes para observar suas
faltas, mesmo as menores, mesmo aquelas cuja lembrança o tempo deveria apagar;
estamos prontos a redescobri-las, ávidos por agarrá-las, teimosos em retê-las.
Pode ser pouco, pode ser nada, e, no entanto, mais de uma vez essas coisas
bastaram para diminuir a glória de muitos homens de méritos verdadeiros”.
6. “Você vê,
meu generoso amigo, que quanto mais talento possui um pregador, mais
necessidade tem ele de trabalhar, para não se deixar decair. Acrescento ainda
que ele necessitará de uma paciência à toda prova. Uma multidão de maledicentes
o assaltará sem cessar a torto e a direito, sem ter nenhuma crítica legítima a lhe
fazer, mas apenas porque não podem suportar sua reputação e ficam importunados
com o sucesso que ela faz. É preciso que ele tenha coragem para suportar essa
inveja amarga. O ódio execrável que lhe dedicam sem razão, não podendo
permanecer por muito tempo concentrado dentro dos corações, logo se
externaliza; ele explode em injúrias, em detrações, nas calúnias semeadas nas
sombras e espalhadas pelo público. Uma alma que, a cada tentativa, começasse a
se afligir, a se irritar, não tardaria a sucumbir à tristeza. Não apenas seus
próprios inimigos a agridem, como ainda empregam para isso mãos estrangeiras.
Vê-los-emos tomar um homem incapaz de dizer duas palavras em sequência, e
colocá-lo nas nuvens com elogios hiperbólicos e com uma admiração fingida; alguns
o farão apenas pela paixão, outros por ignorância ou inveja; mas eles não mais
do que um objetivo, que é o de derrubar uma reputação existente, e
absolutamente de favorecer uma impossível”.
“Além de
seus inimigos, o valente defensor da Igreja terá muitas vezes que lutar contra
a ignorância de todo o povo. Uma grande plateia não pode ser composta
unicamente de homens letrados; as pessoas sem instrução costumam ser a grande
maioria nas reuniões de nossas Igrejas; sem contar essa primeira categoria,
resta uma minoria que podemos ainda dividir em duas partes, aqueles cuja
cultura mediana os separa um pouco dos ignorantes, embora ainda afastados dos
homens verdadeiramente capazes de julgar um discurso; se tomarmos apenas esses
últimos, ficaremos reduzidos a um ou dois conhecedores. Daí resulta que aquele
que melhor falar será o menos aplaudido, e algumas vezes não o será em
absoluto. Ele deve desde logo se resignar com esse resultado bizarro; desculpar
aqueles que agem por ignorância, lamentar os que são movidos pela inveja, como
os infelizes dignos de piedade, e estar persuadido de que nem uns, nem outros,
são capazes de lhe roubar o talento. Um grande pintor, um mestre em sua arte,
poderá ver maus conhecedores zombar de uma de suas obras primas, e ele não
deverá se desencorajar, porque a crítica dos tolos não pode tornar ruim um bom
quadro, da mesma forma como seus elogios e sua admiração não podem tornar bom
um quadro ruim”.
7. “Sim, que o
gênio seja o juiz de suas próprias obras; não as consideremos boas ou ruins,
sem que o espírito que as concebeu diga se elas são boas ou más. As opiniões
emitidas ao acaso por pessoas estranhas à arte não merecem sequer que nos
detenhamos nelas. Assim, aquele que está encarregado da rude missão de ensinar
os demais, não deve ligar importância alguma aos votos da multidão, e não se
desencorajar, caso eles faltem. Quando ele tiver elaborado seus discursos com o
objetivo de agradar a Deus (pois é Deus a regra e o tipo supremo da perfeição,
não o mundo com seus aplausos e seus elogios), depois disso, se houver elogios
também de parte dos homens, muito bem, que ele não os recuse. Se os ouvintes
não o concederem, que renuncie a eles sem se lamentar. Não faltará uma bela
recompensa, a maior de todas, aos seus esforços, vale dizer, o testemunho de
sua consciência por não ter buscado senão a glória de Deus, ao compor e
elaborar seus discursos”.
8.
“Porém, se ele começar a se deixar levar pelo desejo de vãos
elogios, nem seus infinitos trabalhos, nem seus talentos de eloquência lhe
servirão para alguma coisa; incapaz de desdenhar as críticas injustas da
multidão, ele desanima e perde o gosto pelo estudo. Portanto, ele deve primeiro
aprender a desprezar os elogios, uma ciência sem a qual o exercício da palavra
não bastará para conservar esse belo talento”.
“Àquele que
possui uma eloquência medíocre, o desdém pelos elogios não é menos necessário
do que ao mais eloquente; pois ele cometerá necessariamente muitas faltas, se
não possuir um caráter forte o bastante para passar de bom grado sem o favor do
público. Em sua impotência para igualar oradores mais renomados, ele não
recuará de lhes estender armadilhas, de invejá-los, de caluniá-los e de se
rebaixar às mais odiosas manobras; ainda que tivesse que perder sua alma,
estaria pronto a tudo ousar pata usurpar sua glória fazendo-a descer até o
nível de sua própria mediocridade. Eu acrescento que sua alma, pesada de
torpor, logo se recusará a toda espécie de fadiga e de trabalho. Com efeito,
esforçar-se para não merecer mais do que uma pequena colheita de elogios, o que
é mais propício para lançar numa espécie de sono letárgico o homem que não tem
forças para desprezar os elogios? Sendo assim, o trabalhador, obrigado a
trabalhar numa terra estéril e cavar valas num solo pedregoso, logo suspende
seu labor, a menos que a paixão da arte o cative, ou que o temor da necessidade
o obrigue a retomar os esforços”.
“Se o homem
mais ricamente provido de eloquência necessita de um estudo continuo para
conservar suas vantagens, quanta dificuldade não experimentará aquele que
possui pouca, e que se vê obrigado, ao falar, de meditar sobre as coisas que
deve dizer? Que embaraço, que violenta contenção de espírito para chegar a
produzir laboriosamente um mau discurso! E, se dentre os ministros de um nível
inferior, se encontra algum cujo talento eclipsa o de seu bispo, não precisará
esse de uma virtude mais do que humana para não se deixar dominar pela inveja e
se consumir pelo desalento? Sentir-se inferior em mérito a alguém sobre quem se
possui um nível mais alto de dignidade, e se resignar com coragem, isso não é
para as almas comuns, à minha, por exemplo, mas a uma alma de têmpera mais
forte. Se ao menos aquele cujo mérito nos faz sombra, o faz pela doçura ou a
modéstia, isso ainda é uma desgraça, mas é tolerável; mas se ele é de caráter
ousado, fanfarrão e vaidoso, deseja-se sua morte todos os dias, de tanta
amargura derramada sobre a vida de seu infortunado superior, alardeando por
toda parte suas vantagens, zombando por trás, usurpando tanto quanto pode sua
autoridade e pretendendo ser tudo. Em tudo o que ele faz, tem por apoio e
defesa sua palavra livre e fácil, as graças do povo, a afeição que todas as
classes demonstram por ele”.
“Não vê você
o quanto a eloquência faz furor entre os Cristãos? Tanto entre nós, como entre
os pagãos, não há honrarias senão para aqueles que a cultivam. Que vergonha
pode ser mais insuportável, do que ver, enquanto falamos, todo mundo sem
demonstrar o menor sinal de aprovação, mostrando tédio, aguardando o final do
discurso como se fosse uma libertação, enquanto que, quando o rival toma a
palavra, todos os escutam com atenção e, por mais longo que seja o discurso,
todos aguentam até que termine, e dão mostras de despontamento, caso ele guarde
silêncio? Essas contrariedades podem lhe parecer leves e fáceis de superar, a
você que ainda não as experimentou; mas nem por isso elas deixam de ser feitas
para extinguir o fogo do gênio, paralisar as forças da alma, a menos que,
libertando-se de todas as miseráveis paixões do homem, a pessoa se eleve às
alturas das potências celestes e incorpóreas, que são por natureza inacessíveis
à inveja, ao amor pela gloria, às diversas enfermidades da alma. Se um mortal
chega a esse ponto de perfeição, capaz de pisotear esse monstro indomável da
glória humana, e de cortar as cabeças sempre renascentes dessa hidra – ou
antes, de impedi-las de germinar em seu coração – ele poderá repelir
vitoriosamente os numerosos assaltos aos quais será entregue, e repousar, como
num porto, ao abrigo da tempestade. Mas enquanto ele não estiver inteiramente
liberto desse inimigo, ele será assaltado de mil maneiras diferentes; sua alma
estará continuamente perturbada, destroçada e se tornará o joguete de uma
infinidade de paixões. De que vale enumerar todas as outras dificuldades que se
encontram no exercício do santo ministério? Para se ter uma ideia deles, seria
preciso tê-los experimentado pessoalmente”.
LIVRO SEXTO
1. “Eis, quanto
à vida presente, as provas pelas quais deve passar um sacerdote. Mas o que é
isso, em comparação com o que deveremos sofrer em outro lugar, quando tivermos
que prestar contas de todas as almas que nos foram confiadas – sim, de todas –
umas após as outras? A culpa não será o único perigo que estaremos correndo,
mas, depois da culpa, existirá ainda para nós o suplício eterno. Há uma palavra
que eu já citei: ‘‘Obedecei aos vossos superiores, e sede-lhes submissos,
porque eles velam por vossas almas, como se delas prestassem contas [1]’; mas
não posso me impedir de repeti-las, porque elas contêm uma ameaça que
transtorna continuamente minha alma. Se é verdade que mais vale, para aquele
que escandalizar o menor dos irmãos, que se lhe ponham ao pescoço uma pedra de
moinho e o precipitem no fundo do mar[2], se
todos os que ferem a consciência de seus irmãos pecam contra o próprio Jesus
Cristo[3], que
sorte devem esperar os que perdem não uma, duas, ou três almas, mas povos
inteiros? Sim, eu lhe pergunto, que suplícios lhes estarão reservados? Não cabe
aqui escusá-los por sua inexperiência, alegar sua ignorância, pretextar a
necessidade ou a violência dos outros. Se esses meios fossem cabíveis, os
simples fiéis poderiam utilizá-los para desculpar suas próprias faltas, do que
recorrer aos pastores para obter o perdão dos pecados cometidos contra os
outros”.
“Por que
isso? Porque aquele que está encarregado de corrigir a ignorância dos povos, e
de adverti-los da guerra que terão que sustentar contra o demônio, perderá a
graça se disser que não escutou soar o alarme, que sequer previra a guerra,
pois ele não foi ali estabelecido, como diz o profeta Ezequiel[4], senão
para soar a trombeta a todo o povo e advertir quanto aos perigos que o ameaçam.
Assim, a punição é inevitável, ainda que uma única alma fosse perdida. Diz
ainda o Profeta, que, se uma sentinela, ao perceber o avanço das espadas, não
soa a trombeta para dar o alerta ao povo, e que, chegando as espadas perde-se a
vida de um único homem, esse homem terá caído por causa de sua iniquidade; e
seu sangue será cobrado à mão da sentinela[5]. Pare
então de me empurrar a um castigo inevitável. Não se trata do comando de uma
armada ou de um império, mas de um ministério que exige a virtude de um anjo”.
2. “É preciso
que a alma do sacerdote seja mais pura do que os raios do sol, a fim de que o
Espírito Santo nela faça sua morada permanente, e que ele possa dizer: ‘Eu
vivo, ou antes não sou eu quem vive, mas é Jesus Cristo que vive em mim[6]’. Se os
que vivem no deserto, longe da cidade, dos lugares públicos e das agitações
tumultuosas, e cuja vida flutua, por assim dizer, sobre águas sempre abrigadas
e tranquilas, se esses estão sempre precavidos, malgrado a segurança de suas
vidas; se, ao contrário, eles multiplicam as precauções, cercando-se de todos
os meios de defesa, observando uma regra extremamente severa, seja em suas
palavras, seja em suas ações, a fim de poder se aproximar de Deus com toda a
confiança e a pureza que permite a fraqueza humana, de quanta virtude, de
quanta força não necessita um sacerdote para preservar sua alma de toda mancha,
e conservar pura e sem mácula sua beleza espiritual? Ele precisa de uma
santidade em muito superior à dos solitários. Muito mais exposto do que eles a
toda sorte de necessidades perigosas, ele não salvaguardará a pureza de sua
alma senão por meio de uma vigilância contínua e de uma grande firmeza. Um belo
rosto, alguns movimentos voluptuosos, um caminhar estudado, uma voz melodiosa,
olhos e maçãs do rosto cujo brilho natural são ainda mais salientados por cores
aplicadas com arte, elegantes tranças de cabelos habilmente tingidos, ricas
vestes, ouro prodigado sob todas as formas, diamantes faiscantes, perfumes de
odores exóticos, tantos artifícios que as mulheres sabem tão bem pôr a
trabalhar, tudo isso é por demais capaz de perturbar a alma, a menos que ela
tenha sido endurecida por laboriosos exercícios de temperança. A emoção que
tudo isso pode causar não tem nada de espantoso. Mas que o demônio tenha
sucesso em ferir, por meios contrários, os corações dos homens, eis certamente
algo surpreendente e quase inconcebível”.
3. “Existem
homens, com efeito, que, depois de haver resistido àqueles meios de sedução, se
deixaram capturar por outros completamente diferentes. Assim, um rosto
descuidado, cabelos mal penteados, vestes sórdidas, um exterior em desordem,
maneiras simples, um linguajar comum, um caminhar sem estudo nem arte, uma voz
inculta, uma vida miserável, desprezada, sem apoio, o mais completo abandono,
toda essa equipagem de miséria, que de início não despertaria mais do que a
compaixão do espectador, acabou por levá-los à mais deplorável catástrofe. Aqui
também encontramos um grande número de homens que, depois de triunfar sobre a
sedução armada de todos os prestígios do ouro, dos perfumes, das roupas
magníficas, encontraram seu refúgio nas coisas mais contrárias, e aí se
destruíram”.
“Pois a
pobreza e a riqueza, o adorno e a negligência das vestimentas, a polidez
refinada ou a rudeza inculta das maneiras iluminam igualmente a guerra na alma
daqueles que têm esse espetáculo sob seus olhos, e porque o caminho por onde
caminhamos é semeado de armadilhas; sendo assim, como cessar de vigiar um só
instante, como respirar em paz no meio de tantos embustes colocados ao nosso
redor? E onde poderemos nos esconder, já não digo para nos subtrairmos à força
explícita, que não é a mais difícil, mas para poupar nossa alma das
perturbações que nela semeiam os pensamentos impuros? Não mencionarei as honras
que se prestam normalmente aos sacerdotes, e que são para eles ocasião de uma
infinidade de males. As que recebemos das mulheres corroem em nós a virtude da
temperança, e acabam por extingui-la, a menos que estejamos continuamente em
guarda contra esse gênero de armadilhas. As honras que nos prestam os homens
têm também seus perigos, se não mantivermos uma verdadeira grandeza de alma; elas
nos expõem aos assaltos de duas paixões contrárias, a adulação servil e a tola
arrogância. Curvamo-nos até o chão diante dos grandes, para obtermos suas
homenagens, para depois, empanzinados com as que tivermos recebido,
voltarmo-nos contra os pequenos, a quem oprimimos com desdém, e assim caímos no
abismo do orgulho. Nada mais direi a esse respeito; é preciso experiência para
conhecer toda a extensão desse mal”.
“Esses
perigos não são os únicos; existem muitos outros aos quais está necessariamente
exposto aquele que vive no mundo. O solitário está isento disso, pois ainda que
algum mau pensamento se ofereça ao seu espírito, ainda que sua imaginação lhe
pinte um objeto perigoso, o que sempre é possível, não será essa mais do que
uma representação bastante fraca, fugidia; o fogo que ela acende no coração,
não sendo alimentado pela vista das realidades, não passa de um fogo fátuo que
se extingue ao menor sopro. Um solitário só teme por si mesmo. Caso haja outras
pessoas a quem guiar no caminho da salvação, seu número será sempre pequeno;
por numerosas que sejam, são sempre menos do que os fiéis de uma igreja. De
resto, os cristãos pelos quais um solitário deve velar lhe dão – não só em
razão de seu pequeno número, mas ainda devido ao seu desembaraço das coisas do
mundo – muito menos preocupações do que uma igreja dá ao seu pastor; eles não
possuem, de fato, nem esposas, nem filhos, nem nada que os preocupe. Essa
condição os torna submissos e dóceis ao seu superior, além do fato de que a
vida em comunidade lhe permite descobrir facilmente todas as suas faltas e
corrigi-las; uma supervisão contínua dos mestres contribui poderosamente para o
progresso das virtudes”.
4. “Mas as
pessoas que estão sob a direção de um bispo estão, na maior parte, amarradas
por uma multitude de lações e preocupações que diminuem seu ardor para os
exercícios espirituais. Daí, para o mestre, a necessidade de distribuir quase
todos os dias a semente evangélica, a fim de que o grão da doutrina prevaleça,
por sua abundância, nas almas dos seus ouvintes. O excesso das riquezas, a
grandeza do poder, a languidez gerada pela preguiça, e muitas outras coisas do
gênero afogam nas almas os germes do bem, e muitas vezes os espinhos são tão
densos que não deixam as sementes sequer chegarem à terra. De outro lado, o
excesso de miséria, a servidão causada pela pobreza, as injúrias e as respostas
às quais ela expõe, e mil males da mesma natureza, desviam da aplicação das
coisas divinas”.
“Quanto aos
pecados, o bispo não conhece senão uma pequena parte deles. Como poderia ele,
que não conhece mais do que de vista a maior parte de seu rebanho? Tais são as
grandes dificuldades que ele experimenta, da parte de seu povo. Mas elas ainda
lhe parecerão pouca coisa, se ele considerar suas obrigações para com Deus,
tanto essas exigem de sua parte um zelo maior, uma vigilância mais atenta. Com
efeito, aquele que faz as vezes de embaixador diante de Deus de toda uma cidade
– eu disse, cidade? – de todo o universo, e que ora para que Deus seja
indulgente para com os pecados de todos os homens, não apenas dos vivos, como
ainda dos mortos, eu lhe pergunto, que homem deve ser esse?”.
“Duvido que
a liberdade da qual um Moisés, um Elias, desfrutavam diante do Senhor, fosse
suficiente para semelhante prece. Representante do mundo todo, Pai comum a
todos, é com esse título que o sacerdote se aproxima de Deus, para lhe pedir a
extinção das guerras em todo lugar, a pacificação dos conflitos, a paz, a
prosperidade e o pronto afastamento das calamidades que ameaçam tanto os
impérios como os indivíduos. Encarregado de orar por nós, ele deve ser superior
a todos, tanto quanto um protetor deve ser naturalmente superior àqueles a quem
protege”.
“E quando
ele invoca o Espírito Santo e celebra o temível sacrifício, quando ele sustenta
em suas mãos o Mestre de toda a natureza, eu lhe pergunto, em que nível o
colocaremos nós? Quanta pureza, quanto piedade não exigiremos dele? Como não
devem ser essas mãos, instrumentos de tais mistério! Como não deve ser a língua
encarregada de articular as palavras que sabemos! Existirá algum grau de
santidade, de pureza, ao qual não deva se elevar uma alma que recebe em si o
Espírito de Deus? E é nessa hora que os anjos assistem ao sacerdote, que todo o
exército das potências celestes canta, preenchendo todo o espaço ao redor do
altar, para prestar honras à vítima que aí jaz. Podemos duvidar disso, quando
consideramos a grandeza do mistério que se realiza nesse momento?”.
“Contaram-me
o caso a seguir, testemunhado por um venerável ancião, homem de santidade
admirável e acostumado às revelações do alto. Eis a visão com que foi ele
honrado: assegurou ele que, no momento em que se realizavam os mistérios
sagrados, apareceu subitamente uma multidão de anjos; embora ofuscados por tal
espetáculo, seus olhos mortais puderam distinguir suas vestes de uma brancura
brilhante; eles se colocaram ao redor do altar e se inclinaram como soldados
diante de seu rei. Eu o creio. Ou me contou algo que não ouviu de terceiros,
mas que ele próprio viu e ouviu: que, no momento de deixar esse mundo, aqueles
que participaram dos santos mistérios com uma consciência pura são colocados
sob a proteção de uma guarda de anjos, que os escoltam nessa passagem, por
causa Daquele que receberam em seu seio. Você não sente um arrepio diante da
ideia de empurrar a tão grande mistério uma alma como a minha, de elevar à
dignidade dos sacerdotes um homem como eu, cujas vestes ainda estão cheias de
manchas, um homem a quem Jesus Cristo expulsaria da assembleia dos convivas[7]? A alma
dos sacerdotes deve resplandecer como o astro que ilumina o mundo. Mas a minha
está de tal maneira envolta nos negros vapores que exalam de uma consciência
impura, que ela não ousa se mostrar, nem pousar um olhar de confiança sobre seu
divino Mestre. Os sacerdotes são o sal da terra, e eu não me faço notar senão
pela pouca sabedoria e uma incapacidade universal que ninguém seria capaz de
tolerar, exceto aqueles que estão cegos pela excessiva amizade que me têm”.
“Ora, não
basta ainda ser puro pata ser digno de tão grande mistério, é preciso ainda
unir a uma prudência natural uma extensa experiência; é preciso conhecer os
interesses e os assuntos ao redor dos quais se agita o turbilhão do mundo, e,
conhecendo-os, ser mais desembaraçado deles do que os solitários que habitam
nas montanhas. Obrigado a estar em relação com homens que possuem esposas, que
alimentam crianças, que possuem servidores, que desfrutam de riquezas imensas,
que administram os negócios públicos e gerenciam os grandes encargos do Estado,
o dignitário eclesiástico dever ser, por assim dizer, multiforme; emprego esse
termo tendo o cuidado de descartar todos os maus sentidos, tais como os de
enganador, bajulador, hipócrita; entendo por ‘multiforme’ que, sem nada perder
de sua nobre franqueza, se sua sincera liberdade, ele deve saber condescender
convenientemente, ou seja, quando as circunstâncias o pedirem, mas sendo ao
mesmo tempo bom e firme. Nem todas as pessoas devem ser governadas segundo um método
uniforme, nem todos os doentes podem ser curados pelos mesmos remédios, nem
todos os ventos podem ser combatidos pelo piloto com as mesmas manobras. Ora,
tempestades vindas de todos os lados assaltam o navio da Igreja, mas nascem
também em seu seio. É preciso, assim, ao mesmo tempo a condescendência e a
severidade”.
5. Essas
qualidades tendem todas, malgrados sua diversidade, a um mesmo fim, que é a
glória de Deus e a edificação da Igreja. Os solitários, é verdade, têm que
sustentar grandes combates, e sua vida é penosa; mas, se compararmos seus
trabalhos com as funções plenas do sacerdócio, encontraremos tanta diferença
quanta existe entre um rei e um simples cidadão. Se os exercícios de um
solitário são rudes, em compensação o espírito e o corpo trabalham nele em
consonância, e podemos dizer que o corpo participa deles até mais do que o
espírito. Quando o corpo é mal constituído, toda a força do espírito permanece
concentrada em si mesma, não encontrando uma obra na qual possa se desenvolver
exteriormente. De fato, jejuar sempre, dormir sobre o chão duro, velar,
privar-se de banho, cobrir seus membros de suores abundantes, e outras práticas
que são observadas para mortificar o corpo, a tudo isso é preciso renunciar, a
partir do momento em que o corpo não tem forças para suportar o castigo a que o
submetemos. A arte de governar a Igreja, ao contrário, não procede senão da
alma, que não tem a mesma necessidade de saúde que o corpo, para mostrar toda
sua virtude. No que contribui o vigor corporal para que não sejamos orgulhosos,
nem coléricos, nem incontinentes, mas sóbrios, temperantes, cheios de decência
e de todas as qualidades que São Paulo reuniu para compor o retrato do
sacerdote completo[8]?
Já não podemos dizer o mesmo do solitário, nem da perfeição que lhe é própria”.
Um
malabarista tem necessidade de diversos instrumentos, como rodas, aros,
espadas, mas o filósofo, ao contrário, traz toda sua arte no espírito, e
dispensa todo auxílio exterior; essa é a mesma diferença que existe entre o
solitário e o sacerdote; o primeiro necessita ter saúde e uma moradia
apropriada ao gênero de vida que pretende levar, para não se afastar demasiado
da sociedade dos homens, nem privado da tranquilidade da solidão. É preciso
ainda que ele viva num clima temperado, pois nada pode ser mais contrário ao
corpo esgotado pelo jejum do que uma temperatura sujeita a anomalias, mesmo que
de pouca monta. Não preciso mencionar aqui as penas que deve suportar para
encontrar roupas e alimento, ciente que está de que a tudo deve prover por suas
próprias mãos”.
6. “O sacerdote
não tem necessidade de todo esse aparelhamento, de todo esse material, por
assim dizer. Simples, e vivendo como todo mundo, desde que esse não lhe faça
mal, ele mantém toda sua riqueza encerrada nos tesouros de sua alma. Mas,
dir-me-ão, é bom viver inteiramente por si só e isolado da sociedade dos
homens; esse gênero de vida denota uma certa virtude de temperança naqueles que
o praticam, e eu concordo; entretanto, não constitui um sinal no qual eu
reconheça a presença segura de um mérito realizado. Não é no interior do porto
que o piloto, mesmo que ao leme, dá provas incontestáveis de seu talento; mas
se ele for capaz de, em pleno mar, resistir à tempestade e salvar seu navio,
ninguém poderá recusar-lhe o título de bom piloto”.
7. “Assim
sendo, não devemos ter uma admiração exagerada, hiperbólica, pelo solitário; se
ele dirige constantemente a atenção sobre si mesmo, sem se deixar seduzir por
distração alguma, se ele não peca com frequência, nem gravemente, é porque
também ele está ao abrigo de tudo o que pode excitar ou despertar as paixões de
sua alma; mas que um homem que vive no meio do mundo, obrigado a suportar a
influência perniciosa dos pecados do povo, que tal homem permaneça firme e
inabalável, governe sua alma na tempestade como na calmaria, eu direi: eis
alguém que merece os aplausos e a admiração do mundo: ele deu provas
suficientes de seu mérito e de sua virtude”.
“Quanto a
mim, você estará enganado por me admirar, se, depois de ter deixado as cortes e
dito adeus ao mundo, eu não tenha deixado o que falar contra mim. Não pecar
quando se dorme, não ser derrubado quando não se luta, não ser ferido quando
não se combate, o que há de maravilhoso nisso? Quem então, eu lhe pergunto, poderá
falar contra mim, e divulgar minhas misérias? Talvez a porta, talvez as paredes
de meu quarto? Mas elas não falam. Seria minha mãe, que conhece minhas ações
melhor do que ninguém? Mas nós não temos nada juntos e em comum, e jamais se
ergueu entre nós a menor sombra de dissensão. E suponhamos que fosse diferente:
mas que mãe seria tão desnaturada, tão inimiga de seu filho a ponto de difamar,
sem razão e sem ser forçada a isso, aquele a quem ela carregou em seu seio, a
quem trouxe ao mundo e o criou?”.
“Não é menos
verdade que, se eu for examinado com seriedade, não serão encontradas muitas
fraquezas; você não o ignora, tão apressado que está em me cumular de elogios
em todas as ocasiões. E não falo assim por falsa modéstia; para convencê-lo
disso, lembre-se de quantas vezes, em nossas frequentes conversas a respeito
disso, eu lhe disse que, se me fosse dado escolher a carreira que eu preferisse
seguir com honra, se no governo da Igreja ou na vida solitária, eu preferiria
sem dúvida a primeira. Eu não cesso de invejar a felicidade daqueles que são
capazes de cumprir como se deve esse santo ministério. E como eu invejo a
felicidade dos ministros da Igreja, é claro que eu não recusaria abraçar esse
estado, se me sentisse capaz de cumprir com seus deveres”.
“Mas, que
fazer? Nada é menos apropriado ao governo da Igreja do que essa inatividade,
essa despreocupação, que outros tomam por uma virtude ascética, mas que eu
considero como um véu sob o qual se dissimula minha incapacidade, sob o qual eu
escondo a maior parte de minhas faltas, feliz de poder assim ocultá-las aos
olhos dos homens. O homem acostumado a desfrutar de um lazer completo e levar
uma vida tranquila, ainda que dotado de uma natureza grande e forte, se
perturba e se embaraça por sua inexperiência, e a falta de exercício lhe rouba
uma grande parte de sua força. Mas se ele ainda por cima tem um espírito
pesado, e sem experiência dos deveres e das lutas do sacerdócio, como eu, mais
vale tomar uma estátua de pedra para transformá-la em sacerdote. Eis porque a
solidão não envia para a armada sacerdotal senão pouquíssimas pessoas que
chegam a ocupar brilhantemente seu posto. A maior parte não chega lá senão para
se mostrar tal como é, ou seja, incapaz, e para experimentar quão difíceis e
desagradáveis são os encargos. Não há com que se espantar; é como um homem que
se especializou num dado tipo de exercícios, e que é de súbito chamado a
participar de um gênero de combate de natureza totalmente diferente – é como se
ele nunca houvesse se exercitado. Acima de tudo, cheio de desdém pela glória,
aquele que entra no estádio das lutas sacerdotais deve ainda ser superior à
cólera, e de uma consumada prudência. Ora, a vida solitária não fornece aos que
se dedicam a ela nenhuma ocasião de exercer essas virtudes. O solitário não tem
ao redor de si todos esses tipos de pessoas que o irritam e lhe dão
oportunidades para exercitar seu domínio sobre o enraivecimento, nem os
bajuladores incensando-o sem parar, que o ensinam a desdenhar dos aplausos populares.
Quanto à prudência, que é tão necessária no governo da Igreja, essa não possui
grande valor para os solitários. Então, o que acontece? Chamados a sustentar
lutas para as quais não foram preparados por nenhum exercício, esses homens se
veem em grande embaraço, ofuscados, impedidos; e, longe de avançar na
perfeição, eles perdem inclusive o que ganharam na solidão”.
8. Basílio me
perguntou: “Deveremos chamar para o governo da Igreja homens que vivem em pleno
mundo, que não se ocupam mais do que com assuntos do século, que estão, por
assim dizer, enrolados em meio a querelas e injúrias, cheios de astúcias
infinitas e hábeis, sobretudo, na arte de viver alegremente?”.
Eu lhe
respondi: “Devagar, meu amigo, por favor. Essas pessoas não devem nem ser
lembradas, quando se trata de buscar sacerdotes para a Igreja de Deus. O homem
que é preciso escolher entre mil, é aquele que, no meio do mundo e do comércio
com os homens, sabe conservar a pureza, a serenidade da alma, a santidade, a
temperança e a sobriedade, qualidades, numa palavra, que distinguem os
solitários; conservá-las, repito, intactas e inabaláveis, ainda mais do que
aqueles que vivem na solidão. Mas um indivíduo, cheio de muitos defeitos – que
ele poderia facilmente ocultar na solidão, impedindo que se traduzissem em atos
–, o que ganharia ele em se mostrar no teatro do mundo? Nada além de se tornar
o riso do público, sem contar outros perigos aos quais se exporia
imprudentemente. É o que aconteceria a mim, se a bondade de Deus não houvesse
desviado o golpe que ameaçava minha cabeça. Um homem assim não poderia jamais
contar com que suas misérias permanecessem ignoradas, tendo sua pessoa em
evidência e exposta à luz, ocupando um cargo público importante; ao contrário,
ele seria logo descoberto e prontamente julgado”.
“O fogo
prova os metais, e as funções sacerdotais provam as almas dos homens; é o que
descobrimos imediatamente se alguém é colérico, pusilânime, vaidoso,
presunçoso, ou não importa o que; nada permanece oculto; todos os defeitos são
postos a nu; e não somente postos a nu, como agravados e tornados
incorrigíveis. As feridas do corpo se tornam mais difíceis de curar quando
mexemos nelas; e o mesmo acontece com as afecções da alma: irritadas pelo
atrito com as contrariedades exteriores, elas se inflamam, se exasperam, e
empurram aos maiores excessos os enfermos atingidos por elas”.
“Se não
estivermos em guarda, elas conduzem ao desejo da glória, à presunção, ao amor
pelas riquezas; elas trazem consigo a preguiça, o relaxamento, a indolência e,
pouco a pouco, as desordens que se lhes seguem e que delas nascem
ordinariamente. Existem inúmeras coisas no mundo que podem dissolver a energia
sólida da alma e interromper sua marcha em direção a Deus. A primeira de todas,
é a conversação com as mulheres. Tendo recebido o encargo de guardar o rebanho,
o pastor não pode prodigar seus cuidados aos homens e negligenciar as mulheres,
cujo sexo demanda uma atenção mais específica, por causa de sua propensão ao
pecado. É preciso assim que a salvação das mulheres produza no ministro a quem
coube o episcopado, senão mais, pelo menos tanta inquietação quanto a dos
homens. Ele deve visitá-las quando adoecem, consolá-las em suas aflições, animar
as indolentes, auxiliar as que necessitam socorro. No cumprimento desses
deveres, o espírito maligno não perderá ocasião para se insinuar no coração que
não estiver cercado de uma vigilância atenta. Pois o olhar da mulher fere e
perturba a alma, e não apenas o da mulher impudica, como também o da virtuosa;
as bajulações das mulheres nos amolecem, suas deferências nos escravizam; o
zelo pela caridade, fonte de todo bem, se torna muitas vezes, entre elas, a
causa de uma infinidade de males, se não puderem ser regradas”.
“Frequentemente
também as solicitações contínuas desgastam a agudeza da inteligência, e dão ao
espírito, tão atento por natureza, a pesandez do chumbo. Algumas vezes a bile
toma o lugar do zelo e, como uma fumaça negra, obscurece a alma com seus
vapores. Quem poderia contar tantas discórdias e injúrias, quantos insultos e
calúnias, da parte de grandes e pequenos, de sábios e insensatos?”.
9. “Sobretudo
esses últimos, que não possuem o correto julgamento, jamais deixam de se
lamentar; e, se tentamos nos justificar, eles não querem ouvir. Um pastor faz
bem em não desdenhar dos propósitos desse tipo de homens, em destruir suas
acusações, usando de bondade e de mansidão, perdoando as críticas injustas ao
invés de mostrar ressentimento e cólera. O próprio São Paulo receava ser
acusado de roubo por seus discípulos, e, por esse motivo, ele se uniu a outras
pessoas para controlar o emprego das somas de dinheiro entregues pelos fiéis à
sua disposição: para evitar, disse ele, que alguém os pudesse repreender a
respeito daquela esmola abundante da qual eram guardiões[9]. Se o
próprio São Paulo tomou tais precauções, que não devemos nós fazer para evitar
as suspeitas maldosas, por mais mentirosas, absurdas e indignas de nossa
reputação que sejam. Certamente não existe pecado do qual estejamos tão
distantes quanto estava São Paulo distante do roubo. Embora fosse ele mais
incapaz dessa má ação do que qualquer pessoa no mundo, nem por isso ele deixou
de prevenir-se das suspeitas do povo, ainda que fossem implausíveis e
insensatas; pois, evidentemente, era preciso ser louco para lançar tal suspeita
sobre uma cabeça tão santa e admirável. E, no entanto, uma suspeita tão
absurda, que não poderia nascer senão do cérebro de um insensato, lhe pareceu
merecer atenção a ponto de levá-lo a suprimir tudo o que poderia dar a ela
pretexto ou ocasião. Ele não pensou estar a coberto dessa imputação
extravagante da pare do vulgo. Ele não disse para si: No espírito de quem
poderia nascer semelhante suspeita a meu respeito, sobre mim que, por meus
milagres e pela santidade de minha vida, atraí todo o respeito e a admiração
universais? Ao contrário, ele se precaveu contra essa suspeita maldosa,
aguardando até arrancá-la pela raiz, ou antes, não lhe deu tempo de germinar.
Por que isso? Ele mesmo apresentou a razão em outra ocasião: ‘Devemos ter o
cuidado de fazer o bem, não apenas diante de Deus, mas também diante dos
homens’[10], disse
ele”.
“Dessa
magnitude, e talvez maior ainda, deve ser nossa atenção, não apenas para
desenraizar e destruir as suspeitas maldosas, quando essas aparecem, mas ainda
para preveni-las por distantes que pareçam estar de nós, para suprimir
antecipadamente os pretextos que as fazem nascer, sem esperar que eles tomem
consistência ao passar de boca em boca. Pois então já não será fácil fazê-las
desaparecer, e será muito difícil, para não dizer impossível: e acrescento que
não se poderá fazê-lo sem prejudicar muitas pessoas. Mas por que pretender
esgotar um tema inesgotável? Enumerar todas as dificuldades do santo ministério
não é tarefa menor do que medir o mar. Ainda que um homem conseguisse – coisa
impossível – libertar sua alma de todas as enfermidades naturais, ainda assim
encontraria infinitas dificuldades para curar as almas dos demais; quão mais
difícil seria isso, se ele próprio estivesse enfermo? Vê você em que abismo de
penas e de preocupações deve ele mergulhar, e quantos tormentos terá que sofrer
para superar seus males particulares, bem como os dos outros?”.
10. Basílio me
perguntou: “Mas não tem você combates a combater, ou preocupações a suportar,
sendo solitário como é, e inteiramente dono de si mesmo?”.
Eu lhe
respondi: “A tudo isso enfrento, mesmo no estado em que estou. Continuo sendo
homem, sempre viajando por esse vale de lágrimas a que chamam de vida, e assim
não cabe perguntar-me se não tenho minha parte dos cuidados e das angústias.
Porém, não é a mesma coisa ter que atravessar um rio, ou ser embarcado num
oceano sem limite. Pois essa é a diferença que vejo entre a vida do sacerdote e
a do simples fiel. Não é que eu, se pudesse ser útil aos outros, não o
desejaria de todo coração; esse, na verdade, seria meu mais caro desejo; mas,
não podendo ajudar meus irmãos, se eu conseguir salvar a mim mesmo e me retirar
das ondas, já poderei me considerar muito feliz”.
Basílio
retrucou: “Você está bem certo de poder se salvar, sem em nada contribuir para
a salvação dos demais?”.
Disse eu:
“Essa observação é excelente; não, não creio que eu possa me salvar sem
trabalhar pela salvação dos meus irmãos. Sei que de nada serviu, ao infeliz de
que fala o Evangelho, ter conservado intacto o talento que lhe havia sido
confiado, mas que ele o perdeu por não tê-lo feito frutificar, fazendo-o render
dois por um[11].
Entretanto, eu espero incorrer numa punição menor, se for condenado por não ter
salvo ninguém, do que se tiver perdido a muitos comigo, depois que a dignidade
sacerdotal só tenha servido para me tornar pior. Tal como eu sou hoje, tenho
confiança de que não sofrerei mais do que o castigo rigorosamente exigido pela
gravidade dos meus pecados, enquanto que, aceitando o sacerdócio, eu me exporei
a um suplício, não digo duas ou três vezes, mas mil vezes mais rigoroso, em
razão dos escândalos provocados nos homens e das ofensas feitas a Deus, que terá
me honrado com seus mais altos favores”.
11. “Dentre as
repreensões que Deus dirigiu aos Israelitas, ele mostrou claramente que os via
como os mais dignos de punição, por terem pecado depois de todos os favores com
que tinham sido cumulados. Eis o que Ele disse: ‘Eu não sou conhecido senão de
vós, dentre todas as nações da terra; é por isso que eu punirei todas as vossas
iniquidades[12]’.
E mais: ‘Fiz profetas de vossos filhos, e dos jovens, homens consagrados a
Deus. E mesmo antes dos profetas, Deus, na ordenação dos sacrifícios, querendo
mostrar que os pecados dos sacerdotes seriam punidos com mais severidade do que
os dos homens do povo, ordenou para a expiação dos pecados dos sacerdotes um
sacrifício igual ao que era oferecido por todos os pecados de todo o povo[13]’.Isso
não significa outra coisa senão que as chagas espirituais de uma alma
sacerdotal são de uma gravidade extraordinária; e, como essa gravidade não está
em sua natureza própria, é preciso que ela provenha do caráter sagrado do
sacerdote pecador. E disso não escaparam nem os filhos dos ministros da
religião, os quais eram submetidos a punições mais severas pelas mesmas faltas,
por causa da dignidade de seus pais, embora não tivessem eles próprios
participação no sacerdócio. Assim, para um mesmo pecado, para a fornicação, por
exemplo, a lei determinava um castigo muito mais severo para as filhas dos
sacerdotes do que contra as filhas dos cidadãos comuns[14]”.
12. “Poderia
Deus nos mostrar de maneira mais notável, que ele exige uma pena mais severa
daquele que governa do que daqueles que são governados? Certamente que Deus,
que pune a filha com mais severidade do que as outras mulheres, não tratará
também como cidadão comum o pai, que causou à sua filha um aumento de
tormentos. Não: seu castigo será ainda mais terrível. E nada mais justo: pois o
prejuízo de seu pecado não recai apenas sobre ele, mas também sobre as almas
fracas que são testemunhas de sua má conduta. É o que Ezequiel nos ensina
quando separa o julgamento dos bodes daquele dos cordeiros[15]”.
“Você ainda
pensa que minhas lamentações são exageradas? Depois de tudo o que eu lhe disse,
ainda me resta abrir-lhe meu coração; você será testemunha dos esforços que fui
obrigado a fazer para não me deixar vencer inteiramente por minhas paixões.
Confesso, porém, que esse trabalho não esteve acima de minhas forças, e que eu
jamais pensei em fugir diante dos inimigos que combati”.
“A vanglória
me toma, nesse mesmo instante em que falo disso; mas eu logo escapo às suas
presas, e, retornado à sabedoria, eu me repreendo por ter me deixado prender, e
repreendo minha alma que esteve subjugada por instantes. Desejos desregrados
assaltam minha alma; mas eles não acendem senão um fogo languidescente e fácil
de se extinguir, porque os olhos do corpo, ao se abrirem, não encontram nenhuma
matéria inflamável que os alimente. Porque, no que diz respeito a maldizer ou a
de dar ouvidos à maledicência, disso eu me preservei por inteiro, por não ter
com quem conversar; poderiam essas paredes falar?”.
“O mesmo não
acontece com a cólera, que eu não posso evitar, embora não tenha ninguém para
me irritar. Mas basta uma lembrança que ressurge e que lembra certos
personagens tão absurdos como suas obras, basta isso para me sufocar o coração,
sem, no entanto, que eu chegue a explodir; logo eu me esforço para conduzir
essa efervescência à sua calma normal, convenço-a a que se acalme, dizendo a
mim mesmo que é demasiado irracional e que isso equivale a ter prazer na
infelicidade, esquecendo-me de meus males para tomar sobre os do próximo um cuidado
inútil; mas, se eu estivesse no mundo, ocupado com mil coisas, eu já não
escutaria os avisos dessa voz íntima, não desfrutaria de seus conselhos que me
instruem e me guiam. Semelhante àqueles a quem a violência de uma torrente ou
de qualquer outra força empurra para um precipício, e que podem prever o fim
terrível ao qual lhes conduzirá sua queda, sem que, entretanto, vejam socorro
em parte alguma, se um dia eu caísse no tumulto das paixões, eu poderia ver
crescer a cada dia a some dos suplícios que me aguardariam; mas, permanecer na
solidão, como o faço agora, e afastar de todos os lados os ataques furiosos das
paixões, nada disso eu poderia fazer com a mesma facilidade de antes. Com
efeito, tenho a alma fraca, estreita, quase sem defesa, não apenas contra as
paixões de que lhe falei, com contra a mais amarga de todas, a inveja; nem as
injúrias, nem as distinções, nada eu tomo com moderação, pois algumas me elevam
enquanto outras me rebaixam, além das medidas. As bestas ferozes, bem nutridas
e vigorosas derrubam com facilidade aqueles que combatem contra elas, sobretudo
quando esses não são fortes nem hábeis; mas enfraqueça-as cortando-lhes o
alimento, e logo seu ardor se extingue, seu vigor diminui, e, ainda que pouco
robusto, um homem poderá combatê-las e vencê-las; a mesma coisa acontece com as
paixões da alma; extenue essas feras pela falta de alimento, e você as
subjugará facilmente ao mando da razão; se, ao contrário, você as alimentar,
dificilmente poderá suportar sua impetuosidade; você as terá tornado tão
terríveis contra si próprio que passará toda sua vida em servidão e terror”.
“E qual é o
alimento desses monstros? A vanglória se sacia com as distinções e os elogios;
o orgulho, com o poder e as altas dignidades; a inveja, com a reputação de outrem;
a avareza, com as liberalidades e as larguezas; a luxúria, com a preguiça e os
contínuos encontros com as mulheres; e por aí vai. Assim que eu me engajo no
mundo, esses animais ferozes se atiram sobre mim, despedaçam meu coração como
uma presa, e eu sou atirado numa situação terrível, e colocado numa guerra
muito mais formidável do que eu. Eu sei que, permanecendo na minha solidão,
ainda tenho que fazer esforços para domá-los; mas conseguirei domá-los, com a
ajuda de Deus, e não lhes restará mais do que a liberdade de urrar”.
“Eis porque
eu me guardo em minha cela, não permitindo a entrada a ninguém, não vivendo nem
me comunicando com ninguém, resolvido a sofrer todas as reprimendas que essa
atitude pode atrair sobre mim; ficarei feliz de fazer cessar essas reprimendas,
mas, sendo isso impossível, tudo o que posso fazer é me afligir e gemer. Existe
maneira de estar a um só tempo convivendo pela sociedade e conservar o retiro
seguro do qual desfruto presentemente? Então, meu amigo, em lugar de me condenar,
chore comigo pela situação crítica em que me encontro”.
Mas vejo que
você ainda não está persuadido. É, pois, o momento de lhe revelar o único
segredo que me resta. O que vou dizer poderá parecer inacreditável a muitos;
seja como for, não enrubescerei por anunciá-lo publicamente, ainda que essa
confissão possa ser tomada como a marca de uma má consciência e como o sinal de
uma alma carregada de numerosos pecados. Deus, que há de me julgar, sabe de
tudo com exatidão – assim, que proveito posso extrair da ignorância dos
homens?”.
“Qual é esse
segredo? Desde o dia em que, informado por você de que nos miravam, eu comecei
a temer ser elevado ao sacerdócio, e muitas vezes senti meu corpo a ponto de
desfalecer por completo, tanto era o terror e o abatimento que dominaram minha
alma! Eu via de um lado a glória da Esposa de Jesus Cristo, sua santidade, sua
beleza espiritual, sua admirável sabedoria e o brilho de suas vestimentas
divinas; de outro, eu via minha miséria, e essa comparação me arrancava
lágrimas por sua infelicidade e pela minha; eu suspirava sem cessar, e, presa
de uma cruel perplexidade, dizia: Quem pôde aconselhar semelhante coisa? Que
grande crime terá cometido a Igreja de Deus? Em que terá ela ofendido tão
gravemente seu Senhor, que a condenou à vergonha de ser entregue ao mais
indigno dos homens? Preocupado com essas reflexões, e não podendo suportar
sequer o pensamento de tão estranha coisa, eu era um homem atingido por uma
súbita paralisia, com a boca aberta, não podendo ver nem ouvir. Eu não saía
desse atordoamento, que passava por intervalos, senão para me afogar outra vez
na tristeza e nas lágrimas; e quando eu estava saciado do pranto, retornava o
terror, agitando, perturbando e derrubando minha alma. Eu sentia os golpes
dessa horrível tempestade, da qual você nada sabia, e você acreditava que eu
estivesse na mais profunda calma! Por isso eu tentei lhe revelar inteiramente
as tempestades de meu coração, e talvez você estivesse disposto mais a me
perdoar do que a me acusar. Mas como revelá-los? Para mostrá-los tais como são,
não havia senão um meio: seria despojar esse coração de todas as suas
envoltórias e colocá-lo sob seus olhos. Como isso não era possível, tentei, no
que estava ao meu alcance, mostrar a você através do véu escuro de uma
comparação, a fumaça dessa fogueira de tristeza que está em mim; com a ajuda
dessa alegoria, você poderá ter uma ideia de minha tristeza, mas só de minha
tristeza”.
“Suponhamos
que se destine a alguém, por esposa, a filha de um monarca, mestre de todas as
terras sob o sol, e que ela seja de uma beleza incomparável, superior a tudo o
que a natureza humana pode produzir de mais perfeito, e ultrapassando de muito,
por seus atrativos, a todas as mulheres do mundo; que, de resto, ela possua uma
alma infinitamente mais perfeita do que a de qualquer homem dos tempos
passados, presentes ou futuros; em uma palavra, que por seus costumes ela
sobrepuje todas as perfeições morais reverenciadas pelos sábios, ao mesmo tempo
em que o brilho de sua figura ofusque toda beleza corporal imaginável; que o
príncipe que deverá esposá-la queime de amor por ela com tamanha paixão que os
amantes mais inflamados nem se lhe possam comparar; que, em tais
circunstâncias, ele venha a saber que a princesa admirável que possui seu coração
deverá passar, por casamento, a um homem sem qualidades, da laia do povo, sem
nascimento e cheio de defeitos, numa palavra, ao último dos homens. Pois bem!
Consegui eu lhe dar uma ideia da minha dor, levando a comparação até esse
extremo? Penso que isso basta para fazê-lo compreender, ao menos, minha
tristeza; pois é apenas essa face de minha desastrosa posição que eu quis lhe
mostrar por essa similitude”.
“Agora, para
que você veja a medida de meu terror e de minha estupefação, vamos pintar um
novo cenário. Imaginemos uma armada composta por infantaria, cavalaria e
marinha; o mar desaparece sob a multitude de navios, as vastas planícies e as
altas montanhas estão igualmente cobertas pelas falanges da infantaria e da
cavalaria; o aço das armas reflete o fogo do sol, cujos raios, incidindo sobre
os capacetes e os escudos, produzem um brilho ofuscante; o barulho das armas e
os relinchos dos cavalos ecoam até o céu; não se vê mar nem terra, mas ferro e
bronze por toda parte. Diante dessa armada estão arrumados para batalha os
inimigos, homens ferozes e ávidos por carnificina; essas massas vão se
entrechocar”.
“Nesse
momento tomamos um jovem que cresceu nos campos, que não conhece nada além das
pelotas e das zarabatanas; armamo-lo dos pés à cabeça, e o fazemos passar em
revista as tropas; mostramos-lhe as diversas companhias com seus respectivos
comandos: arqueiros, fundistas, taxiarcas, generais, oplitas, cavaleiros,
lanceiros; as trirremes com seus trierarcas, os soldados que as acompanham, as
numerosas máquinas que elas carregam; mostramos-lhe ainda todos os planos de
batalha dos inimigos, a esquisitice de suas figuras, a variedade de suas
armaduras; sua multitude infinita, acampada nas terras baixas pantanosas, em
imensos precipícios e por trás de montanhas inacessíveis; mostramos-lhe ainda,
do lado dos inimigos, os cavalos alados e os combatentes que viajam pelos ares
por meios mágicos, e que dispõem de encantamentos tão variados como poderosos.
Enumeramos-lhe a seguir todos os acidentes da guerra: uma chuva de lanças,
nuvens de dardos, um dilúvio de flechas que interceptam os raios do sol, e
transformam a claridade do dia em noite profunda; uma poeira espessa, não menos
incômoda do que as trevas; torrentes de sangue, gemidos dos moribundos, gritos
dos combatentes; montes de mortos, as rodas dos carros banhadas em sangue;
cavalos que tropeçam e caem sobre os cadáveres e sobre seus cavaleiros; sobre a
terra uma pavorosa confusão: sangue, arcos, flechas, patas de cavalos e cabeças
de homens que jazem uns ao lado dos outros; braços, pescoços. Pernas, troncos
semiabertos, miolos grudados nas espadas, um olho na ponta de uma flecha
partida. Acrescentamos a esse cenário os horrores de uma batalha naval, com
navios queimando em meio das águas; outros, afundando com seus defensores; o
rugir das vagas, o tumulto das ondas, o grito dos soldados, a espuma misturada
com sangue que entra nos barcos; aqui, cadáveres estendidos sobre o convés; lá,
corpos submersos ou que flutuam sobre as águas, ou que o mar rejeita sobre a
praia; a marcha dos navios é detida pela enorme massa de corpos mortos. Ao
espetáculo de tantas cenas trágicas, acrescentamos o relato dos males que se
seguem à garra, o cativeiro e a escravidão piores do que a morte. E, depois de
tudo isso, dizemos ao jovem que monte a cavalo e que assuma imediatamente o
comando o comando da armada; não pensa você que ele estará apavorado pelo
simples relato que lhe fizemos, e que sentirá seu coração desfalecer no
primeiro momento?”.
13. “Não estou
exagerando. Os corpos nos quais estamos encerrados como numa prisão, nos
impedem de perceber as coisas espirituais; mas se a armada tenebrosa dos
demônios, e os combates que ele trava contra nós, pudessem ser submetidos à
nossa vista, seríamos testemunhas de um espetáculo ainda mais terrível do que
aquele que eu lhe descrevi. Você não veria ferro, nem bronze, nem cavalos,
carros, rodas, fogos, flechas, nem nada visível, mas máquinas de guerra muito
mais mortíferas. Esses inimigos não precisam de couraças, nem de escudos,
espadas ou lanças; mas seu aspecto é suficientemente formidável sem essas
coisas, para gelar de terror uma alma, a menos que ela seja dotada de grande
coragem, e também que seja sustentada por uma graça especial da parte de Deus”.
Se
pudéssemos nos despojar desse corpo material, ou se, conservando-o, pudéssemos
observar claramente e com sangue frio a armada do demônio, e ver com nossos
olhos a guerra que ele trava contra nós, não seriam as torrentes de sangue, nem
os corpos mortos oferecidos aos nossos olhos, mas os grandes massacres de
almas, tão grande é o número de feridos a cada dia sobre esse campo de batalha.
Ora, essas feridas causam uma morte bem mais lamentável do que as outras; pois,
entre a morte da alma e a do corpo existe a mesma diferença que há entre essas duas
substâncias. Quando a alma cai mortalmente ferida, ela não jaz como o corpo,
privada de sentimentos, mas, ao contrário, seus tormentos começam ainda nessa
vida pelos remorsos da consciência; e, depois da morte, no dia do Juízo, ela é
entregue a um suplício eterno”.
“Se uma alma
não sente as feridas causadas pelo demônio, essa própria insensibilidade agrava
sua infelicidade. Quem não sente dor na primeira ferida, receberá facilmente a
segunda, depois a terceira. Nosso cruel adversário não para de bater, até o
último suspiro, numa alma indolente que não se apercebe disso desde os primeiros
ataques. E se você considerar agora o modo desses ataques, verá que sua tática
é muito mais impetuosa e esperta. Não há inimigo mais fértil em ardis, em
estratagemas, do que esse espírito impuro. É acima de tudo nisso que reside sua
força. A raiva mais implacável que um mortal pode nutrir contra seus maiores
inimigos não se compara ao encarniçamento furioso que o demônio coloca em
perseguir a natureza humana”.
“O ardor que
o impulsiona, quando ele combate, é tal, que seria ridículo compará-lo com os
homens sob esse aspecto. Escolha os animais mais ferozes e mais cruéis, e sua
ferocidade parecerá doce e aprazível em comparação com a dele, tamanho é o
furor que ele respira quando se atira sobre nossas almas”.
“Os combates
entre os homens não são longos, e mesmo essa curta duração é muitas vezes
interrompida por tréguas e armistícios. A noite que cai, a fadiga em matar, a
necessidade de comer, e muitas outras coisas permitem naturalmente ao soldado
tomar algum repouso; ele pode depor os arreios, respirar alguns instantes,
refrescar-se comendo e bebendo, numa palavra, ele pode reparar suas forças por
uma série de cuidados pessoais. Mas quando se trata do demônio, é impossível
deixar as armas um só momento, nem desfrutar de um instante de sono, se
quisermos evitar sermos feridos”.
“Das duas
uma: ou se morre desarmado, ou se permanece todo o tempo em armas, sempre
alerta. Nosso inimigo se mantém constantemente à frente de seus batalhões,
espionando sem cessar nossos descuidos, mais vigilante em nos pôr a perder do
que nós em nos salvarmos. A natureza invisível do inimigo, seus ataques
imprevistos, causas fecundas de infelicidades para aqueles que não estão
constantemente em guarda, tornam essa guerra mais difícil do que todas”.
“E é numa
guerra assim que você queria que eu me colocasse à cabeça dos soldados de Jesus
Cristo? Pois, quando aquele que deve dispor os demais em ordem de batalha
acontece de ser o mais incapaz e inepto de todos, ele trai com sua incapacidade
aquele a quem deveria salvar, e podemos dizer que ele seria assim o general de
Satanás, não o de Jesus Cristo”.
“Mas, por
que você suspira assim? Por que chora? Minha situação não é daquelas sobre as
quais devemos derramar lágrimas, antes ela merece excitar a alegria e a
felicidade”.
Basílio
então me disse: “Não é a sua situação que me aflige, mas a minha. Eu não havia
compreendido ainda toda a profundidade dos males em que você me colocou. Eu vim a você apenas para saber de você como
eu deveria responder aos que o acusam; e você se despede de mim depois de me
desembaraçar de uma pena para me lançar em outra. O que me inquieta já não é a
sua justificação, mas saber como eu poderei responder a Deus por minha própria
conta e pelas ações de minha vida. Entretanto, eu lhe suplico, eu o conjuro,
por mim, por meu interesse, se ainda este lhe toca, por nosso Senhor Jesus
Cristo, pela caridade cristã, pelas entranhas e a compaixão de um amigo por seu
amigo, não se esqueça que foi sobretudo você que me lançou nesse grande perigo,
e estende-me uma mão segura, sustenta-me com todo o seu poder, com seus
discursos e com suas ações; não me abandone um só instante jamais, mas a partir
de hoje permaneceremos mais unidos e inseparáveis do que antes”.
Eu lhe
respondi sorrindo: “E de que auxílio, de que utilidade posso eu ser para você
nessa imensidão de cuidados e deveres? Mas, tenha coragem, caro amigo, porque,
se isso lhe agrada, quando as solicitações inseparáveis de seu cargo lhe
permitirem respirar, eu estarei ao seu lado, eu o confortarei e farei tudo o
que depender de mim”.
Diante
dessas palavras, suas lágrimas redobraram, e ele se levantou; eu o abracei com
ternura, beijei sua fronte, e o conduzi exortando-o a suportar corajosamente o
que lhe acontecera. Minha confiança em nosso Senhor Jesus Cristo que o chamara
e o colocara na condução de Seu rebanho, disse-lhe eu, me fizeram esperar que
seu santo ministério lhe daria muitos créditos perante Deus, para que, no meu
derradeiro dia, na hora do perigo supremo, eu pudesse, seguindo-o e sob sua
proteção, penetrar nos tabernáculos eternos.
***
[1] Hebreus 13: 17.
[2] Cf. Mateus 18: 6.
[3] 1 Coríntios 8: 12.
[4] Cf. Ezequiel 33: 3.
[5] Cf. Ezequiel 33: 6.
[6] Gálatas 2: 20.
[7] Cf. Mateus 22: 13.
[8] Cf. 1 Timóteo 3: 2.
[9] 2 Coríntios 8: 20.
[10] Romanos 12: 17.
[11] Cf. Mateus 25: 24.
[12] Amós 3: 2.
[13] Levítico 4: 3, 13.
[14] Cf. Levítico 21: 9; Deuteronômio 22: 29.
[15] Cf. Ezequiel 34: 17.
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