1. Depois de um
instante de reflexão, Basílio respondeu ao discurso que acabara de escutar: “Se
você tivesse desejado o sacerdócio e feito qualquer gestão para obtê-lo, seus
temores seriam fundamentados. Ao buscar um posto declaramos ser capazes de
preenche-lo, e não podemos atribuir à ignorância as faltas cometidas em sua
administração. Desde logo ficamos privados dessa defesa pela pressa ávida com
que nos atiramos sobre um emprego para obtê-lo. Chegamos a ele voluntariamente
e com plena consciência, e não podemos mais dizer que cometemos tal ou qual
falta malgrado nosso empenho, contra minha vontade que perdi tal ou qual alma.
O juiz a quem iremos prestar contas responderá: Qual! Você conhecia sua
incapacidade, sabia que sua inteligência não estava à altura dessa função, nem
era suficiente para administrá-la sem cometer falhas, e você foi audacioso o
bastante para correr a receber o encargo, um encargo tão desproporcional às
suas forças? Quem o forçou? Que violência foi exercida contra você, para
constrange-lo a sofrer esse jugo, apesar de sua resistência e de sua fuga? Mas
você jamais escutará semelhantes desaprovações: sua consciência está
perfeitamente tranquila a esse respeito; todo mundo sabe muito bem que a
ambição pelo cargo não entrou na sua eleição, e que ela se deu apenas pela
justiça dos eleitores: sendo assim, a mesma coisa que tira de outros quaisquer
desculpas, no seu caso é precisamente o que o absolve”.
Eu acolhi
suas palavras sacudindo levemente a cabeça e sorrindo; admirei a candura
inocente de meu amigo. Então lhe disse: “Bem que eu gostaria que as coisas
fossem como você diz, ó melhor dos meus amigos! Não por não ter me sujeitado a
aceitar aquilo que recusei; pois, mesmo supondo que eu não tivesse que temer o
castigo que ameaça o pastor negligente e incapaz do rebanho de Cristo, sempre
eu traria em mim, no fundo de minha consciência, o mais insuportável dos
castigos, o remorso de me achar indigno de tão augustas funções, ao próprio
juízo daquele que as confiou a mim. Por que gostaria eu que sua opinião não
fosse falsa? No interesse de tantos infelizes (essa é a qualificação que lhes
convém, mesmo que você repita mil vezes que eles foram violentados e que
pecaram sem o saber), tantos infelizes, digo eu, que ocupam postos cujas
obrigações não podem cumprir, no interesse deles eu queria que sua opinião
fosse verdadeira, a fim de que esses homens evitassem o fogo eterno, as trevas
exteriores, o verme imortal e as cruéis separações que existirão entre os
eleitos e os condenados”.
“Mas o que
quer você que eu lhe diga? É um erro, incontestavelmente. Para prová-lo, posso
começar me apoiando num argumento extraído do poder real, que aos olhos de Deus
é bem menor do que a dignidade sacerdotal. O filho de Cis, Saul, não deveu sua
coroa às intrigas. Ele tinha ido à procura de suas jumentas, quando encontrou o
Profeta, a quem interrogou para saber aonde elas tinham ido; e foi Samuel quem
lhe falou da realeza. Ainda que desse crédito às palavras do Profeta, Saul não
demonstrou nenhuma pressa; ao contrário, ele se esquivou, e recusou: ‘Quem sou
eu, disse ele, e qual é a casa de meu pai?[1]’.
Tornando-se rei, Saul não fez bom uso do poder que lhe havia sido imposto; a
resistência que mostrara, as palavras que mencionei, defenderam-no da cólera do
Senhor, que o havia feito rei? Ele poderia responder às reprimendas que lhe fez
o Profeta: ‘Terei eu corrido atrás da realeza? Fui eu que me coloquei no trono?
Eu desejava viver a vida de um simples cidadão, vida de paz e de lazer, e você
me obrigou a aceitar essa dignidade; se você me tivesse deixado na obscuridade,
eu teria facilmente evitado essa pedra de tropeço; homem do povo, ignorado em
suas fileiras, certamente eu não teria sido enviado a essa expedição; Deus não
teria me ordenado ir contra os Amalecitas, e, se ele não me tivesse ordenado,
eu não teria cometido a falha de que me acusam!’”.
“Mas tais
escusas são vãs; e não apenas vãs, como perigosas: pois elas excitam
primeiramente o fogo da cólera divina. Aquele que foi elevado a uma dignidade
superior ao seu mérito, longe de alegar a magnitude de seu cargo para atenuar
suas faltas, deve fazer com que sirvam para seu avanço no bem as atenções
benevolentes da divina Providência a seu respeito. Pretender que a altura do
posto ao qual fomos elevados nos dá o direito de falhar equivale a querer fazer
da bondade de Deus a responsável por nossas faltas, como costumam fazer os
ímpios e os preguiçosos que, por assim dizer, deixam suas vidas correr ao azar;
sacrílega demência na qual devemos evitar cairmos, trabalhando de toda maneira
para a obra de Deus, e conservando nossa língua e nosso coração puros de toda
blasfêmia.”
“Depois
desse exemplo emprestado à realeza, passo a outro mais apropriado ao nosso
tema. O grande sacerdote Eli tampouco ambicionara o soberano sacrifício. De que
lhe serviria, uma vez que havia pecado? Que digo eu – ambicionado? Ele sequer
foi livre para recusá-lo, a lei o constrangeu a aceitar, porque ele era da
tribo de Levi, e somente ele possuía o direito de nascença de ocupar essa
dignidade hereditária de sua raça. Isso não o impediu de pagar pelas desordens
de seus filhos com uma expiação terrível”.
“Antes dele,
Aarão, o primeiro grande sacerdote dos Judeus, tantas vezes objeto das
conversas familiares que Deus se dignava ter com Moisés, se tornou culpado por
não ter resistido com força suficiente ao povo furioso. Poderia ele fazê-lo
sozinho? Não lhe teria acontecido menos, se seu irmão não tivesse conseguido
diminuir a cólera de Deus com suas preces. E, como falei de Moisés, não faria
melhor do que tirar de sua vida um exemplo em favor da verdade que sustento.
Longe de demonstrar pressa para se colocar à frente do povo hebreu, Moisés,
esse santo personagem, chegou a recusar obedecer a Deus, que lhe ordenava
adotar essa conduta, a ponto de provocar Sua cólera. Mais tarde, mesmo depois
de ter se tornado chefe do povo de Deus, ele voluntariamente se ofereceu à
morte para se ver desembaraçado de sua carga: ‘Deixa-me morrer, disse ele a
Deus, se é para me tratar assim![2]’. Mais
tarde, quando ele pecou por ocasião das águas da rocha[3], a
perseverante recusa que fizera a respeito do soberano poder, serviu-lhe ela
para obter Sua graça? Não foi esse o único motivo pelo qual ele não pode
desfrutar da entrada na terra prometida? Todo mundo sabe que essa exclusão foi
a pena pelo pecado de que falamos; não precisou de mais, para que esse homem de
tantos milagres fosse privado de uma recompensa concedida a homens que estavam
abaixo dele. Depois de uma infinidade de fadigas e trabalhos, depois de haver
errado por tanto tempo no deserto, esse grande homem, marcado por tantos
combates e vitórias, morreu sem poder pôr os pés na terra pela qual enfrentara
tantos perigos. E aquele que escapara à fúria do mar não teve a felicidade de
repousar no porto”.
“Assim, como
você vê, quer se obtenham as dignidades pela disputa, quer pelos cuidados de
outrem, não resta desculpa alguma para as faltas daqueles que se conduzem mal.
Com efeito, se homens que tantas vezes as recusaram, resistindo ao chamado do
próprio Deus, foram tão severamente punidos, se nada pôde isentar do castigo
nem um Aarão, nem um Eli, nem mesmo esse admirável e santo profeta, Moisés, o
mais manso dos homens que existiram sobre a terra, a quem Deus falava com a
familiaridade de um amigo: como pretende você que a nós baste, para nos
justificarmos, nós que estamos tão longe de suas virtudes, alegar que nada
fizemos pela nossa elevação? Ainda mais quando a maior parte das eleições de
hoje se faz, não pela graça e a vocação de Deus, mas pelas intrigas dos
homens”.
“Tendo Deus
escolhido Judas, assinalou a ele um lugar no colégio apostólico, conferindo-lhe
a mesma dignidade dos demais apóstolos, e inclusive concedendo a ele um sinal
de confiança especial, entregando-lhe o cuidado com o dinheiro[4]. Pois bem!
Depois que ele abusou dessa dupla honraria, traindo Aquele cuja divindade
deveria proclamar, dissipando indignamente os fundos depositados em suas mãos
para usos mais nobres, evitou Judas a punição que ele tanto merecia? Ao
contrário, seu castigo foi mais rigoroso do que se Deus o tivesse favorecido
menos. Pois não nos é permitido abusar dos dons de Deus para ofendê-lo; mas
devemos valorizá-los, para agradá-lo”.
“Aquele que
pretende evitar a pena que lhe é devida, por ter sido colocado num posto elevado,
raciocina mais ou menos como o teriam feito os Judeus infiéis, de quem Jesus
Cristo disse: ‘Se eu não tivesse vindo e não tivesse falado, eles não seriam
considerados culpados; e se eu não tivesse operado milagres entre eles, que
ninguém fez antes, eles não teriam pecado[5]’. A
essas palavras do Salvador, do Benfeitor do gênero humano, quem os impediria de
responder: por que veio você? Por que falou você? Por que fez milagres? Foi
para ter oportunidade para nos castigar mais severamente?”.
“Mas essa
linguagem teria sido a do furor e da perdição. O Médico celeste não veio para
fazê-los morrer, mas para curá-los; ele não podia abandoná-los ao seu mal, mas
desejava libertá-los inteiramente dele; foram vocês que se privaram
voluntariamente dos seus cuidados; assim, sejam vocês punidos com maior
severidade. Quando se submeteram aos Seus mandamentos vocês se curaram de suas
enfermidades antigas; mas ao fugir, quando Ele se apresentou, vocês se tornaram
impotentes para recuperar a saúde; duplamente culpados por sua teimosia,
primeiro por prejudicarem a si próprios, depois por desdenhar dos cuidados do
médico. Depois de tê-los coberto de benesses Deus não os tratará da mesma
maneira como se não tivessem recebido Dele favor algum; Ele os tratará com
muito mais rigor. Se os benefícios não os tornarem melhores, eles os tornarão
culpados, e passíveis de um castigo mais severo. Assim, o modo de justificação
que você me indicou resulta ser sem valor; não apenas não salvaria, como
exporia a uma perda mais completa aqueles que lançassem mão dele. É preciso que
busquemos um asilo mais seguro”.
Basílio
respondeu-me: “Onde poderemos encontrá-lo? Já não sei onde estou, tanto temor
me inspira o que você acabou de falar”.
Eu disse:
“Pela graça, meu amigo, eu lhe conjuro, não se desencoraje. Nós temos esse
asilo; para os fracos, como eu, ele consiste em não se arriscar; para os
fortes, como você, a colocar a esperança da salvação no cuidado de nada fazer,
com a graça de Deus, que seja indigno de seu cargo, nem Daquele que lho confiou.
Certamente os grandes suplícios não têm nada que seja severo demais para
aqueles que, depois de obter, à força de disputas, as dignidades do santuário,
nele se comportam com indolência, ou com escândalo, ou com incapacidade; mas
daí não se segue que não haja esperança de perdão para os que nada disputaram;
não, quanto a esses, nada terão que dizer para se escusar. Mesmo exigidos,
pressionados por milhares de vozes e votos, eles nada levarão em conta; o que é
necessário, acima de tudo, é examinar a si mesmo, jamais ceder às obsessões
diante desse olhar que perscruta até o fundo da alma. Ninguém se põe a
construir uma casa, se não for arquiteto; ou a curar as moléstias, se não for
médico. Por numerosos que sejam os que querem obrigá-lo, é preciso recusar e
não enrubescer por confessar ignorância; e quando se trata de tomar como
encargo um enorme número de almas, não será necessário nos interrogarmos para
saber se somos capazes? E, não obstante a mais completa incapacidade, há quem
aceite o santo ministério por complacência com fulano, ou porque cicrano o
exige, ou por medo de ofender beltrano! Não equivale isso a correr junto com
eles para uma perda certa? Ao invés de nos salvar-nos sozinhos, danamo-nos, a
nós e aos outros. De que lado esperar a salvação? Como obter o perdão? Quem
serão nossos intercessores? Talvez esses temerários que usaram de violência e
que arrastaram o infortúnio a um perigoso extremo? Mas quem os poderá salvar,
quando eles mesmos precisarem do auxílios de outros, se quiserem evitar o fogo
do inferno?”.
2. Quando falo
assim não é com a intenção de assustar, mas de mostrar a verdade nua. Escute o
que disse o apóstolo São Paulo a seu discípulo Timóteo, seu verdadeiro e caro
filho: ‘Não se apresse a impor as mãos sobre ninguém, para não participar dos
pecados de outrem[6]’.
Veja, eu já não digo de que vergonha, mas de que castigo eu salvei, na medida
em que pude, aqueles que desejavam minha promoção? Como não bastaria ao eleito
dizer que não solicitou ser elevado, eu não fugi, porque não imaginei que
pensassem em mim; da mesma forma, seria uma escusa vã para o eleitor dizer que
não conhecia aquele a quem iria conceder seu voto. Essa pretensa justificação
não faz mais do que agravar o erro. Qual! Não se adquire um escravo sem antes
consultar os médicos, sem pedir garantias, sem tomar informações dos seus
vizinhos; não contentes com isso, ainda se exige um tempo para testá-lo; mas
quando se trata de escolher o sacerdote de Jesus Cristo, sem tomar tantos
cuidados, toma-se o primeiro que aparece, desde que essa escolha seja do gosto
desse ou daquele eleitor, instrumento dócil do favor ou do desfavor de um
terceiro! Mas isso é absurdo. Sendo assim, quem implorará por nós a clemência
divina, quando os mesmos que deveriam ser nossos defensores necessitam quem os
defenda?”.
“É dever do
eleitor dedicar-se a um exame aprofundado, e também é dever do candidato; pois
ainda que os que o elegem devam carregar junto com ele a pena pelos seus
pecados, isso não significará impunidade para ele. Ele deverá mesmo receber a
maior parte do castigo, a menos que os eleitores não tenham agido por um motivo
puramente humano, e contra todas as luzes e as inspirações de suas
consciências. Se eles estiverem conscientes do crime que constitui terem
introduzido no santuário, por motivos quaisquer, uma pessoa notoriamente
indigna aos seus olhos, o mesmo castigo estará reservado a todos, e talvez
maior àqueles que concederam as ordens. Que responsabilidade recairá sobre a
cabeça do temerário que concede ao inimigo de Cristo o poder de devastar Sua
Igreja! Pois, se o eleitor não é culpado nesse ponto, se ele diz ter sido
enganado pela opinião pública, isso não bastará para absolve-lo inteiramente,
mas ele será menos punido do que o eleito. Por que? Porque os eleitores podem
ser enganados pela opinião pública ao dar seus votos. Mas ao eleito não será
admitido dizer que não conhecia a si próprio, do mesmo modo como não era
conhecido pelos demais”.
“Assim como
ele deverá ser punido mais severamente do que os que o elegeram, ele deve
também examinar a si mesmo e se testar com mais cuidado do que todos os demais.
E, se as pessoas que não o conhecem bem quiserem constrange-lo a aceitar, ele
deve procurá-los, declarar a eles seus defeitos, tirá-los do erro e se recusar
absolutamente a receber sobre suas espáduas um fardo que não será capaz de
suportar. Pois quando se trata da arte militar, do comércio, da agricultura ou
de qualquer outra profissão da vida civil – por que jamais vemos um agricultor
se meter a empreender uma viagem por mar, ou um soldado abrir uma empresa, ou
um piloto conduzir uma expedição militar, ainda que se tente constrange-los sob
pena de morte? É porque eles preveem perigo ao qual que sua incapacidade os
exporia. Para interesses tão mínimos, quanta prudência! Nenhuma violência os
faria ceder. Mas quando se trata do suplício eterno que ameaça os dispensadores
infiéis dos dons sublimes do sacerdócio, já não se tem senão indiferença em
face de tão grande perigo, e a ele se expõem as pessoas com o coração alegre,
baseando-se no pretexto de que não houve constrangimento. O soberano juiz não
admitirá semelhante escusa. É nosso dever dedicar mais precauções e cuidados
aos interesses do espírito do que àqueles da carne. Ora, isso é exatamente o
contrário do que fazemos. Você deseja construir um edifício e imagina que será
um arquiteto hábil alguém que não entende nada de arquitetura; você o chama,
ele vem e começa a trabalhar; mas assim que ele coloca a mão nos materiais
preparados para a construção, ele estraga tudo: as madeiras, as pedras; em
resumo, ele constrói tão mal o edifício, que ele não pode deixar de ruir em
pouco tempo; bastará em sua defesa ele dizer que foi constrangido a fazê-lo,
que ele não se apresentou de sua própria vontade? Absolutamente, responderão a
razão e a justiça. Ele deveria, apesar de todas as solicitações, declinar da
empresa. Mas, como! Um homem que tenha estragado as madeiras e as pedras não
encontrará uma desculpa válida para escapar ao castigo; e aquele que perde as
almas, que coloca tanta negligência em edificá-las, a esse bastará, para evitar
o castigo, dizer que foi constrangido? Que não se fie nisso! Estará
grosseiramente enganado.
“Ainda não é
hora de demonstrar que ninguém pode violentar alguém que está determinado a
recusar. Concordo, por um momento, que alguém tenha sido realmente
constrangido; que com ele foram usadas tantas astúcias, que ele foi obrigado a
se submeter: você pensa que por causa disso ele evitará a punição? Desiluda-se,
e não finjamos ignorar aquilo que até as crianças sabem. No dia em que todas as
contas forem prestadas, essa pretenda ignorância não servirá para nada. Você
não fez nenhum esforço para ser promovido ao santo ministério, por conhecer sua
própria fraqueza: muito bem! Seria então necessário perseverar nessas sábias
disposições e não aceitá-lo, apesar de todas as solicitações. Qual! Você não
tinha nem talento, nem virtude, tanto que ninguém pensava em você, mas assim
que alguém disse: “suba”, você se tornou subitamente um outro homem! Isso não
passa de uma gaiatice, até mesmo de loucura, para a qual nenhum suplício será
severo demais. Não disse nosso Senhor: ‘quem deseja construir uma torre não
deve iniciar as fundações sem antes haver calculado suas forças, se não quiser
se tornar motivo de riso dos demais[7]’? E
nesse caso, todo o risco que se corre é o de suportar algumas zombarias; aqui,
trata-se de uma punição bem diferente, do fogo eterno, do verme que não morre,
do ranger de dentes, das trevas exteriores, da separação dos bons, de um lugar
no inferno entre os hipócritas”.
“Eis o que
não querem ver aqueles que me acusam. De outro modo, eles não me apontariam
como crime o fato de não ter corrido apressadamente para minha própria perda.
Não se trata aqui de cultivar o trigo ou a cevada, de apascentar bois ou
ovelhas, nem de cuidar de alguma mercadoria semelhante; trata-se do próprio
corpo de Cristo. Pois, segundo São Paulo, a Igreja é o próprio corpo de Jesus
Cristo. Convém assim que aquele a quem esse corpo foi confiado, trabalhe para
mantê-lo em perfeita saúde e numa beleza irrepreensível, como lhe convém; que,
por meio de uma supervisão ativa, ele o preserve das manchas, das rugas, em
suma, de todo de defeito que possa alterar sua forma e brilho; não deve ele, de
fato, na medida em que o permita a natureza humana, mostrá-lo digno do divino
chefe, do chefe imortal e bem-aventurado que o domina? Se os que desejam estar
prontos para os combates dos atletas precisam de médicos, de instrutores, de um
regime minuciosamente observado, de exercícios contínuos e de mil outros
cuidados, como aqueles que são escolhidos para governar o corpo de Jesus
Cristo, cujo exercício não é corporal, mas espiritual, consistindo em combater
os poderes invisíveis, poderão conservar-lhe a saúde e o vigor, se não
possuírem todos os métodos necessários para tratá-lo de suas enfermidades, e se
não estiverem dotados de uma virtude sobre-humana?”.
3. “Não sabe
você que o corpo místico está sujeito a mais enfermidades e acidentes do que
nosso corpo material, que ele se altera mais depressa e se cura com mais
dificuldade? Ora, aqueles que tratam dos nossos corpos inventaram uma grande
variedade de remédios, toda espécie de instrumentos e aparelhos, bem como
alimentos apropriados a cada espécie de doenças: algumas vezes basta uma
simples mudança de ares, ou o sono adequado, bastam para curar a doença e tirar
o médico do embaraço. O tratamento das doenças espirituais não tem os mesmos
recursos. Além de um bom exemplo, o ministério sacerdotal não conhece outro
método para curar, senão a predicação. Somente a palavra lhe serve de
instrumento, de alimento e de ar salubre. A palavra é o remédio que ele
administra, a palavra é o fogo de que se serve para cauterizar, a palavra é o
ferro com o qual ele corta: ele não tem outras coisas à sua disposição; se a
palavra for impotente, o sacerdote chegou ao fim dos seus recursos. Pela
palavra levantamos a alma abatida, devolvemos ao seu estado natural aquela que
está inchada, afastamos as superficialidades, preenchemos as faltas; em resumo,
é por meio dela que fazemos todas as operações que podem ser úteis à saúde da
alma”.
“Nos que se
refere ao bom regramento da vida, o exemplo dos outros pode estimular nossa
emulação e nos levar a imitá-los; mas quando se trata de curar uma alma imbuída
de uma má doutrina, o emprego da palavra é indispensável, não apenas para
confirmar aqueles que pensam como nós, como para combater nossos adversários.
Se estivéssemos armados com a espada do espírito e o escudo da fé até o ponto
de fazermos milagres e fecharmos a boca dos incrédulos à custa de prodígios, poderíamos
passar sem o auxílio da eloquência; mas eu me engano, pois ela será sempre útil
e necessária. O apóstolo Paulo fazia uso dela, embora o brilho de seus milagres
ofuscasse todos os olhares. Outro membro desse mesmo colégio dos apóstolos nos
exorta a não negligenciar o poder da palavra: ‘Estejais prontos, disse ele, a
responder a quem quer que vos peça contas da esperança que há em vós[8]’. Santo
Estevão e os demais diáconos não foram colocados a serviço das viúvas, senão
para deixar aos apóstolos tempo para se dedicar ao ministério da palavra.
Todavia, o dom da palavra nos seria menos indispensável se tivéssemos o dom dos
milagres. Mas como não restou entre nós nenhum vestígio desse último poder, e
como numerosos inimigos não cessam de nos ameaçar de todos os lados, é preciso
necessariamente que estejamos armados com a espada da palavra, tanto para
repelir seus ataques, como para feri-los por nossa vez”.
4. “É por isso
que devemos cuidar para que a palavra de Jesus Cristo habite em nós com
abundância[9]; porque
devemos nos manter prontos para todas as sortes de combates; estamos diante de
inimigos diversos, numerosos, que não se servem das mesmas armas nem seguem o
mesmo plano de ataque. É preciso assim que aquele que deseja enfrentá-los
conheça seus diferentes modos de combate, que saiba manejar igualmente o arco e
a funda, que seja ao mesmo tempo infante e cavaleiro, soldado e capitão, pronto
para os combates no mar e para os ataques aos postos terrestres. Nos combates
normais, basta, para sustentar o choque com os inimigos, que cada um se
mantenha em seu posto; naqueles aos quais nos referimos, é preciso conhecer a
fundo cada uma das peculiaridades da arte do ataque e da defesa. Se houver um
único local mal guardado, o inimigo saberá descobri-lo e introduzir no capril
seus demônios devastadores para roubar as ovelhas; mas ele não tentará isso, se
perceber que terá que enfrentar um pastor vigilante, que está a par de suas
manobras artificiosas”.
“É preciso
que estejamos munidos de todos os lados. Uma cidade cercada inteiramente por
boas muralhas, ri dos esforços dos assaltantes e vive em segurança; mas basta
que uma brecha seja aberta na muralha, da largura de uma porta, e todo o
restante do cercamento já de nada serve, ainda que esteja em bom estado. O mesmo
acontece com a cidade de Deus. Enquanto a solicitude e a prudência do pastor
lhe servem de muralha e cercamento, as tentativas do inimigo se voltam contra
ele, e ninguém está em perigo na cidade; mas, por menor que seja feita uma
abertura ali, a queda de uma só parte arrasta consigo rapidamente a ruína de
tudo”.
“Com efeito,
de que serviria derrotar os Gentios, se os Judeus saqueassem o lugar? Ou
triunfar sobre Gentios e Judeus, se os Maniqueus o entregassem à pilhagem? Qual
o ganho em ter vencido os Maniqueus, se os fatalistas viessem degolar carneiros
em plena Igreja? Mas de que serve apresentar aqui um catálogo completo das
heresias inventadas pelo Diabo, das quais basta uma, se o pastor não souber
repelir a todas, para lançar o rebanho inteiro na goela do lobo? Na guerra, é
preciso estar presente no campo de batalha para vencer ou sucumbir; aqui,
acontece com frequência que um combate entre dois lados acaba por dar a vitória
a um terceiro que não havia aparecido no começo da ação, e que, por ser estranho
à disputa, permanecera calmamente sentado em sua tenda. Ou bem, por ter
negligenciado em se exercitar previamente, nos ferimos com nossas próprias
armas, tornando-nos o riso de amigos e inimigos. Vou esclarecer meu pensamento
por meio de um exemplo: os seguidores da loucura de Valentim e Marcion, além de
outros doentes cuja moléstia é da mesma espécie, separa do cânone das divinas
Escrituras a lei dada a Moisés pelo Senhor; por outro lado, os Judeus têm tão
grande respeito por essa lei, que hoje, malgrado sua ab-rogação, eles ainda
sustentam que se deve guardar todos os seus preceitos, ainda que contra os
mandamentos do próprio Senhor; mas a Igreja de Deus, evitando ambos os
excessos, tomou o caminho do meio: a Igreja não pensa que se deva carregar o
jugo dessa lei, mas não tolera que a maldiga. Ela ainda a elogia, ainda que
tenha sido suprimida, porque se trata de uma lei que foi útil durante o tempo
em que esteve em vigor”.
“Para
combater inimigos tão opostos entre si, é preciso manter um temperamento justo;
pois, se ao querer ensinar aos Judeus que não é mais tempo de praticar as
cerimônias dessa antiga lei, começamos a criticá-la sem reservas, daremos
motivos aos heréticos que a rejeitam por completo; mas, se fecharmos a boca
desses, como se ainda fosse preciso observá-la nos tempos atuais, abrimos o
caminho para as declamações dos Judeus. Excessos contrários foram postos fora
da verdadeira lei, tanto os maníacos sectários de Sabélio, como os Ários
furiosos. Uns e outros utilizam o nome de cristãos; mas quando examinamos o
fundo de suas doutrinas temos a convicção de que, ponto por ponto, os primeiros
não valem mais do que os Judeus, e que os segundos se aproximam da heresia de
Paulo de Samosate; e que, aliás, ambos se encontram igualmente longe da verdade”.
“Corremos
grande perigo nos encontros com esses hereges, e caminhamos por uma via
apertada, escarpada de ambos os lados com precipícios. Devemos temer que,
pretendendo atingir um desses adversários, descobrimos nosso flanco ao outro.
Com efeito, se dizemos que a divindade é una, logo Sabélio explora a proposição
em proveito de sua louca impiedade; por outro lado, se a distinguimos e dizemos
que um é o Pai, outro o Filho e outro o Espírito Santo, eis que Ários deduz, da
diferença entre as pessoas, pela diversidade da essência. É preciso rejeitar
igualmente a ímpia confusão de um e a divisão não menos sacrílega do outro;
evitamos esses dois escolhos confessando que a divindade do Pai, do Filho e do
Espírito Santo é uma, e reconhecendo as três Pessoas ou Hipóstases; é assim que
podemos construir uma muralha contra o duplo ataque dos nossos inimigos. Eu
poderia ainda assinalar muitos outros encontros, onde precisamos unir o ardor
da coragem à precisão das manobras, sob pena de nos retirarmos cobertos de ferimentos”.
5. “Quanto não
teríamos nós a dizer das contendas e das disputas que se levantam entre os
fiéis? Não menores do que os ataques vindos de fora, eles dão ainda mais
trabalho àquele que ensina. Uns, levados pelo excesso de curiosidade, se
ocupam, sem razão e por pura fantasia, de questões impossíveis de resolver, e
cuja solução não conduz a nada de útil. Outros pedem contas a Deus de seus
julgamentos; eles tentam medir o abismo sem fundo de seus conselhos: ‘Vossos
julgamentos, diz o Profeta, são um abismo infinito[10]’. Poucos
são os que se aplicam em conhecer os dogmas da fé e a regra dos costumes:
muitos perdem seu tempo estudando aquilo que jamais conhecerão, e cujo estudo,
por si só, já é uma ofensa a Deus. Pretender penetrar absolutamente naquilo que
Deus nos proibiu saber, constitui um esforço inútil (quem seria capaz de
violentar a Deus?), esforços culpáveis e perigosos. E, no entanto, se lançarmos
mão da autoridade para reprimir esses pesquisadores de coisas inencontráveis,
atrairemos a reputação de orgulhosos e de ignorantes. Esse é mais um ponto que
exige do bispo uma grande prudência, tanto para afastar os espíritos de
questões ociosas e absurdas, como para evitar acusações embaraçosas. Contra
tantas dificuldades, a única arma que ele possui é a palavra, nada além da
palavra. Se ele for desprovido de palavras, as almas, cujo governo lhe foi
confiado, e em especial as almas fracas e exaustas pelo excesso de curiosidade,
ficarão numa agitação contínua, como um navio batido pela tempestade: o que não
deve então fazer um sacerdote para adquirir o talento com as palavras?”.
6. Basílio
disse: “Então, por que o apóstolo Paulo não se preocupou em adquiri-lo? Pois
ele não se envergonhava de sua pobreza em matéria de eloquência; mas ele
confessava abertamente sua ignorância, ao escrever aos Coríntios, admirados com
seu excelente modo de falar, do qual gostavam tanto”.
Eu respondi:
“É precisamente essa passagem que você alude que enganou a muitos, e os tornou
negligentes no estudo da verdadeira doutrina. Na falta de ir ao fundo do
pensamento do Apóstolo, e de compreender o sentido de suas palavras, eles
passaram toda a vida na sonolência e na preguiça, seguidores fiéis da
ignorância, não daquela confessada por São Paulo, mas de outra, da qual ele
estava mais afastado do que de tudo nesse mundo. Mas reservarei esse ponto para
mais tarde, e, para o momento, suponhamos que o Apóstolo tenha ignorado a arte
de falar, como se pretende, e nesse caso o que podemos concluir dos homens de
nosso tempo? Ele possuía um poder bem superior à eloquência, e capaz de
produzir grandes efeitos; pois sua simples presença e figura, sem que sequer
precisasse abrir a boca, bastavam para fazer tremer os demônios. Se todos os
homens de hoje se pusessem a orar e chorar, eles não poderiam tanto quanto o
podiam as simples vestes de São Paulo. Paulo ressuscitava os mortos com suas
orações; ele operava tantos prodígios, que era visto como um Deus pelos
infiéis. Ainda que revestido de um corpo mortal, ele foi considerado digno de
ser arrebatado ao terceiro céu, e de ouvir coisas que o ouvido humano não é
capaz sequer de escutar. Mas os homens de nossos dias... Eu paro por aqui, para
não dizer nada que seja demasiado severo. Minha vontade não é de insultá-los;
eu apenas me espanto de que eles não enrubesçam de se comparar àquele grande
homem”.
“Com efeito,
se considerarmos, não mais os prodígios, mas a vida do bem-aventurado Apóstolo,
e sua conduta angélica, nós os veremos ainda mais triunfante por suas virtudes
do que pelos seus milagres. Quem poderia representar a vivacidade de seu zelo,
sua doçura, os constantes perigos, sua incessante solicitude, sua ansiedade constante
pela salvação de todas as Igrejas; sua compaixão para com os que sofrem, suas
tribulações; as perseguições renovadas sem cessar, suas mortes todos os dias?
Qual lugar da terra habitada, qual continente, qual mar, não conheceram os
combates desse justo? O próprio deserto o viu mais de uma vez, quando lhe
ofereceu abrigo contra o perigo. Não há embustes a que ele não tenha sido
exposto, mas também não há vitória que ele não tenha obtido. Sempre combater,
sempre vencer, essa foi sua vida”.
“Mas estarei
eu sendo suficientemente respeitoso com esse grande homem, ao ousar fazer seu
elogio? Não estão seus grandes atos acima de todos os discursos, e tão acima
dos meus quanto estão acima de mim os grandes oradores? Entretanto, persuadido
de que o bem-aventurado Apóstolo teria mais atenção à intenção do que ao
sucesso, não me deterei sem que fale de um ato que ultrapassa a tudo o que eu
disse, tanto quanto São Paulo ultrapassa a todos os mortais. Que ato é esse? É
que, depois de tão belas ações, e depois de ter merecido uma infinidade de
coroas, ele aceitou ir ao inferno, a ser entregue a um suplício eterno para
salvar e entregar a Jesus Cristo esses Judeus, que tantas vezes o lapidaram, e
que o teriam morto se pudessem. Alguém mais amou Jesus Cristo a esse ponto, se
é que podemos chamar de amor a esse sentimento que necessitaria de um termo
ainda mais expressivo?”.
“Podemos nos
comparar ainda com tal homem, depois da imensa graça que ele recebeu do alto, e
da enorme virtude que ele extraiu do fundo de si mesmo? Isso seria o cúmulo da
presunção e da temeridade. Mas era ele tão ignorante quanto pretendia?
Absolutamente, como veremos. Chamamos de ignorante, não a quem não é versado
nos prestígios da eloquência profana, mas a quem não sabe combater pela defesa
dos dogmas e da verdade; e nisso temos razão. Ora, Paulo não se declarou
ignorante sob o primeiro e o segundo aspecto, mas apenas sob o primeiro. Ele
próprio o afirmou, e fez expressamente essa distinção, ao dizer que ele era
ignorante na arte da palavra, mas não na doutrina[11]. É bem
verdade que, se ao ministro da santa palavra, eu pedisse a polidez de
Isócrates, a veemência de Demóstenes, a majestade de Tucídites, a sublimidade
de Platão, poder-se-ia opor a isso a passagem de São Paulo mencionada acima,
mas eu inocento de tudo isso o pregador do Evangelho; para mim são coisas
supérfluas todas essas disposições oratórias dos profanos; que me importam toda
a harmonia dos períodos e as elegâncias das declamações? Que seja pobre, se
quiser, pela dicção, que seja simples e sem arte no arranjo das palavras, desde
que seja rico em ciência e que possua a arte de jamais falhar na regra dos
dogmas; mas não permitirei que se chegue, para desculpar sua própria
negligência e preguiça, arrebatar de São Paulo a mais ilustre de suas
vantagens, e seu principal título a merecer a admiração geral”.
7. De que modo
confundiu ele os Judeus de Damasco[12], antes
de ter começado a fazer milagres? Como arrasou ele os Judeus helenistas? Por que foi ele enviado a Tarso[13], senão
porque com a força irresistível de sua palavra ele vencera todos os seus
adversários, e os pressionou de tal maneira que, não podendo suportar a
derrota, eles se exasperaram a ponto de jurá-lo de morte? Pois, repito, nesse
momento ele ainda não havia feito milagres. Não podemos assim dizer que,
admirando-o a multidão como taumaturgo, tenham sido arrasados seus adversários
pela imposição de seu renome. Ele até então não tinha outro poder do que a
força de suas palavras. De que armas se serviu ele em Antioquia para combater
os judaizantes[14]?
Não foi somente por sua eloquência que em Atenas, a cidade mais supersticiosa
do mundo, ele conquistou o Areopagita e sua esposa? Que encanto maravilhoso não
possuía ele ao falar, pois passava-se a noite a ouvi-lo, como atesta Eutíquio
que caiu da janela? Em Tessalônica, em Corinto, em Éfeso, em Roma, que fez ele?
Ele pregou por dias inteiros, e por noites inteiras, explicando as Escrituras,
discutindo com epicuristas e estoicos. Eu não terminaria nunca, se fosse
mencionar todas as ocasiões em que ele mostrou seu talento pela palavra”.
“Antes que
tivesse feito milagres, assim como ao longo de seus prodígios, nós o vemos
usando frequentemente da palavra. Então, quem ousará chamar de ignorante a
alguém que, quer estivesse em lide com um adversário, quer estivesse
discursando perante uma multidão, fazia a admiração de todo mundo? Os Licônios
pensavam ver nele Mercúrio; seus milagres, e os de Barnabé, os fizeram passar
por deuses; mas somente a eloquência bastou para que Paulo fosse tido como o
deus da eloquência[15]. Não
foi assim que ele ultrapassou a todos os demais Apóstolos? Por qual outro
motivo, por toda a terra seu nome se encontra com tanta frequência na boca dos
homens? De onde vem que ele seja mais admirado do que todos os outros, não
apenas entre nós, mas mesmo entre os Gregos e os Judeus? Não será por causa do
prodigioso mérito de suas epístolas, que tanto bem fizeram aos fiéis de seu
tempo e aos que vieram depois, e ainda aos que estão por vir, até o advento
final de Cristo? Pois elas não deixarão de ser úteis aos homens enquanto durar
o gênero humano. Seus escritos admiráveis são como uma muralha de diamante que
envolve e protege as Igrejas em todas as partes do mundo. Campeão imortal de
Cristo, ele permanece ainda hoje de pé no centro da Igreja, acorrentando todos
os pensamentos sob obediência a Cristo, derrubando os presunçosos, abatendo
toda altivez que se eleva contra a ciência de Deus[16]. Ora,
tudo isso ele fez por meio das admiráveis epístolas que nos deixou, epístolas
todas cheias de sabedoria divina”.
“Seus
preciosos escritos serviram não apenas para derrubar as falsas doutrinas e para
o sólido estabelecimento da verdadeira fé, como ainda foram de grande utilidade
para instituir a regra dos bons costumes. É por meio deles que até hoje os
bispos vestem e ornamentam a casta Virgem que ele denominou como sendo a esposa
de Jesus Cristo, e que eles trabalham para conformar nela todos os traços da
beleza espiritual; é por meio deles que eles afastam os males que rondam a
Igreja, e conservam a saúde de que ela desfruta. Tais são os remédios que esse
ignorante nos legou, e tal é sua virtude, como ensina a experiência àqueles que
deles se utilizam continuamente. De tudo isso, concluímos que São Paulo dava
grande importância ao talento da palavra”.
8. “Escute
agora em que termos Paulo escreve a seu discípulo: ‘Aplique-se à leitura, à
exortação, à instrução’. E, para mostrar-lhe os frutos que ele extrairia daí,
ele acrescenta: ‘Com isso você se salvará, e a todos os que o escutarem[17]’. E, em
outra parte: ‘Um servidor de Deus não deve discutir; que ele seja manso com
relação a todos, capaz de instruir e paciente[18]’. Em
seguida, ele diz: ‘Quanto a você, permaneça firme no que aprendeu e que lhe foi
confiado, sabendo de quem o aprendeu, lembrando-se de que, desde a sua infância,
você foi instruído nas letras santas capazes de iluminá-lo para a salvação[19]’. E
ainda: ‘Toda escrita que é divinamente inspirada é útil para ensinar, para
repreender e para corrigir, para conformar à justiça, a fim de que o homem de
Deus seja perfeito[20]’”.
“Escute
ainda o que ele diz a Tito sobre a ordenação dos bispos: ‘É preciso que um
bispo esteja ligado à verdadeira palavra, àquela que é conforme ao ensinamento,
a fim de que ele possa convencer os contraditores[21]’. Como
então um ignorante poderá convencer os contraditores da verdadeira fé, e
calar-lhes a boca? De que serve aplicar-se à leitura e às Escrituras, e ao
mesmo tempo manter-se nessa ignorância? Isso não passa de desculpas vãs e
falsos pretextos, atrás dos quais se escondem a preguiça e a indolência”.
“Mas,
dir-me-ão, esses conselhos estão endereçados aos sacerdotes. E eu responderei
desde logo que é exatamente deles que se trata aqui. Mas acrescento que eles
também se dirigem aos simples fiéis, pois escute o que diz o Apóstolo em outra
epístola, desta vez falando não apenas aos sacerdotes, mas a todo mundo: ‘Que a
palavra de Cristo habite em vocês abundantemente e com toda sabedoria[22]’. E
mais: ‘Que todas as suas palavras sejam acompanhadas da graça, e temperadas com
o sal da sabedoria, de modo a que vocês saibam responder a cada um como convém[23]’. Ora,
o preceito de que estejamos prontos a responder diz respeito a todo mundo.
Escrevendo aos Tessalonicenses, ele diz: ‘Edifiquem uns aos outros, como
costumam fazer[24]’.
Quando ele fala aos sacerdotes, eis o que ele diz: ‘Que os sacerdotes que bem
governam sejam duplamente honrados, principalmente os que trabalham para a
predicação e a instrução[25]’. Pois
o fim último da perfeição é alcançado na instrução quando, tanto por seus
exemplos como por suas palavras, os pregadores conduzem os homens à vida
bem-aventurada preparada por Jesus Cristo. Somente os exemplos não bastam para
instruir; e não sou eu que o digo, mas o próprio Salvador: ‘Aquele que praticar
e ensinar será chamado de grande[26]’. Se
praticar fosse a mesma coisa que instruir, seria supérfluo acrescentar o
segundo; bastava dizer ‘aquele que praticar’. Mas ao distinguir as duas coisas,
nosso Senhor nos ensina que as obras não são as palavras; e que, para edificar
perfeitamente os povos, o exemplo e os discursos devem auxiliar uns aos outros.
Você não escutou o que disse o vaso de eleição aos sacerdotes de Éfeso:
‘Vigiem, e não se esqueçam que durante três anos, noite e dia, eu não cessei de
advertir com lágrimas a cada um de vocês[27]’. Por
que essas lágrimas, esses discursos, essas advertências, enquanto que o brilho
de sua vida apostólica ainda estava tão vivo? Sem dúvida, o bom exemplo
contribui muito para o cumprimento dos mandamentos; porém, mesmo nessa parte,
não ousarei dizer que basta”.
9. Quando se
desenrolar um combate no terreno do dogma, e tivermos que combater com armas
tiradas das divinas Escrituras, de que nos servirá a santidade da vida? De que
servirão as fadigas e o suor, se depois dessas austeridades cairmos na heresia
por ignorância, e formos separados do corpo da Igreja? Conheço muitos que
sofreram essa infelicidade. Que frutos obtiveram eles de sua paciência? Nenhum;
não mais do que se possuíssem uma fé santa e uma conduta viciosa. É preciso,
portanto, uma grande habilidade nesses combates pela fé¸ para quem está
encarregado de ensinar os demais. Ainda que ele seja inabalável na fé e
invulnerável aos golpes do inimigo, a multidão de almas simples que lhe está
submetida, vendo seu chefe vencido e reduzido ao silêncio por seus
contraditores, mostrará não a imbecilidade do homem, mas a fraqueza do dogma; e
assim, a ignorância de um único causará a perda de todo o povo. Ele não se
entregará imediatamente ao inimigo, mas começará a duvidar dos princípios,
mesmo os mais acreditados; já não se verá mais tão solidamente ligado a
determinadas crenças, que havia antes abraçado com todas as forças de sua fé. A
derrota do mestre produz nas almas uma tempestade tão violenta, que só pode
terminar em naufrágio. Dizer-lhe agora quais calamidades, quais carvões em
brasa se acumularão sobre a cabeça do infeliz, que será acusado pela perda de
tantos homens, será coisa supérflua; você o sabe melhor do que eu”.
“Eis,
portanto, esse crime de orgulho e de vanglória que pretendem me imputar, porque
recusei ser a causa da ruína de tantas almas, e assim atrair sobre mim um
castigo terrível no dia do juízo. Quem ousará ainda sustentá-lo? Certamente,
ninguém; a menos que se pretenda persistir numa acusação sem motivo, e fazer
filosofia com a infelicidade de outrem”.
[1] 1 Reis 9: 21.
[2] Números 11: 15.
[3] Cf. Números 20: 12.
[4] Cf. João 12: 6.
[5] João 14: 22.
[6] 1 Timóteo 5: 22.
[7] Lucas 15: 28.
[8] 1 Pedro 3: 15.
[9] Colossenses 3: 16.
[10] Salmo 35: 7.
[11] Cf. 2 Coríntios 11: 6.
[12] Atos 9: 22.
[13] Atos 9: 29-30.
[14] Gálatas 2: 11.
[15] Atos 14: 11.
[16] 2 Coríntios 10: 5.
[17] 1 Timóteo 5: 16.
[18] 2 Timóteo 4: 16.
[19] 2 Timóteo 3: 14-15.
[21] Tito 1: 9.
[22] Colossenses 3: 16.
[23] Colossenses 4: 6.
[24] 1 Tessalonicenses 5: 11.
[25] 1 Timóteo 5: 17.
[26] Mateus 5: 19.
[27] Atos 20: 31.
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