1. Eu continuei
minha explanação: “Isso quanto à suposta ofensa feita àqueles que me honraram
com seus votos, eis o que posso dizer para mostrar que jamais quis ferir alguém
quando recusei a dignidade sacerdotal. Desde o começo, não me perdi na neblina
do orgulho; e tentarei agora demonstrá-lo até ficar evidente”.
“Se tivessem
me oferecido o comando de uma arma da ou o governo de um império, e tivesse eu
recusado igualmente, a acusação poderia ter alguma verossimilhança; ou melhor,
não haveria quem visse nessa recusa um traço de loucura. Mas quando se trata do
Sacerdócio, dignidade que se eleva acima da realeza tanto quanto a alma se
eleva acima do corpo, quem ousará me acusar de orgulho? Alguém desdenha um
emprego de pouca importância, e se diz que trata-se de um insensato; outro
recusa funções de uma ordem incomparavelmente mais relevante, e a esse se
concede não acusá-lo de demência, para culpá-lo de orgulho; não é absurdo? Da
mesma forma acusar-se-ia não de excesso de amor próprio, mas de alienação
mental, a um homem que não aceitasse um rebanho de bois, que não quisesse ser
boiadeiro, e ao mesmo tempo seria declarado, não louco, mas apenas orgulhoso,
alguém que recusasse o império do mundo e o comando dos exércitos de todos os países
da terra”.
“Não, esse
raciocínio não se sustenta; e semelhantes calúnias desacreditam muito mais seus
autores do que a mim. O único pensamento que podem aqui ter no mundo os homens
que desdenham o sacerdócio, trai, dentre aqueles que ousam expressá-lo, a ideia
pouco elogiosa que eles têm de si mesmos. Claro, se eles não vissem o santo
ministério como uma coisa banal e de pouca valia, tal suspeita lhes viria ao
espírito? Por que jamais alguém ousou supor algo semelhante a respeito da
dignidade dos anjos, dizendo: eis uma alma humana que recusou por orgulho
ascender ao nível da natureza angélica? É porque temos, a respeito dessas
potências celestes, um alto conceito que não nos permite pensar que um homem
possa aspirar a qualquer coisa mais relevante do que seu estado. De sorte que
se poderia, com todo direito, acusar de orgulho aqueles que me dirigem tal
reprimenda. Jamais, com efeito, eles teriam feito tal suposição a respeito do
próximo, se, primeiramente, não tivessem desprezado o sacerdócio como uma coisa
sem importância. Dirão eles que o desejo da glória me fez agir assim? Eu os
convencerei de que eles refutam a si próprios e se combatem abertamente. Em
verdade, não vejo o que eles poderiam ter imaginado de melhor, se quisessem me
defender contra a acusação de vanglória”.
2. “Pois se eu
me deixasse levar por esse amor à glória, antes eu deveria aceitar do que
recusar. Por que? Porque, aceitando, eu teria adquirido ainda maior glória.
Como! Um homem tão jovem, um homem mal saído das confusões do século, e que de
repente atrai a admiração do mundo, até ser preferido dentre aqueles que
envelheceram a serviço da Igreja, até superá-los pelo número de votos obtidos;
o que seria mais apropriado para fazer com que eu formasse a meu respeito uma
grande e magnifica opinião, a posar diante dos olhos de todos como um venerável
e ilustre personagem? Hoje em dia, ao contrário, com exceção de um pequeno
número, toda a Igreja ignora até meu nome. De sorte que minha recusa não será
conhecida mais do que de um pequeno número, os quais tampouco conhecerão a
exata verdade sobre isso. Provavelmente muitos pensarão, ou que eu não fui
eleito, ou que eu fui recusado após eleição por ter sido reconhecido como
indigno, e não por ter recusado voluntariamente a eleição”.
3. Basílio disse:
“Mas os que souberem da verdade o admirarão”.
Eu disse: “Mas
não me disse você que eles me acusam de vaidade e de orgulho? De quem, então
poderei esperar aprovação? Da multidão? Ela ignora o que se passou. De alguns
indivíduos melhor informados? Mas desse lado as coisas viraram ao contrário;
pois o único motivo que o trouxe aqui agora, foi para saber o que lhes
responder. De resto, por que insistir sobre isso com tanto cuidado, uma vez
que, ainda que todo mundo fosse informado da verdade, nem por isso poderiam me
acusar de orgulho, nem de vaidade; um pouco de paciência, e eu o farei ver isso
claramente. Por outro lado, você compreenderá que não apenas aqueles que têm a
respeito do sacerdócio uma ideia tão temerária (se é que existem, coisa que de
minha parte não creio), como ainda os que atribuem gratuitamente essa
temeridade aos outros, se expõem a um perigo terrível”.
4. “O
Sacerdócio se exerce sobre a terra, mas seu lugar está na ordem das coisas
celestes: e isso está correto. Pois não foi um homem, nem um anjo, nem um
arcanjo, nem nenhuma outra potência criada, mas o próprio divino Paráclito que
estabeleceu esse lugar: foi ele quem deu aos homens a sublime confiança de
exercer, ainda que revestidos de carne, o ministério dos puros espíritos. É
preciso então que o sacerdote seja puro, como se ele estivesse no céu junto com
os espíritos bem-aventurados. Que majestosa paramentação havia antes da lei da
graça! Como tudo inspirava um santo temor! As sinetas, as granadas, as pedras
preciosas que brilham sobre o peito e a éfode do Grande Sacerdote; o diadema, a
tiara, o manto que se arrasta no chão, a espada de ouro, o santo dos santos e
sua impenetrável solidão! E se considerarmos os mistérios da lei da graça,
veremos como era vã a pompa exterior da antiga lei, e compreenderemos bem,
nesse caso particular, a verdade de tudo o que foi dito sobre essa lei em
geral: o que havia de notável nesse primeiro ministério sequer constitui uma
glória, quando comparada à glória supereminente da segunda[1]. Quando
você vê o Senhor imolado e estendido sobre o altar, o sacerdote que se inclina
sobre a vítima e ora, e todos os fiéis cobertos de púrpura desse sangue
precioso, você ainda crê estar entre os homens, e mesmo sobre a terra? Não foi
antes você transportado aos céus, e, tendo banido todo pensamento carnal, como
se fosse puro espírito, despojado da carne, não contempla você as maravilhas do
mundo superior? Ó prodígio! Ó bondade de Deus! Aquele que assenta no alto, à
direita do Pai, deixa-se nesse momento tomar pelas mãos de todos, e se entrega
aos que desejam recebê-lo e apertá-lo junto ao coração; é isso que se passa aos
olhos da fé. Essas coisas parecem-lhe dignas de desdém? São elas de natureza
tal que as possamos considerar abaixo de nós?”.
“Vamos
considerar a excelência de nossos santos mistérios por um outro prodígio.
Imagine Elias, uma multidão imensa de pé ao redor dele, e a vítima estendida
sobre as pedras; todos os assistentes aguardando no mais profundo silêncio,
apenas o Profeta que ora em alta voz; e, de repente, a chama se precipita do
céu para o holocausto. Tudo isso é maravilhoso, e próprio para penetrar a alma de
temor. Mas agora passe desse espetáculo para a celebração de nossos mistérios,
e verá coisas que excitam e ultrapassam toda admiração. O sacerdote está de pé,
e ele faz com que desça do céu, não o fogo, mas o Espírito Santo. Sua oração é
longa: ela se eleva, não para que uma chama venha do alto devorar as oferendas
que foram preparadas, mas para que a graça, descendo sobre a hóstia, abrase por
meio dela a todas as almas, tornando-as mais brilhantes do que a prata depurada
no fogo. Não é preciso estar privado de razão e de senso para ser capaz de
desprezar um mistério tão temível? Não sabe você que uma alma humana jamais
suportaria o fogo do sacrifício, mas que seríamos prontamente destruídos sem o
socorro poderoso da graça de Deus?”.
5. “Se
refletirmos que é um mortal, envolvido pelos laços da carne e do sangue, que
pode se aproximar dessa natureza bem-aventurada e imortal, ficaremos espantados
com a profundidade desse mistério, e ao mesmo tempo penetrados pela grandeza do
poder que a graça do Espírito Santo confere aos sacerdotes. É por meio deles
que essas maravilhas se realizam, e muitas outras não menos importantes, tanto
para nossa salvação como para nossa glória. Criaturas que habitam sobre a
terram que têm sua existência ligada à terra, são chamadas à administração das
coisas do céu, ao exercício do poder que Deus não concedeu sequer aos anjos e
arcanjos! Pois não é a eles que foi dito: ‘O que ligardes na terra será ligado
no céu, e o que desligardes na terra será desligado no céu[2]’. Também
os poderosos da terra têm o poder de ligar, mas somente os corpos; a ligação de
que fala o Evangelho é um laço que arrebata a alma, e tudo o que se estende até
os céus, daquilo que aqui em baixo fazem os sacerdotes, Deus o ratifica no
alto; o Mestre confirma a sentença dos servidores”.
“Ele lhes
deu, por assim dizer, a onipotência no céu. Ele disse: ‘Aqueles a quem
perdoardes os pecados, esses lhes serão perdoados; aos que os retiverdes,
ser-lhes-ão retidos[3]’. Pode haver maior poder do que esse? O Pai
entregou ao Filho todo julgamento, e vemos agora o Filho entregar esse mesmo
poder inteiramente nas mãos dos seus sacerdotes. Não diríamos que Deus
primeiramente os introduziu no céu, que os elevou acima da natureza humana e
que os libertou das paixões, para em seguida revesti-los dessa suprema
autoridade? Se um rei admite que um de seus súditos partilhe de seu poder,
concedendo-lhe o privilégio de aprisionar ou libertar a quem melhor lhe
parecer, tamanha honra atrairia contra ele a inveja e a consideração de todo o
mundo; e aquele que recebe de Deus um poder tão superior àquele, tanto quanto o
céu é superior à terra e a alma ao corpo, não terá recebido, segundo o juízo de
algumas pessoas, mais do que uma dignidade medíocre, uma dignidade da qual se
pudesse pensar que alguém desdenharia tanto a honra como o dom! Que
extravagância! Desprezar uma função sem a qual não existe a salvação para nós,
nem a realização das promessas divinas! Ninguém pode entrar no reino de Deus,
se não renascer da água e do Espírito Santo[4]; quem
não comer da carne do Senhor e não beber de seu sangue, estará excluído da vida
eterna’[5]. Então,
se esses benefícios não podem ser conferidos senão por mãos santificadas, ou
seja, pelas mãos dos sacerdotes, de que meio disporíamos, sem seu ministério,
para evitar o fogo do inferno, ou para alcançar as coroas que nos foram
reservadas?”.
“A gravidez
espiritual das almas é seu privilégio; somente eles as fazem nascer para a vida
da graça por meio do batismo; por meio deles somos sepultados com o Filho de
Deus, por meio deles nos tornamos membros desse Chefe divino. Assim é que
devemos respeitá-los mais do que os príncipes e reis, e ainda amá-los mais do
que aos nossos próprios pais. Esses nos fizeram nascer do sangue e da vontade
da carne; os sacerdotes nos fazem nascer como filhos de Deus; nós lhes devemos
nossa feliz regeneração, a verdadeira liberdade da qual desfrutamos, a nossa
adoção na ordem da graça”.
“Somente os
sacerdotes da antiga lei tinham o direito de curar a lepra, ou melhor: eles não
a curavam, mas julgavam se as pessoas estavam curadas; e você sabe com quanto
ardor se buscava a dignidade sacerdotal entre os judeus[6]. Quanto
aos nossos sacerdotes, não é a lepra do corpo, mas a da alma, que eles
receberam o poder de curar, não de verificar, mas de operar a cura por inteiro.
Aqueles que os desprezam são assim mais sacrílegos do que Datã e seus
companheiros[7],
e merecedores de um castigo mais severo. Eles, desejando uma dignidade que não
lhes cabia, ao menos deram provas de uma estima especial naquilo que faziam,
pela própria ambição que os levara à usurpação. Mas hoje em dia, quando o
sacerdócio está de posse de uma autoridade e de uma excelência muito mais
relevantes do que outrora, desprezá-la constitui um crime ainda mais odioso do
que o de pretendê-la por motivos de ambição. Não há nenhuma paridade, sob o
aspecto do ultraje, entre pretender uma dignidade cujo direito não se tem, e
desprezar os grandes bens que o Sacerdócio guarda em si, tanto está longe a
admiração do desdém, tanto o segundo crime é mais grave do que o primeiro. Que
alma seria tão miserável para desprezar tão augustas prerrogativas? Nenhuma, a
menos que estivesse submetida ao aguilhão e ao poder de Satanás. Mas voltemos
ao tema que deixamos para trás”.
6. “Quer se
trate de punições a infligir, quer se trate de graças a distribuir, os
sacerdotes receberam de Deus um poder maior do que o de nossos pais na ordem da
natureza. Entre uns e outros existe uma diferença tão grande quanto a que há
entre a vida presente e a futura. Nossos pais nos geraram para a primeira, os
sacerdotes o fazem para a segunda. Aqueles não poderiam nos preservar da morte
corporal, nem afastar as moléstias que sobrevêm; esses frequentemente curam a
alma enferma e que está perecendo; tanto eles aliviam as penas devidas ao
pecado, como eles previnem a própria queda, pela instrução e a exortação e
também pelo socorro de suas orações. Eles têm o poder de remir os pecados
quando nos regeneram pelo batismo, e mesmo depois. Como disse o apóstolo Tiago,
‘se houver um doente entre vós, que chame pelos sacerdotes da Igreja; que eles
orem sobre o doente, ungindo-o com óleo em nome do Senhor; e a prece da fé
salvará o enfermo, e Deus o aliviará; e se ele cometeu pecados, esses lhe serão
remidos[8]’. Por
fim, os pais segundo a carne nada podem fazer por seus filhos, caso esses
ofendam algum príncipe ou algum poderoso do mundo. Os sacerdotes os
reconciliam, não com príncipes e reis, mas com Deus, quando esse se irrita com
eles”.
“Depois de
tudo isso, ainda nos vêm acusar de orgulho? Me parece que as razões que expus,
se chegassem aos ouvidos de um auditório, seriam capazes de impressionar
fortemente suas almas, para que a acusação de orgulho e de audácia fosse
lançada, não contra os que fogem do sacerdócio, mas contra aqueles que aí se
introduzem por conta própria, e que o buscam com temerária confiança. Se
aqueles a quem confiamos a administração de uma cidade a arruínam e perdem a si
mesmos, caso não se dediquem com sabedoria e atenção contínuas, de quanta
virtude, tanto natural como divina, não deve estar dotado, para não falhar,
aquele a quem cabe a missão de adornar a Esposa de Cristo!”,
7. “Jamais
alguém amou a Jesus mais do que São Paulo. Jamais alguém testemunhou por Ele um
zelo mais ardente, nem Dele recebeu mais graças; e, no entanto, mesmo com todos
esses benefícios, nós o vemos espantar-se com a grandeza de seu ministério e
tremer pelos fiéis dos quais foi encarregado. ‘Eu temo, disse ele, que assim
como Eva foi seduzida pelas artimanhas da serpente, vocês se deixem corromper e
involuir da simplicidade cristã[9]'. E em
outra parte: “Eu estive entre vós no temor e na angústia[10]”. Assim
falou um homem que foi arrebatado até o terceiro céu, que o próprio Deus se
dignou iniciar no conhecimento de seus mistérios, um apóstolo que sofreu tantas
mortes quantos dias passou sobre a terra após sua conversão, que se abstinha de
usar todo o poder que lhe fora dado por Cristo, a fim de não escandalizar o
menor de seus irmãos. Se esse homem, que não se contentava simplesmente em
observar os preceitos de Deus, mas que ia além, que jamais buscava seu próprio
interesse, mas sempre o dos fiéis a quem governava, se sentia penetrado de um
temor contínuo ante o pensamento do ministério do qual fora encarregado, que
faremos nós, que estamos acostumados a nos reportar apenas a nós mesmos, nós
que não apenas jamais vamos além dos preceitos de Jesus Cristo na prática do
bem, como frequentemente ficamos bem aquém do limite rigoroso do dever”.
“Dizia
Paulo: ‘Quem sofre, sem que eu sofra com ele? Quem se escandaliza sem que eu
queime?’. Assim deve ser o sacerdote, ou melhor, nem isso basta: isso ainda é
pouco, é nada em comparação com o que vou dizer”.
“Escute: ‘Eu
gostaria que Jesus Cristo tornasse a mim próprio anátema em favor de meus
irmãos, eles que são de minha própria raça segundo a carne[11]’. Todo
homem que for capaz de proferir essas palavras, cuja alma for sublime o
bastante para se elevar às alturas de tal desejo, merecerá ser condenado caso
fuja do episcopado. Mas quem se afastar dessa virtude tanto quanto eu, será
odioso, não se recusar, mas se aceitar”.
“Se se
tratasse de uma eleição para um comando militar, e que aqueles que fossem os
eleitores mestres fossem na busca de um ferreiro, de um sapateiro, ou de
qualquer outro artesão, para lhe conferir semelhante insígnia, certamente esse
miserável não mereceria elogios caso não recusasse, se fizesse de tudo ao seu
alcance para não se lançar em tão perigosa honra. Ora! Se para ser bispo
bastasse o título, bastasse exercer uma função tal e qual, sem que houvesse
risco algum a correr, pode me acusar de vanglória quem quiser. Mas se, para
aceitar tal encargo, for preciso uma prudência consumada, e, antes dessa
prudência, uma graça especial de Deus, uma retidão de costumes, uma pureza de
vida irrepreensível, uma virtude superior às meras forças humanas, eu lhe peço
que perdoe a resolução que tomei, de não me expor indiscretamente a uma perda
inevitável”.
“Se alguém,
mostrando-me um grande navio, cheio de numerosa equipagem, carregado com
mercadorias preciosas, me colocasse em seu comendo e me propusesse atravessar o
mar Egeu ou o mar Tirreno, eu certamente recuaria em pânico diante da primeira
palavra. E se me perguntassem o porquê, eu responderia ser por medo de perder o
navio. Pois bem! Numa circunstância em que se trata apenas de riquezas
perecíveis, de uma vida que logo irá findar, ninguém se admira que mostremos
tanta prudência e desconfiança em relação a nós mesmos; mas diante da apreensão
de um naufrágio que diz respeito tanto à alma como ao corpo, e que ameaça, não
com os abismos do mar, mas com um precipício de chamas eternas, eu seria alvo
da cólera e da raiva, por não ter me atirado imprudentemente em tão temível
infelicidade! Que isso não aconteça, eu lhe peço, eu lhe conjuro”.
8. “Eu conheço minha
alma, sua fraqueza, sua pequenez. Eu conheço a grandeza do santo ministério e
suas imensas dificuldades. A alma do sacerdote é açoitada por muito mais
tempestades do que os ventos que revoltam os mares”.
9. De todos os
recifes contra os quais se pode naufragar, o mais terrível é o da vanglória,
abrolho ainda mais perigoso do que o das Sirenas, tão celebrado pelos poetas em
suas ficções. Por esse, muitos passaram sem revezes; mas aquele é para mim tão
perigoso, que ainda hoje, quando nenhuma violência me empurra a esse abismo, eu
sofro todas as penas do mundo para me impedir de nele mergulhar. Colocar sobre
meus braços o fardo do episcopado, seria como amarrar minhas mãos às costas, e
me atirar, para servir de pasto, às bestas ferozes que se abrigam nesse recife:
falo da ira, do abatimento, da inveja, das disputas, da calúnia, das acusações,
da mentira, da hipocrisia, dos embustes, das aversões sem objeto, das alegrias
secretas causadas pelas quedas e vergonhas de nossos colegas, pelo ciúme que
sentimos diante do sucesso dos outros, do amor desordenado aos elogios, da sede
das honrarias (uma das paixões que mais corrompem a alma humana); a pregação
evangélica se torna um meio para agradar; as adulações servis, a preguiçosa
complacência, o soberbo desdém diante dos pobres, os rebaixamentos oficiosos
diante dos ricos; os sinais de honra prodigados em razão e não sem prejuízo; as
graças igualmente perniciosas, tanto àqueles a quem são concedidas, como aos
que as concedem; os temores servis, dignos do último dos miseráveis; a ausência
da liberdade sacerdotal; as máscaras afetadas da modéstia, mas nenhuma modéstia
no fundo; nenhuma coragem para reprender ou reprimir, ou antes o abuso desse
direito perante os pequenos, mas, tratando-se dos grandes, uma licenciosidade
que não ousa sequer abrir a boca”.
“São esses
os monstros, e eu sequer nomeei a todos, os monstros que esse recife abriga;
uma vez aprisionado por eles, seguimo-los por onde nos arrastarem, e descemos
tão baixo na servidão que, para agradar às mulheres, fazemos coisas que não
convém nem mencionar. É em vão que a lei de Deus excluiu as mulheres desse
santo ministério, pois, querendo forçar as portas do santuário por si mesmas e
não o podendo fazer, elas fazem tudo pela mão de seus agentes, cuja autoridade
usuraram, tendo-os elevado ao episcopado e fazendo-os descer até virar tudo de
cabeça para baixo, demonstrando a aplicação do provérbio: os de baixo governam
os chefes. E quisesse Deus que esses de
baixo fossem homens! Mas são as mulheres, que sequer têm o direito de ensinar.
Que digo eu, ensinar? Pois a elas o bem-aventurado Paulo proibiu até mesmo a
palavra dentro da Igreja! Entretanto, pelo que ouvi dizer, deixaram-nas ganhar
tamanha liberdade, que as vemos manipular imperiosamente os bispos, e falar-lhes
com mais superioridade do que os mestres a seus escravos.
10. “Não se
pense, porém, que eu lanço essas acusações sobre todos os ministros da Igreja.
Existem também os que escapam a essa espécie de rede, e são inclusive mais
numerosos do que os que se deixam prender. Praza a Deus que eu não seja culpado
da imprudência de acusar o sacerdócio desses vícios que não pertencem senão ao
homem! O ferro não é culpado das mortes, nem o vinho da embriaguez, nem a força
da violência, nem a coragem da temeridade cega; os culpados são aqueles que
fazem mau uso dos dons de Deus, e são esses que as pessoas sensatas acusam e
punem. É o Sacerdócio que terá o direito de nos acusar, se exercermos mal
nossas funções. Longe de ser ele a causa dos males que assinalei; somos nós que
o desonramos, na medida em que tais máculas existem em nós, quando o entregamos
aos primeiros que aparecem, a homens que, sem ter previamente consultado suas
forças, nem atentado para o peso do fardo, em apoderam do sacerdócio como de
uma presa que lhes é oferecida; mas quando eles começam a trabalhar, se perdem
por sua imperícia, e afligem com males sem número os povos que foram
encarregados de conduzir. É essa infelicidade que iria me atingir, se Deus, por
piedade de Sua Igreja e pela minha alma, não tivesse prontamente me arrancado
de tais perigos”.
“De onde
nascem, pensará você, essas perturbações que desolam nossas Igrejas? Por minha
conta, não posso assinalar outra causa que a falta de prudência e de
circunspecção na escolha e na eleição dos ministros. É preciso que a cabeça
seja muito forte para dominar e para dissipar os vapores perniciosos que as
partes inferiores do corpo lhe enviam. Se acontecer de ela ser fraca, então,
impotente para afastar essas influências malignas, ela se torna ainda mais
fraca do que era naturalmente, e arrasta todo o resto à sua ruína. Deus quis
prevenir essa infelicidade, e por esse motivo Ele me reteve num nível inferior
dentro do corpo místico da Igreja, análogo ao que é ocupado pelos pés no corpo
humano: esse é meu lugar natural”.
“Independentemente
das qualidades que indiquei, existem muitas outras, meu amigo, não menos
necessárias para ser um bom bispo, e das quais sou totalmente desprovido; a
primeira de todas, é que o desejo de se tornar bispo jamais ofusque a pura
simplicidade do coração. Dificilmente alguém que arde por possuir essa
dignidade desfrutará dessa qualidade, pois uma chama de ambição ainda maior
crescerá em seu coração para conservá-la; a ambição, cuja violência o empurrará
involuntariamente a toda espécie de indignidades, às bajulações, às torpezas, e
até ao sacrifício financeiro, se necessário. Quanto aos assassinatos com que
alguns encheram as igrejas, às cidades que arruinaram em combate pela conquista
ou a conservação dessa dignidade, nem quero falar, de medo de parecer dizer
coisas inacreditáveis. Deveria haver pelo sacerdócio um respeito que fizesse
temer recebê-lo como encargo; um respeito que fizesse com que os que dele se
revestem se demitissem de suas funções caso cometessem qualquer falta mais
grave, antes de esperarem pelo julgamento dos outros e pela deposição. Esse
seria um meio de atrair para si a misericórdia divina. De outro modo,
obstinar-se em ganhar um lugar do qual não se é digno, equivale a se tornar
indigno do perdão, a atiçar o fogo da cólera de Deus, por acrescentar ao
primeiro pecado um segundo ainda mais grave”.
11. “Mas onde
estão os homens capazes de tão generosa resolução? A sede das dignidades é
verdadeiramente algo terrível. E quando eu falo assim, longe de contradizer o
bem-aventurado Paulo, eu estou perfeitamente de acordo com ele. Com efeito, eis
o que ele diz: ‘Quem deseja o episcopado, deseja uma boa obra[12]’. O que
eu condeno, não é a obra em si, mas o desejo de dominação e poder. É preciso
sufocar até a última centelha desse desejo, para subtrair a dignidade episcopal
ao seu império, e para assegurar o livre exercício de suas funções. Quando não
se deseja alcançar o episcopado, não se teme perdê-lo; isento desse temor, é
possível agir com toda a liberdade que convém a cristãos. O medo de ser
precipitado desse alto posto curva a alma ao jugo da mais humilhante servidão,
servidão cheia de males, e que força a faltar tanto ao que é devido a Deus,
como ao que se deve aos homens. Nada é mais funesto do que tal disposição. Os
mais bravos soldados são aqueles que combatem com ardor e morrem com coragem.
Esse é o espírito que deve animar o bispo: é preciso estar pronto, seja para
deixar, seja para exercer o cargo, como convém a um cristão, certo de que
abandoná-lo assim não lhe trará a menor das honras. Quando nos expomos a cair
assim, por não termos consentido com nada que fosse contrário à honra do
episcopado, preparamos para nós uma recompensa mais gloriosa, e um castigo mais
glorioso aos autores de uma desgraça não merecida”.
“Disse o
Senhor: ‘Sereis felizes, quando os homens vos ultrajarem e vos perseguirem,
quando digam falsamente toda espécie de mal contra vós, por minha causa;
alegrai-vos e tremei de alegria, porque uma grande recompensa vos estará
reservada nos céus[13]’. Esse
é o caso, quando os próprios colegas cassam e depõem alguém por inveja, por uma
frouxa complacência para com estranhos, por inimizade ou por qualquer outro
motivo injusto; mas sofrer a mesma perseguição da parte de inimigos declarados
é algo de mais meritório ainda, e a malícia dos perseguidores traz então
benefícios que é inútil descrever”.
“É preciso
assim visitar todos os recantos de nosso coração, e buscar cuidadosamente se
alguma chama, mal extinta, desse desejo, não se esconde ali contra nossa
vontade. Não basta estar isento dessa paixão desde o começo, é preciso ainda se
considerar feliz por tê-la sob domínio, mesmo no seio do poder e da elevação.
Quanto àquele que, antes de alcançar as honrarias, nutre em si mesmo esse
desejo insaciável e pernicioso, não somos capazes de dizer em qual ardente
fornalha ele estará se atirando se conseguir chegar aonde quer. Quanto a mim,
confesso – e não creia que minto por modéstia – sinto que essa paixão é grande
em mim; e é uma das razões que mais fortemente determinaram a resolução que
tomei de fugir. Aqueles a quem o amor
carnal feriu com suas flechas, não sofrem tão rude provação senão quando estão
próximos do objeto de sua paixão; afastando-se, o mal cessa; direi o mesmo dos
corações ambiciosos que cobiçam a dignidade sacerdotal. A febre que os devora
redobra com suas esperanças; eles só se livram dela renunciando à esperança de
alcançá-la”.
12. “Esse motivo
não é sem valor, e só ele bastaria para me afastar do sacerdócio. Mas a ele
devo acrescentar outro não menos poderoso; qual será? É preciso que um
sacerdote seja sóbrio, clarividente; que ele tenha olhos para observar a tudo,
pois ele não vive apenas para si, mas para todo o povo[14]. E eu,
eu sou preguiçoso, não tenho energia, é com grande dificuldade que procuro
minha própria salvação; você mesmo concordará, você cuja amizade é, no entanto,
tão atenta em dissimular meus erros. Jejuar, velar, dormir sobre a terra nua, e
outras macerações corporais, nem é bom falar; você sabe o quanto estou longe
dessas perfeições; e, ainda que as possuísse, como me serviria delas no
exercício do ministério episcopal, com essa preguiça e indolência que me são
naturais? Esses exercícios, é verdade, são de grande proveito ao solitário
encerrado em sai cela, e que não tem mais a fazer do que trabalhar por sua
salvação pessoal. Mas o homem que deve se dedicar a um povo inteiro, que
concentra em si mesmo os interesses particulares de todos os seus
administrados, não vejo que fruto extrairá dessas coisas, a menos que acrescente
a elas uma força de alma inquebrantável”.
13. “Não se
surpreenda que, para julgar a energia de uma alma, eu peça outras provas além
da austeridade da vida. Com efeito, vemos pessoas para as quais não é problema
algum deixar de comer ou beber, e que não se importam se o leito é duro ou
mole; existe aquelas que são naturalmente rudes; para outras, é questão de
educação, de temperamento, de hábito, coisas que podem tornar fáceis aquilo que
para nós parece penoso. Mas os ultrajes, as injustiças, uma palavra ofensiva,
um dardo lançado com ou sem reflexão por um inferior, uma reprimenda ao acaso e
sem fundamento feita por superiores ou subordinados; isso bem poucos são
capazes de suportar com firmeza; você mesmo conhece um ou dois casos. Alguém
suporta corajosamente a fome e a sede, mas diante dessas provações pode perder
a razão, e, tomado de uma vertigem, se tornará mais furioso do que um animal
feroz. São sobretudo esses que nós afastamos do santuário. Que um bispo não se
extenue com jejuns, que não ande descalço, que benefício isso traz para o
rebanho? Mas um caráter violento, é o que existe de mais fecundo em malefícios
para si mesmo e para os outros”.
“Nenhuma
ameaça saiu da boca de Deus contra aqueles que não se torturam; mas para os que
se encolerizam, é com o inferno e com o fogo do inferno que Ele os ameaça[15]. Quando
o homem, presa da vanglória, adquire um grande poder, ele oferece mais alimento
ao fogo que o queima; o mesmo acontece com aquele que, no particular ou em
pequenas reuniões, não é capaz de dominar sua cólera, e se enfurece por nada.
Se ele for colocado à cabeça de um governo, veremos aí um animal feroz, ainda
mais enfurecido pelos milhares de provocações que recebe de todos os lados ao
mesmo tempo. Já não existe repouso para ele, e para seu povo os males serão
incalculáveis”.
14. “Nada
perturba mais a clareza da inteligência, nada ofusca mais a penetração do
espírito, do que a cólera, desordenada e impetuosa. A cólera, foi dito, põe a
perder até mesmo os sábios[16]. É como
um combate noturno, em meio do qual a vista obscurecida já não distingue os
amigos dos inimigos, nem o homem honesto do homem desprezível; a cólera faz com
todos da mesma maneira; pouco importa o mal que ela faz a si própria; ela se
resolve assim, ela sente uma espécie de prazer que tem que satisfazer a
qualquer custo. Sim, esse abrasamento do coração não vem sem um certo prazer, e
ele chega a exercer sobre a alma uma tirania mais imperiosa do que qualquer
outro prazer, e assim vira de cabeça para baixo seu estado normal. A cólera
arrasta naturalmente atrás de si o orgulho insolente, as inimizades sem causa,
os ódios cegos, as ofensas gratuitas; ela dispõe constantemente às provocações
e ultrajes. O que não faz ela dizer, aquele a quem possui! A alma aturdida em
seu tumulto, arrastada por sua violência, já não encontra apoio para resistir
aos seus violentos ataques”.
Basílio
interrompeu-me: “Pare, você já falou muito contra seu pensamento. Quem não sabe
que ninguém mais do que fosse é isento dessa doença?”.
Eu lhe
respondi: “Mas por que, caro amigo, expor-me a esse fogo? Por que despertar a
besta feroz que dorme? Não sabe você que eu devo essa calma, não à minha
virtude, mas ao meu amor pela solidão? Quando alguém tem inclinação para a
cólera, precisa viver só, ou em sociedade com um ou dois amigos; dessa maneira
evitará o incêndio que, ao contrário, irá devorá-lo caso caia no abismo das
preocupações de um encargo pesado. E ele não se perderá só, mas arrastará
muitos ao precipício, tornando-os menos atentos em manter a moderação. Os povos
são naturalmente dispostos a considerar a conduta de seus chefes como um modelo
a seguir em sua formação. Como acalmar nos outros as efervescências de humor,
quando se é incapaz de dominar a própria? Que homem do povo consentirá em
corrigir seus furores, vendo que seu bispo se enfurece? Sua dignidade, que ele
expõe ante todos os olhares, não permite que nenhum desses vícios permaneça
oculto; até os menores se tornam públicos rapidamente. O atleta que não se
expõe, que não luta, esconde facilmente sua fraqueza; mas quando ele se despe e
desce à arena, vemos prontamente quem ele é. Da mesma forma, os homens que
vivem em retiro e longe dos negócios podem estender sobre seus vícios o véu da
solidão. Mas coloquem-nos no mundo, e ei-los obrigados a deixar o manto que os
cobria – falo da solidão – e a mostrar desnuda sua alma ante a agitação do
século”.
“Tanto os
bons exemplos servem para inflamar a santa emulação da virtude, quanto os maus
contribuem para espalhar entre os povos o relaxamento e a negligência na
observação do dever. É preciso assim que o sacerdote tenha uma alma que irradia
beleza e cuja luz ilumine e alegre as almas daqueles que têm os olhos voltados
para ele. As faltas dos homens vulgares permanecem enterradas na sombra e só
prejudicam aqueles que as cometem. O escândalo de um home que ocupa uma posição
elevada no mundo está exposto a todos os olhares e se torna uma espécie de
flagelo público, tanto por autorizar a tibieza daqueles que se assustam com os
rudes exercícios da virtude, como por desencorajar os que desejariam levar uma
vida melhor. Acrescente a isso que as faltas das pessoas individuais, quando
conhecidas, não têm uma influência perigosa sobre as disposições dos demais;
mas o sacerdote, nada do que ele faz permanece oculto, e cada uma de suas
ações, indiferentes em si, tomam um aspecto sério perante a opinião geral. Os
erros são medidos mens pela gravidade do delito quanto pela posição daqueles
que os comete. Que o sacerdote se revista, por assim dizer, de um zelo estrito,
de uma contínua vigilância sobre si mesmo, como se fosse de uma armadura de
diamante que não deixa nenhum ponto fraco ou espaço a descoberto por onde possa
penetrar o golpe mortal. Tudo o que o cerca tanta a todo tempo feri-lo e
abatê-lo, não apenas seus inimigos declarados, como ainda os que fingem ser
seus amigos”.
“É preciso
escolher, para o sacerdócio, almas semelhantes aos corpos dos três jovens que a
graça divina tornou invulneráveis em plena fornalha da Babilônia. O fogo com
que estão ameaçados não se alimenta de gravetos, de resina ou de estopas, mas
de materiais mais perigosos; é um fogo que não se vê, é o fogo da inveja que
envolve o sacerdote com suas chamas devoradoras, chamas que se erguem, que se
estendem e se atiram sobre sua vida, e que a penetram por inteiro com uma
atividade que jamais o fogo material chegou a ter contra os corpos dos três
jovens. Assim que a inveja encontra uma ponta de matéria combustível, sua chama
se agarra a ela imediatamente, consumindo essa parte defeituosa; quanto ao
restante do edifício, ainda que ele seja mais brilhante do que os raios do sol,
ela o destrói com sua fumaça e o enegrece por completo. Enquanto a vida do
sacerdote está em perfeito acordo com a regra de seus deveres, nada há para
temer das armadilhas de seus inimigos. Mas se uma única irregularidade, por
menor que seja, escapar à sua atenção (ainda que isso seja mais do que
perdoável, por ser ele homem, e por estar atravessando esse mar semeado de
recifes que se chama ‘vida’), e eis que todas as suas virtudes já não lhe
servem de nada contra as línguas de seus acusadores; basta um nadinha para
ofuscar toda sua vida. Todo mundo julga o sacerdote, e o julga como se ele já
não estivesse em sua carne, como se não pertencesse à raiz comum a todos, como
se fosse um anjo liberto de todas as fraquezas do homem”.
“Enquanto um
tirano é forte ele é temido, bajulado, não se pode derrubá-lo; mas se seus
negócios declinam, adeus ao respeito simulado; aqueles que no dia anterior se
diziam seus partidários logo se declaram contra ele e lhe fazem guerra; eles
procuram os pontos vulneráveis de seu poder e solapam seus fundamentos,
destruindo-o afinal. O mesmo acontece a um bispo: mal aqueles que o cercam com
suas homenagens e bajulações, crendo-o solidamente estabelecido, o veem
balançar, ainda que ligeiramente, aproveitam-se da ocasião e se põem a trabalhar
em comum acordo e com todas as suas forças para fazê-lo cair como um tirano, ou
pior. O tirano teme sua guarda pessoal; também o bispo se vê reduzido a temer
aqueles que dele se aproximam mais de perto. São esses que cobiçam seu posto,
são eles que melhor conhecem sua vida e seus negócios. Testemunhas diárias de
suas ações, são os primeiros a pegar a primeira falta que lhe escapar, e podem
obter crédito em suas calúnias, fazendo passar por grave o que é leve, e assim
por a perder seu bispo que sucumbe vítima de suas mentiras. É o contrário da
palavra do Apóstolo: ‘Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se é
glorificado, todos se alegram com ele[17]’.
Contra tais assaltos não existe recurso senão numa piedade a toda prova”.
“Eis o tipo
de guerra na qual você quer que eu me engaje. Eis a confusão terrível da qual
você crê que eu seja capaz de me defender. Quem lhe disse isso? Se foi Deus,
mostre-me seu oráculo e eu me submeterei. Mas se você não possui mais do que a
vã opinião dos homens, não se iluda. Numa causa que me é tão fortemente
pessoal, não ache ruim que eu confie mais no meu sentimento do que no dos
outros; pois ‘ninguém conhece melhor o que existe no homem do que o espírito do
homem[18]’, como
disse o Apóstolo”.
“Creio ter
dito o bastante para persuadi-lo, caso você ainda tivesse qualquer dúvida, de o
quanto eu estaria exposto ao ridículo, eu e os que houvessem eleito, se, depois
de aceitar o episcopado, eu me visse obrigado a retomar meu primeiro modo de
vida”.
“E além da
inveja, existe ainda outra paixão mais violente, que arma muitos homens contra
um bispo, que é a cobiça que essa dignidade excita. Assim como existem filhos
ambiciosos que se afligem com a vida longa de seus pais, existem também homens
para os quais a longa duração de um reinado episcopal causa uma impaciência
extraordinária. Não ousando atentar contra a vida do titular, eles trabalham
por sua deposição com tanto mais ardor, na medida em que cada um aspira
substituí-lo, em que cada um espera que a escolha recairá sobre si”.
15. “Quer que
lhe apresente sob outro aspecto essa luta tão pródiga em perigos de toda
espécie? Transporte-se a qualquer uma dessas solenidades públicas que acontecem
para as eleições eclesiásticas, e observe: tantos quantos indivíduos as
compõem, tantas serão as línguas afiadas para destroçar a reputação do
sacerdote. Os eleitores se dividem em facções diversas; não existe nenhum
acordo dentro do colégio dos sacerdotes, nem entre si nem com seu chefe;
ninguém se entende; um quer esse, outro aquele. A causa dessa confusão é que
ninguém considera a única coisa que deveria ser considerada, as qualidades
interiores. São outros os motivos que decidem a eleição. ‘Aquele ali é de boa
família, eu lhe dou meu voto’, diz um; ‘e eu, replica outro, dou o meu àquele
outro porque é rico e pode passar sem os recursos da Igreja’; escolhe-se alguém
por ter mudado de um lado para outro, ao qual pertence o que vota; outro,
porque possui relações de sociedade ou de parentesco; outro, porque soube
captar as simpatias com bajulações. Mas, terão eles as virtudes e os talentos
necessários? Isso é coisa que não embaraça ninguém”.
“Quanto a
mim, estou tão longe de considerar esses títulos de recomendação como sendo
suficientes para garantir o mérito do candidato ao sacerdócio, que, mesmo
supondo piedade da parte deles – coisa que já é um grande ponto – não me
arriscaria a admiti-lo de pronto, caso não sejam apresentadas testemunhas de
consumada prudência. Conheci homens que de longa data se dedicavam à solidão e
aos jejuns; eles agradaram a Deus por todo o tempo em que tiveram a felicidade
de viver a sós consigo mesmos, e de não ter que se preocupar senão com sua
salvação pessoal; eles faziam a cada dia grandes progressos na santidade; mas,
transportados ao teatro do mundo e forçados a endireitar os desvios dos povos,
alguns logo deixaram claro que estavam aquém de semelhante tarefa, e tiveram
que renunciar a ela; outros, obrigados a permanecer, se afastaram da santa
austeridade de sua primeira vida, e se perderam sem nenhum benefícios para os
outros”.
“Pode mesmo
acontecer que um homem tenha encanecido nas funções subalternas do ministério,
sem que eu o considere digno de ser promovido a um grau mais elevado apenas por
respeito à sua velhice. Por que seria ele elevado, se a idade não o tornou mais
digno? Não digo isso para desconsiderar os cabelos brancos, nem para excluir
aqueles que ganharemos na solidão: podemos citar mais de um que honraram seu
ministério de maneira notável; o que quero mostrar é que, se uma grande piedade
ou uma longa idade não fazem com que aqueles que as possui seja digno do
episcopado, com mais razão os motivos expostos acima serão insuficientes.
Entretanto, motivos ainda mais absurdos são colocados em primeiro lugar. Por
exemplo, existem aqueles que são admitidos ao sacerdócio para impedi-los de
aderir ao partido contrário; outros são eleitos por causa de sua malícia mesma,
por medo que, rejeitados, não façam um mal ainda maior. É possível coisa mais
iníqua? Qual! Homens miseráveis, cheios de vícios, serem honrados quando
deveriam ser punidos! Suas ações mereceriam que fossem proibidos de passar dos
umbrais da igreja, e eles recebem a recompensa de subir os degraus do
santuário! E nós encontraremos ainda causas para a cólera de Deus, nós que
entregamos as coisas mais santas e os mistérios mais temíveis nas mãos de
perversos e de incapazes! É assim que confiamos a autoridade a mãos tão
impuras, que profanam sua santidade, e mãos tão débeis que não podem suportar
tal fardo, e eis porque a Igreja se vê mais agitada do que Euripe[19]”.
“Houve época
em que eu zombava dos príncipes seculares, porque, na distribuição das honras,
eles viam menos os méritos das pessoas do que a riqueza, a idade ou o crédito.
Mas depois não considerei mais essa desordem como estranha, porque o mesmo
escândalo vi acontecer entre nós”.
“Eu já me
espanto que pessoas inteiramente dedicadas a interesses terrestres, sem outra
motivação do que sua paixão pela glória e o dinheiro, cometam faltas desse
gênero; mas que aqueles que, ao menos exteriormente, professam renunciar a
todas as vaidades da terra, não deixem de agir segundo os mesmos princípios;
que tratem os interesses do céu como se fossem de um pedaço de terra ou qualquer coisa do gênero; que tomem
às cegas homens que em nada se distinguem da multidão para confiar-lhes o
governo das almas – almas pelas quais o Filho único de Deus quis se despojar de
sua glória, se fazer homem, tomar a forma de escravo[20], expor
sua face aos escarros, às bofetadas, para afinal morrer, em sua carne, a morte
mais ignominiosa?”.
“E as coisas
não param por aí; abusos mais gritantes acontecem. Não apenas os indignos são
admitidos, como são expulsos os bons. É como se fosse preciso, a todo custo,
sacudir dos dois lados a segurança da Igreja; como se o primeiro meio não fosse
suficiente para acender a cólera de Deus, e que fosse preciso acrescentar-lhe
um segundo, não menos funesto. Aos meus olhos, é um mal igual afastar os homens
úteis, como admitir os inúteis. Mas é o que acontece, e, por conseguinte, o
rebanho de Jesus Cristo não encontra consolo em parte alguma, e quase não pode
respirar. Não merecem essas coisas os raios do céu, todos os fogos de um
inferno ainda mais rigoroso do que aquele com o qual somos ameaçados? Assim
sofre e suporta esses grandes males, Aquele que não deseja a morte do pecador,
mas que ele se converta e viva[21]. Quem
não se admiraria de tamanha bondade? Quem não ficaria estupefato à vista de
tanta misericórdia?”.
“Os filhos
de Cristo arruínam o império de Cristo mais funestamente do que seus inimigos
declarados, e Ele, sempre bom, sempre misericordioso, ainda os chama à
penitência! Glória a Ti, ó Senhor, glória a Ti! Que abismo de bondade existe
Nele, que tesouro de paciência! Homens que, à sombra de Seu nome, de obscuros
que eram se tornaram ilustres, abusam das honras, contra Aquele mesmo a quem as
devem, ousam o que não é permitido ousar, insultam as coisas santas, afastam ou
expulsam do santuário os homens virtuosos, a fim de dar aos ladrões a maior
liberdade de fazer o que bem entendem”.
“Se você
quiser conhecer as causas de tantos males, verá que são as mesmas dos
anteriores. Sua raiz, sua mãe, por assim dizer, é a inveja; mas elas apresentam
uma enorme variedade de formas. Um é demasiado jovem, outro não sabe bajular;
esse não é bem visto por aquele; determinado figurão veria com desaprovação a
eleição de alguém em detrimento do candidato que ele próprio apresentou; um é
bom e paciente, outro é terrível com os pecadores; para outros, será por
qualquer pretexto igualmente bem escolhido. Pois pretextos não faltam às
pessoas de quem eu falo, e elas os encontram tantos quantos querem, e
considerarão até mesmo crime ser rico, se não encontrarem outra objeção a
fazer. Sem elevações intempestivas,
dizem eles ainda, essa dignidade exige que se chegue a ela gradualmente. Dali a
pouco, mostram-se de uma fecundidade inesgotável para encontrar motivos. Aqui
eu me pergunto o que deve fazer um bispo contra quem sopram tantos ventos
contrários. Como se manter firme em meio às vagas? Como afastar tantos ataques?
Se ele quiser determinar seu voto pelas luzes de sua consciência e de sua
razão, logo uma nuvem de inimigos se declaram, tanto contra ele como contra
aquele que ele deseja eleger; a contradição não tem fim; surgem novas
especulações todos os dias; sarcasmos amargos caem como geada sobre os
candidatos; e a batalha dura até que se seja forçado a bater em retirada, para
favorecer os candidatos favorecidos pela outra parte”.
“Podemos
comparar o bispo a um piloto que tenha recebido piratas a bordo de seu navio,
os quais, durante toda a travessia, aguardaram a ocasião favorável para
matá-lo, a ele, à tripulação e aos passageiros. Se ele preferir agradar aos
homens do que salvar sua alma, e se admitir aqueles aquém deveria afastar, será
a Deus mesmo, ao invés dos homens, que ele terá como inimigo que situação pode
ser mais embaraçosa? Sua posição, perante os ladrões, se torna ainda mais
crítica do que antes, porque eles agem em comum acordo, e esse concerto aumenta
suas forças. Quando os ventos violentos começam a soprar em direções contrárias
e a se digladiar, o mar, até então tranquilo, se torna de súbito furioso,
levanta suas ondas e engole os navegadores; da mesma forma, quando a Igreja
admite em seu seio homens perversos, sua calma se transforma numa tempestade
que a enche de naufrágios”.
16. “Imagine
como se deve ser para resistir a tão grandes tempestades, e para afastar com
habilidade os obstáculos que se opõem à salvação de todo o povo. É preciso ser
inteiramente grave e sem ostentação; fazer-se temido, mas ser bom; saber
comandar e ser afável; incorruptível e obsequioso; humilde, sem rastejar;
enérgico e manso: é com todas essas qualidades reunidas que se poderá enfrentar
a luta; é com essas condições que ele poderá adquirir autoridade bastante para
fazer aprovar, malgrado a oposição geral, um candidato digno, bem como afastar
um indigno contra o favorecimento do público, demonstrando não ter olhos senão
para uma única coisa: a edificação da Igreja, e sendo ainda inacessível à raiva
e ao favor”.
“Pois bem!
Estaria eu errado em recusar uma honra tão perigosa? E eu ainda não disse tudo,
ainda falta muito a dizer. Não deixe de escutar um amigo, um irmão que tenta se
justificar dos erros que você acusa. Além do benefício de me desculpar em seu
espírito, eu terei ainda o de ser útil para a sua administração. Quando estamos
a ponto de ingressar nessa carreira, é preciso sondar o terreno antes de
qualquer coisa; é uma precaução que devemos ter antes de se engajar aí para
todo o bem. Por que isso? Porque assim teremos a vantagem de não sermos
considerados desprevenidos; as dificuldades virão, mas encontrarão um homem
pronto a combatê-las pelo fato de as conhecer bem”.
“Devo
falar-lhe ainda da direção das viúvas, da solicitude com que devemos cercar as
virgens, das dificuldades que apresenta a jurisdição eclesiástica? São grandes
os cuidados que reclamam cada um desses ramos da administração eclesiástica, e
maiores ainda os perigos que o bispo encontra neles”.
“Comecemos
pelo que parece mais fácil, o cuidado com as viúvas. Pode parecer a princípio
que se trata de algo bem simples, e que quem se ocupa disso resolve tudo
dispensando uma certa soma de dinheiro distribuindo auxílios[22]. Parece
nada, mas uma grande circunspecção é ainda aí necessária, sobretudo quando se
trata de inscrevê-las no registro da Igreja; inscrevê-las ao acaso, como se
costuma fazer, produz graves males. Já vimos viúvas arruinar as casas,
perturbar a gestão dos bens, se desonrar roubando, frequentando cabarés ou
outras desordens vexatórias. Alimentar tais mulheres com recursos da Igreja é
atrair sobre si a vingança de Deus e a severa condenação dos homens, e esfriar
a caridade dos benfeitores. Quem poderá suportar que a caridade que lhe é
pedida, e que é feita em nome de Jesus Cristo, passe às mãos de quem desonra o
nome de Jesus Cristo? Eis as razões que tornam um severo exame necessário; esse
também é preciso para impedir que outras viúvas, que podem se manter sozinhas,
não se juntem a essas de que falei, para devastar a mesa dos pobres”.
“Tomadas
essas precauções, outro cuidado se apresenta, e grave: é preciso tomar medidas
para que as coisas necessárias ao seu sustento não faltem, mas venham de uma
fonte que não seca jamais. A infelicidade da pobreza involuntária é ser
insaciável; ela se queixa sem cessar, ela é ingrata. É preciso muita prudência,
muito zelo, para lhe calar a boca, retirando-lhe todo motivo de queixa.
Entretanto, basta que um homem se mostre superior ao amor pelo dinheiro, e a
multidão imediatamente o proclama capaz de suprir esse encargo; quanto a mim,
reconheço que o desinteresse é uma qualidade indispensável, sem a qual seríamos
não administradores, mas devastadores, lobos e não cordeiros; mas não creio que
ela baste por si só; junto com ela existe outra virtude que é preciso encontrar
num candidato”.
“Essa
virtude é, para os homens, fontes dos maiores bens; ela conduz a alma como a um
porto tranquilo e ao abrigo das tempestades: é a paciência. Ora, a classe das
viúvas, assegurada por sua pobreza, sua idade, seu sexo, costuma usar uma
linguagem bem pouco limitada, para dizer o mínimo. Elas gritam
intempestivamente, elas acusam a torto e a direito, elas se lamentam quando
deveriam expressar reconhecimento, elas condenam quando deveria aprovar. É
preciso que o bispo tenha a coragem de suportar a tudo: seus clamores
inoportunos, suas lamúrias indiscretas – nada deve excitar sua cólera. Suas
misérias são mais dignas de compaixão do que de reprovação: insultar seus
infortúnios, aumentar a afronta às amarguras de sua pobreza, seria o cúmulo da
barbárie. É por isso que o Sábio[23], considerando
de um lado a alteração e o orgulho naturais ao homem, e sabendo, por outro
lado, o quanto a pobreza é capaz de abater a mais nobre alma, aconselhando-lhe
uma importuna impertinência, não deseja que quem sofre por suas desgostosas
solicitações, se encolerize. Ao se irritar contra os pobres por causa da
frequência de suas demandas, ele se exporia a se tornar seu inimigo, ao invés
de seu consolador, como se deve. O Sábio lhe recomenda mostrar-se afável e amistoso:
incline sem mau humor seu ouvido ao pobre, responda a ele com doçura palavras
de paz[24]. O
mesmo Sábio, sem dizer uma palavra de reprimenda ao importuno (quem teria essa
coragem diante de um suplicante prosternado?) continua a se dirigir àquele que deverá
socorrer o indigente, e o exorta a erguer o pobre com um olhar doce e uma boa
palavra, antes de lhe dar a esmola”.
“Ora, se
alguém, sem roubar os bens das viúvas, se enfurece a ponto de maltratá-las com
palavras ou coisa assim, não apenas não aliviará o peso de sua pobreza, como há
de agravá-lo. A impertinência a que elas são levadas pela necessidade não as
impede de sentir a injúria. O medo da fome as obriga a mendigar, a mendicância
produz a impertinência, e essa atrai as humilhações, círculo fatal que mantém a
alma encerrada nas trevas e no desespero”.
“É preciso
que um administrador tenha suficiente paciência para não aumentar sua dor com
suas violências, para acalmar em grande parte sua aflição com palavras de
consolação. O pobre a quem insultamos e pouco tocado pela esmola que damos, por
abundante que seja; o socorro em dinheiro não compensa a ferida deita ao amor
próprio. Ao contrário, aquele que escuta uma boa palavra, que recebe uma
consolação junto com a esmola, sente uma alegria e uma satisfação muito maior.
A maneira de dar duplica o dom. o que eu digo não falo por mim, mas por aquele
que nos exorta todo o tempo: ‘meu filho, diz ele, não misture reprimendas ao
bem que você fizer, não acompanhe os dons com palavras que afligem: o orvalho
não refresca um grande calor? Uma palavra doce vale mais do que o dom. Sim, uma
só palavra é melhor do que a oferenda; e ambas as coisas se encontram no homem
caridoso’[25]”.
“Quem toma a
seu cargo as viúvas deve possuir, além da doçura e da paciência, o conhecimento
da economia. Se lhe faltar essa qualidade, também os bens dos pobres sofrerão.
Eu ouvi contar de um homem que, sendo encarregado dessa parte da administração,
não destinava aos pobres mais do que uma pequena parte do dinheiro,
considerável, destinado às esmolas. É verdade que ele não reservava o resto
para seu uso próprio, mas o escondia cuidadosamente sob a terra, onde
conservava essa riqueza. Sobreveio uma guerra, o dinheiro foi descoberto e
levado pelo inimigo. Existe aqui uma justa medida a se conservar, que é não ser
a Igreja nem rica, nem pobre. Na medida em que você recebe, distribua aos
indigentes. Se a Igreja possuir tesouros, que eles residam nos corações dos
fiéis”.
“No capítulo
das viúvas, acrescentemos a hospitalidade que devemos oferecer aos
estrangeiros, e o auxílio que é devido aos enfermos; quantas despesas você acha
que exigem esses detalhes, e quanta prudência não é necessária para bem se
desincumbir deles? Os gastos não são menores do que acabamos de mencionar, e
muitas vezes são consideráveis. Quanto ao que responde pelos gastos, é preciso
que ele tenha talento para obter recursos; mas ser-lhe-ão necessárias discrição
e prudência para atrair os homens capazes de doar, voluntária e generosamente;
ele deve prover o alívio dos enfermos sem ferir o espírito dos benfeitores. O
cuidado com os doentes exige toda a atividade e diligência possíveis; eles em
geral estão enfraquecidos e sem energia, e, se não forem tomadas precauções e
solicitudes infinitas, a menor negligência pode ser-lhes extremamente
prejudicial”.
17. “A direção
das virgens é uma atividade tanto mais delicada, na medida em que elas formam a
parte mais preciosa e verdadeiramente real do rebanho de Jesus Cristo. Hoje em
dia uma infinidade de pessoas cheias de uma infinidade de vícios invadiu
escandalosamente o coro das castas esposas de Cristo. Isso constitui para a
Igreja objeto de lágrimas abundantes. Assim como existe uma grande diferença
entre a falta cometida por uma pessoa jovem e de condição livre, e a que comete
seu escravo, da mesma forma não se pode comparar as faltas das virgens com as
das viúvas. Essas últimas podem, sem maiores consequências, se entregar à
dissipação; tanto podem despedaçar umas às outras pelos farrapos da
mendicância, como podem prodigalizar adulações; elas podem afetar maneiras
audaciosas, se mostrar por toda parte, até nas praças públicas. Mas a virgem
tem combates maiores a sustentar; elas aspiram à mais alta perfeição; é a vida
dos anjos que elas têm por missão viver na terra; elas se propõem a fazer,
ainda que revestidas de carne mortal, aquilo que parece pertencer apenas às
potências imateriais. Assim sendo, as saídas frequentes, as visitações ociosas,
as conversas sem objetivo nem razão lhes são proibidas, e elas devem mesmo
ignorar toda palavra que possa cheirar a injúria ou bajulação”.
“As virgens
têm necessidade de uma guarda segura, de uma proteção assídua: o Inimigo da
santidade as ataca de preferência; ele as espicaça sem cessar, ele lhes estende
armadilhas, sempre pronto a devorá-las, caso alguma vacile e caia; também os
homens procuram seduzi-las; juntamente com esses inimigos, conspira o
arrebatamento dos sentidos: assim são duas guerras a sustentar a um só tempo,
uma que assalta desde fora, outra que provoca a perturbação desde dentro”.
“Quantos
motivos de alarme para um diretor! Quantos perigos! E, sobretudo, que dor, se –
não o queira Deus! – explode alguma desordem imprevista entre elas! Se uma
jovem que jamais saiu da casa paterna é motivo de insônia para seu pai; se os
cuidados que ele tem para com ela afasta o sono de suas pálpebras, tanto ele
teme para que ela não seja estéril, que não passe da idade de se casar, que não
desagrade a seu marido. Se é assim com o pai segundo a carne, que devemos pensar
do pai espiritual que, é verdade, não tem nenhum desses temores, mas que sente
outros bem mais graves?”.
“Aqui não se
trata de ofender um marido, mas o próprio Jesus Cristo. Se existe uma
esterilidade a se temer, não é aquela que se detém na vergonha, mas a que vai
até a perda da alma; pois foi dito: ‘toda árvore que não dá bons frutos será
cortada e atirada ao fogo[26]’. A
virgem repudiada pelo Esposo celeste não fica quite por receber o ato de
repúdio e se retirar: ela expiará sua falta por um suplício eterno. O pai
segundo a carne possui muitos recursos para tornar fácil a guarda de sua filha:
a mãe, a babá, o número de seus domésticos, a segurança da casa o auxiliam na
supervisão e na proteção da jovem virgem. Ela não tem liberdade para se mostrar
com frequência no exterior; e, quando ela sai, ninguém a obriga a se deixar
ver, pois a obscuridade da tarde pode, tanto quanto os muros de seu quarto,
esconder aquela que não quer ser vista”.
“Por outro
lado, ela está livre de tudo o que poderia obrigá-la a aparecer aos olhares dos
homens; nem a necessidade de buscar as coisas que precisa, nem as atenções aos
seus interesses, nem qualquer outro motivo a obrigam a se encontrar com
estranhos; seu pai a dispensa de todos esses cuidados e não lhe deixa senão o
de conservar sua decência virginal em sua conduta e em sua linguagem”.
“Ao
contrário, o pai espiritual está cercado de circunstâncias que tornam sua
supervisão difícil, para não dizer impossível. Não lhe é permitido sequer ter
em sua casa a jovem que ele deve vigiar. Tal coabitação não seria nem decente,
nem isenta de perigos: eles poderiam se preservar do mal, e manter intacta sua
castidade; mas sempre haveria o escândalo causado às almas fracas, de que eles
teriam que prestar contas com não menos severidade do que se existissem entre
eles relações criminosas. Sendo a coabitação ilícita, como agir para conhecer
os movimentos que se levantam no coração da jovem, para reprimir aqueles que
são desregrados e cultivar e desenvolver os que estão em ordem e pedem uma boa
direção? O bispo sequer pode estar informado com exatidão das saídas das
virgens, nem dos motivos que as chamam para fora de suas casas. Pobres como
são, em sua maioria, donas de si mesmas, obrigadas a prover suas necessidades
básicas pessoalmente, quantas ocasiões têm para se dispersar fora quando
querem, quantos pretextos para escapar à supervisão! O bispo prescreverá a elas
que permaneçam em suas casas, e para cortar pela raiz todas as idas e vindas,
ele lhes fornecerá todas as coisas necessárias à sua subsistência, e fará com
que sejam servidas por uma pessoa do mesmo sexo. Ele não lhes permitirá ir aos
funerais ou às vigílias noturnas. A astuciosa serpente sabe muito bem
aproveitar até o pretexto das boas obras para destilar seu veneno. É preciso
que a virgem cristã guarde uma clausura rigorosa; umas poucas vezes ao ano ela
poderá franquear os umbrais de sua moradia, quando a forçarem motivos
indispensáveis e necessários”.
“Poder-se-á
me dizer: que necessidade tem um bispo de descer até todos esses detalhes? É
preciso saber que não pode existir parte de uma administração que lhe seja
estranha; que todas as queixas que podem se levantar a esse respeito recairão
sobre ele, de modo que mais vale que ele as gerencie por si próprio, do que
deixá-las à responsabilidade de outros. Com isso, ele evitará as acusações às
quais estaria exposto por causa de faltas cometidas em seu nome. Ademais, ao
fazer tudo por si mesmo, ele expede facilmente todo seu trabalho. Pois diz a
experiência que quem se sujeita a ouvir a opinião de todo mundo extrai daí
menos benefício do auxílio que lhe é prestado, na medida em que a diversidade
de opiniões ou a pouca concordância dos cooperadores lhe causa mais
aborrecimentos e embaraços”.
“De resto,
não é possível marcar em detalhes todas as solicitações que pede o governo das
virgens. Ainda que não se tratasse do discernimento das que devem pertencer à
Igreja, só esse trabalho bastaria para tornar esse ministério extremamente
laborioso”.
18. A jurisdição
é para o bispo uma fonte de contrariedades sem número, ela lhe impõe um
trabalho infinito, ela está eriçada de dificuldades que os juízes regulares não
encontram. Encontrar o direito é coisa difícil, e mais difícil ainda é não
violá-lo depois de tê-lo encontrado. É um trabalho laborioso e, acrescentarei,
perigoso. Já vimos cristãos fracos renunciar à fé depois de algum assunto infeliz
no qual lhe faltou proteção; pois aqueles que se queixam de injustiça devotam
ódio igual aos que o ofenderam e aos que recusaram defendê-lo. Eles não querem
saber, nem da complicação dos negócios, nem da dificuldade das circunstâncias,
nem das limitações restritas do poder sacerdotal, nem de nada no mundo. Juízes
inexoráveis de suas próprias causas, eles não compreendem mais do que uma
justificação: que se livrem dos males que os oprimem. Se você não puder
obter-lhes essa libertação, poderá apresentar-lhes todas as razões imagináveis
que não escapará de sua condenação. E, como eu falei de proteção, existe outro
tipo de queixas que você irá descobrir”.
“Se a cada
dia o bispo não percorrer casa por casa, com mais assiduidades do que quem não
tem outra coisa para fazer, uma infinidade de gente se sentirá ofendida. Não
apenas os doentes, mas também os sãos querem receber a visita de seu bispo; e
bom seria que fosse a religião que lhes inspirasse esse desejo! Mas não, é
simplesmente a honra, uma distinção da qual se sentem orgulhosos. Se, por
infelicidade, existe alguém rico, um homem poderoso a quem ele visita com mais
frequência do que a outros - no próprio interesse e bem comum da Igreja – logo
se vê condenado com os nomes de bajulador e cortesão”.
“Mas por que
falar de proteções e de visitas? Não é preciso mais do que uma simples saudação
para atrair sobre o bispo uma quantidade de lamúrias, a ponto de sufocá-lo e
sucumbi-lo debaixo de tantos desgostos. Pedem-lhe até um simples olhar. Suas
ações mais simples passam pela balança da crítica; nota-se o tom de sua voz, os
movimentos dos olhos, até o sorriso: como ele sorriu graciosamente para um,
como saudou a outro em voz alta e um rosto aberto! A mim ele mal dirigiu a
palavra, e apenas por educação. Quando ele entra em um lugar, se esquecer de
olhar ao redor e saudar a todos, um após outro, é um homem que não sabe viver.
Assim, quem, a menos que possua uma força extraordinária, poderá se bastar
contra tantos acusadores, seja para prevenir todos os seus ataques, seja para
afastá-los vitoriosamente? Seria preciso que um bispo não tivesse acusadores;
sendo isso impossível, que ele pudesse reduzir a nada as acusações; e mesmo
isso não é fácil! Quantas pessoas se divertem falando mal a torto e a direito,
sem o menor fundamento! Ele deve enfrentar corajosamente os boatos maliciosos,
e, na medida do possível, não se deixar levar pela emoção. Suportamos com mais
facilidade uma reprovação merecida, porque a consciência, o mais formidável dos
acusadores, já o fizera, e com muito mais severidade; mas, quando a acusação é
sem fundamento, nos enfurecemos por um primeiro movimento de cólera, ao qual se
segue logo o desencorajamento e o abatimento, a menos que um longo exercício de
paciência não tenha habituado a alma a se elevar acima da vã opinião dos
homens. Quanto a receber as flechas lançadas pela calúnia sem perder a calma e
o sangue frio, isso é coisa bem difícil, podemos dizer mesmo, quase
impossível”.
“Devo falar
anda do quanto custa a um bispo, quando se vê na aflitiva necessidade de
afastar alguém da comunhão da Igreja? E ainda que fosse o caso de deplorar
apenas a dor do bispo; mas que temível infelicidade! E quanto não devemos temer
que o culpado, exasperado por uma punição demasiado severa, não chegue ao
extremo de que fala São Paulo, e que não sucumba ao excesso de tristeza[27]”.
A maior
prudência é aqui necessária para que o mal não venha a dominar, pelo efeito do
próprio remédio que se destinava a curar. Todas as faltas cometidas depois
recaem sobre o médico ignorante que não foi capaz de avaliar o ferimento, e
exagerou na cauterização. Quanto temor não deverá ter o bispo, quando pensar
que deverá prestar contas, não só de seus próprios pecados, como daqueles de
todo seu povo? Se nossas próprias ofensas já bastam para nos gelar de medo, e
nos fazer perder a esperança de evitar o castigo eterno, o que poderá esperar
aquele que terá que se defender de tantos acusadores? Escute São Paulo, ou
melhor, Jesus Cristo falando pela boca de seu apóstolo: ‘Obedecei aos vossos
superiores, e sede-lhes submissos, porque eles velam por vossas almas, como se
delas prestassem contas[28]’. Não
existe nessa ameaça tudo o que é preciso para sermos penetrados do mais vivo
terror? Por mim, sinto-me ainda além dessa expressão”.
“Eu concluo
que não existe ninguém, por mais duro, por mais difícil de persuadir, que não
se sinta agora convencido de que, ao recusar o episcopado, eu agi, não por
orgulho nem por presunção, mas pelo temor de destruir minha salvação num
ministério tão grave”.
[1] 2 Coríntios 3: 10.
[2] Mateus 28: 18.
[3] João 20: 23.
[4] João 3: 5.
[5] João 6: 54.
[6] Levítico 14.
[7] Números 16.
[8] Tiago 5: 14-15.
[9] 2 Coríntios 11: 3.
[10] 1 Coríntios 2: 3.
[11] Romanos 9: 3.
[12] 1 Timóteo 3: 1.
[13] Mateus 5: 11-12.
[14] Cf. 1 Timóteo 3: 2.
[15] CF. Mateus 5: 22.
[16] Cf. Provérbios 15: 4.
[17] 1 Coríntios 12: 28.
[18] 1 Coríntios 2: 11.
[19] Estreito que separa a Eubeia (Negroponte) da
Beócia, no mar Egeu.
[20] Filipenses 2: 7.
[21] Ezequiel 18: 23; 33: 11.
[22] Timóteo 5: 16.
[23] Salomão.
[24] Eclesiástico 4: 8.
[25] Eclesiástico 18: 15, 17.
[26] Mateus 3: 10.
[27] Cf. 2 Coríntios 2: 7.
[28] Hebreus 13: 17.
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