segunda-feira, 24 de junho de 2019

São João Crisóstomo - Tratado do Sacerdócio - Livro Terceiro





1.      Eu continuei minha explanação: “Isso quanto à suposta ofensa feita àqueles que me honraram com seus votos, eis o que posso dizer para mostrar que jamais quis ferir alguém quando recusei a dignidade sacerdotal. Desde o começo, não me perdi na neblina do orgulho; e tentarei agora demonstrá-lo até ficar evidente”.

“Se tivessem me oferecido o comando de uma arma da ou o governo de um império, e tivesse eu recusado igualmente, a acusação poderia ter alguma verossimilhança; ou melhor, não haveria quem visse nessa recusa um traço de loucura. Mas quando se trata do Sacerdócio, dignidade que se eleva acima da realeza tanto quanto a alma se eleva acima do corpo, quem ousará me acusar de orgulho? Alguém desdenha um emprego de pouca importância, e se diz que trata-se de um insensato; outro recusa funções de uma ordem incomparavelmente mais relevante, e a esse se concede não acusá-lo de demência, para culpá-lo de orgulho; não é absurdo? Da mesma forma acusar-se-ia não de excesso de amor próprio, mas de alienação mental, a um homem que não aceitasse um rebanho de bois, que não quisesse ser boiadeiro, e ao mesmo tempo seria declarado, não louco, mas apenas orgulhoso, alguém que recusasse o império do mundo e o comando dos exércitos de todos os países da terra”.

“Não, esse raciocínio não se sustenta; e semelhantes calúnias desacreditam muito mais seus autores do que a mim. O único pensamento que podem aqui ter no mundo os homens que desdenham o sacerdócio, trai, dentre aqueles que ousam expressá-lo, a ideia pouco elogiosa que eles têm de si mesmos. Claro, se eles não vissem o santo ministério como uma coisa banal e de pouca valia, tal suspeita lhes viria ao espírito? Por que jamais alguém ousou supor algo semelhante a respeito da dignidade dos anjos, dizendo: eis uma alma humana que recusou por orgulho ascender ao nível da natureza angélica? É porque temos, a respeito dessas potências celestes, um alto conceito que não nos permite pensar que um homem possa aspirar a qualquer coisa mais relevante do que seu estado. De sorte que se poderia, com todo direito, acusar de orgulho aqueles que me dirigem tal reprimenda. Jamais, com efeito, eles teriam feito tal suposição a respeito do próximo, se, primeiramente, não tivessem desprezado o sacerdócio como uma coisa sem importância. Dirão eles que o desejo da glória me fez agir assim? Eu os convencerei de que eles refutam a si próprios e se combatem abertamente. Em verdade, não vejo o que eles poderiam ter imaginado de melhor, se quisessem me defender contra a acusação de vanglória”.

2.      “Pois se eu me deixasse levar por esse amor à glória, antes eu deveria aceitar do que recusar. Por que? Porque, aceitando, eu teria adquirido ainda maior glória. Como! Um homem tão jovem, um homem mal saído das confusões do século, e que de repente atrai a admiração do mundo, até ser preferido dentre aqueles que envelheceram a serviço da Igreja, até superá-los pelo número de votos obtidos; o que seria mais apropriado para fazer com que eu formasse a meu respeito uma grande e magnifica opinião, a posar diante dos olhos de todos como um venerável e ilustre personagem? Hoje em dia, ao contrário, com exceção de um pequeno número, toda a Igreja ignora até meu nome. De sorte que minha recusa não será conhecida mais do que de um pequeno número, os quais tampouco conhecerão a exata verdade sobre isso. Provavelmente muitos pensarão, ou que eu não fui eleito, ou que eu fui recusado após eleição por ter sido reconhecido como indigno, e não por ter recusado voluntariamente a eleição”.

3.       Basílio disse: “Mas os que souberem da verdade o admirarão”.

Eu disse: “Mas não me disse você que eles me acusam de vaidade e de orgulho? De quem, então poderei esperar aprovação? Da multidão? Ela ignora o que se passou. De alguns indivíduos melhor informados? Mas desse lado as coisas viraram ao contrário; pois o único motivo que o trouxe aqui agora, foi para saber o que lhes responder. De resto, por que insistir sobre isso com tanto cuidado, uma vez que, ainda que todo mundo fosse informado da verdade, nem por isso poderiam me acusar de orgulho, nem de vaidade; um pouco de paciência, e eu o farei ver isso claramente. Por outro lado, você compreenderá que não apenas aqueles que têm a respeito do sacerdócio uma ideia tão temerária (se é que existem, coisa que de minha parte não creio), como ainda os que atribuem gratuitamente essa temeridade aos outros, se expõem a um perigo terrível”.

4.      “O Sacerdócio se exerce sobre a terra, mas seu lugar está na ordem das coisas celestes: e isso está correto. Pois não foi um homem, nem um anjo, nem um arcanjo, nem nenhuma outra potência criada, mas o próprio divino Paráclito que estabeleceu esse lugar: foi ele quem deu aos homens a sublime confiança de exercer, ainda que revestidos de carne, o ministério dos puros espíritos. É preciso então que o sacerdote seja puro, como se ele estivesse no céu junto com os espíritos bem-aventurados. Que majestosa paramentação havia antes da lei da graça! Como tudo inspirava um santo temor! As sinetas, as granadas, as pedras preciosas que brilham sobre o peito e a éfode do Grande Sacerdote; o diadema, a tiara, o manto que se arrasta no chão, a espada de ouro, o santo dos santos e sua impenetrável solidão! E se considerarmos os mistérios da lei da graça, veremos como era vã a pompa exterior da antiga lei, e compreenderemos bem, nesse caso particular, a verdade de tudo o que foi dito sobre essa lei em geral: o que havia de notável nesse primeiro ministério sequer constitui uma glória, quando comparada à glória supereminente da segunda[1]. Quando você vê o Senhor imolado e estendido sobre o altar, o sacerdote que se inclina sobre a vítima e ora, e todos os fiéis cobertos de púrpura desse sangue precioso, você ainda crê estar entre os homens, e mesmo sobre a terra? Não foi antes você transportado aos céus, e, tendo banido todo pensamento carnal, como se fosse puro espírito, despojado da carne, não contempla você as maravilhas do mundo superior? Ó prodígio! Ó bondade de Deus! Aquele que assenta no alto, à direita do Pai, deixa-se nesse momento tomar pelas mãos de todos, e se entrega aos que desejam recebê-lo e apertá-lo junto ao coração; é isso que se passa aos olhos da fé. Essas coisas parecem-lhe dignas de desdém? São elas de natureza tal que as possamos considerar abaixo de nós?”.

“Vamos considerar a excelência de nossos santos mistérios por um outro prodígio. Imagine Elias, uma multidão imensa de pé ao redor dele, e a vítima estendida sobre as pedras; todos os assistentes aguardando no mais profundo silêncio, apenas o Profeta que ora em alta voz; e, de repente, a chama se precipita do céu para o holocausto. Tudo isso é maravilhoso, e próprio para penetrar a alma de temor. Mas agora passe desse espetáculo para a celebração de nossos mistérios, e verá coisas que excitam e ultrapassam toda admiração. O sacerdote está de pé, e ele faz com que desça do céu, não o fogo, mas o Espírito Santo. Sua oração é longa: ela se eleva, não para que uma chama venha do alto devorar as oferendas que foram preparadas, mas para que a graça, descendo sobre a hóstia, abrase por meio dela a todas as almas, tornando-as mais brilhantes do que a prata depurada no fogo. Não é preciso estar privado de razão e de senso para ser capaz de desprezar um mistério tão temível? Não sabe você que uma alma humana jamais suportaria o fogo do sacrifício, mas que seríamos prontamente destruídos sem o socorro poderoso da graça de Deus?”.

5.      “Se refletirmos que é um mortal, envolvido pelos laços da carne e do sangue, que pode se aproximar dessa natureza bem-aventurada e imortal, ficaremos espantados com a profundidade desse mistério, e ao mesmo tempo penetrados pela grandeza do poder que a graça do Espírito Santo confere aos sacerdotes. É por meio deles que essas maravilhas se realizam, e muitas outras não menos importantes, tanto para nossa salvação como para nossa glória. Criaturas que habitam sobre a terram que têm sua existência ligada à terra, são chamadas à administração das coisas do céu, ao exercício do poder que Deus não concedeu sequer aos anjos e arcanjos! Pois não é a eles que foi dito: ‘O que ligardes na terra será ligado no céu, e o que desligardes na terra será desligado no céu[2]’. Também os poderosos da terra têm o poder de ligar, mas somente os corpos; a ligação de que fala o Evangelho é um laço que arrebata a alma, e tudo o que se estende até os céus, daquilo que aqui em baixo fazem os sacerdotes, Deus o ratifica no alto; o Mestre confirma a sentença dos servidores”.

“Ele lhes deu, por assim dizer, a onipotência no céu. Ele disse: ‘Aqueles a quem perdoardes os pecados, esses lhes serão perdoados; aos que os retiverdes, ser-lhes-ão retidos[3]’.  Pode haver maior poder do que esse? O Pai entregou ao Filho todo julgamento, e vemos agora o Filho entregar esse mesmo poder inteiramente nas mãos dos seus sacerdotes. Não diríamos que Deus primeiramente os introduziu no céu, que os elevou acima da natureza humana e que os libertou das paixões, para em seguida revesti-los dessa suprema autoridade? Se um rei admite que um de seus súditos partilhe de seu poder, concedendo-lhe o privilégio de aprisionar ou libertar a quem melhor lhe parecer, tamanha honra atrairia contra ele a inveja e a consideração de todo o mundo; e aquele que recebe de Deus um poder tão superior àquele, tanto quanto o céu é superior à terra e a alma ao corpo, não terá recebido, segundo o juízo de algumas pessoas, mais do que uma dignidade medíocre, uma dignidade da qual se pudesse pensar que alguém desdenharia tanto a honra como o dom! Que extravagância! Desprezar uma função sem a qual não existe a salvação para nós, nem a realização das promessas divinas! Ninguém pode entrar no reino de Deus, se não renascer da água e do Espírito Santo[4]; quem não comer da carne do Senhor e não beber de seu sangue, estará excluído da vida eterna’[5]. Então, se esses benefícios não podem ser conferidos senão por mãos santificadas, ou seja, pelas mãos dos sacerdotes, de que meio disporíamos, sem seu ministério, para evitar o fogo do inferno, ou para alcançar as coroas que nos foram reservadas?”.

“A gravidez espiritual das almas é seu privilégio; somente eles as fazem nascer para a vida da graça por meio do batismo; por meio deles somos sepultados com o Filho de Deus, por meio deles nos tornamos membros desse Chefe divino. Assim é que devemos respeitá-los mais do que os príncipes e reis, e ainda amá-los mais do que aos nossos próprios pais. Esses nos fizeram nascer do sangue e da vontade da carne; os sacerdotes nos fazem nascer como filhos de Deus; nós lhes devemos nossa feliz regeneração, a verdadeira liberdade da qual desfrutamos, a nossa adoção na ordem da graça”.

“Somente os sacerdotes da antiga lei tinham o direito de curar a lepra, ou melhor: eles não a curavam, mas julgavam se as pessoas estavam curadas; e você sabe com quanto ardor se buscava a dignidade sacerdotal entre os judeus[6]. Quanto aos nossos sacerdotes, não é a lepra do corpo, mas a da alma, que eles receberam o poder de curar, não de verificar, mas de operar a cura por inteiro. Aqueles que os desprezam são assim mais sacrílegos do que Datã e seus companheiros[7], e merecedores de um castigo mais severo. Eles, desejando uma dignidade que não lhes cabia, ao menos deram provas de uma estima especial naquilo que faziam, pela própria ambição que os levara à usurpação. Mas hoje em dia, quando o sacerdócio está de posse de uma autoridade e de uma excelência muito mais relevantes do que outrora, desprezá-la constitui um crime ainda mais odioso do que o de pretendê-la por motivos de ambição. Não há nenhuma paridade, sob o aspecto do ultraje, entre pretender uma dignidade cujo direito não se tem, e desprezar os grandes bens que o Sacerdócio guarda em si, tanto está longe a admiração do desdém, tanto o segundo crime é mais grave do que o primeiro. Que alma seria tão miserável para desprezar tão augustas prerrogativas? Nenhuma, a menos que estivesse submetida ao aguilhão e ao poder de Satanás. Mas voltemos ao tema que deixamos para trás”.

6.      “Quer se trate de punições a infligir, quer se trate de graças a distribuir, os sacerdotes receberam de Deus um poder maior do que o de nossos pais na ordem da natureza. Entre uns e outros existe uma diferença tão grande quanto a que há entre a vida presente e a futura. Nossos pais nos geraram para a primeira, os sacerdotes o fazem para a segunda. Aqueles não poderiam nos preservar da morte corporal, nem afastar as moléstias que sobrevêm; esses frequentemente curam a alma enferma e que está perecendo; tanto eles aliviam as penas devidas ao pecado, como eles previnem a própria queda, pela instrução e a exortação e também pelo socorro de suas orações. Eles têm o poder de remir os pecados quando nos regeneram pelo batismo, e mesmo depois. Como disse o apóstolo Tiago, ‘se houver um doente entre vós, que chame pelos sacerdotes da Igreja; que eles orem sobre o doente, ungindo-o com óleo em nome do Senhor; e a prece da fé salvará o enfermo, e Deus o aliviará; e se ele cometeu pecados, esses lhe serão remidos[8]’. Por fim, os pais segundo a carne nada podem fazer por seus filhos, caso esses ofendam algum príncipe ou algum poderoso do mundo. Os sacerdotes os reconciliam, não com príncipes e reis, mas com Deus, quando esse se irrita com eles”.

“Depois de tudo isso, ainda nos vêm acusar de orgulho? Me parece que as razões que expus, se chegassem aos ouvidos de um auditório, seriam capazes de impressionar fortemente suas almas, para que a acusação de orgulho e de audácia fosse lançada, não contra os que fogem do sacerdócio, mas contra aqueles que aí se introduzem por conta própria, e que o buscam com temerária confiança. Se aqueles a quem confiamos a administração de uma cidade a arruínam e perdem a si mesmos, caso não se dediquem com sabedoria e atenção contínuas, de quanta virtude, tanto natural como divina, não deve estar dotado, para não falhar, aquele a quem cabe a missão de adornar a Esposa de Cristo!”,

7.      “Jamais alguém amou a Jesus mais do que São Paulo. Jamais alguém testemunhou por Ele um zelo mais ardente, nem Dele recebeu mais graças; e, no entanto, mesmo com todos esses benefícios, nós o vemos espantar-se com a grandeza de seu ministério e tremer pelos fiéis dos quais foi encarregado. ‘Eu temo, disse ele, que assim como Eva foi seduzida pelas artimanhas da serpente, vocês se deixem corromper e involuir da simplicidade cristã[9]'. E em outra parte: “Eu estive entre vós no temor e na angústia[10]”. Assim falou um homem que foi arrebatado até o terceiro céu, que o próprio Deus se dignou iniciar no conhecimento de seus mistérios, um apóstolo que sofreu tantas mortes quantos dias passou sobre a terra após sua conversão, que se abstinha de usar todo o poder que lhe fora dado por Cristo, a fim de não escandalizar o menor de seus irmãos. Se esse homem, que não se contentava simplesmente em observar os preceitos de Deus, mas que ia além, que jamais buscava seu próprio interesse, mas sempre o dos fiéis a quem governava, se sentia penetrado de um temor contínuo ante o pensamento do ministério do qual fora encarregado, que faremos nós, que estamos acostumados a nos reportar apenas a nós mesmos, nós que não apenas jamais vamos além dos preceitos de Jesus Cristo na prática do bem, como frequentemente ficamos bem aquém do limite rigoroso do dever”.

“Dizia Paulo: ‘Quem sofre, sem que eu sofra com ele? Quem se escandaliza sem que eu queime?’. Assim deve ser o sacerdote, ou melhor, nem isso basta: isso ainda é pouco, é nada em comparação com o que vou dizer”.

“Escute: ‘Eu gostaria que Jesus Cristo tornasse a mim próprio anátema em favor de meus irmãos, eles que são de minha própria raça segundo a carne[11]’. Todo homem que for capaz de proferir essas palavras, cuja alma for sublime o bastante para se elevar às alturas de tal desejo, merecerá ser condenado caso fuja do episcopado. Mas quem se afastar dessa virtude tanto quanto eu, será odioso, não se recusar, mas se aceitar”.

“Se se tratasse de uma eleição para um comando militar, e que aqueles que fossem os eleitores mestres fossem na busca de um ferreiro, de um sapateiro, ou de qualquer outro artesão, para lhe conferir semelhante insígnia, certamente esse miserável não mereceria elogios caso não recusasse, se fizesse de tudo ao seu alcance para não se lançar em tão perigosa honra. Ora! Se para ser bispo bastasse o título, bastasse exercer uma função tal e qual, sem que houvesse risco algum a correr, pode me acusar de vanglória quem quiser. Mas se, para aceitar tal encargo, for preciso uma prudência consumada, e, antes dessa prudência, uma graça especial de Deus, uma retidão de costumes, uma pureza de vida irrepreensível, uma virtude superior às meras forças humanas, eu lhe peço que perdoe a resolução que tomei, de não me expor indiscretamente a uma perda inevitável”.

“Se alguém, mostrando-me um grande navio, cheio de numerosa equipagem, carregado com mercadorias preciosas, me colocasse em seu comendo e me propusesse atravessar o mar Egeu ou o mar Tirreno, eu certamente recuaria em pânico diante da primeira palavra. E se me perguntassem o porquê, eu responderia ser por medo de perder o navio. Pois bem! Numa circunstância em que se trata apenas de riquezas perecíveis, de uma vida que logo irá findar, ninguém se admira que mostremos tanta prudência e desconfiança em relação a nós mesmos; mas diante da apreensão de um naufrágio que diz respeito tanto à alma como ao corpo, e que ameaça, não com os abismos do mar, mas com um precipício de chamas eternas, eu seria alvo da cólera e da raiva, por não ter me atirado imprudentemente em tão temível infelicidade! Que isso não aconteça, eu lhe peço, eu lhe conjuro”.

8.      “Eu conheço minha alma, sua fraqueza, sua pequenez. Eu conheço a grandeza do santo ministério e suas imensas dificuldades. A alma do sacerdote é açoitada por muito mais tempestades do que os ventos que revoltam os mares”.

9.      De todos os recifes contra os quais se pode naufragar, o mais terrível é o da vanglória, abrolho ainda mais perigoso do que o das Sirenas, tão celebrado pelos poetas em suas ficções. Por esse, muitos passaram sem revezes; mas aquele é para mim tão perigoso, que ainda hoje, quando nenhuma violência me empurra a esse abismo, eu sofro todas as penas do mundo para me impedir de nele mergulhar. Colocar sobre meus braços o fardo do episcopado, seria como amarrar minhas mãos às costas, e me atirar, para servir de pasto, às bestas ferozes que se abrigam nesse recife: falo da ira, do abatimento, da inveja, das disputas, da calúnia, das acusações, da mentira, da hipocrisia, dos embustes, das aversões sem objeto, das alegrias secretas causadas pelas quedas e vergonhas de nossos colegas, pelo ciúme que sentimos diante do sucesso dos outros, do amor desordenado aos elogios, da sede das honrarias (uma das paixões que mais corrompem a alma humana); a pregação evangélica se torna um meio para agradar; as adulações servis, a preguiçosa complacência, o soberbo desdém diante dos pobres, os rebaixamentos oficiosos diante dos ricos; os sinais de honra prodigados em razão e não sem prejuízo; as graças igualmente perniciosas, tanto àqueles a quem são concedidas, como aos que as concedem; os temores servis, dignos do último dos miseráveis; a ausência da liberdade sacerdotal; as máscaras afetadas da modéstia, mas nenhuma modéstia no fundo; nenhuma coragem para reprender ou reprimir, ou antes o abuso desse direito perante os pequenos, mas, tratando-se dos grandes, uma licenciosidade que não ousa sequer abrir a boca”.

“São esses os monstros, e eu sequer nomeei a todos, os monstros que esse recife abriga; uma vez aprisionado por eles, seguimo-los por onde nos arrastarem, e descemos tão baixo na servidão que, para agradar às mulheres, fazemos coisas que não convém nem mencionar. É em vão que a lei de Deus excluiu as mulheres desse santo ministério, pois, querendo forçar as portas do santuário por si mesmas e não o podendo fazer, elas fazem tudo pela mão de seus agentes, cuja autoridade usuraram, tendo-os elevado ao episcopado e fazendo-os descer até virar tudo de cabeça para baixo, demonstrando a aplicação do provérbio: os de baixo governam os chefes.  E quisesse Deus que esses de baixo fossem homens! Mas são as mulheres, que sequer têm o direito de ensinar. Que digo eu, ensinar? Pois a elas o bem-aventurado Paulo proibiu até mesmo a palavra dentro da Igreja! Entretanto, pelo que ouvi dizer, deixaram-nas ganhar tamanha liberdade, que as vemos manipular imperiosamente os bispos, e falar-lhes com mais superioridade do que os mestres a seus escravos.

10.   “Não se pense, porém, que eu lanço essas acusações sobre todos os ministros da Igreja. Existem também os que escapam a essa espécie de rede, e são inclusive mais numerosos do que os que se deixam prender. Praza a Deus que eu não seja culpado da imprudência de acusar o sacerdócio desses vícios que não pertencem senão ao homem! O ferro não é culpado das mortes, nem o vinho da embriaguez, nem a força da violência, nem a coragem da temeridade cega; os culpados são aqueles que fazem mau uso dos dons de Deus, e são esses que as pessoas sensatas acusam e punem. É o Sacerdócio que terá o direito de nos acusar, se exercermos mal nossas funções. Longe de ser ele a causa dos males que assinalei; somos nós que o desonramos, na medida em que tais máculas existem em nós, quando o entregamos aos primeiros que aparecem, a homens que, sem ter previamente consultado suas forças, nem atentado para o peso do fardo, em apoderam do sacerdócio como de uma presa que lhes é oferecida; mas quando eles começam a trabalhar, se perdem por sua imperícia, e afligem com males sem número os povos que foram encarregados de conduzir. É essa infelicidade que iria me atingir, se Deus, por piedade de Sua Igreja e pela minha alma, não tivesse prontamente me arrancado de tais perigos”.

“De onde nascem, pensará você, essas perturbações que desolam nossas Igrejas? Por minha conta, não posso assinalar outra causa que a falta de prudência e de circunspecção na escolha e na eleição dos ministros. É preciso que a cabeça seja muito forte para dominar e para dissipar os vapores perniciosos que as partes inferiores do corpo lhe enviam. Se acontecer de ela ser fraca, então, impotente para afastar essas influências malignas, ela se torna ainda mais fraca do que era naturalmente, e arrasta todo o resto à sua ruína. Deus quis prevenir essa infelicidade, e por esse motivo Ele me reteve num nível inferior dentro do corpo místico da Igreja, análogo ao que é ocupado pelos pés no corpo humano: esse é meu lugar natural”.

“Independentemente das qualidades que indiquei, existem muitas outras, meu amigo, não menos necessárias para ser um bom bispo, e das quais sou totalmente desprovido; a primeira de todas, é que o desejo de se tornar bispo jamais ofusque a pura simplicidade do coração. Dificilmente alguém que arde por possuir essa dignidade desfrutará dessa qualidade, pois uma chama de ambição ainda maior crescerá em seu coração para conservá-la; a ambição, cuja violência o empurrará involuntariamente a toda espécie de indignidades, às bajulações, às torpezas, e até ao sacrifício financeiro, se necessário. Quanto aos assassinatos com que alguns encheram as igrejas, às cidades que arruinaram em combate pela conquista ou a conservação dessa dignidade, nem quero falar, de medo de parecer dizer coisas inacreditáveis. Deveria haver pelo sacerdócio um respeito que fizesse temer recebê-lo como encargo; um respeito que fizesse com que os que dele se revestem se demitissem de suas funções caso cometessem qualquer falta mais grave, antes de esperarem pelo julgamento dos outros e pela deposição. Esse seria um meio de atrair para si a misericórdia divina. De outro modo, obstinar-se em ganhar um lugar do qual não se é digno, equivale a se tornar indigno do perdão, a atiçar o fogo da cólera de Deus, por acrescentar ao primeiro pecado um segundo ainda mais grave”.

11.   “Mas onde estão os homens capazes de tão generosa resolução? A sede das dignidades é verdadeiramente algo terrível. E quando eu falo assim, longe de contradizer o bem-aventurado Paulo, eu estou perfeitamente de acordo com ele. Com efeito, eis o que ele diz: ‘Quem deseja o episcopado, deseja uma boa obra[12]’. O que eu condeno, não é a obra em si, mas o desejo de dominação e poder. É preciso sufocar até a última centelha desse desejo, para subtrair a dignidade episcopal ao seu império, e para assegurar o livre exercício de suas funções. Quando não se deseja alcançar o episcopado, não se teme perdê-lo; isento desse temor, é possível agir com toda a liberdade que convém a cristãos. O medo de ser precipitado desse alto posto curva a alma ao jugo da mais humilhante servidão, servidão cheia de males, e que força a faltar tanto ao que é devido a Deus, como ao que se deve aos homens. Nada é mais funesto do que tal disposição. Os mais bravos soldados são aqueles que combatem com ardor e morrem com coragem. Esse é o espírito que deve animar o bispo: é preciso estar pronto, seja para deixar, seja para exercer o cargo, como convém a um cristão, certo de que abandoná-lo assim não lhe trará a menor das honras. Quando nos expomos a cair assim, por não termos consentido com nada que fosse contrário à honra do episcopado, preparamos para nós uma recompensa mais gloriosa, e um castigo mais glorioso aos autores de uma desgraça não merecida”.

“Disse o Senhor: ‘Sereis felizes, quando os homens vos ultrajarem e vos perseguirem, quando digam falsamente toda espécie de mal contra vós, por minha causa; alegrai-vos e tremei de alegria, porque uma grande recompensa vos estará reservada nos céus[13]’. Esse é o caso, quando os próprios colegas cassam e depõem alguém por inveja, por uma frouxa complacência para com estranhos, por inimizade ou por qualquer outro motivo injusto; mas sofrer a mesma perseguição da parte de inimigos declarados é algo de mais meritório ainda, e a malícia dos perseguidores traz então benefícios que é inútil descrever”.

“É preciso assim visitar todos os recantos de nosso coração, e buscar cuidadosamente se alguma chama, mal extinta, desse desejo, não se esconde ali contra nossa vontade. Não basta estar isento dessa paixão desde o começo, é preciso ainda se considerar feliz por tê-la sob domínio, mesmo no seio do poder e da elevação. Quanto àquele que, antes de alcançar as honrarias, nutre em si mesmo esse desejo insaciável e pernicioso, não somos capazes de dizer em qual ardente fornalha ele estará se atirando se conseguir chegar aonde quer. Quanto a mim, confesso – e não creia que minto por modéstia – sinto que essa paixão é grande em mim; e é uma das razões que mais fortemente determinaram a resolução que tomei de fugir.  Aqueles a quem o amor carnal feriu com suas flechas, não sofrem tão rude provação senão quando estão próximos do objeto de sua paixão; afastando-se, o mal cessa; direi o mesmo dos corações ambiciosos que cobiçam a dignidade sacerdotal. A febre que os devora redobra com suas esperanças; eles só se livram dela renunciando à esperança de alcançá-la”.

12.   “Esse motivo não é sem valor, e só ele bastaria para me afastar do sacerdócio. Mas a ele devo acrescentar outro não menos poderoso; qual será? É preciso que um sacerdote seja sóbrio, clarividente; que ele tenha olhos para observar a tudo, pois ele não vive apenas para si, mas para todo o povo[14]. E eu, eu sou preguiçoso, não tenho energia, é com grande dificuldade que procuro minha própria salvação; você mesmo concordará, você cuja amizade é, no entanto, tão atenta em dissimular meus erros. Jejuar, velar, dormir sobre a terra nua, e outras macerações corporais, nem é bom falar; você sabe o quanto estou longe dessas perfeições; e, ainda que as possuísse, como me serviria delas no exercício do ministério episcopal, com essa preguiça e indolência que me são naturais? Esses exercícios, é verdade, são de grande proveito ao solitário encerrado em sai cela, e que não tem mais a fazer do que trabalhar por sua salvação pessoal. Mas o homem que deve se dedicar a um povo inteiro, que concentra em si mesmo os interesses particulares de todos os seus administrados, não vejo que fruto extrairá dessas coisas, a menos que acrescente a elas uma força de alma inquebrantável”.

13.   “Não se surpreenda que, para julgar a energia de uma alma, eu peça outras provas além da austeridade da vida. Com efeito, vemos pessoas para as quais não é problema algum deixar de comer ou beber, e que não se importam se o leito é duro ou mole; existe aquelas que são naturalmente rudes; para outras, é questão de educação, de temperamento, de hábito, coisas que podem tornar fáceis aquilo que para nós parece penoso. Mas os ultrajes, as injustiças, uma palavra ofensiva, um dardo lançado com ou sem reflexão por um inferior, uma reprimenda ao acaso e sem fundamento feita por superiores ou subordinados; isso bem poucos são capazes de suportar com firmeza; você mesmo conhece um ou dois casos. Alguém suporta corajosamente a fome e a sede, mas diante dessas provações pode perder a razão, e, tomado de uma vertigem, se tornará mais furioso do que um animal feroz. São sobretudo esses que nós afastamos do santuário. Que um bispo não se extenue com jejuns, que não ande descalço, que benefício isso traz para o rebanho? Mas um caráter violento, é o que existe de mais fecundo em malefícios para si mesmo e para os outros”.

“Nenhuma ameaça saiu da boca de Deus contra aqueles que não se torturam; mas para os que se encolerizam, é com o inferno e com o fogo do inferno que Ele os ameaça[15]. Quando o homem, presa da vanglória, adquire um grande poder, ele oferece mais alimento ao fogo que o queima; o mesmo acontece com aquele que, no particular ou em pequenas reuniões, não é capaz de dominar sua cólera, e se enfurece por nada. Se ele for colocado à cabeça de um governo, veremos aí um animal feroz, ainda mais enfurecido pelos milhares de provocações que recebe de todos os lados ao mesmo tempo. Já não existe repouso para ele, e para seu povo os males serão incalculáveis”.

14.   “Nada perturba mais a clareza da inteligência, nada ofusca mais a penetração do espírito, do que a cólera, desordenada e impetuosa. A cólera, foi dito, põe a perder até mesmo os sábios[16]. É como um combate noturno, em meio do qual a vista obscurecida já não distingue os amigos dos inimigos, nem o homem honesto do homem desprezível; a cólera faz com todos da mesma maneira; pouco importa o mal que ela faz a si própria; ela se resolve assim, ela sente uma espécie de prazer que tem que satisfazer a qualquer custo. Sim, esse abrasamento do coração não vem sem um certo prazer, e ele chega a exercer sobre a alma uma tirania mais imperiosa do que qualquer outro prazer, e assim vira de cabeça para baixo seu estado normal. A cólera arrasta naturalmente atrás de si o orgulho insolente, as inimizades sem causa, os ódios cegos, as ofensas gratuitas; ela dispõe constantemente às provocações e ultrajes. O que não faz ela dizer, aquele a quem possui! A alma aturdida em seu tumulto, arrastada por sua violência, já não encontra apoio para resistir aos seus violentos ataques”.

Basílio interrompeu-me: “Pare, você já falou muito contra seu pensamento. Quem não sabe que ninguém mais do que fosse é isento dessa doença?”.

Eu lhe respondi: “Mas por que, caro amigo, expor-me a esse fogo? Por que despertar a besta feroz que dorme? Não sabe você que eu devo essa calma, não à minha virtude, mas ao meu amor pela solidão? Quando alguém tem inclinação para a cólera, precisa viver só, ou em sociedade com um ou dois amigos; dessa maneira evitará o incêndio que, ao contrário, irá devorá-lo caso caia no abismo das preocupações de um encargo pesado. E ele não se perderá só, mas arrastará muitos ao precipício, tornando-os menos atentos em manter a moderação. Os povos são naturalmente dispostos a considerar a conduta de seus chefes como um modelo a seguir em sua formação. Como acalmar nos outros as efervescências de humor, quando se é incapaz de dominar a própria? Que homem do povo consentirá em corrigir seus furores, vendo que seu bispo se enfurece? Sua dignidade, que ele expõe ante todos os olhares, não permite que nenhum desses vícios permaneça oculto; até os menores se tornam públicos rapidamente. O atleta que não se expõe, que não luta, esconde facilmente sua fraqueza; mas quando ele se despe e desce à arena, vemos prontamente quem ele é. Da mesma forma, os homens que vivem em retiro e longe dos negócios podem estender sobre seus vícios o véu da solidão. Mas coloquem-nos no mundo, e ei-los obrigados a deixar o manto que os cobria – falo da solidão – e a mostrar desnuda sua alma ante a agitação do século”.

“Tanto os bons exemplos servem para inflamar a santa emulação da virtude, quanto os maus contribuem para espalhar entre os povos o relaxamento e a negligência na observação do dever. É preciso assim que o sacerdote tenha uma alma que irradia beleza e cuja luz ilumine e alegre as almas daqueles que têm os olhos voltados para ele. As faltas dos homens vulgares permanecem enterradas na sombra e só prejudicam aqueles que as cometem. O escândalo de um home que ocupa uma posição elevada no mundo está exposto a todos os olhares e se torna uma espécie de flagelo público, tanto por autorizar a tibieza daqueles que se assustam com os rudes exercícios da virtude, como por desencorajar os que desejariam levar uma vida melhor. Acrescente a isso que as faltas das pessoas individuais, quando conhecidas, não têm uma influência perigosa sobre as disposições dos demais; mas o sacerdote, nada do que ele faz permanece oculto, e cada uma de suas ações, indiferentes em si, tomam um aspecto sério perante a opinião geral. Os erros são medidos mens pela gravidade do delito quanto pela posição daqueles que os comete. Que o sacerdote se revista, por assim dizer, de um zelo estrito, de uma contínua vigilância sobre si mesmo, como se fosse de uma armadura de diamante que não deixa nenhum ponto fraco ou espaço a descoberto por onde possa penetrar o golpe mortal. Tudo o que o cerca tanta a todo tempo feri-lo e abatê-lo, não apenas seus inimigos declarados, como ainda os que fingem ser seus amigos”.

“É preciso escolher, para o sacerdócio, almas semelhantes aos corpos dos três jovens que a graça divina tornou invulneráveis em plena fornalha da Babilônia. O fogo com que estão ameaçados não se alimenta de gravetos, de resina ou de estopas, mas de materiais mais perigosos; é um fogo que não se vê, é o fogo da inveja que envolve o sacerdote com suas chamas devoradoras, chamas que se erguem, que se estendem e se atiram sobre sua vida, e que a penetram por inteiro com uma atividade que jamais o fogo material chegou a ter contra os corpos dos três jovens. Assim que a inveja encontra uma ponta de matéria combustível, sua chama se agarra a ela imediatamente, consumindo essa parte defeituosa; quanto ao restante do edifício, ainda que ele seja mais brilhante do que os raios do sol, ela o destrói com sua fumaça e o enegrece por completo. Enquanto a vida do sacerdote está em perfeito acordo com a regra de seus deveres, nada há para temer das armadilhas de seus inimigos. Mas se uma única irregularidade, por menor que seja, escapar à sua atenção (ainda que isso seja mais do que perdoável, por ser ele homem, e por estar atravessando esse mar semeado de recifes que se chama ‘vida’), e eis que todas as suas virtudes já não lhe servem de nada contra as línguas de seus acusadores; basta um nadinha para ofuscar toda sua vida. Todo mundo julga o sacerdote, e o julga como se ele já não estivesse em sua carne, como se não pertencesse à raiz comum a todos, como se fosse um anjo liberto de todas as fraquezas do homem”.

“Enquanto um tirano é forte ele é temido, bajulado, não se pode derrubá-lo; mas se seus negócios declinam, adeus ao respeito simulado; aqueles que no dia anterior se diziam seus partidários logo se declaram contra ele e lhe fazem guerra; eles procuram os pontos vulneráveis de seu poder e solapam seus fundamentos, destruindo-o afinal. O mesmo acontece a um bispo: mal aqueles que o cercam com suas homenagens e bajulações, crendo-o solidamente estabelecido, o veem balançar, ainda que ligeiramente, aproveitam-se da ocasião e se põem a trabalhar em comum acordo e com todas as suas forças para fazê-lo cair como um tirano, ou pior. O tirano teme sua guarda pessoal; também o bispo se vê reduzido a temer aqueles que dele se aproximam mais de perto. São esses que cobiçam seu posto, são eles que melhor conhecem sua vida e seus negócios. Testemunhas diárias de suas ações, são os primeiros a pegar a primeira falta que lhe escapar, e podem obter crédito em suas calúnias, fazendo passar por grave o que é leve, e assim por a perder seu bispo que sucumbe vítima de suas mentiras. É o contrário da palavra do Apóstolo: ‘Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se é glorificado, todos se alegram com ele[17]’. Contra tais assaltos não existe recurso senão numa piedade a toda prova”.

“Eis o tipo de guerra na qual você quer que eu me engaje. Eis a confusão terrível da qual você crê que eu seja capaz de me defender. Quem lhe disse isso? Se foi Deus, mostre-me seu oráculo e eu me submeterei. Mas se você não possui mais do que a vã opinião dos homens, não se iluda. Numa causa que me é tão fortemente pessoal, não ache ruim que eu confie mais no meu sentimento do que no dos outros; pois ‘ninguém conhece melhor o que existe no homem do que o espírito do homem[18]’, como disse o Apóstolo”.

“Creio ter dito o bastante para persuadi-lo, caso você ainda tivesse qualquer dúvida, de o quanto eu estaria exposto ao ridículo, eu e os que houvessem eleito, se, depois de aceitar o episcopado, eu me visse obrigado a retomar meu primeiro modo de vida”.

“E além da inveja, existe ainda outra paixão mais violente, que arma muitos homens contra um bispo, que é a cobiça que essa dignidade excita. Assim como existem filhos ambiciosos que se afligem com a vida longa de seus pais, existem também homens para os quais a longa duração de um reinado episcopal causa uma impaciência extraordinária. Não ousando atentar contra a vida do titular, eles trabalham por sua deposição com tanto mais ardor, na medida em que cada um aspira substituí-lo, em que cada um espera que a escolha recairá sobre si”.

15.   “Quer que lhe apresente sob outro aspecto essa luta tão pródiga em perigos de toda espécie? Transporte-se a qualquer uma dessas solenidades públicas que acontecem para as eleições eclesiásticas, e observe: tantos quantos indivíduos as compõem, tantas serão as línguas afiadas para destroçar a reputação do sacerdote. Os eleitores se dividem em facções diversas; não existe nenhum acordo dentro do colégio dos sacerdotes, nem entre si nem com seu chefe; ninguém se entende; um quer esse, outro aquele. A causa dessa confusão é que ninguém considera a única coisa que deveria ser considerada, as qualidades interiores. São outros os motivos que decidem a eleição. ‘Aquele ali é de boa família, eu lhe dou meu voto’, diz um; ‘e eu, replica outro, dou o meu àquele outro porque é rico e pode passar sem os recursos da Igreja’; escolhe-se alguém por ter mudado de um lado para outro, ao qual pertence o que vota; outro, porque possui relações de sociedade ou de parentesco; outro, porque soube captar as simpatias com bajulações. Mas, terão eles as virtudes e os talentos necessários? Isso é coisa que não embaraça ninguém”.

“Quanto a mim, estou tão longe de considerar esses títulos de recomendação como sendo suficientes para garantir o mérito do candidato ao sacerdócio, que, mesmo supondo piedade da parte deles – coisa que já é um grande ponto – não me arriscaria a admiti-lo de pronto, caso não sejam apresentadas testemunhas de consumada prudência. Conheci homens que de longa data se dedicavam à solidão e aos jejuns; eles agradaram a Deus por todo o tempo em que tiveram a felicidade de viver a sós consigo mesmos, e de não ter que se preocupar senão com sua salvação pessoal; eles faziam a cada dia grandes progressos na santidade; mas, transportados ao teatro do mundo e forçados a endireitar os desvios dos povos, alguns logo deixaram claro que estavam aquém de semelhante tarefa, e tiveram que renunciar a ela; outros, obrigados a permanecer, se afastaram da santa austeridade de sua primeira vida, e se perderam sem nenhum benefícios para os outros”.

“Pode mesmo acontecer que um homem tenha encanecido nas funções subalternas do ministério, sem que eu o considere digno de ser promovido a um grau mais elevado apenas por respeito à sua velhice. Por que seria ele elevado, se a idade não o tornou mais digno? Não digo isso para desconsiderar os cabelos brancos, nem para excluir aqueles que ganharemos na solidão: podemos citar mais de um que honraram seu ministério de maneira notável; o que quero mostrar é que, se uma grande piedade ou uma longa idade não fazem com que aqueles que as possui seja digno do episcopado, com mais razão os motivos expostos acima serão insuficientes. Entretanto, motivos ainda mais absurdos são colocados em primeiro lugar. Por exemplo, existem aqueles que são admitidos ao sacerdócio para impedi-los de aderir ao partido contrário; outros são eleitos por causa de sua malícia mesma, por medo que, rejeitados, não façam um mal ainda maior. É possível coisa mais iníqua? Qual! Homens miseráveis, cheios de vícios, serem honrados quando deveriam ser punidos! Suas ações mereceriam que fossem proibidos de passar dos umbrais da igreja, e eles recebem a recompensa de subir os degraus do santuário! E nós encontraremos ainda causas para a cólera de Deus, nós que entregamos as coisas mais santas e os mistérios mais temíveis nas mãos de perversos e de incapazes! É assim que confiamos a autoridade a mãos tão impuras, que profanam sua santidade, e mãos tão débeis que não podem suportar tal fardo, e eis porque a Igreja se vê mais agitada do que Euripe[19]”.

“Houve época em que eu zombava dos príncipes seculares, porque, na distribuição das honras, eles viam menos os méritos das pessoas do que a riqueza, a idade ou o crédito. Mas depois não considerei mais essa desordem como estranha, porque o mesmo escândalo vi acontecer entre nós”.

“Eu já me espanto que pessoas inteiramente dedicadas a interesses terrestres, sem outra motivação do que sua paixão pela glória e o dinheiro, cometam faltas desse gênero; mas que aqueles que, ao menos exteriormente, professam renunciar a todas as vaidades da terra, não deixem de agir segundo os mesmos princípios; que tratem os interesses do céu como se fossem de um pedaço de  terra ou qualquer coisa do gênero; que tomem às cegas homens que em nada se distinguem da multidão para confiar-lhes o governo das almas – almas pelas quais o Filho único de Deus quis se despojar de sua glória, se fazer homem, tomar a forma de escravo[20], expor sua face aos escarros, às bofetadas, para afinal morrer, em sua carne, a morte mais ignominiosa?”.

“E as coisas não param por aí; abusos mais gritantes acontecem. Não apenas os indignos são admitidos, como são expulsos os bons. É como se fosse preciso, a todo custo, sacudir dos dois lados a segurança da Igreja; como se o primeiro meio não fosse suficiente para acender a cólera de Deus, e que fosse preciso acrescentar-lhe um segundo, não menos funesto. Aos meus olhos, é um mal igual afastar os homens úteis, como admitir os inúteis. Mas é o que acontece, e, por conseguinte, o rebanho de Jesus Cristo não encontra consolo em parte alguma, e quase não pode respirar. Não merecem essas coisas os raios do céu, todos os fogos de um inferno ainda mais rigoroso do que aquele com o qual somos ameaçados? Assim sofre e suporta esses grandes males, Aquele que não deseja a morte do pecador, mas que ele se converta e viva[21]. Quem não se admiraria de tamanha bondade? Quem não ficaria estupefato à vista de tanta misericórdia?”.

“Os filhos de Cristo arruínam o império de Cristo mais funestamente do que seus inimigos declarados, e Ele, sempre bom, sempre misericordioso, ainda os chama à penitência! Glória a Ti, ó Senhor, glória a Ti! Que abismo de bondade existe Nele, que tesouro de paciência! Homens que, à sombra de Seu nome, de obscuros que eram se tornaram ilustres, abusam das honras, contra Aquele mesmo a quem as devem, ousam o que não é permitido ousar, insultam as coisas santas, afastam ou expulsam do santuário os homens virtuosos, a fim de dar aos ladrões a maior liberdade de fazer o que bem entendem”.

“Se você quiser conhecer as causas de tantos males, verá que são as mesmas dos anteriores. Sua raiz, sua mãe, por assim dizer, é a inveja; mas elas apresentam uma enorme variedade de formas. Um é demasiado jovem, outro não sabe bajular; esse não é bem visto por aquele; determinado figurão veria com desaprovação a eleição de alguém em detrimento do candidato que ele próprio apresentou; um é bom e paciente, outro é terrível com os pecadores; para outros, será por qualquer pretexto igualmente bem escolhido. Pois pretextos não faltam às pessoas de quem eu falo, e elas os encontram tantos quantos querem, e considerarão até mesmo crime ser rico, se não encontrarem outra objeção a fazer.  Sem elevações intempestivas, dizem eles ainda, essa dignidade exige que se chegue a ela gradualmente. Dali a pouco, mostram-se de uma fecundidade inesgotável para encontrar motivos. Aqui eu me pergunto o que deve fazer um bispo contra quem sopram tantos ventos contrários. Como se manter firme em meio às vagas? Como afastar tantos ataques? Se ele quiser determinar seu voto pelas luzes de sua consciência e de sua razão, logo uma nuvem de inimigos se declaram, tanto contra ele como contra aquele que ele deseja eleger; a contradição não tem fim; surgem novas especulações todos os dias; sarcasmos amargos caem como geada sobre os candidatos; e a batalha dura até que se seja forçado a bater em retirada, para favorecer os candidatos favorecidos pela outra parte”.

“Podemos comparar o bispo a um piloto que tenha recebido piratas a bordo de seu navio, os quais, durante toda a travessia, aguardaram a ocasião favorável para matá-lo, a ele, à tripulação e aos passageiros. Se ele preferir agradar aos homens do que salvar sua alma, e se admitir aqueles aquém deveria afastar, será a Deus mesmo, ao invés dos homens, que ele terá como inimigo que situação pode ser mais embaraçosa? Sua posição, perante os ladrões, se torna ainda mais crítica do que antes, porque eles agem em comum acordo, e esse concerto aumenta suas forças. Quando os ventos violentos começam a soprar em direções contrárias e a se digladiar, o mar, até então tranquilo, se torna de súbito furioso, levanta suas ondas e engole os navegadores; da mesma forma, quando a Igreja admite em seu seio homens perversos, sua calma se transforma numa tempestade que a enche de naufrágios”.

16.   “Imagine como se deve ser para resistir a tão grandes tempestades, e para afastar com habilidade os obstáculos que se opõem à salvação de todo o povo. É preciso ser inteiramente grave e sem ostentação; fazer-se temido, mas ser bom; saber comandar e ser afável; incorruptível e obsequioso; humilde, sem rastejar; enérgico e manso: é com todas essas qualidades reunidas que se poderá enfrentar a luta; é com essas condições que ele poderá adquirir autoridade bastante para fazer aprovar, malgrado a oposição geral, um candidato digno, bem como afastar um indigno contra o favorecimento do público, demonstrando não ter olhos senão para uma única coisa: a edificação da Igreja, e sendo ainda inacessível à raiva e ao favor”.

“Pois bem! Estaria eu errado em recusar uma honra tão perigosa? E eu ainda não disse tudo, ainda falta muito a dizer. Não deixe de escutar um amigo, um irmão que tenta se justificar dos erros que você acusa. Além do benefício de me desculpar em seu espírito, eu terei ainda o de ser útil para a sua administração. Quando estamos a ponto de ingressar nessa carreira, é preciso sondar o terreno antes de qualquer coisa; é uma precaução que devemos ter antes de se engajar aí para todo o bem. Por que isso? Porque assim teremos a vantagem de não sermos considerados desprevenidos; as dificuldades virão, mas encontrarão um homem pronto a combatê-las pelo fato de as conhecer bem”.

“Devo falar-lhe ainda da direção das viúvas, da solicitude com que devemos cercar as virgens, das dificuldades que apresenta a jurisdição eclesiástica? São grandes os cuidados que reclamam cada um desses ramos da administração eclesiástica, e maiores ainda os perigos que o bispo encontra neles”.

“Comecemos pelo que parece mais fácil, o cuidado com as viúvas. Pode parecer a princípio que se trata de algo bem simples, e que quem se ocupa disso resolve tudo dispensando uma certa soma de dinheiro distribuindo auxílios[22]. Parece nada, mas uma grande circunspecção é ainda aí necessária, sobretudo quando se trata de inscrevê-las no registro da Igreja; inscrevê-las ao acaso, como se costuma fazer, produz graves males. Já vimos viúvas arruinar as casas, perturbar a gestão dos bens, se desonrar roubando, frequentando cabarés ou outras desordens vexatórias. Alimentar tais mulheres com recursos da Igreja é atrair sobre si a vingança de Deus e a severa condenação dos homens, e esfriar a caridade dos benfeitores. Quem poderá suportar que a caridade que lhe é pedida, e que é feita em nome de Jesus Cristo, passe às mãos de quem desonra o nome de Jesus Cristo? Eis as razões que tornam um severo exame necessário; esse também é preciso para impedir que outras viúvas, que podem se manter sozinhas, não se juntem a essas de que falei, para devastar a mesa dos pobres”.

“Tomadas essas precauções, outro cuidado se apresenta, e grave: é preciso tomar medidas para que as coisas necessárias ao seu sustento não faltem, mas venham de uma fonte que não seca jamais. A infelicidade da pobreza involuntária é ser insaciável; ela se queixa sem cessar, ela é ingrata. É preciso muita prudência, muito zelo, para lhe calar a boca, retirando-lhe todo motivo de queixa. Entretanto, basta que um homem se mostre superior ao amor pelo dinheiro, e a multidão imediatamente o proclama capaz de suprir esse encargo; quanto a mim, reconheço que o desinteresse é uma qualidade indispensável, sem a qual seríamos não administradores, mas devastadores, lobos e não cordeiros; mas não creio que ela baste por si só; junto com ela existe outra virtude que é preciso encontrar num candidato”.

“Essa virtude é, para os homens, fontes dos maiores bens; ela conduz a alma como a um porto tranquilo e ao abrigo das tempestades: é a paciência. Ora, a classe das viúvas, assegurada por sua pobreza, sua idade, seu sexo, costuma usar uma linguagem bem pouco limitada, para dizer o mínimo. Elas gritam intempestivamente, elas acusam a torto e a direito, elas se lamentam quando deveriam expressar reconhecimento, elas condenam quando deveria aprovar. É preciso que o bispo tenha a coragem de suportar a tudo: seus clamores inoportunos, suas lamúrias indiscretas – nada deve excitar sua cólera. Suas misérias são mais dignas de compaixão do que de reprovação: insultar seus infortúnios, aumentar a afronta às amarguras de sua pobreza, seria o cúmulo da barbárie. É por isso que o Sábio[23], considerando de um lado a alteração e o orgulho naturais ao homem, e sabendo, por outro lado, o quanto a pobreza é capaz de abater a mais nobre alma, aconselhando-lhe uma importuna impertinência, não deseja que quem sofre por suas desgostosas solicitações, se encolerize. Ao se irritar contra os pobres por causa da frequência de suas demandas, ele se exporia a se tornar seu inimigo, ao invés de seu consolador, como se deve. O Sábio lhe recomenda mostrar-se afável e amistoso: incline sem mau humor seu ouvido ao pobre, responda a ele com doçura palavras de paz[24]. O mesmo Sábio, sem dizer uma palavra de reprimenda ao importuno (quem teria essa coragem diante de um suplicante prosternado?) continua a se dirigir àquele que deverá socorrer o indigente, e o exorta a erguer o pobre com um olhar doce e uma boa palavra, antes de lhe dar a esmola”.

“Ora, se alguém, sem roubar os bens das viúvas, se enfurece a ponto de maltratá-las com palavras ou coisa assim, não apenas não aliviará o peso de sua pobreza, como há de agravá-lo. A impertinência a que elas são levadas pela necessidade não as impede de sentir a injúria. O medo da fome as obriga a mendigar, a mendicância produz a impertinência, e essa atrai as humilhações, círculo fatal que mantém a alma encerrada nas trevas e no desespero”.

“É preciso que um administrador tenha suficiente paciência para não aumentar sua dor com suas violências, para acalmar em grande parte sua aflição com palavras de consolação. O pobre a quem insultamos e pouco tocado pela esmola que damos, por abundante que seja; o socorro em dinheiro não compensa a ferida deita ao amor próprio. Ao contrário, aquele que escuta uma boa palavra, que recebe uma consolação junto com a esmola, sente uma alegria e uma satisfação muito maior. A maneira de dar duplica o dom. o que eu digo não falo por mim, mas por aquele que nos exorta todo o tempo: ‘meu filho, diz ele, não misture reprimendas ao bem que você fizer, não acompanhe os dons com palavras que afligem: o orvalho não refresca um grande calor? Uma palavra doce vale mais do que o dom. Sim, uma só palavra é melhor do que a oferenda; e ambas as coisas se encontram no homem caridoso’[25]”.

“Quem toma a seu cargo as viúvas deve possuir, além da doçura e da paciência, o conhecimento da economia. Se lhe faltar essa qualidade, também os bens dos pobres sofrerão. Eu ouvi contar de um homem que, sendo encarregado dessa parte da administração, não destinava aos pobres mais do que uma pequena parte do dinheiro, considerável, destinado às esmolas. É verdade que ele não reservava o resto para seu uso próprio, mas o escondia cuidadosamente sob a terra, onde conservava essa riqueza. Sobreveio uma guerra, o dinheiro foi descoberto e levado pelo inimigo. Existe aqui uma justa medida a se conservar, que é não ser a Igreja nem rica, nem pobre. Na medida em que você recebe, distribua aos indigentes. Se a Igreja possuir tesouros, que eles residam nos corações dos fiéis”.

“No capítulo das viúvas, acrescentemos a hospitalidade que devemos oferecer aos estrangeiros, e o auxílio que é devido aos enfermos; quantas despesas você acha que exigem esses detalhes, e quanta prudência não é necessária para bem se desincumbir deles? Os gastos não são menores do que acabamos de mencionar, e muitas vezes são consideráveis. Quanto ao que responde pelos gastos, é preciso que ele tenha talento para obter recursos; mas ser-lhe-ão necessárias discrição e prudência para atrair os homens capazes de doar, voluntária e generosamente; ele deve prover o alívio dos enfermos sem ferir o espírito dos benfeitores. O cuidado com os doentes exige toda a atividade e diligência possíveis; eles em geral estão enfraquecidos e sem energia, e, se não forem tomadas precauções e solicitudes infinitas, a menor negligência pode ser-lhes extremamente prejudicial”.

17.   “A direção das virgens é uma atividade tanto mais delicada, na medida em que elas formam a parte mais preciosa e verdadeiramente real do rebanho de Jesus Cristo. Hoje em dia uma infinidade de pessoas cheias de uma infinidade de vícios invadiu escandalosamente o coro das castas esposas de Cristo. Isso constitui para a Igreja objeto de lágrimas abundantes. Assim como existe uma grande diferença entre a falta cometida por uma pessoa jovem e de condição livre, e a que comete seu escravo, da mesma forma não se pode comparar as faltas das virgens com as das viúvas. Essas últimas podem, sem maiores consequências, se entregar à dissipação; tanto podem despedaçar umas às outras pelos farrapos da mendicância, como podem prodigalizar adulações; elas podem afetar maneiras audaciosas, se mostrar por toda parte, até nas praças públicas. Mas a virgem tem combates maiores a sustentar; elas aspiram à mais alta perfeição; é a vida dos anjos que elas têm por missão viver na terra; elas se propõem a fazer, ainda que revestidas de carne mortal, aquilo que parece pertencer apenas às potências imateriais. Assim sendo, as saídas frequentes, as visitações ociosas, as conversas sem objetivo nem razão lhes são proibidas, e elas devem mesmo ignorar toda palavra que possa cheirar a injúria ou bajulação”.

“As virgens têm necessidade de uma guarda segura, de uma proteção assídua: o Inimigo da santidade as ataca de preferência; ele as espicaça sem cessar, ele lhes estende armadilhas, sempre pronto a devorá-las, caso alguma vacile e caia; também os homens procuram seduzi-las; juntamente com esses inimigos, conspira o arrebatamento dos sentidos: assim são duas guerras a sustentar a um só tempo, uma que assalta desde fora, outra que provoca a perturbação desde dentro”.

“Quantos motivos de alarme para um diretor! Quantos perigos! E, sobretudo, que dor, se – não o queira Deus! – explode alguma desordem imprevista entre elas! Se uma jovem que jamais saiu da casa paterna é motivo de insônia para seu pai; se os cuidados que ele tem para com ela afasta o sono de suas pálpebras, tanto ele teme para que ela não seja estéril, que não passe da idade de se casar, que não desagrade a seu marido. Se é assim com o pai segundo a carne, que devemos pensar do pai espiritual que, é verdade, não tem nenhum desses temores, mas que sente outros bem mais graves?”.

“Aqui não se trata de ofender um marido, mas o próprio Jesus Cristo. Se existe uma esterilidade a se temer, não é aquela que se detém na vergonha, mas a que vai até a perda da alma; pois foi dito: ‘toda árvore que não dá bons frutos será cortada e atirada ao fogo[26]’. A virgem repudiada pelo Esposo celeste não fica quite por receber o ato de repúdio e se retirar: ela expiará sua falta por um suplício eterno. O pai segundo a carne possui muitos recursos para tornar fácil a guarda de sua filha: a mãe, a babá, o número de seus domésticos, a segurança da casa o auxiliam na supervisão e na proteção da jovem virgem. Ela não tem liberdade para se mostrar com frequência no exterior; e, quando ela sai, ninguém a obriga a se deixar ver, pois a obscuridade da tarde pode, tanto quanto os muros de seu quarto, esconder aquela que não quer ser vista”.

“Por outro lado, ela está livre de tudo o que poderia obrigá-la a aparecer aos olhares dos homens; nem a necessidade de buscar as coisas que precisa, nem as atenções aos seus interesses, nem qualquer outro motivo a obrigam a se encontrar com estranhos; seu pai a dispensa de todos esses cuidados e não lhe deixa senão o de conservar sua decência virginal em sua conduta e em sua linguagem”.

“Ao contrário, o pai espiritual está cercado de circunstâncias que tornam sua supervisão difícil, para não dizer impossível. Não lhe é permitido sequer ter em sua casa a jovem que ele deve vigiar. Tal coabitação não seria nem decente, nem isenta de perigos: eles poderiam se preservar do mal, e manter intacta sua castidade; mas sempre haveria o escândalo causado às almas fracas, de que eles teriam que prestar contas com não menos severidade do que se existissem entre eles relações criminosas. Sendo a coabitação ilícita, como agir para conhecer os movimentos que se levantam no coração da jovem, para reprimir aqueles que são desregrados e cultivar e desenvolver os que estão em ordem e pedem uma boa direção? O bispo sequer pode estar informado com exatidão das saídas das virgens, nem dos motivos que as chamam para fora de suas casas. Pobres como são, em sua maioria, donas de si mesmas, obrigadas a prover suas necessidades básicas pessoalmente, quantas ocasiões têm para se dispersar fora quando querem, quantos pretextos para escapar à supervisão! O bispo prescreverá a elas que permaneçam em suas casas, e para cortar pela raiz todas as idas e vindas, ele lhes fornecerá todas as coisas necessárias à sua subsistência, e fará com que sejam servidas por uma pessoa do mesmo sexo. Ele não lhes permitirá ir aos funerais ou às vigílias noturnas. A astuciosa serpente sabe muito bem aproveitar até o pretexto das boas obras para destilar seu veneno. É preciso que a virgem cristã guarde uma clausura rigorosa; umas poucas vezes ao ano ela poderá franquear os umbrais de sua moradia, quando a forçarem motivos indispensáveis e necessários”.

“Poder-se-á me dizer: que necessidade tem um bispo de descer até todos esses detalhes? É preciso saber que não pode existir parte de uma administração que lhe seja estranha; que todas as queixas que podem se levantar a esse respeito recairão sobre ele, de modo que mais vale que ele as gerencie por si próprio, do que deixá-las à responsabilidade de outros. Com isso, ele evitará as acusações às quais estaria exposto por causa de faltas cometidas em seu nome. Ademais, ao fazer tudo por si mesmo, ele expede facilmente todo seu trabalho. Pois diz a experiência que quem se sujeita a ouvir a opinião de todo mundo extrai daí menos benefício do auxílio que lhe é prestado, na medida em que a diversidade de opiniões ou a pouca concordância dos cooperadores lhe causa mais aborrecimentos e embaraços”.

“De resto, não é possível marcar em detalhes todas as solicitações que pede o governo das virgens. Ainda que não se tratasse do discernimento das que devem pertencer à Igreja, só esse trabalho bastaria para tornar esse ministério extremamente laborioso”.

18.   A jurisdição é para o bispo uma fonte de contrariedades sem número, ela lhe impõe um trabalho infinito, ela está eriçada de dificuldades que os juízes regulares não encontram. Encontrar o direito é coisa difícil, e mais difícil ainda é não violá-lo depois de tê-lo encontrado. É um trabalho laborioso e, acrescentarei, perigoso. Já vimos cristãos fracos renunciar à fé depois de algum assunto infeliz no qual lhe faltou proteção; pois aqueles que se queixam de injustiça devotam ódio igual aos que o ofenderam e aos que recusaram defendê-lo. Eles não querem saber, nem da complicação dos negócios, nem da dificuldade das circunstâncias, nem das limitações restritas do poder sacerdotal, nem de nada no mundo. Juízes inexoráveis de suas próprias causas, eles não compreendem mais do que uma justificação: que se livrem dos males que os oprimem. Se você não puder obter-lhes essa libertação, poderá apresentar-lhes todas as razões imagináveis que não escapará de sua condenação. E, como eu falei de proteção, existe outro tipo de queixas que você irá descobrir”.

“Se a cada dia o bispo não percorrer casa por casa, com mais assiduidades do que quem não tem outra coisa para fazer, uma infinidade de gente se sentirá ofendida. Não apenas os doentes, mas também os sãos querem receber a visita de seu bispo; e bom seria que fosse a religião que lhes inspirasse esse desejo! Mas não, é simplesmente a honra, uma distinção da qual se sentem orgulhosos. Se, por infelicidade, existe alguém rico, um homem poderoso a quem ele visita com mais frequência do que a outros - no próprio interesse e bem comum da Igreja – logo se vê condenado com os nomes de bajulador e cortesão”. 

“Mas por que falar de proteções e de visitas? Não é preciso mais do que uma simples saudação para atrair sobre o bispo uma quantidade de lamúrias, a ponto de sufocá-lo e sucumbi-lo debaixo de tantos desgostos. Pedem-lhe até um simples olhar. Suas ações mais simples passam pela balança da crítica; nota-se o tom de sua voz, os movimentos dos olhos, até o sorriso: como ele sorriu graciosamente para um, como saudou a outro em voz alta e um rosto aberto! A mim ele mal dirigiu a palavra, e apenas por educação. Quando ele entra em um lugar, se esquecer de olhar ao redor e saudar a todos, um após outro, é um homem que não sabe viver. Assim, quem, a menos que possua uma força extraordinária, poderá se bastar contra tantos acusadores, seja para prevenir todos os seus ataques, seja para afastá-los vitoriosamente? Seria preciso que um bispo não tivesse acusadores; sendo isso impossível, que ele pudesse reduzir a nada as acusações; e mesmo isso não é fácil! Quantas pessoas se divertem falando mal a torto e a direito, sem o menor fundamento! Ele deve enfrentar corajosamente os boatos maliciosos, e, na medida do possível, não se deixar levar pela emoção. Suportamos com mais facilidade uma reprovação merecida, porque a consciência, o mais formidável dos acusadores, já o fizera, e com muito mais severidade; mas, quando a acusação é sem fundamento, nos enfurecemos por um primeiro movimento de cólera, ao qual se segue logo o desencorajamento e o abatimento, a menos que um longo exercício de paciência não tenha habituado a alma a se elevar acima da vã opinião dos homens. Quanto a receber as flechas lançadas pela calúnia sem perder a calma e o sangue frio, isso é coisa bem difícil, podemos dizer mesmo, quase impossível”.

“Devo falar anda do quanto custa a um bispo, quando se vê na aflitiva necessidade de afastar alguém da comunhão da Igreja? E ainda que fosse o caso de deplorar apenas a dor do bispo; mas que temível infelicidade! E quanto não devemos temer que o culpado, exasperado por uma punição demasiado severa, não chegue ao extremo de que fala São Paulo, e que não sucumba ao excesso de tristeza[27]”.

A maior prudência é aqui necessária para que o mal não venha a dominar, pelo efeito do próprio remédio que se destinava a curar. Todas as faltas cometidas depois recaem sobre o médico ignorante que não foi capaz de avaliar o ferimento, e exagerou na cauterização. Quanto temor não deverá ter o bispo, quando pensar que deverá prestar contas, não só de seus próprios pecados, como daqueles de todo seu povo? Se nossas próprias ofensas já bastam para nos gelar de medo, e nos fazer perder a esperança de evitar o castigo eterno, o que poderá esperar aquele que terá que se defender de tantos acusadores? Escute São Paulo, ou melhor, Jesus Cristo falando pela boca de seu apóstolo: ‘Obedecei aos vossos superiores, e sede-lhes submissos, porque eles velam por vossas almas, como se delas prestassem contas[28]’. Não existe nessa ameaça tudo o que é preciso para sermos penetrados do mais vivo terror? Por mim, sinto-me ainda além dessa expressão”.

“Eu concluo que não existe ninguém, por mais duro, por mais difícil de persuadir, que não se sinta agora convencido de que, ao recusar o episcopado, eu agi, não por orgulho nem por presunção, mas pelo temor de destruir minha salvação num ministério tão grave”.





[1] 2 Coríntios 3: 10.
[2] Mateus 28: 18.
[3] João 20: 23.
[4] João 3: 5.
[5] João 6: 54.
[6] Levítico 14.
[7] Números 16.
[8] Tiago 5: 14-15.
[9] 2 Coríntios 11: 3.
[10] 1 Coríntios 2: 3.
[11] Romanos 9: 3.
[12] 1 Timóteo 3: 1.
[13] Mateus 5: 11-12.
[14] Cf. 1 Timóteo 3: 2.
[15] CF. Mateus 5: 22.
[16] Cf. Provérbios 15: 4.
[17] 1 Coríntios 12: 28.
[18] 1 Coríntios 2: 11.
[19] Estreito que separa a Eubeia (Negroponte) da Beócia, no mar Egeu.
[20] Filipenses 2: 7.
[21] Ezequiel 18: 23; 33: 11.
[22] Timóteo 5: 16.
[23] Salomão.
[24] Eclesiástico 4: 8.
[25] Eclesiástico 18: 15, 17.
[26] Mateus 3: 10.
[27] Cf. 2 Coríntios 2: 7.
[28] Hebreus 13: 17.

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