terça-feira, 27 de junho de 2017

Kalistos Ware - A Igreja Ortodoxa - Parte II: Fé e Louvação (Tradução: Padre Pedro de Oliveira)

Parte II.
Fé e Louvação.

Santa Tradição. A Fonte da Fé Ortodoxa.

"Guarda o depósito que te foi confiado" (1 Tm 6:20)

O Significado intrínseco da tradição.

A história ortodoxa é marcada externamente por uma série de rupturas repentinas: a tomada de Alexandria, Antioquia e Jerusalém pelos árabes maometanos; o incêndio de Kiev pelos mongóis; os dois saques de Constantinopla; a Revolução de outubro na Rússia. Entretanto, estes eventos jamais abalaram a continuidade interna da Igreja Ortodoxa, mesmo que tenham transformado a aparência externa do mundo ortodoxo. O que mais chama a atenção de um estranho ao encontrar a Ortodoxia é seu ar de antigüidade, sua aparente imutabilidade. Descobre-se que os ortodoxos ainda batizam com três imersões como na Igreja primitiva; ainda trazem bebês e crianças pequenas para a Santa Comunhão; na Liturgia o diácono ainda exclama: " Vigiai as portas!" — lembrando dos primórdios quando a entrada da igreja era zelosamente guardada e ninguém senão os membros da família Cristã podiam freqüentar os ofícios; o Credo ainda é recitado sem nenhum acréscimo.

Existem poucos exemplos exteriores de algo que penetre em todos os aspectos da vida Ortodoxa, Recentemente quando dois eruditos Ortodoxos foram solicitados a resumir as características distintas de sua Igreja, ambos apontaram para a mesma coisa: sua imutabilidade, sua determinação de permanecer leal ao passado, seu sentido de viva continuidade com a Igreja dos tempos antigos (ver Panagiotis Bratsiotis e Georges Florovsky, em Orthodoxy, A Faith and Order Dialogue,  Geneva, 1960). Dois séculos e meio antes, os Patriarcas Orientais disseram exatamente a mesma coisa para os Non-Jurors: "Nós preservamos a Doutrina do Senhor não corrompida, e firmemente aderimos à Fé que Ele nos entregou, e a mantemos livre de imperfeições e diminuições, como um Tesouro Real, e um monumento de grande preço, nem acrescentando, nem tirando nada dela" (Carta de 1718, em
G. Williams, The Orthodox Church at the Eighteenth Century pg 17). Essa idéia de viva continuidade é resumida para os Ortodoxos em uma palavra: Tradição. "Nós não mudamos os limites permanentes que nossos Pais estabeleceram," escreveu S. João Damasceno, "mas nós mantemos a Tradição, assim como a recebemos" (On Icons, II, 12, P.G. XCIV, 1297B).

Os Ortodoxos estão sempre falando de Tradição. O que eles querem dizer com a palavra? A tradição, diz o dicionário Oxford, é uma opinião, ou costume legado pelos ancestrais para a posteridade. Tradição Cristã, nesse caso é a fé que Jesus Cristo concedeu aos Apóstolos, e que desde os tempos apostólicos tem sido passada de geração em geração na Igreja (Comparar com Paulo I Co. 15:3). Mas para um Cristão Ortodoxo, Tradição significa algo mais concreto e específico que isso. Significa os livros da Sagrada Escritura; significa o Credo; significa os decretos dos Concílios Ecumênicos e os escritos dos Padres; significa os Canons, os Livros de Ofícios, os Santos Ícones — de fato o sistema doutrinal completo, o governo da Igreja, a louvação e a arte que foram articuladas pelos séculos. O Cristão Ortodoxo de hoje vê-se como herdeiro e guardião da grande herança recebida do passado, e ele acredita ser sua obrigação transmiti-la não prejudicada ao futuro.

Note-se que a Sagrada Escritura forma uma parte da tradição. Às vezes a Tradição é definida como ‘o ensinamento oral de Cristo, não gravado por escrito por seus discípulos imediatos’ (Oxford Dictionary). Não só escritores não-Ortodoxos, mas também muitos escritores Ortodoxos adotaram esse modo de falar, tratando as Escrituras e a Tradição como duas coisas diferentes, duas fontes distintas da fé Cristã. Mas na realidade só existe uma fonte, porque as Escrituras existem dentro da Tradição. Separar ou contrastar as duas é empobrecer ambas.

Os Ortodoxos enquanto reverenciando essa herança do passado, estão também bem conscientes que nem tudo recebido do passado tem igual valor. Entre os vários elementos da Tradição, a única preeminência pertence às Escrituras, ao Credo, às definições doutrinais dos Concílios Ecumênicos: essas coisas os Ortodoxos aceitam como absolutas e imutáveis, algo que não pode ser cancelado ou revisado. As outras partes da Tradição não tem a mesma autoridade. Os decretos de Jassy ou Jerusalém não estão no mesmo nível que o Credo de Nicéia, nem os escritos de um Atanásio ou de um Simeão o Novo Teólogo, ocupam a mesma posição que o Evangelho de São João.

Nem tudo recebido do passado é de igual valor, e nem tudo recebido do passado é necessariamente verdade. Como um dos bispos deixou marcado no Concílio de Cartago em 257: "O Senhor disse, Eu sou a verdade." Ele não disse, Eu sou o costume’ (The Opinions of the Bishops on the Baptizing of Heretics, 30). Existe uma diferença entre Tradição e tradições: muitas tradições legadas pelo passado são humanas e acidentais — opiniões pias (ou pior), mas não uma parte verdadeira da Tradição una, a mensagem essencial Cristã.

É necessário questionar o passado. O Bizantino e o posterior. Nos tempos Bizantinos, os Ortodoxos nem sempre foram suficientemente críticos em sua atitude para com o passado, e o resultado foi freqüentemente estagnação. Hoje essa atitude não crítica não pode mais ser mantida. Níveis mais altos de escolaridade, contatos crescentes com Cristãos ocidentais, as invasões do secularismo e do ateísmo, tem forçado os Ortodoxos, nos tempos presentes, a olhar mais de perto para a sua herança e a distinguir mais cuidadosamente entre Tradição e tradições. A tarefa de discriminação nem sempre é
fácil. É necessário evitar tanto o erro dos Velhos Crentes quanto o da ‘Igreja Viva’: o primeiro partido caiu em um extremo conservadorismo que não sofreu modificação nem mesmo em tradições, e o outro caiu num Modernismo ou liberalismo teológico que abala a Tradição. Mesmo assim, apesar de certas desvantagens manifestas, os Ortodoxos de hoje em dia estão talvez numa melhor posição para discriminar o certo do que seus predecessores estiveram por muitos séculos; e freqüentemente é precisamente seu contato com o ocidente que os está ajudando a ver mais e mais claramente o que é
essencial em sua herança.

A verdadeira fidelidade Ortodoxa ao passado deve ser sempre uma fidelidade criativa; pois a verdadeira Ortodoxia não pode nunca descansar satisfeita com uma estéril ‘teologia de repetição’, que como papagaio, repete fórmulas aceitas sem esforçar-se para compreender o que está por detrás delas. A lealdade à Tradição, entendida propriamente não é uma coisa mecânica, um processo pouco inteligente de passar aquilo que foi recebido. Um pensador Ortodoxo deve ver a Tradição de dentro, ele deve entrar no espírito interior dela. De modo a viver dentro da Tradição, não é suficiente
simplesmente dar aceitação intelectual a um sistema de doutrina; pois a Tradição é muito mais que um conjunto de proposições abstratas — é uma vida, um encontro pessoal com Cristo no Espírito Santo. A Tradição não é só mantida pela Igreja, ela vive na Igreja, ela é a vida do Espírito Santo na Igreja. A concepção Ortodoxa de Tradição não é estática mas dinâmica, não uma aceitação morta do passado mas uma experiência viva do Espírito Santo no presente. A tradição, enquanto internamente imutável (pois Deus não muda), está constantemente assumindo novas formas, que suplementam a
forma anterior sem substitui-la. Os Ortodoxos falam como se o período de formulação doutrinal tivesse chegado ao fim completamente, no entanto esse não é o caso. Talvez nos nossos próprios dias um novo Concílio Ecumênico seja realizado, e a Tradição seja enriquecida por novos estatutos da fé.

Essa idéia de Tradição como uma coisa viva foi muito bem expressa por Georges Florovsky: ‘A Tradição é a testemunha do Espírito Santo; a incessante revelação e pregação de boas novidades do Espírito Santo...Para aceitar e compreender a Tradição devemos viver dentro da Igreja, devemos estar conscientes da presença doadora de graça do Senhor nela; devemos sentir o sopro do Espírito Santo nela...A Tradição não é só um princípio protetor e conservador; é primariamente, o princípio de crescimento e regeneração...A Tradição é a constante permanência do Espírito Santo e não só a
memória de palavras (‘Sobornost: the Catholicity of the Church,’ na The Church of God, editado por E. L. Mascall, pgs.64-65.Comparar com G. Florovsky, ‘Saint Gregory Palamas and the Tradition of the Fathers no periódico Sobornost, serie 4 nº 4, 1961, pgs. 165-167; e V. Lossky, ‘Tradition and Traditions,’ no Ouspensky e Lossky, The Meaning of the Icons, pgs. 13-24. A esses dois ensaios eu fico em grande débito). A Tradição é a testemunha do Espírito: nas palavras de Cristo, "Mas quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade" (Jo. 16:13). É essa promessa
divina que forma a base da devoção Ortodoxa à Tradição.

As formas exteriores.

Tomemos cada uma das diferentes formas exteriores pelas quais a Tradição se expressa;

1. A Sagrada Escritura.

a. A Sagrada Escritura e a Igreja. Igreja Cristã é uma Igreja Escritural: a Ortodoxia crê nisso, tão ou mais firmemente que o Protestantismo. A Sagrada Escritura é a expressão suprema da revelação de Deus ao homem, e os Cristãos devem ser sempre o ‘Povo do Livro.’ Mas se os Cristãos são o Povo do Livro, a Escritura é o Livro do Povo; isso não pode ser olhado como se colocado acima da Igreja, mas como algo que deve ser vivido e compreendido dentro da Igreja (eis porque não se deve separar Escritura e Tradição). É da Igreja que a Escritura deriva sua autoridade, pois foi a Igreja que originalmente decidiu quais os livros que deveriam formar a Sagrada Escritura; e somente a Igreja pode interpretar a Sagrada Escritura com autoridade. Existem várias passagens na escritura que por
si estão longe da clareza, e o leitor individual, ainda que sincero, estará em perigo de erro se confiar na sua própria interpretação. "Entendes tu o que lês?" Felipe perguntou ao eunuco etíope; e o eunuco respondeu; "Como poderei entender, se alguém me não ensinar?" (At. 8:30). Os Ortodoxos, quando lêem a Escritura, aceitam a guia da Igreja. Quando recebido na Igreja Ortodoxa um convertido promete: ‘Eu aceitarei e compreenderei a Sagrada Escritura de acordo com a interpretação que me foi e que me vier a ser passada pela Santa Igreja Católica do Oriente, nossa Mãe’ (em Bible and Church, ver especialmente de Dositeu, Confession, Decreto 2).

A versão hebréia do Velho Testamento contém trinta e nove livros. O Septuaginta contém adicionalmente dez outros livros, não presentes na versão hebréia, e que são conhecidos na Igreja Ortodoxa como os livro ‘Deutero-Canônicos’ (3 Esdras ; Tobias; Judite ; 1, 2, 3, Macabeus ; Sabedoria de Salomão; Eclesiastes; Baruch; Carta de Jeremias. No ocidente com freqüência esses livros são chamados de apócrifos). Esses livros foram declarados nos Concílios de Jassy (1642), Jerusalem (1672) como ‘partes genuínas da Escritura;’ muitos eruditos Ortodoxos nos dias de hoje, seguindo a opinião de Atanásio e Jerônimo, vêem os Livros Deutero—Canônicos, apesar de parte das
Escrituras, ficando um nível abaixo do resto do Velho Testamento.

O Cristianismo, se verdadeiro, não tem nada a temer de um inquérito honesto. A Ortodoxia, enquanto olha a Igreja como intérprete autorizada da Escritura, não proíbe a crítica e o estudo histórico da Escritura, apesar de até agora, eruditos Ortodoxos não terem se mostrado proeminentes nesse campo.

b) O Texto da Sagrada Escritura: Criticismo Escritural. A Igreja Ortodoxa tem o mesmo Novo Testamento que o resto do Cristianismo. Como texto autorizador para o Velho Testamento, ela usa a antiga tradução grega conhecida como Septuaginta. Quando essa diverge do original Hebreu (o que acontece com freqüência), a Ortodoxia acredita que essas mudanças no Septuaginta foram feitas sob a inspiração do Espírito Santo, e devem ser aceitas como parte da contínua revelação de Deus. A passagem mais conhecida é Isaias 7:14 — onde os hebreus dizem‘uma jovem conceberá, e dará à luz
um filho’ e o Septuaginta traduz ‘Uma virgem conceberá... etc. O Novo Testamento segue o texto Septuaginta (Mt. 1: 23).

c) A Sagrada Escritura na louvação. Às vezes pensa-se que os Ortodoxos dão menos importância que os Cristãos ocidentais à Escritura. Ao invés ela é lida constantemente nos ofícios Ortodoxos: durante as Matinas e Vésperas o Saltério inteiro é recitado cada semana, e na Grande Quaresma duas vezes por semana (essa é a regra que consta dos ofícios Ortodoxos. Na prática, em paróquias comuns Matinas e Vésperas não são celebradas diariamente, mas só nos fins de semana e nas festas; e mesmo então, infelizmente, as partes apontadas do Saltério são normalmente abreviadas ou (ainda pior) inteiramente omitidas).Leituras do Velho Testamento (o normal é ser em número de três) ocorrem nas Vésperas de muitas festas; a leitura do Evangelho forma o clímax das Matinas aos domingos e festas; na Liturgia, Epístola e Evangelho especiais são assinalados para cada dia do ano, de modo que o Novo Testamento completo é lido, durante o ano, na Eucaristia (menos o Apocalipse de São João). O Nunc Dimittis é usado nas Vésperas; cânticos do Velho Testamento, com o Magnificat e o Benedictus, são cantados nas Matinas; o Pai Nosso é lido ou cantado em todos os ofícios. Além
desses extratos específicos da Escritura, o texto completo é composto com linguagem Escritural, e foi calculado que a Liturgia contém 98 citações do Velho Testamento e 114 do Novo (Paul Evdokimov, L’Orthodoxie, pg. 241, nota 96).

A Ortodoxia olha a Escritura como um ícone verbal de Cristo, tendo o Sétimo Concílio disposto que os Santos Ícones e Evangeliario deveriam ser venerados da mesma forma. Em toda Igreja o Evangeliario tem um lugar de honra no altar; ele é carregado em procissão na Liturgia e na Matinas de domingos e festas; os fiéis beijam-no e se prostram diante dele. Tal é o respeito mostrado na Igreja Ortodoxa pela palavra de Deus.

2. Os Sete Concílios Ecumênicos: o Credo.

As definições doutrinais de um Concílio Ecumênico são infalíveis. Assim aos olhos da Igreja Ortodoxa, os estatutos de fé postos pelos Sete Concílios possuem, junto com a Escritura, uma permanência e uma autoridade irrevogáveis.

O mais importante de todos os estatutos de fé dos Concílios Ecumênicos é o Credo de Nicéia-Constantinopla, que é lido ou cantado em toda celebração Eucarística, e também diariamente nas Noturnas e nas Completas. Os outros dois credos usados pelo ocidente, ’Credo dos Apóstolos’ e o ‘Credo Atanasiano’, não possuem a mesma autoridade que o de Nicéia, porque não foram proclamados por um Concílio Ecumênico. Os Ortodoxos honram o Credo dos Apóstolos como um Estatuto antigo da fé, e aceitam seus ensinamentos; mas é simplesmente um Credo batismal ocidental local, nunca usado nos ofícios dos Patriarcados Orientais. O ‘Credo Atanasiano’ igualmente não é usado na louvação Ortodoxa, mas às vezes é impresso (sem o filioque) no Horologion (Livro de
Horas).

3. Concílios Posteriores.

A formulação da doutrina Ortodoxa, como vimos, não cessa com os Sete Concílios Ecumênicos. Desde 787 existiram dois modos principais pelos quais a Igreja expressou sua mente: a) definições de Concílios Locais (isto é, concílios atendidos por uma ou mais Igrejas nacionais, mas não pretendendo representar a Igreja Católica Ortodoxa como um todo) b) epístolas ou estatutos de fé postos por bispos individuais. Enquanto as definições doutrinais dos Concílios Gerais são infalíveis, as de um Concílio Local ou de um bispo individual são sempre sujeitas a erro; mas se tais decisões são aceitas pelo resto da Igreja, elas então adquirem uma autoridade Ecumênica (isto é, autoridade universal similar àquela possuída pelos estatutos doutrinais de um Concílio Ecumênico). As decisões doutrinais de um Concílio Ecumênico não podem ser revisadas nem corrigidas, devem ser aceitas in toto; mas a Igreja freqüentemente tem sido seletiva em seu tratamento dos atos de Concílios Locais: no caso dos Concílios do século dezessete, por exemplo, seus estatutos foram em parte recebidos por toda Igreja Ortodoxa, mas em parte posto de lado ou corrigidos.

São os seguintes os principais estatutos doutrinais Ortodoxos desde 787.

1. A Carta Encíclica de São Photius (867)
2. A Primeira Carta de Michael Cerularius para Peter de Antioquia (1054)
3. As decisões dos Concílios de Constantinopla em1341 e 1351 sobre Controvérsia Hesicasta
4. A Carta Encíclica de São Marcos de Éfeso (1440-1441)
5. A Confissão de Fé por Gennadius, Patriarca de Constantinopla (1455-6)
6. As Respostas de Jeremias o Segundo aos Luteranos (1573-1581)
7. A Confissão de Fé de Metrophanes Kritopoulos (1625)
8. A Confissão Ortodoxa de Peter Moghila, em sua forma revisada (ratificada pelo Concílio de Jassy,1642)
9. A Confissão de Dositeus (ratificada pelo Concílio de Jerusalém,1672)
10. As Respostas dos Patriarcas Ortodoxos aos Non-Jurors (1718,1723)
11. A Resposta dos Patriarcas Ortodoxos ao Papa Pio IX (1848)
12. A Resposta do Sínodo de Constantinopla ao Papa Leão XIII (1895)
13. As Cartas Encíclicas pelo Patriarcado de Constantinopla sobre a unidade Cristã e o ‘Movimento Ecumênico’ (1920,1952)

Esses documentos, particularmente itens 5-9, são às vezes chamados de ‘Livros Simbólicos’ da Igreja Ortodoxa, mas muitos eruditos Ortodoxos atuais vêem esse título como desorientador e não o usam.

4. Os Padres.

As definições dos Concílios devem ser estudadas no contexto mais amplo dos Padres. Mas como com os Concílios Locais, também com os Padres, o julgamento da Igreja é seletivo: escritores individuais tem às vezes caído em erro e às vezes se contradizem uns aos outros. Trigo Patrístico deve ser distinguido do joio Patrístico. Um Ortodoxo não deve simplesmente conhecer e citar os Padres, mas ele deve entrar no Espírito dos Padres e adquirir uma ‘mentalidade Patrística.’ Ele deve tratar os Padres não meramente como relíquias do passado, mas como testemunhas vivas e contemporâneas. A Igreja Ortodoxa nunca tentou definir exatamente quem são os Padres, muito menos classificá-los em ordem de importância. Mas ela tem uma particular reverência pelos escritores do século quarto, especialmente por aqueles que ela chama de ‘os Três Grandes Hierarcas,’ Gregório de Nazianzo, Basílio o Grande, e João Crisóstomo. Aos olhos da Ortodoxia a ‘Era dos Padres’ não chegou a um fim no século quinto, pois muitos escritores posteriores também são ‘Padres’—Máximo, João Damasceno, Teodoro o Estudita, Simeão o Novo Teólogo, Gregório Palamas, Marcos de Éfeso. Na
verdade, é perigoso olhar para ‘os Padres’ como para um ciclo fechado de escritores todos pertencendo ao passado, pois não pode nossa época produzir um novo Basílio ou Atanásio? Dizer-se que não pode existir mais um Padre, é sugerir que o Espírito Santo desertou da Igreja.

5. A Liturgia.

A Igreja Ortodoxa não é muito dada a fazer definições dogmáticas formais como a Igreja Católica Romana. Mas seria falso concluir-se que porque algumas crenças nunca foram especificamente proclamadas como dogma pela Ortodoxia, então não são parte da Tradição Ortodoxa, mas somente uma questão de opinião particular. Certas doutrinas, nunca formalmente definidas, são no entanto mantidas pela Igreja com uma inquestionável convicção interior, com uma clara unanimidade, o que é tão determinante quanto qualquer formulação explícita. ‘Algumas coisas nós temos de ensinamento escrito,’ diz São Basílio, ‘outras nós recebemos da Tradição Apostólica trazidas para nós em um mistério; e ambas tem a mesma força Para a piedade (On the Holy Spirit, 27, 66).

Essa Tradição interior ‘trazida para nós em um mistério’ é preservada na louvação da Igreja acima de tudo. Lex orandi lex credendi: a fé do homem é expressa em sua oração. A Ortodoxia fez poucas definições explícitas sobre a Eucaristia e sobre os outros Sacramentos, sobre o próximo mundo, sobre a Mãe de Deus, sobre os santos, e sobre os fiéis que partiram: a crença Ortodoxa sobre esses pontos está contida principalmente nas orações e hinos usados nos ofícios Ortodoxos. Mas não só as palavras dos ofícios é que fazem parte da Tradição; os vários gestos e ações — imersão nas águas do Batismo, as diferentes unções com óleo, o sinal da Cruz, etc. — todos tem um significado especial, e todos expressam de forma dramática ou simbólica as verdades da fé.

6. Lei Canônica.

Além das definições doutrinais, os Concílios Ecumênicos produziram Canons, tratando de organização e disciplina da Igreja; outros Canons foram feitos por Concílios Locais e por bispos individuais. Teodoro Balsamão Zonaras, e outros escritores Bizantinos compilaram coleções de Canons,com explicações e comentários. O comentário padrão grego e moderno, o Pedalion (‘Rudder’), publicado em 1800, é o trabalho do infatigável santo, Nicodemus da Montanha Santa.

A Lei Canônica da Igreja Ortodoxa foi muito pouco estudada no ocidente, e como resultado escritores ocidentais caem às vezes no erro de olhar a Ortodoxia como uma organização virtualmente sem regulações exteriores. Ao contrário, a vida da Ortodoxia tem muitas regras, com freqüência muito estritas e rigorosas. Deve ser confessado, no entanto, que nos dias de hoje, muitos dos Canons são difíceis ou impossível de serem aplicados, e caíram grandemente em desuso. Quando e se um novo Concílio Geral da Igreja se reunir uma de suas tarefas mais importantes pode bem vir a ser a revisão e esclarecimento da Lei Canônica.

As definições doutrinárias dos Concílios possuem uma validade absoluta e inalterável em que Cânones, como tais, não conseguem descrever, posto que estas definições lidam com verdades eternas, e os Cânones com a vida terrena da Igreja, onde as condições mudam constantemente e a situação do indivíduo é infinitamente variada. Todavia, entre Cânones e dogmas da Igreja existe uma ligação essencial: A Lei Canônica é a tentativa de aplicar o dogma a situações práticas do cotidiano de cada cristão. Assim, de uma certa forma, as Leis Canônicas formam uma parte da Sagrada Tradição.

7. Ícones.

A tradição da Igreja não é expressa apenas por meio de palavras ou ações e gestos usados na adoração, mas também por arte — pelas linhas e cores dos Ícones Sagrados. Um ícone não é simplesmente uma figura religiosa desenhada para despertar os sentimentos adequados no observador; é uma das formas pelas quais Deus é revelado ao homem, pois através dos ícones o cristão ortodoxo recebe uma visão do mundo espiritual. Sendo o ícone parte da Tradição, o pintor não tem a liberdade de inovação e adaptação, já que o trabalho deve refletir, não o seu juízo estético e sim o espírito da Igreja. Não se exclui a inspiração artística, ela é exercida dentro de regras determinadas.
É importante que o iconógrafo seja um bom artista e, mais importante ainda, que ele seja um cristão sincero e que viva dentro da tradição preparando-se para o trabalho através da Confissão e da Comunhão.

A tradição da Igreja Ortodoxa é, sob um ponto de vista superficial, formada por elementos básicos, tais como as Escrituras, os Concílios, Padres, Liturgia, Cânones e Ícones. Esses elementos não podem ser separados ou comparados, pois é o mesmo Espírito Santo que fala através de todos eles que juntos formam um todo, devendo cada parte deve ser entendida a luz das outras partes.

Algumas vezes já foi dito que a principal causa da separação do Cristianismo ocidental no século XVI foi a divisão entre teologia e misticismo, liturgia e devoção pessoal que existiam no fim da Idade Média. A Ortodoxia, por sua parte, sempre tentou evitar esta divisão. A verdadeira teologia Ortodoxa é mística; assim o misticismo separado da teologia torna-se subjetivo e herético, portanto a teologia, não sendo mística, degenerasse a uma escolástica estéril e acadêmica no mal sentido da palavra.

Teologia, misticismo, espiritualidade, regras morais, adoração e arte não podem estar em compartimentos separados. A doutrina não pode ser entendida a não ser através de oração: um teólogo, disse Evagrius, é aquele que sabe rezar, que reza em espírito e em verdade e é, por este ato, um teólogo (On Prayer, 60, P.G. 79, 1180B). E a doutrina, entendida pela oração, deve também ser vivida: teologia sem obra, como São Maximus já havia colocado, é a teologia de demônios (Carta 20, P.G.91, 601C). O Credo pertence apenas àqueles que nele vivem. Fé e amor, teologia e vida são inseparáveis. Na Liturgia Bizantina, o credo é introduzido com as palavras: "Amemo-nos uns aos outros para que, em comunhão de espírito, possamos confessar...o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
Trindade consubstancial e indivisível." Isto expressa exatamente a atitude Ortodoxa perante a Tradição. Se não amamos uns aos outro, não podemos amar a Deus e, se não podemos amá-Lo, não podemos confessar a verdadeira fé e entrar no espírito da tradição, pois não há outra forma de conhecer Deus além de amá-Lo.

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