segunda-feira, 26 de junho de 2017

Kalistos Ware - A Igreja Ortodoxa - Parte I: Bizâncio: o Grande Cisma (Tradução: Padre Pedro Oliveira)

Bizâncio: O Grande Cisma.

"Não nos tornamos diferentes. Ainda somos os mesmos do Século VIII...
Ah, se vocês pudessem concordar em ser uma outra vez o que já foram,
quando éramos um na fé e na comunhão!" (Alexis Khomiakov).

A desavença entre a Cristandade Oriental e Ocidental.

Numa tarde de verão do ano de 1054, quando estava prestes a começar um ofício na Igreja de Santa Sophia, em Constantinopla, o Cardeal Humberto e outros dois enviados do Papa entraram na igreja e se encaminharam em direção ao santuário. Não tinham vindo orar. Puseram uma Bula de Excomunhão sobre o altar e, com passos decididos, saíram do santuário. Quando passaram pela porta oeste o Cardeal sacudiu a poeira de seus pés, enquanto proferia estas palavras: "Que Deus veja e julgue." Um diácono correu atrás dele desesperado e lhe implorou que levasse consigo a Bula. O Cardeal se recusou a fazê-lo e a Bula foi jogada na rua.

Convencionalmente considera-se que este incidente marcou o inicio do grande cisma entre o oriente ortodoxo e o ocidente romano. O cisma, no entanto, como reconhecem os historiadores de hoje, não é de fato, um acontecimento cujo começo possa ser estabelecido numa data exata.

Foi algo que aconteceu gradativamente, como resultado de um processo longo e complicado, que começou muito antes do século XI e que só terminou um pouco depois daquela época. Influencias diversas contribuíram para tal. O cisma condicionou-se a fatores culturais, políticos, e econômicos. No entanto sua causa fundamental não foi secular, mas sim teológica. Em última analise, foi por causa de assuntos doutrinais que o oriente e o ocidente se desentenderam — dois deles em particular: a primazia do Papa e o filioque. Antes de considerarmos mais de perto estas duas diferenças principais ou verdadeiro curso que o cisma tomou, devemos dizer algo sobre o pano de fundo em que
ele se desenrolou. Bem antes de haver um cisma claro e formal entre o oriente e o ocidente os dois lados haviam se tornado estranhos um ao outro. Ao tentarmos compreender porque a unidade da Cristandade foi rompida, devemos começar por este crescente afastamento.

Quando Paulo e outros apóstolos viajavam pelo mundo mediterrâneo, eles se deslocavam através de uma forte unidade política e cultural, o império romano. Este império era formado por muitos grupos étnicos diferentes, que freqüentemente tinham línguas e dialetos próprios. Todos eles, no entanto, eram governados pelo mesmo imperador. Havia uma extensa civilização grego-romana que era compartilhada pelas pessoas cultas em todas as regiões do império. Entendia-se ou o grego ou o latim em quase todo o império e muitos sabiam falar ambas as línguas. Tais fatos contribuíram muito para a Igreja primitiva em seu trabalho missionário.

Porém, nos séculos seguintes, a unidade do mundo mediterrâneo desapareceu gradativamente. A unidade política foi a primeira a desaparecer. A partir do final do século III o império, ainda que teoricamente uno, estava geralmente dividido em duas partes, o ocidente e o oriente. Constantino levou mais longe este processo de separação ao fundar uma segunda capital no oriente, ao lado da velha Roma na Itália. Depois vieram as invasões dos bárbaros no começo do século V. Com exceção da Itália, que em sua maior parte continuou a fazer parte do império por mais algum tempo, o ocidente foi dividido entre os chefes bárbaros. Os bizantinos jamais se esqueceram dos ideais de Roma sob os governos de Augusto e Trajano e ainda consideravam seu império universal, o que se dava apenas teoricamente. Justiniano foi, porém, o último imperador que se esforçou seriamente em acabar com a distância entre a teoria e os fatos. Suas conquistas no ocidente foram logo abandonadas. A unidade política entre o oriente grego e o ocidente romano foi destruída pelas invasões dos bárbaros e jamais foi plenamente restabelecida.

A separação foi levada a um estágio mais sério pela ascensão do Islã. O mediterrâneo, que outrora havia sido chamado de Mare Nostrum pelos romanos, passava agora, em grande parte, ao controle dos árabes. Os contatos culturais e econômicos entre o oeste e o leste do mediterrâneo nunca cessaram completamente, mas se tornaram bem mais difíceis.

Desligado de Bizâncio, o ocidente tratou de estabelecer o seu próprio Império "Romano." No dia de natal do ano de 800, o Papa coroou Carlos Magno, rei dos francos, imperador. Carlos Magno procurou, em vão, o reconhecimento do imperador de Bizâncio. Os bizantinos, que ainda acreditavam no princípio da unidade do império, viam Carlos Magno como um intruso e sua coroação feita pelo Papa, como um ato cismático dentro do império. A criação de um Império romano cristão no ocidente, ao invés de unir a Europa, serviu tão somente para separar ainda mais o oriente e o ocidente.

A unidade cultural ainda persistiu, mas de uma maneira bem mais atenuada. Tanto no oriente quanto no ocidente os homens cultos ainda viviam dentro da tradição clássica que a Igreja havia assumido e adotado. Com o passar do tempo, porém, começaram a interpretar esta tradição de maneira cada vez mais divergente. A situação se tornou ainda mais difícil por questões relacionadas a língua. Havia chegado ao fim a época em que as pessoas cultas eram bilíngües. No ano de 450 havia poucos na Europa que soubessem ler grego e depois de 600, embora Bizâncio ainda se intitulasse Império Romano, era raro um bizantino que falasse latim, a língua dos romanos. Photius, o maior erudito de Constantinopla no século IX não sabia ler latim e, em 864 um imperador "romano" de Bizâncio, Miguel III, chegou a chamar a língua na qual Virgílio escreveu, de "uma língua bárbara." Se os gregos queriam ler obras em latim ou os romanos em grego, eles só tinham acesso a traduções e geralmente não se preocupavam em ler nem mesmo estas. Psellus, um eminente erudito grego do século XI tinha uma noção tão precária da literatura latina que confundia César com Cícero. Isto porque não se inspiravam mais na mesma fonte nem liam os mesmos livros. O oriente grego e o ocidente romano se distanciavam cada vez mais.

Foi um precedente funesto porém significativo que a renascença cultural da corte de Carlos Magno tinha sido marcada desde o início por um forte preconceito contra a cultura grega. A hostilidade e a provocação da parte do império romano do ocidente em relação a Constantinopla se estendia para além do campo político atingindo o campo cultural. Os homens cultos da corte de Carlos Magno não tencionavam imitar Bizâncio, mas procuravam criar uma nova civilização cristã que fosse sua própria. Na Europa do século IV havia existido uma única civilização cristã. No século XIII havia duas. Talvez tenha sido no reinado de Carlos Magno que o cisma entre estas duas civilizações tenha primeiro se tornado claro.

De sua parte, os bizantinos ficaram fechados no seu próprio mundo e pouco fizeram para se aproximar do ocidente. Ao contrário do que acontecia no século IX e em séculos posteriores eles não levavam o conhecimento ocidental a sério como ele merecia. Eles simplesmente rejeitavam todos os "francos" como bárbaros.

Estes fatores culturais e políticos com certeza afetavam a vida da Igreja e tornavam mais difícil manter a unidade religiosa. O afastamento cultural e político pode facilmente levar a contendas de caráter eclesiástico, como podemos constatar no caso de Carlos Magno. Não tendo sido reconhecido na esfera política pelo imperador bizantino, logo retaliou com uma acusação de heresia contra a Igreja bizantina. Denunciou os gregos por não usarem o filioque no Credo (falaremos mais sobre isto em seguida) e recusou-se a aceitar as decisões do Sétimo Concílio Ecumênico; é verdade que Carlos Magno só soube destas decisões através de uma tradução mal feita que distorcia seriamente seu sentido verdadeiro. De qualquer modo, ele parece ter sido um semi-iconoclasta quanto às suas posturas.

A situação política distinta no leste e no oeste fez com que a Igreja assumisse formas externas diferentes, de modo que gradativamente passou-se a pensar na hierarquia da Igreja de maneira conflitante. Desde o começo tinha havido uma ênfase quanto a isto no oriente e no ocidente. No oriente havia muitas igrejas cuja base remontava aos apóstolos; havia um forte sentido de igualdade entre todos os bispos quanto a natureza conciliar e colegial da Igreja. O oriente reconhecia o Papa primeiro entre iguais. No ocidente, por outro lado, havia só uma grande sé que reivindicava para si a sucessão apostólica — Roma — donde passou a ser vista como a sé apostólica. O ocidente, mesmo aceitando as decisões dos Concílios Ecumênicos, não tinha um papel muito ativo nos mesmos. A Igreja era vista mais como uma monarquia — a do Papa — do que como um colegiado.

Esta diferença inicial de pontos de vista se tornou mais séria devido a acontecimentos políticos que se seguiram. Como era de se esperar, as invasões dos bárbaros e a conseqüente queda do império no ocidente serviram para tornar mais forte a estrutura autocrática da Igreja ocidental. No oriente havia um chefe secular muito poderoso — o imperador — para manter a ordem e fazer cumprir a lei. No ocidente, depois do advento dos bárbaros, havia um grande número de chefes guerreiros, todos eles, de um certo modo, usurpadores. Na maioria das vezes era o Papado sozinho que podia desempenhar
o papel de centro de união, como um elemento de continuidade e estabilidade na vida política e espiritual da Europa ocidental. Por força das circunstâncias, o Papa assumiu um papel que os Patriarcas Gregos não foram chamados a fazer. Tornou-se um autocrata, um monarca absolutista, que se colocou acima da Igreja, expedindo ordens de um modo que poucos ou nenhum bispo do oriente jamais havia feito, não só quanto aos subordinados da Igreja mas também quanto as autoridades seculares. A Igreja no ocidente tornou-se centralizada a um ponto que era desconhecido em qualquer dos patriarcados no oriente (com exceção possivelmente no Egito). Monarquia no ocidente; no oriente um colegiado.

Não foi este também o único efeito que as invasões dos bárbaros tiveram na vida da Igreja. Em Bizâncio havia muitos leigos cultos que tinham um grande interesse em teologia. O teólogo leigo sempre foi uma figura aceita na Ortodoxia; alguns dos patriarcas bizantinos mais cultos — Photius, por exemplo — haviam sido leigos antes de serem escolhidos para o Patriarcado. No oeste, no entanto, a única educação efetiva que sobreviveu a "Idade das Trevas" era a que a Igreja dava ao clero. A teologia tornou-se privilégio dos padres, uma vez que a maior parte dos leigos era analfabeta, e não era capaz de entender as tecnicalidades de uma discussão teológica. A Ortodoxia, apesar de confiar ao episcopado a tarefa especial de educar, nunca conheceu uma divisão tão grande entre o clero e os leigos, como a que se deu na Idade Média no ocidente.

As relações entre os cristãos do leste e do oeste se tornaram ainda mais difíceis pela ausência de uma língua comum. Como os dois lados já não conseguiam se comunicar entre si com facilidade, ou ler o que o outro escrevera, apareceram freqüentes mal-entendidos em termos de teologia. Estes mal entendimentos pioravam ainda mais por causa das traduções mal feitas as quais se teme terem sido feitas deliberada e maliciosamente.

O leste e o oeste se tornavam estranhos um ao outro, o que era algo que provavelmente afetaria ambos os lados. Na Igreja primitiva tinha havido unidade na fé mas uma diversidade de escolas de teologia. Desde o início tanto o leste quanto o oeste haviam enfocado o mistério cristão cada um a sua maneira. O enfoque do ocidente era mais prático; o do leste mais especulativo. O pensamento romano foi influenciado por conceitos Jurídicos, pelos conceitos da lei romana, enquanto que os gregos viam a teologia, no contexto da adoração à luz da Liturgia Sagrada. Quando pensavam a Trindade os romanos o faziam pela unidade de Deus Pai, os gregos pela triunidade das Pessoas; quando refletiam sobre a crucificação, os romanos pensavam primordialmente no Cristo — vítima, os gregos, no Cristo — vencedor. Os romanos falavam mais da redenção; os gregos da deificação e assim por diante. 

Como aconteceu com as escolas de Antioquia e Alexandria no leste estes dois enfoques distintos não eram contraditórios em si; cada um serviu, como complemento do outro, e tinham seu próprio lugar na plenitude da tradição católica. Porém, agora que os dois lados estavam se tornando estranhos um ao outro — sem unidade política e com pouca unidade cultural, sem uma língua comum — havia o perigo de que cada lado seguisse seus pontos de vista isolados e que chegasse a extremos, esquecendo-se do valor que há em pontos de vista opostos.

Falamos dos diferentes enfoques dados à doutrina no leste e no oeste. Havia dois pontos doutrinais em relação aos quais os dois lados não se completavam mais, mas entravam em conflito direto — a primazia e a infalibilidade do Papa e o filioque. Dois fatores mencionados em parágrafos anteriores eram suficientes por si próprios para causar uma séria tensão quanto à unidade da cristandade. Apesar de tudo, a unidade da Igreja poderia ainda ter sido preservada se não tivessem havido duas outras questões difíceis.

Devemos nos voltar para elas agora. Só na metade do século IX que o desentendimento em toda sua extensão veio à tona, mas as divergências entre os dois lados podem ser datadas bem mais cedo.

Já tivemos oportunidade de mencionar o Papado quando falamos das situações políticas distintas, no Oriente e no Ocidente; vimos como a estrutura centralizada e monárquica da Igreja do ocidente foi reforçada pelas invasões dos bárbaros. Porém, contanto que o Papa reivindicasse poder absoluto só no ocidente, Bizâncio não fazia qualquer objeção.

Os bizantinos não se incomodavam que a Igreja do Ocidente fosse centralizada, contanto que o Papado não interferisse no leste. O Papa, no entanto, achava que sua jurisdição se estendia tanto até o Oriente quanto até o Ocidente. E logo que tentasse impor seu poder dentro dos Patriarcados do Oriente, problemas haveriam de surgir. Os ortodoxos deram ao Papa uma primazia de honra, mas  não a primazia universal que ele achava que lhe era devida. O Papa considerava a infalibilidade uma prerrogativa sua; os ortodoxos diziam que em questões relacionadas a fé a decisão final cabia não ao Papa sozinho mas a um concilio representando todos os bispos da Igreja. Aqui temos duas concepções diferentes da organização externa da Igreja Atitude ortodoxa quanto ao Papado é expressada admiravelmente por um escritor, do século XII, Nicetas, Arcebispo de Nicomédia: "Amado irmão, nós não negamos à Igreja de Roma a primazia entre os cinco patriarcados irmãos; e reconhecemos seu direito ao mais honorável lugar num concílio ecumênico. Mas ela se separou de nós por seus próprios atos, quando, por orgulho, assumiu uma monarquia que não faz parte de seu ofício... Como haveremos de aceitar decretos seus que foram publicados sem sermos consultados ou mesmo sem termos conhecimento deles? Se o Pontífice romano, sentado no trono altivo de sua glória,
deseja nos atacar, e, por assim dizer, das alturas "despejar" mandatos sobre nós, se deseja nos julgar ou nos governar e às nossas Igrejas, não se aconselhando conosco, mas por seu prazer arbitrário, que tipo de irmandade ou mesmo que tipo de parentesco pode haver? Seríamos os escravos e não os filhos de tal Igreja, e a Sé de Roma, não a mãe piedosa de seus filhos, mas uma rígida e imperiosa senhora de escravos."

Era assim que se sentia um ortodoxo no século XII quando toda a questão veio à tona. Em séculos anteriores a atitude dos orientais em relação ao Papado foi basicamente a mesma, embora tivesse sido ainda aguçada por controvérsias. Até o ano de 350 Roma e o Oriente evitaram um conflito aberto quanto a primazia e a infalibilidade do Papa. Mas a divergência do ponto de vista não era menos séria por estar parcialmente escondida.

A segunda grande dificuldade era o filioque . A disputa envolvia os termos sobre o Espírito Santo no Credo de Nicéia — Constantinopla. Originalmente o credo dizias "Eu creio no Espírito Senhor e fonte de vida, que procede do Pai, e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma gloria." Esta, que é a forma original, é recitada sem modificações no Oriente até hoje. Mas o ocidente acrescentou uma frase extra "e do Filho" (em latim "filioque") tanto que seu credo agora diz "que procede do Pai e do filho" Não é certo quando e onde este acréscimo foi feito primeiro, mas parece que se originou na Espanha, como uma defesa contra o arianismo. De qualquer modo a igreja espanhola inseriu o filioque no credo no terceiro Concílio de Toledo (589), se não antes.

Da Espanha o filioque espalhou-se para a França, e dai para a Alemanha, onde foi bem recebido por Carlos Magno e adotado pelo concílio semi-iconoclasta de Frankfurth (794). Teriam sido escritores na corte de Carlos Magno que primeiro fizeram com que o filioque passasse a ser um assunto controvertido, acusando os bizantinos de heréticos por eles recitarem o credo em sua forma original. Mas Roma, com seu conservadorismo típico, continuou a usar o credo sem o filioque até o começo do século XI. Em 808 o Papa Leão III escreve numa carta para Carlos Magno, que embora ele mesmo achasse que o filioque procedia em termos doutrinais, ele considerava errado interferir nos termos do credo. Deliberadamente mandou inscrever o credo em placas de prata — sem o filioque — e as colocou na igreja de São Pedro. Até segunda ordem, Roma agiria como mediadora entre a Alemanha e Bizâncio.

Só depois de 850 que os bizantinos passaram a prestar atenção no filioque. Quando o fizeram sua reação foi muito crítica. A ortodoxia não concordou (e ainda não concorda) com este acréscimo no credo, por dois motivos. Primeiro, os concílios ecumênicos proibiram a introdução de quaisquer mudanças no credo; e no caso de qualquer acréscimo só um outro concílio ecumênico e ninguém mais tinha competência para fazê-lo. O Credo é propriedade de toda a Igreja, e uma parte dela não tem o direito de interferir nele. O ocidente, ao alterar arbitrariamente o credo, sem consultar o oriente é culpado contra a unidade da Igreja. Em segundo lugar, os ortodoxos acham o filioque teologicamente errado. Dizem que o Espírito procede somente do Pai e consideram uma heresia dizer que Ele também procede do Filho. Pode parecer a muitos que esta questão é tão obscura que chega a ser sem importância. Mas os ortodoxos diriam que uma vez que a doutrina sobre a Trindade é o cerne da fé cristã, uma pequena mudança de ênfase na teologia trinitária tem conseqüências enormes em muitos outros campos. O filioque não só destrói o equilíbrio entre as três pessoas da Trindade, mas também leva a uma falsa compreensão da ação do Espírito no mundo, estimulando a existência de uma doutrina falsa sobre a Igreja. (Dei aqui uma visão regular da ortodoxia sobre o filioque; Deve-se notar, no entanto, que certos teólogos ortodoxos consideram o filioque apenas um acréscimo não autorizado ao Credo, não necessariamente herético por si só.).

Além destas duas questões principais, as reivindicações do Papa e o filioque havia outros assuntos menos importantes quanto ao culto e à disciplina na Igreja que causaram problema entre o oeste e o leste — os Ortodoxos admitiam que o clero casasse, os romanos insistiam no celibato clerical; os dois lados tinham normas diferentes quanto ao jejum; os ortodoxos usavam pão fermentado na eucaristia, os romanos pão não fermentado ou "ázimo."

Por volta de 850 o leste e o oeste ainda se encontravam em total comunhão um com o outro e ainda formavam uma só Igreja. A divisão cultural e política haviam se juntado para causar um afastamento crescente, mas não havia um cisma claro. Os dois lados tinham uma concepção diferente da autoridade do Papa e confessavam o Credo de forma diferente, mas estas questões não haviam ainda sido trazidas à tona claramente.

Em 1190 Teodoro Balsamon, Patriarca de Antioquia e grande autoridade em direito canônico, tinha uma visão diferente dessas questões: "Há muitos anos (não diz quanto exatamente) a Igreja do Ocidente não comunga com os outros quatro patriarcados e tornou-se uma estranha para os ortodoxos. Portanto, nenhum católico romano deve receber a comunhão a não ser que primeiro declare que renega a doutrina e os costumes que o separam de nós e que se sujeitará aos cânones da Igreja, unido à Ortodoxia".

Aos olhos de Balsamon, a comunhão entre as igrejas havia sido afetada; havia um cisma claro entre o oriente e o ocidente. Os dois não formavam mais uma Igreja visível. Nesta transição entre o período do afastamento entre o oriente e o ocidente até o cisma propriamente dito quatro incidentes tem importância especial; a disputa entre Photius e Nicolau I (geralmente conhecida como o cisma de Photius no ocidente; o oriente preferiria chama-lo do cisma de Nicolau); a questão dos dípticos em 1009; a tentativa de reconciliação em 1053 e suas conseqüências desastrosas; e as cruzadas.

Da desavença ao cisma: 858-1204.

Em 858, quinze anos depois do triunfo dos ícones com Theodora, o novo Patriarca de Constantinopla foi designado: Photius, conhecido na Igreja Ortodoxa como São Photius, o Grande, "o mais distinguido pensador, o mais conspícuo político, e o mais hábil diplomata que ocupou o cargo de Patriarca de Constantinopla" (G. Ostrogorsky, in History of the Byzantine State. p. 199). Logo depois de sua entronização envolveu-se numa disputa com o Papa Nicolau I (858-67). O Patriarca anterior, Santo Ignácio, fora exilado pelo Imperador e teve que renunciar sob pressão. Os partidários de Ignácio, recusando a validade desta renúncia, consideraram Photius um usurpador. Quando Photius enviou uma carta ao Papa anunciando sua ascensão ao trono, Nicolau decidiu que antes de reconhecê-lo ele investigaria melhor a querela entre o novo Patriarca e os seguidores de Ignácio. Em 861, ele enviou, para tanto, uma nunciatura a Constantinopla.

Photius não desejava de modo algum iniciar uma disputa com o Papado. Tratou os núncios com grave deferência, convidando-os a presidir num Concílio em Constantinopla, o qual deveria dirimir as dúvidas entre ele e Ignácio. Os núncios concordaram, e juntamente com os demais reunidos naquele Concílio, declararam que Photius era o legítimo Patriarca. Porém, quando retornaram a Roma, Nicolau declarou que eles tinham excedido seus poderes, e revogou a decisão deles. Então, ele próprio prosseguiu com o caso a partir de Roma: um Concílio reunido sob sua presidência em 863 reconheceu Ignácio o Patriarca, e condenou Photius à deposição de toda a dignidade clerical. Os bizantinos não tomaram conhecimento desta condenação, e não deram qualquer resposta às cartas papais. Assim, uma ruptura existia abertamente entre as Igrejas de Roma e Constantinopla.

A disputa envolvia claramente a primazia papal. Nicolau foi um grande reformador, com uma idéia exaltada sobre as prerrogativas de sua cátedra, e já havia feito muito para estabelecer um poder absoluto sobre todos os Bispos do Ocidente. Acreditava que esse poder se estenderia também sobre o Oriente, conforme escreveu em 865: o Papa é revestido de autoridade "sobre toda a Terra, isto é, sobre toda a Igreja." Isto era justamente o que os bizantinos não estavam preparados para conceder. 

Confrontado com a disputa entre Ignácio e Photius, Nicolau pensou ver aí uma oportunidade de ouro
para reforçar sua pretensão à jurisdição universal: ele faria ambas as facções submeterem-se ao seu arbítrio. Mas, percebeu que Photius submetera-se voluntariamente ao Inquérito feito pelos núncios, não servindo seu ato como um reconhecimento da primazia papal. Os bizantinos, por sua vez, admitiam apelos a Roma, mas apenas sob as condições especificadas no Cânone III do Concílio de Sardica (343).

Este Cânone afirma que um Bispo, diante de uma sentença de condenação, pode apelar para Roma, e o Papa, se lhe achar ganho de causa, pode ordenar uma revisão do processo; esta, entretanto, não deve ser conduzida pelo próprio Papa de Roma, mas pelos Bispos das províncias adjacentes àquela do Bispo condenado. Nicolau, assim pensavam os bizantinos, ao depor seus delegados e ordenar um julgamento em Roma, estava indo muito além do prescrito nesse Cânone. Consideraram seu comportamento indefensável e uma interferência anti-canônica nas questões de outro Patriarcado.

Logo, não só a primazia papal mas também o filioque passou a ser envolvido na disputa. Bizâncio e o Ocidente (principalmente os germânicos) estavam promovendo grandes ofensivas missionárias entre os eslavos. As duas linhas de avanço missionário, a do Ocidente e a do Oriente, logo convergiram; e quando missionários gregos e germânicos encontraram-se trabalhando na mesma região, foi difícil evitar um conflito, já que as duas missões pregavam princípios largamente díspares. O choque naturalmente trouxe à tona a questão do filioque, empregado pelos germânicos no Credo, mas não pelos gregos. O foco principal dos problemas foi a Bulgária, um país que tanto Roma quanto Constantinopla estavam ansiosos por anexar às suas esferas de jurisdição. Inicialmente o Khan Boris inclinou-se ao batismo dos missionários germânicos: ameaçado, entretanto, por uma invasão bizantina, mudou sua política e por volta de 865 aceitou o Batismo do clero grego. Mas Boris queria que a igreja da Bulgária se tornasse independente, e quando Constantinopla recusou-se a conceder- lhe autonomia, ele voltou-se para o Ocidente em busca de melhores termos. Com passe-livre na Bulgária, os missionários latinos prontamente detonaram um vasto ataque aos gregos, destacando os pontos em que a prática bizantina diferia da deles: o casamento do clero, as regras dos jejuns, e sobretudo o filioque. Em Roma, propriamente, este ainda não estava em uso, mas Nicolau deu apoio total aos germânicos quando insistiram na sua inserção no Credo na Bulgária. O papado, que em 808 mediara entre os germânicos e os gregos, já não era neutro.

Photius ficou naturalmente abalado com a extensão da influência germânica nos Bálcãs, justo às portas do Império Bizantino; mas ficou muito mais alarmado com a questão do filioque, que se lhe apresentava forçosamente. Em 867, pôs-se em campo. Escreveu uma Encíclica aos outros Patriarcas do Oriente denunciando o filioque por completo e inculpando aqueles que o usavam de heresia. Photius tem sido freqüentemente culpado por ter escrito esta carta, como, por exemplo, pelo historiador católico romano Francis Dvornik, que considerou o ato um "ataque fútil (...) com conseqüências fatais." Mas, devemos lembrar que Photius não foi o primeiro a fazer do filioque um ponto de controvérsia: setenta anos antes, Carlos Magno e seus doutores deram início à controvérsia; o Ocidente atacou primeiro, não o Oriente. Photius terminou sua carta com a convocação de um Concílio em Constantinopla, o qual declarou o Papa Nicolau excomungado, nomeando-o "um herético que dizima as vinhas do Senhor."

Neste ponto crítico da disputa, toda a situação mudou subitamente. Naquele mesmo ano de 867, Photius foi deposto do Patriarcado pelo Imperador. Ignácio tornou-se Patriarca mais uma vez e a comunhão com Roma foi restaurada. Em 869-70, outro Concílio teve lugar em Constantinopla, conhecido como Concílio Anti-Photico, que condenou e anatematizou Photius, revertendo a decisão de 867. Este Concílio, reconhecido no Ocidente como o VIII Concílio Ecumênico, abriu com o inexpressivo número de doze Bispos, mas nas sessões subsequentes este número tinha subido para 103.

Mas ainda haveriam de acontecer mudanças. O Concílio de 869-70 requisitou ao Imperador uma solução para a Igreja da Bulgária, e não foi surpresa ele tê-la inscrito no Patriarcado de Constantinopla. Compreendendo que Roma lhe permitiria menos independência que Bizâncio, Boris acatou essa decisão. A partir de 870 os germânicos foram expulsos e não mais se ouviu o filioque no Credo da Bulgária. Mas, isso não era tudo. Em Constantinopla, Ignácio e Photius se reconciliaram, e quando Ignácio morreu em 877, Photius sucedeu-o novamente como Patriarca. Era 879 ainda um outro Concílio reuniu-se em Constantinopla, com a participação de 383 Bispos — um contraste notável com o magro total do Concílio Anti-Photico de dez anos antes. O Concílio de 869 foi anatematizado e todas as condenações a Photius foram retiradas; essas decisões foram aceitas sem protestos em Roma. De modo que Photius saiu-se vitorioso, reconhecido por Roma e senhor eclesial da Bulgária. O Papa de então, João VIII (871-882), compreendera o quão seriamente a política de Nicolau havia comprometido a unidade da Cristandade.

Photius, sempre honrado no Oriente como um santo, um líder da Igreja, e um teólogo, no passado foi olhado pelo Ocidente com menos entusiasmo, como autor de um cisma e nada mais. Suas boas qualidades agora são mais amplamente apreciadas. "Se estou certo em minhas conclusões," assim conclui o Dr. Dvornik em seu monumental estudo, "nós poderemos reconhecer em Photius um grande homem de Igreja, um humanista erudito, e um cristão genuíno, generoso o bastante para perdoar seus inimigos, e para dar os primeiros passos em direção à reconciliação." (O Cisma Phótico. p. 432). Na recente reapreciação histórica do cisma, nunca a mudança do veredicto dos escritores sofreu tal mudança como no caso de São Photius.

No começo do século XI houve novos problemas em torno do filioque. O papado afinal adotava a sua inclusão: na coroação do Imperador Henrique II em Roma, em 1014, o Credo foi cantado nessa forma interpolada. Cinco anos mais cedo, em 1009, o recém eleito Papa Sérgio IV enviara uma carta a Constantinopla a qual continha o filioque, embora disto não se tenha certeza. Qualquer que seja a razão, o Patriarca de Constantinopla, também chamado Sérgio, não incluiu o nome do novo Papa nos
Dípticos: listas, mantidas por cada Patriarca, nas quais inclui os nomes dos outros Patriarcas, vivos e defuntos, os quais reconhece como ortodoxos. Os Dípticos são um nítido sinal da unidade da Igreja, e omitir-se deles deliberadamente o nome de um homem é equivalente a declarar que este não está em comunhão consigo. Depois de 1009 o nome do Papa não mais figurou nos Dípticos de Constantinopla; tecnicamente, por isso, as igrejas de Roma e Constantinopla não estavam em comunhão desde essa data. Mas seria imprudente levar esta tecnicalidade muito longe. Os dípticos freqüentemente são incompletos, de tal sorte que não podem se constituir num guia infalível das relações eclesiais.

Enquanto o século onze prosseguia, novos fatores levaram as relações entre o Papado e os Patriarcas Orientais a uma crise maior.O século precedente fora um período de grave instabilidade e confusão para a Sé de Roma, um século que o Cardeal Baronius, com justiça, chamou de idade de ferro e conduziu à história do papado. Mas Roma agora reformava-se, e sob o governo de homens como Hildebrando (Papa Gregório VII) ganhou uma posição de poder no Ocidente como jamais atingira. O Papado restaurado naturalmente reavivou a pretensão à primazia universal de Nicolau. Os bizantinos, por seu lado, haviam se acostumado a tratar com um papado que fora durante a maior parte do tempo fraco e desorganizado, e assim acharam difícil adaptarem-se à nova situação. Os problemas ficaram piores devido a fatores políticos, tais como a agressão militar dos Normandos na Bizâncio Italiana, e as agressões comerciais das cidades marinhas italianas no Mediterrâneo Oriental durante os séculos XI e XII.

Em 1054 houve uma disputa séria. Os Normandos vinham forçando os gregos da Itália bizantina a se porem de acordo com os costumes latinos; o Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerularius, em contrapartida, pedia que as igrejas latinas de Constantinopla adotassem as práticas gregas, e em 1052, quando essas recusaram, ele as fechou. Dentre as práticas latinas contra a que Miguel mais se opunha era a do uso dos ázimos, ou pão não-fermentado, na Eucaristia, um tema que não havia aparecido na disputa no século IX.

Em 1053, porém, Cerularius assumiu uma postura algo mais reconciliatória e escreveu ao Papa Leão X oferecendo-se para restituir o nome dele aos Dípticos. Em resposta, e para solver as questões entre práticas gregas e latinas, Leão enviou, em 1054, três núncios a Constantinopla, sendo o chefe deles Humberto, Bispo de Silva Cândida. A escolha do Cardeal Humberto foi infeliz, pois tanto quanto Cerularius ele era homem de temperamento rijo e intransigente; o encontro dos dois não promoveria boa vontade entre os cristãos. Os núncios, quando compareceram diante de Cerularius, não deram uma impressão favorável a Cerularius. Lançando-lhe uma carta do Papa, retiraram-se sem as costumeiras saudações; a carta mesma, embora assinada por Leão, tinha sido, de fato, rascunhada, por Humberto, e era francamente hostil. Depois disso, o Patriarca recusou-se a ter outros encontros com os núncios. Por fim, Humberto perdeu a paciência e lançou uma Bula de Excomunhão contra Cerularius no altar da Igreja de Santa Sofia: dentre outras acusações mal fundadas desse documento, Humberto acusava os gregos de omitirem o filioque do Credo! Humberto deixou Constantinopla prontamente sem maiores explicações, e de volta à Itália, pintou os acontecimentos como uma grande
vitória para Roma. Cerularius e seu sínodo retaliaram anatematizando Humberto. A tentativa de reconciliação deixou as coisas piores do que antes.

Mas mesmo depois de 1054 relações amistosas entre oriente e ocidente continuaram. As duas partes da Cristandade não estavam conscientes do profundo golfo que as separava, e homens de ambos os lados nutriam esperanças de que os desentendimentos se esclareceriam sem muitas dificuldades. A disputa permaneceu algo de que os Cristãos comuns, no oriente e no ocidente, não tinham consciência. Foram as Cruzadas que tornaram o cisma definitivo: elas introduziram um novo espírito de ódio e acrimônia, envolvendo até o povo na discórdia.

Do ponto de vista militar, no entanto, as Cruzadas começaram com grande impacto. Antioquia foi capturada dos turcos em 1098, Jerusalem em 1099: a primeira Cruzada foi um sucesso brilhante ainda que sanguinário.Tanto em Antioquia como em Jerusalém, os Cruzados começaram por empossar Patriarcas latinos. Em Jerusalém, isto era razoável, já que a cátedra estava vaga na época; e embora, nos anos que se seguiram, tenha existido uma sucessão de Patriarcas gregos em Jerusalém, vivendo exilados em Chipre, na Palestina mesma toda a população, grega e latina, de início aceitou o Patriarca Latino como cabeça. Um peregrino russo em Jerusalém em 1106-7 Abade Daniel Tchernigov, encontrou gregos e latinos rezando juntos em harmonia nos Lugares Sagrados, apesar dele ter notado com satisfação que na cerimônia do Santo Fogo as lâmpadas gregas foram acesas miraculosamente enquanto que as latinas tiveram que ser acendidas nas gregas. Mas em Antioquia os Cruzados encontraram um Patriarca grego de fato residente: logo depois, é verdade, ele retirou-se para Constantinopla, mas a população grega local não estava propensa a aceitar o Patriarca latino que os Cruzados colocaram no seu lugar. Assim, desde 1100, houve em Antioquia um cisma local. Depois de 1187, quando Saladim capturou Jerusalém, a situação na Terra Santa deteriorou: dois rivais, da própria Palestina, agora dividiam a população cristã, um Patriarca latino em Agra, e outro grego em Jerusalém. Roma estava muito longe, e se Roma e Constantinopla contendiam, que diferença isso podia fazer na prática de um cristão comum da Síria ou da Palestina? Mas, quando dois Bispos rivais reclamavam o mesmo trono e duas congregações hostis existiam na mesma cidade, o cisma tornava-se uma realidade imediata na qual fiéis comuns eram diretamente envolvidos.

Mas o pior estava por vir em 1204, com a tomada de Constantinopla na Quarta Cruzada. Os cruzados estavam originalmente com destino ao Egito, mas foram persuadidos por Alexius, filho de Isaac Angelus, o Imperador deposto de Bizâncio, a voltarem-se contra Constantinopla, a fim de restaurá-lo, e a seu pai, no trono. Esta intervenção ocidental na política bizantina não foi muito feliz, porque os cruzados, perderam a paciência e saquearam a cidade. "Mesmo os sarracenos são misericordiosos e gentis," protestou Nicetas Choniates, "comparados a esses homens que levam a cruz de Cristo em seus ombros." O que chocou os gregos mais do que qualquer outra coisa, foi a devassidão e o sacrilégio sistemático dos cruzados. Como podiam aqueles homens dedicados aos serviços de Deus, tratar as coisas de Deus daquela maneira? Ao verem os cruzados quebrarem em pedaços o altar e a iconostase da Igreja de Santa Sofia e colocar prostitutas no trono do Patriarca, os bizantinos devem ter sentido que aqueles que faziam essas coisas não eram cristãos, não no mesmo sentido que eles.

Constantinopolitana civitas diu profana.

‘Cidade de Constantinopla, de há muito profana.’ Assim cantavam os cruzados franceses de Angers, voltando para casa, levando as relíquias que haviam roubado. Podemos nos surpreender que os gregos depois de 1204 também olhassem os latinos como profanos? Os cristãos ocidentais ainda não compreendem quão profunda é a repulsa e quão duradouro o horror com que os ortodoxos  consideram atos como o saque de Constantinopla pelos cruzados.

"Os cruzados não trouxeram a paz, mas a espada; e esta era para ferir a Cristandade" (S.Runciman, The Eastern Schism, p.101). As desavenças doutrinais de há muito eram agora reforçadas do lado grego por um ódio nacional intenso, por um ressentimento e uma indignação contra a agressão e o sacrilégio ocidentais. Depois de 1204 não pode haver dúvidas de que o Oriente e o Ocidente cristãos estavam separados. Ao recontar a história do cisma, historiadores recentes enfatizam com razão a importância dos fatores "não-teológicos." Mas temas dogmáticos vitais também estavam envolvidos. Mesmo quando é feita total concessão a todas as dificuldades culturais e políticas, ainda permanecem verdadeiras as diferenças de doutrina — o filioque e a supremacia papal — que fizeram a separação entre Roma e a Igreja Ortodoxa, assim como são as diferenças doutrinais o que ainda impede sua reconciliação. O Cisma foi para ambas as partes "um comprometimento espiritual, uma tomada de posição consciente em matéria de fé" (V.Lossky, in Mystical Theology of the Eastern Church. p. 13).

Tanto a Ortodoxia quanto Roma acreditam estarem certas e seu opositor errado sobre esses pontos de doutrina; de modo que Roma e a Ortodoxia têm desde o Cisma reivindicado o ser a verdadeira Igreja. Não obstante, cada qual, deve olhar o passado, enquanto acreditando nas suas próprias causas, com tristeza e arrependimento. Ambos os lados devem reconhecer honestamente que poderiam e deveriam ter feito mais para evitar o cisma. Ambos os lados foram culpados de erros a nível humano. Os ortodoxos, por exemplo, devem acusar-se de orgulho e desdém com o qual, durante o período bizantino, encararam o ocidente; devem acusar-se de incidentes como a revolta de 1182, quando muitos residentes latinos em Constantinopla foram massacrados pelo populacho bizantino. (Muito embora não haja qualquer ação por parte de Bizâncio comparável ao saque de 1204). E cada lado, ao proclamar-se a única verdadeira Igreja, deve admitir que ela foi empobrecida enormemente com a separação. O oriente grego e o ocidente latino precisavam e ainda precisam um do outro. Para ambos os lados o Grande Cisma provou ser uma grande tragédia.

Duas tentativas de reunião; a controvérsia hesicasta.

Em 1204 os cruzados estabeleceram um curto reinado em Constantinopla, que chegou ao fim em 1261 quando os gregos retomaram sua capital. Bizâncio sobreviveu por dois séculos mais, e esses anos experimentaram um renascimento cultural, artístico e religioso. Mas política e economicamente o restaurado Império Bizantino estava em estado precário, e encontrava-se mais e mais sem auxílio frente os exércitos turcos que o pressionavam do leste.

Duas tentativas importantes foram feitas para manter a união Cristã entre oriente e ocidente, a primeira no século XIII e a segunda no século XV. O espírito por trás da primeira tentativa foi Miguel VIII (reinou 1259-82), o Imperador que recuperou Constantinopla. Enquanto sem dúvida ele desejava sinceramente a união Cristã em bases religiosas, seu motivo era também político: ameaçado pelos ataques de Charles D’Anjou, Soberano da Sicília, ele precisava desesperadamente do apoio e proteção do Papa. Para se firmar no poder, ele pensou em recorrer ao Papado, de tal modo que um Concilio pela Unificação foi convocado em Lyon em 1274. Os delegados ortodoxos que aí compareceram concordaram em reconhecer a primazia do Papa e a recitar o Credo com o filioque. Mas, em Bizâncio, e nas outras regiões ortodoxas como a Bulgária, a unificação não foi aceita e a reação a ela pode ser resumida nas palavras da irmã do Imperador Miguel VII: "Melhor que o Império de meu irmão pereça, do que a pureza da fé ortodoxa." O sucessor de Miguel repudiou as decisões de Lyon e o Imperador, julgado por "apostasia," não recebeu sepultamento cristão.

Enquanto isso, Bizâncio continuava a viver numa atmosfera patrística, empregando as idéias e a linguagem dos Padres Gregos do século IV; no Ocidente, a tradição dos padres era substituída pela Escolástica, essa grande síntese entre filosofia e teologia elaborada nos séculos XII e XIII. Os teólogos ocidentais empregaram a partir dai novas categorias de pensamento, um método teológico novo e uma nova terminologia que o oriente não compreendia Os dois lados, numa extensão cada vez mais vasta, estavam perdendo o "universo de discurso" comum.

Bizâncio, por seu lado, também contribuiu para esse processo: aqui também houve desenvolvimento teológico em que o Ocidente não teve nem participação nem proveito, embora não houvesse nada tão radical quanto a revolução escolástica. Esse desenvolvimento teológico estava relacionado principalmente com a Controvérsia Hesicasta, uma disputa que despontou em Bizâncio no meio do século XIV, envolvendo a doutrina da natureza de Deus e os métodos de oração usados na Igreja Ortodoxa.

Para entender a Controvérsia Hesicasta nós precisamos recuar até a história remota da teologia mística do Oriente. As principais características dessa teologia mística foram elaboradas por Clemente (+253) e por Orígenes de Alexandria (+254), cujas idéias foram desenvolvidas pelos Capadócios do século XV, especialmente por Gregório de Nissa, e por Evágrio Pôntico (+399), um monge do deserto do Egito. Existem duas trilhas nessa teologia mística não exatamente opostas, mas certamente, à primeira vista, discrepantes: a "via da negação" e a "via da união." A primeira — teologia apofática como é chamada — fala de Deus em termos negativos. Deus não pode ser apreendido adequadamente pela razão humana; a linguagem humana, quando aplicada a Ele, é sempre inexata. Por conseguinte, é menos enganador empregar a linguagem da negação com relação a Deus do que a da afirmação — recusar dizer o que Deus é, e afirmar simplesmente o que Ele não é. É como Gregório de Nissa coloca: "O verdadeiro conhecimento e visão de Deus consiste nisto: em ver que Ele é invisível, porque o que buscamos está além de todo o conhecimento ficando inteiramente isolado pela escuridão da incompreensibilidade."

A teologia da negação alcança sua expressão clássica nos escritos de São Denis, o Areopagita, convertido por Paulo em Atenas (atos, XVII, 34); mas na verdade os escritos são de um autor desconhecido que provavelmente viveu no final do século quinto e pertenceu a círculos simpáticos aos monofisitas. São Máximo, o Confessor (+662) compôs comentários aos seus escritos assegurando-lhes assim um lugar permanente na teologia ortodoxa. São Denis teve também grande influência no Ocidente: calcula-se que foi citado 1760 vezes por São Tomás de Aquino na Suma Teológica, enquanto um cronista inglês do século quatorze registra que a Teologia Mística de São Denis "corre pela Inglaterra como o cervo selvagem." A linguagem apofática de São Denis foi repetida por muitos outros. "Deus é infinito e incompreensível," escreveu João Damasceno, "e tudo o que é compreensível sobre Ele é Sua infinitude e incompreensibilidade... Deus não pertence à classe das coisas existentes; não que Ele não tenha existência alguma, mas que Ele está acima de todas as
coisas existentes — isto é, está mesmo acima da própria existência."

Essa ênfase na transcendência de Deus pareceria à primeira vista excluir qualquer experiência direta de Deus. Mas, na verdade, muitos daqueles que fazem amplo uso da teologia da negação — Gregório de Nissa, por exemplo ou Denis, ou Máximo — também acreditavam na possibilidade de real união com a tradição dos místicos ou hesicastas (o nome hesicasta deriva da palavra grega hesychia, que significa silencioso. O hesicasta é aquele que em silêncio devota a sua vida ao recolhimento interior e à oração em segredo). Empregando a linguagem apofática da teologia da negação, esses autores pregavam a experiência imediata do Deus incognoscível, uma união pessoal com Ele que é inabordável. Como poderiam as duas vias se reconciliarem? Como pode ser Deus cognoscível e incognoscível a uma só vez?

Essa questão era pungente no século XIV, junto com a questão do papel do corpo na oração. Evágrio e Orígenes que emprestaram pesadamente do Platonismo, escreveram sobre a oração mais em termos intelectuais, sem admitir nenhum papel ao corpo do homem no processo de redenção e deificação.

Nas Homilias Macarias vemos que o homem não é uma alma aprisionada num corpo, como no pensamento grego, mas um todo único e individualizado, alma e corpo juntos. Onde Evágrio fala de intelecto, Macário usa a idéia hebraica de coração, o que inclui o homem inteiro — não só o intelecto, mas vontade, emoção, e mesmo o corpo. Empregando coração no sentido macárico, os ortodoxos freqüentemente falam de oração do coração. O que quer dizer esta expressão? Quando um homem começa a rezar, primeiro reza com os lábios, e tem que fazer um esforço intelectual consciente a fim de perceber o sentido do que está dizendo. Mas, se ele perseverar, orando continuamente com recolhimento, seu intelecto e seu coração se tornam unidos: ele "encontra o lugar do coração," seu espírito adquire o poder de "morar no coração," e assim sua oração se torna oração do coração." Ela se torna algo não apenas articulado pelos lábios, não apenas pensado pelo intelecto, mas oferecido espontaneamente por todo o ser do homem — lábios, intelecto, emoção, vontade e corpo. A oração preenche a consciência por completo, e não mais tem que ser empurrada para fora, mas ela própria se expressa a si mesma. Essa oração do coração não pode ser atingida pelos  nossos próprios esforços, mas é um dom conferido pela graça de Deus.

Quando os escritores ortodoxos empregam o termo "oração do coração," eles geralmente têm em mente uma oração em particular, a oração de Jesus. Entre os escritores espirituais gregos, primeiro Diodocos da Fótica (meados do Séc. V) e depois São João Clímaco do Monte Sinai (579-649) recomendavam como uma forma especialmente válida de oração a repetição constante ou a lembrança do nome Jesus. Com o passar do tempo a Invocação cristalizou-se numa frase curta, conhecida como a oração de Jesus: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, tem piedade de mim pecador" (Cf. oração do publicano, Lc. 18:13). Por volta do século XIII, senão antes, a recitação da oração de Jesus tornou-se ligada a certos exercícios físicos, elaborados para ajudar a concentração. A respiração era cuidadosamente regulada a tempo com a oração, e uma postura corporal particular era recomendada: cabeça inclinada, queixo repousado no peito, olhos fixos, no lugar do coração. Este é freqüentemente chamado "o método de oração hesicasta," mas não deve ser entendido que para os hesicastas esses exercícios físicos constituem a essência da oração. Eles eram encarados não como um fim em si mesmos, mas como uma ajuda na concentração — como um acessório útil para alguns,
mas não obrigatório para todos. Os hesicastas sabiam que não pode haver nenhum método mecânico de adquirir a graça de Deus, e nenhuma técnica conduzindo automaticamente ao estado místico.

Para os hesicastas de Bizâncio, a culminância da experiência mística era a visão da Luz Divina e Incriada. Os trabalhos de São Simeão, o Novo Teólogo (949-1022), o maior dos místicos bizantinos, estão repletos daquele "misticismo da Luz." Quando ele escreve sobre suas próprias experiências, ele a chama "fogo incriado e invisível, sem começo e imaterial." Os hesicastas acreditavam que essa luz que experimentavam era idêntica à Luz Incriada que os três discípulos viram ao redor de Jesus na Sua
Transfiguração no Monte Tabor. Mas como seria a visão da Luz Divina reconciliada com a doutrina apofática de Deus, o transcendente e inabordável?

Já em pleno século XIV, Barlaão, o Calabrês, atacou os hesicastas dizendo que eles tinham uma visão por demais materialística da oração. A luz que os hesicastas contemplavam, em seu ponto de vista, não era a eterna luz da Divindade, mas uma luz criada e temporária.

A defesa dos hesicastas foi assumida por São Gregório Palamas (1296-1359), Arcebispo de Tessalônica. Ele sustentava uma doutrina do homem a qual permitia o uso dos exercícios físicos na oração, e argumentava, contra Barlaão, que os hesicastas de fato experenciavam a Luz Incriada e Divina do Tabor. Para explicar como isso era possível, Gregório desenvolveu a distinção entre a essência e as energias de Deus. Seus ensinamentos foram confirmados por dois Concílios reunidos em Constantinopla em 1341 e 1351.

Gregório começou por confirmar a doutrina bíblica do homem e da Encarnação. O homem é um todo único e individualizado; não apenas a mente do homem mas o homem inteiro foi criado à imagem de Deus. O corpo do homem não é um inimigo, mas um parceiro e um colaborador de sua alma. O Cristo, ao tomar um corpo humano pela Encarnação, fez "da carne uma fonte inexaurível de santificação." Aqui, Gregório retomou e desenvolveu as idéias implícitas em escritos anteriores, tais como as Homilias macarias; a mesma ênfase no corpo do homem, como vimos, está por trás da doutrina ortodoxa dos ícones. Gregório prosseguiu aplicando essa doutrina do homem aos métodos hesicastas de oração: os hesicastas, ele dizia, ao colocar tal ênfase no papel do corpo na oração, não são culpados de materialismo crasso, mas estão simplesmente mantendo-se fiéis à doutrina bíblica do homem como uma unidade. Cristo tomou carne humana e salvou o homem inteiro; por isso, é o homem inteiro — corpo e alma conjuntamente — que ora a Deus.

Daí, Gregório voltou-se para o problema principal: como combinar as duas assertivas, o homem conhece Deus e Deus é por natureza incognoscível? Gregório respondeu: nós conhecemos as energias de Deus mas não Sua essência. A distinção entre essência (ousia) e energia de Deus, remonta aos Padres Capadócios. "Nós conhecemos nosso Deus pelas Suas energias," escreveu São Basílio, "mas não alegamos que podemos chegar perto da Sua essência. Pois, Suas energias descem até nós, mas Sua essência permanece inabordável." Gregório aceitou essa distinção. Ele afirmava, tão enfaticamente como qualquer outro expoente da teologia da negação que Deus é em essência absolutamente incognoscível. "Deus não é uma natureza," escreveu, "pois Ele está acima de toda natureza; Ele não é um ser, pois está acima de todos os seres... nem uma única coisa dentre as que foram criadas terão jamais a menor comunhão com a suprema natureza, ou proximidade com ela." Mas, embora remoto em Sua essência, ainda assim, em Suas energias, Deus revelou-Se aos homens. Essas energias não são algo que existem em separado de Deus, nem um Dom que Deus confere aos homens: elas são o próprio Deus na Sua ação e revelação ao mundo. Deus existe completa e inteiramente em cada uma de Suas divinas energias. O mundo, como Gerard Manley Hopkins disse, é repleto da grandeza de Deus; toda a criação é uma gigantesca Sarça Ardente, permeada mas não consumida pelo inefável e assombroso fogo das energias de Deus.

É através dessas energias que Deus entra numa direta e imediata relação com a humanidade. Com relação ao homem, a energia divina não é de fato nada mais do que a graça de Deus; a graça não é só um ‘dom’ de Deus, não é só um objeto com que Deus reveste o homem, mas uma manifestação do próprio Deus vivo, uma confrontação pessoal entre criatura e Criador. "A Graça significa toda a abundância da natureza divina, na medida em que é comunicada ao homem." Quando dizemos que os santos foram transformados ou "deificados" pela graça de Deus, o que queremos dizer é que eles têm uma experiência direta do próprio Deus. Eles conhecem Deus — isto é, Deus em Suas energias, não na Sua essência.

Deus é Luz, e por isso a experiência das energias de Deus toma a forma de Luz. A visão que os hesicastas recebem é, conforme Palamas, não a visão de alguma luz criada, mas a própria Luz da divindade — mesma Luz da Divindade que envolveu Cristo no Monte Tabor. Essa Luz não é uma luz sensível ou material, mas pode ser vista com olhos físicos (tal como pelos discípulos na Transfiguração), já que quando um homem é deificado, suas faculdades corpóreas, assim como sua alma, são transformados. A visão dos hesicastas da Luz é, por isso, uma visão verdadeira de Deus em suas energias divinas; e eles estão corretos ao identificá-la com a Luz Incriada do Tabor.

Palamas, portanto, preservou a transcendência de Deus e evitou o panteísmo para o qual um misticismo sem reservas facilmente conduz; ainda, ele admitiu a imanência de Deus, Sua contínua presença no mundo. Deus permanece como o "Sagrado Outro," mas ainda assim, através das Suas energias (que são o próprio Deus) Ele entra em relação imediata com, o mundo. Deus é um Deus vivo, o Deus da história, o Deus da Bíblia, que se tornou Encarnado no Cristo. Barlaão, ao excluir todo conhecimento de Deus e afirmar que a Divina Luz é algo criado lançou um golfo muito largo entre Deus e o home .A preocupação de Gregório ao opor-se a Barlaão era, portanto, a mesma de Atanásio e dos Concílios Gerais: salvaguardar a aproximação direta do homem a Deus sustentar a completa deificação do homem e sua inteira salvação. Aquela mesma doutrina presente nas disputas da Trindade, na Pessoa de Cristo, e nos santos Ícones, está também no coração da controvérsia Hesicasta.

‘No fechado mundo de Bizâncio,’ escreveu Dom Gregório Dix, ‘nenhum impulso surgiu depois do século sexto...o sono começou...no século nove, talvez ainda antes, no sexto’ As controvérsias bizantinas do século quatorze demonstram amplamente a falsidade de tal afirmação.Certamente, Gregório Palamas não era nenhum inovador revolucionário, mas firmemente enraizado nas tradições do passado; era também um teólogo criativo de primeira linha, e seu trabalho mostra que a teologia ortodoxa não cessou de estar ativa depois do século VIII e do Sétimo Concílio Ecumênico.

Entre os contemporâneos de Gregório Palamas houve o teólogo leigo Nicolau Cabasilas, que era simpático aos hesicastas, embora não intimamente envolvido na controvérsia. Cabasilas é o autor do Comentário sobre a Divina Liturgia. o qual se tornou o trabalho ortodoxo clássico sobre o assunto; ele também escreveu um tratado sobre os sacramentos intitulado A Vida em Jesus Cristo. Os escritos de Cabasilas são marcados por duas coisas em particular: um sentido vívido da pessoa do Cristo, "o Salvador," que, como ele coloca, "está mais perto de nós do que nossa própria alma"; e uma ênfase constante nos sacramentos. Para ele, a vida mística é essencialmente uma vida em Cristo e nos sacramentos. Há um perigo de que o misticismo se torne especulativo e individualista — divorciado da revelação histórica do Cristo e da vida corporativa da igreja com seus sacramentos; mas o misticismo de Cabasilas é sempre Cristocêntrico, sacramental, eclesial. Seus trabalhos mostram o quanto o misticismo e a vida sacramental estavam intimamente ligados na teologia bizantina. Palamas e o seu grupo não encaravam a oração mística como um meio de contornar a vida institucional normal da Igreja.

Um segundo Concílio para se tentar a reunificação das igrejas foi feito em Florença em 1438-1439, com a presença do próprio Imperador João VIII (reinou de 1425-1448) e do Patriarca de Constantinopla e uma grande delegação da Igreja Bizantina bem como representantes de outras Igrejas Ortodoxas. Houveram prolongadas discussões e um sério esforço de reunificação foi feito pelos dois lados para se atingir um verdadeiro acordo nos grandes pontos de disputa. Mas ao mesmo tempo era muito difícil para os gregos discutir teologia desapaixonadamente, pois eles sabiam que a situação política havia chegado ao ponto de desespero: a única esperança de derrotar os turcos residia na ajuda do ocidente. Eventualmente uma fórmula de união foi desenhada cobrindo o filioque, Purgatório, pão ázimo e questões papais; e isso foi assinado por todos os Ortodoxos presentes no Concílio exceto um- Marco, Arcebispo de Éfeso, mais tarde canonizado pela Igreja Ortodoxa. A União Florentina,se firmava em dois princípios básicos: unanimidade em questões de doutrina; respeito pelos ritos legítimos e pelas tradições peculiares a cada Igreja. De modo que os ortodoxos concordaram com a primazia papal ( apesar daqui o texto da fórmula de união ser vago e ambíguo), com o filioque, com os ensinamentos latinos sobre o Purgatório (a dissensão sobre este ponto só veio às claras no século XIII) e, quanto aos pães ázimos, não houve nenhuma exigência: os bizantinos poderiam continuar celebrando, com o pão fermentado. Mas, a União de Florença, embora celebrada por toda a Europa ocidental, provou não ser mais real do que o acordo de Lyon. Mesmo João VIII e seu sucessor Constantino XI, não ousavam proclamar seu assentimento ao acordo. Muitos daqueles que assinaram o documento em Florença, ao chegarem em casa, revogaram suas assinaturas. Os decretos do Concílio nunca foram aceitos por mais do que uma fração mínima do povo e clero Bizantino O Grão-duque Lucas Notaras, ecoando as palavras da irmã do Imperador depois de Lyon, disse: "Eu preferia ver o turbante muçulmano no meio da cidade do que ver a mitra latina."

João e Constantino tinham esperado que a União de Florença asseguraria ajuda militar do ocidente, mas eles receberam uma ajuda muito pequena. Em 7 de abril de 1453 os turcos começaram a atacar Constantinopla por terra e por mar. Superados na proporção de mais de vinte por um os bizantinos mantiveram uma defesa brilhante mas inútil por sete longas semanas Nas primeiras horas da manhã do dia 29 de Maio o último ofício cristão era feito na catedral de Santa Sofia. Foi um serviço que uniu Ortodoxos e Católicos Romanos, pois nesse momento de crise os apoiadores e o oponentes da União
Florentina esqueceram suas diferenças. O Imperador saiu depois de receber comunhão, e morreu lutando nas muralhas Mais tarde, no mesmo dia, a cidade caiu na mão dos turcos, e a mais gloriosa igreja da Cristandade tornou-se uma mesquita.

Era o fim do Império Bizantino. Mas, não era o fim do Patriarcado de Constantinopla, e muito menos o fim da Ortodoxia.

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