“Vendo aberto o hospital de Cristo
e Adão, que ali vinha buscar a saúde,
o diabo foi ferido;
ele mediu o perigo, e se lamenta,
gritando para seus amigos: Que farei
ao Filho de Maria?
O homem de Belém me fere.
Ele está presente em toda parte e
preenche tudo!.”
(Ikos do
Grande Cânone de Santo André de Creta)
1.
REVELAÇÃO E EXPERIÊNCIA DE DEUS SEGUNDO OS
PADRES
O objeto desse estudo pressupõe a
interdependência entre os princípios teóricos de toda disciplina científica e
as aplicações práticas de seus dados. Assim, buscaremos não somente a pesquisa
pura, que visa o conhecimento em si – e que, em certo momento, pode se revelar
útil – mas também aquela que responde, até o presente, pelas necessidades da
sociedade e do homem.
A ciência moderna desenvolveu um
método que visa combinar um certo número de hipóteses teóricas para submetê-las
ao teste crítico de um experimentação repetida muitas vezes, para verificar sob
quais combinações de elementos e de circunstâncias os resultados preditos se
realizam.
Por outro lado, o desenvolvimento de
instrumentos capazes de detectar, medir e analisar, além dos que estão ao nosso
alcance, objetos que podem estar distantes milhares de quilômetros, provoca uma
sensação de vertigem naqueles que se mantêm informados sobre a pesquisa
contemporânea.
Os métodos empregados com tanto
sucesso no domínio da estrutura física e biológica do universo não repetiram o
mesmo acerto em domínios tais como a história, a sociologia, as ciências
políticas, a economia, a psicologia, a pedagogia, a religião e a maior parte
das teologias.
Todas as teologias e filosofias foram
varridas pelo espírito crítico moderno, que não reconhece a especulação fundada
sobre uma autoridade, se essa não for formulada em axiomas verificáveis pela
experiência – axiomas que darão lugar a novas experimentações e novos axiomas.
A ideia, cara aos sistemas filosóficos
e teológicos da tradição latina e protestante, de verdades permanentes e imutáveis
que permaneceriam ocultas, subjacentes ou transcendentes às estruturas
observáveis e mesuráveis do real – ou então a uma realidade invisível e não
mensurável – foi refutada por uma verdade cuja evidência salta hoje aos olhos:
todas as coisas, ainda que submetidas a um modelo comum e repetitivo, se
encontram em perpétuo estado de mudança, desenvolvimento e transformação.
É risível escutar esses grupos
religiosos que outrora davam tanto valor às coisas que não mudam nem passam,
falando hoje sem cessar das mudanças, de seus milagres e virtudes, até
atribuir-lhe o poder de reunir os cristãos divididos em uma unidade cada vez
mais crescente e flutuante.
***
2.
EXAME CRÍTICO DA TEOLOGIA
A primeira questão que temos a colocar
é a seguinte: existirá, dentre todos os métodos de pesquisa e experimentação
científicos e filosóficos contemporâneos, um método que possa ser aplicado à
teologia ortodoxa?
A resposta exige que determinemos o
objeto e o objetivo da teologia ortodoxa e de seu modo de aplicação. Aqui
iremos encontrar o questionamento da natureza da teologia e dos critérios a utilizar
para verificar sua autenticidade:
Ø
será a teologia revelada de modo autoritário, de
modo a que ela jamais possa ser colocada em questão, nem possa ser submetida à
experimentação crítica segundo os métodos utilizados por outras disciplinas?
Ø
ou consistirá ela na exposição de hipóteses
especulativas que podem ser submetidas à experimentação científica e, assim,
ser aceitas como axiomas dogmáticos?
Ø
ou ainda, será ela uma combinação de axiomas
dogmáticos revelados autoritariamente, mas que podem ser analisados pela razão
para desembocar numa compreensão mais profunda e progressivamente melhor?
Nessas três possibilidades, a questão
da revelação coloca problemas a quem pretenda aplicar métodos de experimentação
científicos conhecido e empregados pelos pesquisadores. Por quê? Porque aquilo
que é aceito como revelação se torna o próprio critério da verdade, e não pode
ser submetido ao exame e à avaliação crítica pelos métodos de pesquisa do
conhecimento em uso – a menos que se demonstre que essa “verdade revelada”
pertence a esse mesmo tipo de conhecimentos verificáveis pela experimentação.
Nessa hipótese, isso que alguns consideraram, em dada época, como sendo dogmas
e axiomas revelados poderá ser, numa época posterior, seja rejeitado pelo exame
da crítica científica – quer aceitem ou não os partidários desses dogmas – seja,
ao contrário, aceito ao cabo dessa mesma pesquisa científica e sociológica.
Como o exame crítico das aplicações da
teologia depende daquilo que entendemos por revelação”, pode ser útil mostrar o
que aconteceu com essas tradições latinas e protestantes que identificaram a
Bíblia com o germe da revelação, ou mesmo com a revelação em sua totalidade.
Parece que essas tradições estavam
destinadas a receber um rude golpe desferido por sua própria crítica bíblica,
fundamentada sobre a pesquisa histórica. Essa última tem como objetivo:
Ø
reconstruir as condições de vida em que foi
escrita cada parte da Bíblia;
Ø
examinar os diferentes estilos literários,
formas de predicação e métodos utilizados pelos autores sagrados, para
compará-los com dados extrabíblicos;
Ø
finalmente, comparar as ideias bíblicas com
outros modelos de pensamento e crença, para determinar o grau de
interdependência entre essas diversas tradições.
Os resultados, desastrosos para as
tradições latinas e protestantes, poderiam constituir uma purificação (catharsis)
e uma lição para certos ortodoxos que abandonaram a tradição patrística,
identificando por sua conta a revelação com a Bíblia, e pensando que esse seria
o ensinamento dos Padres.
No primeiro grupo poremos os
“ortodoxos” fundamentalistas modernos, ditos “conservadores”, e, no segundo, os
“ortodoxos” anti-fundamentalistas, que podemos chamar de “liberais”. Devemos
especificar que nenhuma dessas distinções está fundamentada sobre a tradição
patrística, dado que os Padres não são “fundamentalistas”.
Partiremos dos seguintes pontos:
a.
A tese, latina e protestante, que enuncia ser
a Bíblia a palavra de Deus, ou a revelação, encontra sua origem em Santo
Agostinho, que pretendia que Deus aparecera aos Profetas por intermédio de
criaturas que Ele trazia à existência para que, por meio delas, Ele pudesse ser
visto e ouvido – sendo que, após terem sido vistos e ouvidos, esses
intermediários criados retornavam ao não-ser.
Essa
revelação por meio de símbolos vistos e ouvidos aparecia e desaparecia, tocando
o intelecto do profeta por meio dos sentidos, sendo essa a forma mais baixa da
revelação.
b.
A forma mais elevada consiste na “injeção”, na
“infusão” direta, no espírito do profeta ou do apóstolo, do conceito, ideia ou
ensinamento que Deus deseja revelar.
c.
Além dessas duas formas de revelação,
destacamos a visão ou experiência da “essência” divina pela alma, que
transcende todas as limitações físicas e sensoriais do espaço-tempo, num êxtase
não discursivo. Essa experiência nem sempre se identifica com a revelação, a
menos que as ideias e conceitos referentes a Deus sejam recebidos pelo
intelecto para serem transmitidos aos demais. Mas não é o que acontece nesses
êxtases – que normalmente são associados a uma perda total de contato com o
espaço e o tempo e com seu conteúdo experimental. Essa intuição extática seria
uma experiência do intelecto auxiliado pela graça e liberado do quadro
espaço-temporal, vale dizer, das limitações físicas e sensoriais. Do ponto de
vista patrístico, essa experiência é considerada demoníaca.
Latinos e protestantes concordam com
os dois primeiros pontos, mas não sobre o terceiro, associado à contemplação
monástica, que eventualmente é rejeitada pelos protestantes e, sempre, pelos
ortodoxos.
O que nos interessa nos dois primeiros
pontos, é que eles levam a tradição latina e protestante a uma armadilha das
teses “fundamentalistas” que a crítica moderna protestante e a crítica latina
bíblica se aplicaram em testar e destruir de ponta a ponta.
O ponto fraco do fundamentalismo
bíblico é a ideia de que a Bíblia não e apenas inspirada divinamente, mas que
ela é ditada por Deus como sendo Sua revelação ao homem.
Assim, a Bíblia se torna um gigantesco
axioma revelado que constitui o critério absoluto, tanto para qualquer questão
referente a Deus e sua relação com o mundo por Cristo e o Espírito Santo, como
para qualquer pesquisa sobre o universo, seu processo de desenvolvimento e a
história humana.
O mais espantoso é que, malgrado a
crítica moderna, a Bíblia permanece sempre, nas tradições latina e protestante,
identificada à revelação por todos os “crentes” no sentido tradicional. Por
quê? Porque a única forma de revelação que os latinos e os protestantes
conhecem – a única ideia que fazem disso – é a revelação de conceitos
inteligíveis por um intelecto iluminado pela fé e pela graça.
***
Para concluir essas observações sobre
a utilização do exame crítico nas tradições latina e protestante, devemos ter
em mente as tendências históricas que intervieram no desenvolvimento dos
critérios e das autoridades, assim como aquelas que regularam a interpretação
das Escrituras, a promulgação das fórmulas dogmáticas e das confissões de fé. A
identidade da Bíblia e da revelação aceita, se quisermos definir a interpretação
dogmática ou confessional da Escritura, requer uma autoridade que coexista com
a Bíblia na história.
Por sua vez, a determinação da
natureza e dos limites dessa autoridade depende de um quadro de referência
aceito, no qual a revelação já tenha sido identificada com a revelação de
signos – linguísticos ou figurados – referentes a Deus e Sua relação com o
mundo e ao homem por Cristo e o Espírito Santo. Essa revelação de palavras e de
símbolos icônicos implica, para todos os homens, o dever e a capacidade de
compreender seu significado pela fé e pela graça.
Isso traz consigo duas consequências:
de um lado, a revelação se dirige à faculdade humana de compreender pela fé e a
graça; mas, de outro, ela contém em si mesma uma certa quantidade de
informação, dada sob uma forma completa, que pode ser possuída quantitativamente,
tanto pelos crentes individuais e pelo corpo coletivo da Igreja, e mesmo pelos
heréticos e os não-crentes. É por isso que as sociedades bíblicas inglesas e
norte-americanas têm tamanha propensão em distribuir Bíblias a torto e a
direito. Elas acreditam estar distribuindo a palavra de Deus aos homens, com a
convicção de que todos os que são predestinados à salvação serão inspirados
pelo Espírito Santo para a ler e compreender.
Até a Reforma protestante do século
XVI, os latinos aceitavam a crença de Santo Agostinho segundo a qual a Igreja
constitui-se numa sociedade de fiéis predestinados que, depois de tê-la
aceitado pela fé, receberam o dom de compreender a revelação contida na Bíblia.
Para Agostinho, a autoridade última e necessária para a interpretação dessa
revelação era a Igreja.
Porém, para Agostinho, a Igreja não
tinha desde sua origem uma plena compreensão dos ensinamentos de Cristo, e ela aumentaria
com o tempo sua compreensão da revelação. Da mesma forma, os crentes deveriam,
num primeiro momento, aceitar os dogmas da fé e confiar na autoridade da Igreja
para, num segundo momento e com esforço, chegar à sua compreensão.
Subjacente a essa concepção da
revelação e de sua compreensão pelo crente e sua Igreja – concepção que se
tornou o eixo da tradição franco-latina, sobretudo devido à querela do filioque
– se encontra a crença de que Deus deu a Bíblia e o Espírito Santo à Igreja – a
Bíblia, para que ela possua a revelação em um livro; e o Espírito Santo, para
iluminar os fiéis na compreensão desse livro.
Para Agostinho, a promessa feita por
Cristo aos apóstolos, de lhes dar o Espírito Santo, “que procede do Pai” e que
deveria guiá-los “em toda verdade”, não se dirigia apenas aos fiéis em geral,
mas à própria Igreja, que o Espírito Santo conduziria “em toda verdade”.
Cerca de 350 anos após o Pentecostes,
no ano 393, encontramos na boca de Agostinho, dirigindo-se aos bispos da
província romana da África reunidos em Cartago, essa opinião completamente
ingênua: “Quanto ao Espírito Santo, porém, não existiu, de parte dos sábios e
dos comentadores das Santas Escrituras, uma discussão suficientemente
desenvolvida e atenta sobre o tema, para que possamos captar o que seja sua
individualidade própria”.
Segundo Agostinho, devemos primeiro
aceitar a Bíblia e seus dogmas pela fé e a autoridade da Igreja, para, em
seguida, fazer esforços para os compreender. Segundo ele, aquele que se
encontra conciliado com Deus e se torna amigo de Deus, conhece intelectualmente
Seus atos e Sua glória e “todas as coisas ocultas” de Deus, incluindo aí Sua
própria essência.
Agostinho afirma claramente essa
opinião: “Na medida em que estivermos reconciliados e conduzidos à amizade divina
pela caridade, poderemos conhecer todas as coisas secretas de Deus”. O que ele
entende com essas palavras ficará esclarecido pelo que ele dirá em outra parte,
alguns anos depois: “Eu não terei a ousadia de perscrutar a substância de Deus,
seja em Suas Escrituras, seja por meio de Sua criatura”. Essa pesquisa da
essência de Deus, apoiando-se nas santas Escrituras e na filosofia, é o método
teológico de Agostinho, e se tornou o próprio coração da tradição teológica
franca, chamada comumente hoje de teologia escolástica.
Todo o caminhar agostiniano a respeito da
Bíblia e da teologia se funda sobre a ideia de que existem modelos incriados
das coisas, “universais”; e, por conseguinte, que existe, entre Deus e Sua
criatura, entre o incriado e o criado, uma verdadeira analogia. Ambos pertencem
assim a um único e mesmo sistema de verdade que o intelecto humano é capaz de
conceber, desde que tenha recebido a revelação, e expressar por palavras e
imagens de conteúdo puramente intelectual.
O primeiro golpe nefasto a esse método
foi dado pelos novos discípulos de Aristóteles, no reino franco do século XIII,
que impuseram a síntese tomista – que harmonizava Platão, Aristóteles e
Agostinho – à qual foi acrescentada a leitura franca, e errônea, de Dionísio o
Areopagita e de João Damasceno.
Estranhamente, os Francos eram
incapazes de perceber que Dionísio o Areopagita e João Damasceno estavam de
pleno acordo com os primeiros Padres quanto a afirmar que não existem universos
incriados dos quais todas as criaturas seriam cópias, porque não existe
absolutamente analogia entre o criado e o incriado. Essa cegueira se deve ao
fato de que os Francos haviam elevado Agostinho ao grau supremo entre os Padres
da Igreja, e o consideravam como o melhor intérprete da tradição patrística;
assim sendo, sua teologia era considerada como não apenas idêntica àquela dos
Padres, mas o próprio modelo de toda a teologia patrística. Dada a situação de
Agostinho no imaginário dos teólogos francos, não poderia haver, para eles,
contradição entre Agostinho e os Padres da Igreja. Como Agostinho aceitava os
universais platônicos, os demais Padres deveriam aceitá-los também.
O segundo assalto destruidor lançado
contra os fundamentos platônicos da tradição franca a agostiniana veio dos
nominalistas, e depois de Lutero. No final do século XIX esse método naufragou
definitivamente com a ruína das interpretações clássicas da filosofia.
A ciência moderna mostrou por diversos
caminhos que não havia a menor traço da existência de “naturezas”, de “formas”
ou de “espécies”, invariantes e imutáveis, e que uma enorme dúvida se levantava
sobre a própria possibilidade desses famosos arquétipos imutáveis, dos quais as
coisas do universo seriam cópias. Isso provocou a queda geral de todo o antigo
sistema de crenças dos latinos e dos protestantes: sua fé na existência de
verdades, leis e normas morais imutáveis e intangíveis, mostrou-se como simples
critérios passageiros do desenvolvimento do pensamento humano. Mesmo a
confiança que o nominalistas e Lutero tinham na Bíblia, na qual eles enxergavam
a verdade imutável,, a lei e a norma reveladas por Deus, desfez-se em fumaça
sob a pressão da crítica bíblica.
***
Sem dúvida, o problema mais sério que
a tradição latina e protestante encontrou poderia ser formulado da seguinte
forma: dizer que a Bíblia é a revelação, equivale não apenas a fazer dela o
critério de ensinamento da Igreja, como ainda colocá-la acima dos profetas e
dos apóstolos. Segundo essa concepção, os profetas e os apóstolos não são, por
si sós, os doutores que ensinam infalivelmente sobre Deus, sobre Sua vontade e
sobre Sua relação com o mundo em Cristo pelo Espírito Santo; eles não passam de
meios e instrumentos por meio dos quais Deus ensina infalivelmente o que ele
deseja, por meio de palavras e imagens de conteúdo conceitual. A partir daí, a
inspiração já não é mais um estado espiritual contínuo do profeta ou do
apóstolo, mas uma maneira de ser momentânea, um acontecimento limitado no
tempo, durante o qual Deus transmite à humanidade uma revelação concreta, feita
de palavras e imagens portadoras de conceitos. Assim, o profeta ou o apóstolo não
seriam inspirados senão durante sua experiência reveladora, que consiste em
receber e colocar no papel a palavra de Deus. Pode acontecer inclusive que ele
não compreenda plenamente o que ele recebeu e escreveu, e pode ser essa,
talvez, a razão pela qual Agostinho e seus partidários parecem afirmar que a
Igreja compreende melhor, com o tempo, o sentido da Escritura, do que o faziam
aqueles mesmos que haviam recebido a revelação.
Dentro de tal quadro de pressupostos,
o profeta e o apóstolo podem se encontrar em erro, ou não possuir uma
compreensão exata ou total da revelação, quando eles não estão nesse estado
privilegiado de inspiração, de recepção, de transmissão ou de cópia da palavra
de Deus.
Como é possível evitar, dentro de tal
contexto, um questionamento sobre o sentido da revelação? Poderíamos, é claro, supor
a existência de uma tradição interpretativa que se transmitisse desde os
profetas e os apóstolos, ao mesmo tempo que a Bíblia. A menos que essa tradição
houvesse elaborado seu próprio critério de inspiração e de interpretação autênticas,
a correta compreensão jamais estaria garantida. As tradições latina e
protestante identificam essa garantia ao Espírito Santo dado por Deus à Igreja
por intermédio de Cristo – a primeira acabou por centrar essa garantia no papa;
a segunda sobre a ideia de que o Espírito Santo inspira diretamente alguns
indivíduos e grupos de indivíduos por vias menos institucionais do que os papas
e os concílios de bispos.
Devemos reconhecer que é difícil
distinguir entre os desvios em relação à tradição patrística – quem
sobreviveram no pensamento ortodoxo russo, desde Pedro o Grande – e os desvios
latino e protestante. A única diferença é que os ortodoxos não-tradicionais
consideram o Concílio ecumênico como a autoridade bíblica, dogmática e moral
mais elevada. Se essa perspectiva pode se achar na tradição, seu aspecto russo
se assimila às teorias conciliares fundamentalistas dos séculos XIV a XVI, no
Ocidente.
A identificação da tradição latino-protestante
entre a Bíblia e a revelação invadiu o reino Grego no século XIX, quando ali
floresceu a teologia russa; e ela se propagou pelos quatro patriarcados
romanos, da Nova Roma, de Alexandria, de Antioquia e de Jerusalém. O avanço
dessa ideia foi provocado pelo enfraquecimento do monaquismo patrístico,
imitador da ortodoxia dos sucessores de Pedro o Grande, europeu, rico, poderoso
e portanto fascinante.
A metodologia científica moderna
pretende provar a identificação latino-protestante entre a revelação e a Bíblia
por meio da renovação, na experiência de homens de hoje, das revelações em
palavras e imagens vindas de Deus. Alguns consideraram que, no passado, Maomé
consistiu num exemplo, e que existiram muitos outros. Mas os latinos e os
protestantes costumam negar a possibilidade de tais revelações e afirmam que a
Bíblia é um evento único que não pode se repetir. Torna-se impossível provar
seja o que for, a menos que a linguagem “pentecostal”, que permite “falar em
línguas” e que tem se espalhado pelas Igrejas latina e protestante, possa ser
analisada em sua similaridade ou identidade com as experiências espirituais e
as revelações que são relatadas na Bíblia.
Se admitirmos o caráter único e
não-renovável da Bíblia, como fazem os latinos e os protestantes, chegaremos
logicamente a comparar os dados bíblicos com os dados extrabíblicos – e mesmo
extra judaico-cristãos – com a intenção de definir essa singularidade e
determinar se os escritores bíblicos não teriam sido mais influenciados pelo
meio do que pelo contato direto com Deus. Essa perspectiva predominou nos
estudos bíblicos europeus e americanos, desde a última parte do século XIX.
Os resultados globais foram
desastrosos para a tradição franco-agostiniana da qual nasceu a tradição
latino-protestante. Agostinho já não é mencionado como argumento de autoridade
e até é posto em questão: ele já não é considerado como aquele que compreendeu
a Bíblia melhor do que todos os Padres. A tradição escolástica naufragou e, da
mesma forma, enfraqueceu-se pouco a pouco a autoridade dos reformadores Lutero
e Calvino.
Parece que a tradição do teólogo
paradigmático, latino ou protestante, que “mostrava o caminho”, foi substituída
por uma nova tradição na qual descobrimos o universitário protestante biblista
a abrir o caminho, tendo atrás de si, seguindo-o de perto, o pesquisador latino
católico, e enfim, segundo mais pelo olfato do que pela vista e a inteligência,
alguns universitários ortodoxos.
***
Que a Bíblia possa ser identificada
com a revelação não é apenas uma ideia ridícula do ponto de vista patrístico,
como também, evidentemente, uma heresia. A Bíblia não é a revelação, ela fala
da revelação. Ela é o critério único para uma revelação autêntica, mas essa não
está de modo algum limitada à Bíblia ou aos tempos da Bíblia. O Pentecostes é a
forma última e mais elevada da revelação, tendo o Espírito Santo conduzido,
segundo a promessa de Cristo, os apóstolos em toda a Verdade. Mas o Pentecostes
não é um evento histórico único: trata-se de uma experiência que prosseguiu na
Igreja. A glorificação, em Cristo e por Cristo, é concedida como um dom a todos
aqueles que alcançaram diferentes estados de perfeição, vale dizer, que
passaram da purificação à iluminação, e que atingiram as formas mais altas da theoria
(contemplação), denominada theosis (deificação ou glorificação).
A experiência pentecostal dos
apóstolos constitui o próprio coração da tradição transmitida através dos
tempos por Cristo, de sorte que a Igreja Ortodoxa contém em seu seio, tanto no
Antigo como no Novo Testamentos, testemunhos vivos glorificados em Cristo, e
que têm a plena compreensão da revelação da glória de Deus em Cristo.
A Bíblia não é em si a glória incriada
de Deus em Cristo, nem Sua humanidade glorificada, e isso é porque ela não é a
revelação. A Bíblia não é o Pentecostes, mas trata do Pentecostes. Em seus
diferentes níveis, o Pentecostes é a glorificação dos profetas, dos apóstolos e
dos santos na humanidade de Cristo, e, por conseguinte, ele é a revelação. O
Pentecostes é, para o homem, a forma final da glorificação de Cristo. ele não é
uma experiência passada, mas uma experiência contínua no interior da Igreja, e
que inclui palavras e imagens, ao mesmo tempo em que as transcende. Ele implica
o corpo, o intelecto e a faculdade noética, mas não pode ser concebido nem
expresso por palavras. O aspecto essencial da revelação pentecostal não é
identificável com a Bíblia, que é constituída por palavras, conceitos e
imagens; a experiência pentecostal está contida na Bíblia e é transcendente em
relação a ela. A Bíblia não é em si mesma a revelação pentecostal da glória de
Deus em Cristo pelo Espírito Santo.
De um modo esquemático, os conceitos e
imagens são utilizados pelos profetas, os apóstolos e o próprio Verbo
encarnado, para instruir aqueles que caminham para a purificação e a iluminação
– método catequético que é o da Bíblia e que, até o presente, é utilizado na
Igreja. Àqueles que estão fora do círculo dos seres que foram iluminados, vale
dizer, os homens que estão no caminho da purificação ou que ainda precisam ser
iluminados, Cristo ensina a vinda do reino de Deus em parábolas, pois vendo
eles não enxergam e, ouvindo, não escutam. Isso acontece porque o Reino de Deus
não pode se desenvolver na faculdade noética senão na medida em que a
influência do demônio é expulsa daí. Na medida em que essa influência é expulsa
e que o Reino ou a graça de Cristo o derrota, a faculdade noética começa a se
libertar da escravidão do intelecto, do corpo e do meio, fazendo o homem passar
do grau de purificação para o de iluminação. Nesse estágio, o ser atinge a
compreensão daquilo que significam as imagens e os conceitos da Bíblia, do
mesmo modo como ele compreende aquilo que eles não querem significar.
Todos os conceitos e imagens sobre
Deus e sua relação com o mundo em Cristo e pelo Espírito Santo são expressões
da revelação destinadas aos que passaram da etapa da purificação e que agora se
elevam aos mais altos graus da iluminação. A revelação da glória de Deus em
Cristo e no Espírito Santo transcende a iluminação, que consiste no conhecimento
relativo ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, mas ainda não no conhecimento da
Santa Trindade na humanidade elevada e glorificada de Cristo, no momento do
Pentecostes e depois do Pentecostes. A humanidade elevada e glorificada do
Verbo (Logos) que reside no Pai e no Espírito Santo não pode ser expressa por
conceitos e imagens. O homem não é capaz nem de conceber, nem de expressar a
Santa Trindade ou a encarnação do Logos. Porém, o homem glorificado na e pela
natureza humana de Cristo experimenta toda a verdade revelada no Pentecostes,
experiência que transcende toda experiência – e visão que transcende toda visão,
audição que transcende toda audição, sensação que transcende toda sensação,
paladar que transcende todo paladar, olfato que transcende todo olfato,
conhecimento que transcende toda conhecimento, compreensão que transcende toda
compreensão.
Por isso a revelação do Pentecostes
não pode ser expressa por palavras ou imagens criadas, nem pelos conceitos que
Cristo disse a seus discípulos que se tornaram seus amigos ao atingirem o grau
da iluminação: “Tenho muitas outras coisas a lhes dizer, mas vocês não as podem
compreender agora. Quando Ele vier, Ele, o Espírito de Verdade, Ele os
conduzirá à verdade total; pois suas palavras não virão de Si mesmo, mas Ele
falará de tudo o que Ele ouviu e lhes anunciará as coisas que estão por vir.
Ele me glorificará, porque Ele tomará o que é meu e lhes anunciará. Tudo o que
o Pai possui é meu, e é por isso que eu disse que ele tomará o que é meu para
lhes anunciar. Mais um pouco de tempo e vocês já não me verão, e um pouco mais,
e novamente vocês me verão[1]”.
Contrariamente a Agostinho, os Padres
da Igreja herdaram a tradição e transmitiram o ensinamento de que a promessa de
Cristo de conduzir os apóstolos “em toda verdade” cumpriu-se no dia do
Pentecostes.
É importante ter em mente que, ao
contrário das afirmações latina e protestante, a revelação não é em si mesma a
transmissão de conceitos e de imagens de que se servem os que receberam a
revelação para exprimir as ações e a vontade de Deus a seus discípulos ainda
não glorificados. Por conseguinte, os conceitos bíblicos, constituem somente a
etapa preparatória da revelação. Mesmo todas as palavras criadas de Cristo,
relatadas na Bíblia, não passam de uma etapa preparatória para a recepção das
palavras incriadas de Deus, que são palavras silenciosas (árreta rêmata).
Dizer que o Espírito Santo conduziu os apóstolos em toda verdade não significa
que certos conceitos sobre Deus e Sua relação com o homem e o mundo em Cristo e
pelo Espírito Santo tenham sido revelados antes do Pentecostes, e que no
Pentecostes, todos os conceitos, ainda não revelados, tenham sido revelados. Se
assim fosse, a teologia dos Padres e dos Concílios não passaria de um desvio da
verdade absoluta, revelada no Pentecostes.
A tradição agostiniana, para a qual a
revelação não passa da transmissão ao intelecto de conceitos e ideias
imutáveis, aplica a promessa de Cristo à suposta obra do Espírito Santo que
conduziria os indivíduos e a Igreja a uma maior e mais profunda compreensão
daquilo que foi revelado. Nesse sentido, a obra dos Padres e dos Concílio
estaria de certa forma justificada. Foi essa a linha adotada pelos Francos e
que ainda domina a compreensão teológica latina.
Desse ponto de vista, a tradição
protestante da sola scriptura está mais perto da tradição patrística,
mas ela difere radicalmente dos Padres, na medida em que ela identifica essa scriptura
com a palavra de Deus e a revelação.
Uma vez que o Espírito Santo, no
Pentecostes e durante toda a vida ininterrupta da Igreja, revela aos amigos de
Cristo a glória incriada e o verdadeiro reino de Deus, pela humanidade de
Cristo que neles habita, parece oportuno analisar um exemplo clássico da
tradição patrística. Veremos então claramente a relação entre a tradição viva
da experiência pessoal da glorificação e os dogmas ortodoxos. Essa relação é a
chave que permite compreender o sentido profundo da Bíblia. Sem essa “chave” e
sem seu uso apropriado, a Bíblia permanece sendo um mistério oculto, mesmo para
os mais sábios biblistas que conhecem e utilizam os melhores métodos aprovados
por aqueles que permanecem fora do domínio da vida espiritual experimentada
pelos Padres.
Do ponto de vista científico,
precisamente, é evidente que a melhor maneira de compreender as revelações da
glória de Deus na Bíblia consiste em ver se essa tradição subsiste hoje, a fim
de comparar uma com a outra e talvez descobrir assim o sentido e a finalidade
dos termos empregados para expressar essas revelações, tanto na Bíblia como nos
Padres, nos Concílios e nas vidas dos santos.
Podemos utilizar aqui as decisões e os
documentos oficiais para considerar o ensinamento oficial da Igreja sobre essas
questões. Sem dúvida, pode-se considerar que essa não é uma perspectiva muito
crítica e universitária do objeto. Seus complexos de inferioridade cultural já
conduziram muitos ortodoxos a crer que se trata de um ato de humildade adotar a
metodologia latia e protestante, e um ato de orgulho seguir unicamente os
Padres na interpretação da Bíblia, como ensina todo o conjunto da tradição
ortodoxa e os Concílios, especialmente.
Citaremos como exemplo do método
teológico ou bíblico dos Padres. São Gregório o Teólogo, que, lido no contexto
da tradição ortodoxa, não mostra o esforço especulativo de um teólogo que
buscasse compreender uma revelação dada num passado, mas, ao contrário, fala de
uma revelação que em nada difere da compreensão que temos dela, que é ela
própria essa compreensão; que não pertence ao passado mais antigo, mas existe
como uma realidade atual; que, enfim, não constitui simplesmente a experiência
de alguém outro, mas a sua própria experiência.
Eis o que diz São Gregório: “Não é a
todos que cabe filosofar sobre Deus; o objeto não é nem tão vil nem tão
medíocre! E eu acrescentarei: não convém fazê-lo a todo tempo, nem com o
primeiro que aparecer, nem não importa sobre qual tema; mas existe um tempo
para fazê-lo, pessoas a eleger e temas a escolher. Não são todos que podem
falar de Deus, porque isso só é possível àqueles que foram provados e que
alcançaram o grau da theoria; e antes desses, aos que purificaram sua alma e
seu corpo, ou, pelo menos, estão no caminho dessa purificação”.
Para São Gregório, o teólogo é aquele
que alcançou a theoria – termo chave do Evangelho de João, do qual Cristo se
serve ao descrever a obra do Espírito Santo conduzindo os apóstolos em toda
verdade: “Ele que ele tomará o que é meu para lhes anunciar. Mais um pouco de
tempo e vocês já não terão mais a theoria, a visão de mim (ouketi theoreité
me); e um pouco mais, e novamente vocês me verão[2]”.
No Pentecostes e nos tempos que se
seguiram, o Espírito Santo revelou aos amigos de Deus aquilo que Cristo possui
do Pai e, ao mesmo tempo, o Cristo em pessoa, o próprio Verbo, em sua
humanidade e pela sua humanidade. Todos esses amigos de Deus são teólogos por
excelência, porque ele partilham em verdade dessa experiência do Pentecostes,
na qual a revelação e a compreensão da revelação se identificam.
Mas devemos sublinhar que, uma vez que
alcançam essa theoria, os amigos de Deus se encontram unidos, tanto à glória da
Santa Trindade na humanidade do Verbo, como também uns aos outros. A theoria
representa a forma mais elevada da unidade mútua, na glória de Cristo
encarnado. É fácil de compreender, por conseguinte, que todos aqueles que têm
essa experiência comum possuem o mesmo conhecimento de Deus e a mesma teologia
sobre Deus. Não é preciso dizer que somente quem recebeu essa graça da
revelação da glória de Deus em Cristo pelo Espírito Santo conhece a experiência
idêntica ou similar dos demais deificados, compreende os símbolos linguísticos
e icônicos de que se servem esses seres glorificados para exprimir sua
glorificação, e se encontra também em condição de utilizar, por sua vez, esses
símbolos.
Essa unidade dos santos uns com os
outros na verdade da glória da Santa Trindade, ou seja, na theosis
(deificação) ou glorificação, na qual os deificados possuem a mesma fé e a
mesma compreensão da fé – porque possuem a mesma experiência da theosis,
de glorificação – é o próprio coração do ensinamento de Cristo, o coroamento de
sua ação que encontrou sua realização suprema no Pentecostes.
“Santifica-os com a verdade: a verdade
é a tua palavra. Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os envio ao
mundo. Em favor deles eu me santifico, a fim de que também eles sejam santificados
com a verdade. Eu não te peço só por estes, mas também por aqueles que
acreditarão em mim por causa da palavra deles, para que todos sejam um, como
tu, Pai, estás em mim e eu em ti. E para que também eles estejam em nós, a fim
de que o mundo acredite que tu me enviaste. Eu mesmo dei a eles a glória que tu
me deste, para que eles sejam um, como nós somos um. Eu neles e tu em mim, para
que sejam perfeitos na unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste e
que os amaste, como amaste a mim. Pai, aqueles que tu me deste, eu quero que
eles estejam comigo onde eu estiver, para que eles contemplem a theoria de minha
glória (ina therpsin ten doxan ten emen) que tu me deste, pois me amaste
antes da criação do mundo. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te
conheci. Estes também conheceram que tu me enviaste. E eu tornei o teu nome
conhecido para eles. E continuarei a torná-lo conhecido, para que o amor com
que me amaste esteja neles, e eu mesmo esteja neles”.
Evidentemente essa não é uma prece
pela unidade da Igreja no futuro, mas pela unidade da glória de Cristo dada aos
apóstolos e aos fiéis aquando do Pentecostes. A theoria, ou a visão da glória de
Deus em Cristo pelo Espírito Santo, não é assim apenas uma promessa para o
futuro, mas uma realidade presente, realizada perfeitamente no Pentecostes e
que continuou na vida dos santos. Como disse Gregório o Teólogo: a theoria
transforma uma pessoa em teólogo e explica a identidade da doutrina entre todos
os teólogos da Igreja, dos profetas aos apóstolos e todos os santos da Igreja.
Tendo isso em mente, tomamos
consciência da unidade e da identidade entre a experiência espiritual da
doutrina entre os profetas, os apóstolos e os santos, ou, para usarmos os
termos dos manuais dogmáticos de hoje, da unidade e da identidade da revelação
e do dogma, de um lado, e de sua distinção radical em relação à especulação
racional, de outro. Compreendemos a distinção entre a revelação da verdade não
conceitual – ou melhor, supra conceitual – aos seres deificados ou glorificados
em Cristo, e a formulação dessa experiência em axiomas dogmáticos ou afirmações
de fé, segundo termos que não são absolutamente tentativas especulativas de
assimilar intelectualmente mistérios revelados suprarracionais; pois essa
formulação se torna necessária pela aparição de uma heresia concreta, que tenha
surgido numa situação histórica determinada e que exija a definição e a
expressão da verdade suprarracional em termos compreensíveis dentro de
condições efetivas de vida criadas pela heresia em questão.
É evidente que as formulações
doutrinais da fé e o desenvolvimento de uma terminologia adequada, na qual
essas afirmações serão enunciadas, não representam um progresso da Igreja no
sentido de uma formulação melhor e mais completa da revelação, devida aos esforços
especulativos de teólogos que pretendem lhe dar um significado mais profundo do
que os teólogos anteriores.
Salientaremos ainda a identidade
entre, de um lado, a revelação e a capacidade em “teologizar” corretamente a
respeito da revelação e, de outro, a vida espiritual e a perfeição em Cristo. a
iluminação exige a purificação prévia e a theoria pressupõe a iluminação
– de fato, a theoria é a revelação da glória e da verdade em Cristo:
somente essa revelação oferece a possibilidade de “teologizar” corretamente
sobre Deus, segundo São Gregório o Teólogo.
Nunca é demais sublinhar o fato de que
os ortodoxos e os arianos estavam perfeitamente de acordo com a tradição
bíblica e patrística segundo a qual somente Deus conhece Sua própria essência:
quem conhece a natureza divina é o próprio Deus por natureza. A fim de provar
que o Logos é uma criatura, os arianos afirmaram que o Logos não
conhecia a essência do Pai, nem, por essa razão, sua própria essência. Os
ortodoxos, por sua vez, afirmavam que o Logos conhecia a essência do
Pai, que é Sua própria essência, pela qual Ele é incriado.
Os eunômios interpondo-se no debate
teológico, procuraram solapar essas bases, até então aceitas por todos. Eles
afirmavam que não é só o Logos que conhece a essência incriada do Pai,
mas também o homem a conhece. Assim, o Logos não seria incriado apenas
por conhecer a essência incriada do Pai. Indo de encontro com os arianos e os
ortodoxos, segundo os quais as criaturas não podem conhecer a essência divina
incriada, mas apenas a energia incriada – ou a vontade de Deus nas Suas múltiplas,
mas indivisíveis, manifestações – os eunômios sustentavam a identidade entre a
essência divina e a energia incriada: conhecer uma equivaleria a conhecer a
outra. Curiosamente, Agostinho adotou as posições eunomianas, a saber, que o
homem pode conhecer a essência divina e que não pode haver distinção, em Deus,
entre a substância incriada e a energia incriada. Quando os Francos apareceram
no Oriente com essas posições, eles foram acusados de serem eunômios.
Essas posições agostinianas, caídas em
mãos dos Francos, modificaram o objetivo da teologia, que deixou de ser o guia
para a theoria (contemplação) da glória de Deus na humanidade de Cristo,
para se tornar um estudo, ou uma busca, da substância divina. Desse ponto de
vista, a escolástica dos Francos ultrapassou de longe a tradição dos Padres
romanos latinófonos e helenófonos que, como vimos, ensinavam unanimemente que
em o homem, nem sequer os anjos, poderiam conhecer ou conheceriam jamais a
essência divina, conhecida somente da Santa Trindade.
Constatamos que, em sua polêmica com
os eunômios, a posição patrística sustentada por Gregório o Teólogo está oposta
à perspectiva agostiniana dos Francos sobre a linguagem conceitual referente a
Deus.
Platão afirmava que é difícil conceber
a Deus, mas que defini-lo e exprimi-lo é impossível. Em desacordo com essa
afirmação, Gregório o Teólogo sublinha que não só é impossível exprimir a Deus,
como, mais ainda, é concebê-lo; pois “aquilo que pode ser concebível pode ser
expresso pela linguagem, senão claramente, ao menos aproximadamente”.
O mais importante na epistemologia
patrística é que a cognoscibilidade parcial das ações ou energias divinas e a
absoluta incognoscibilidade e incomunicabilidade da essência divina não resultam
de uma especulação teológica ou filosófica – como em Paulo de Samosate, no arianismo
e no nestorianismo – mas de uma experiência pessoal da revelação, da
participação na glória incriada de Deus pela iluminação e a theoria. A
especulação dialética não pode se tornar a fonte da doutrina que estabelece a
autoridade, como se a Igreja pudesse, através do papa, dos concílios ou dos
eruditos biblistas, oficializar a transformação em dogmas das buscas
especulativas, como o fizeram os Francos e seus sucessores.
A autoridade, para a verdade cristã, não
pode provir das palavras escritas na Bíblia, que não podem por si mesmas
exprimir a Deus ou constituir um conceito adequado de Deus, mas reside antes no
apóstolo, no profeta ou no santo, glorificados em Cristo e unidos, nessa
experiência da glória, a todos os amigos de Deus por todos os séculos. Assim é
que a Bíblia, os escritos dos Padres e os Concílios não são a revelação, mas
simplesmente falam da revelação. A revelação transcende as palavras e os
conceitos, mesmo que ela conduza os que participam da glória a expressar com
precisão e fidelidade o que em si permanece inexprimível por palavras e
conceitos. É preciso que, sob a condução dos santos, os fiéis compreendam que
Deus não deve ser identificado com as palavras e os conceitos bíblicos – que,
não obstante, O visam infalivelmente, desde que sejam estudados sob a guia
daqueles que atingiram a theoria. Os fiéis sabem que constitui uma
heresia crer que os conceitos bíblicos expressos por palavras podem ser
compreendidos por um intelecto simples que tenha fé; pois a aquisição de uma
compreensão intelectual de Deus, segundo o método e a ciência bíblica dos
Padres sobre Deus, conduz a uma verdadeira compreensão de Deus que é supraintelectual,
suprassensível e supranoética.
Para voltarmos a São Gregório o
Teólogo: quando ele quer colocar os fundamentos teológicos de sua refutação aos
arianos, aos eunômios e aos macedônios, ele não argumenta apenas com os textos
bíblicos, nem se limita à experiência reveladora dos profetas, dos apóstolos e
dos santos, mas se refere igualmente à sua própria experiência da glória de
Deus na humanidade do Verbo, como o fazem os demais Padres da Igreja.
“O que me aconteceu, meus amigos,
companheiros de iniciação e, como eu, amorosos da verdade? Eu corria para
encontrar a Deus, eu subi a Montanha e atravessei a Nuvem, e, separado da matéria
e das coisas materiais, retirei-me para dentro de mim mesmo tanto quanto pude.
Então, quando vi, não vi mais do que o dorso de Deus, ainda que eu estivesse
abrigado no Rochedo, o Verbo encarnado por nós. Olhando um pouco mais de
perto, eu vi, não a primeira e pura natureza, conhecida somente dela mesma –
sou seja, da Trindade; não aquilo que reside por trás do primeiro véu, e
que é escondido pelos Querubins; mas somente essa natureza que, afinal, desce
até nós. Ela é a Majestade (Megaliotes) – ou, para citar Davi, a
Magnificência (Megaloprepeia) – que se manifesta nas criaturas, que ela
produziu e governa. Esse é o dorso de Deus, que está por trás dele, como sinais
de Si mesmo”.
A tradição relativa a essa distinção entre
a natureza primeira e a glória incriada de Deus – sendo a primeira conhecida
somente por Deus, e a segunda por aqueles a que Deus se revela – se encontra
não apenas na Bíblia e nos Padres ortodoxos, como ainda em Paulo de Samosate,
nos arianos e nos nestorianos, como vimos. Esses três últimos modos de pensamento
possuem uma perspectiva filosófica em comum, segundo a qual Deus está em
relação com as criaturas apenas por Sua vontade e Sua energia, e jamais por Sua
natureza. As relações naturais, por serem necessárias, reduziriam Deus a um
sistema de emanações. Paulo de Samosate e os nestorianos sustentavam que Deus,
em Cristo, está unido à humanidade por vontade e não por natureza. Os arianos
diziam que Deus está ligado à hipóstase do Logos, não por natureza, mas
por vontade, porque, como o Logos extrai sua existência do não-ser pela
vontade do Pai, sendo portanto criado, Ele está unido por natureza – em outras
palavras, por uma necessidade imposta por Deus – à sua natureza humana
truncada.
Contra essas teses, os Padres
ortodoxos sustentavam que, em Cristo, o Logos está unido à Sua
humanidade, por natureza ou hipostaticamente, e que o Pai gera o Filho por
natureza – e especificavam que, em Deus, a vontade jamais se opõe àquilo que
pertence à natureza. Assim, Deus gera o Logos e projeta o Espírito Santo
por natureza, de Sua própria hipóstase, e a Santa Trindade cria pela vontade as
criaturas, tirando-as do não-ser, tendo assim uma relação de vontade com elas,
com a exceção do Logos que se une hipostaticamente à Sua humanidade.
Tocamos aqui no aspecto mais
importante e central da teologia bíblica e patrística que, desde Agostinho, foi
completamente ignorado pelas tradições dos franco-latinos e dos protestantes, e
que começou a sê-lo mesmo entre os ortodoxos modernos, influenciados pela
teologia russa pós-medieval.
A simplicidade e a natureza bíblica e
esquemática da doutrina inicial foram perdidas pelas tradições que seguiram
Agostinho, o qual transformara a doutrina da Santa Trindade em exercício
especulativo e filosófico-teológico, numa tentativa de compreender
racionalmente esse mistério. A história da doutrina da Santa Trindade se viu
reduzida à análise do desenvolvimento dos conceitos e do vocabulário, que
conduziu a fórmulas como “três Pessoas ou hipóstases”, “uma essência ou
natureza”, “consubstancial (homoousios)”, ou ainda “propriedades pessoais
ou hipostáticas”, “modos de existência”, “uma vontade, uma energia, uma
divindade”, etc.
Para o9s Padres, contrariamente aos
arianos e aos eunômios, a doutrina da Trindade e a cristologia são idênticas à
aparição do Logos em toda Sua glória aos profetas, aos apóstolos e aos
santos. O Logos não é um conceito abstrato, comunicado por meio de expressões
reveladas, de coisas criadas ou de conceitos, mas Ele é sempre identificado com
uma pessoa concreta – o Anjo de Deus, o Senhor da Glória, o Anjo do Grande
Conselho, o Senhor Sabaoth e a Sabedoria de Deus – que apareceu aos profetas do
Antigo Testamento, e que se tornou Cristo por Seu nascimento como homem do seio
da Virgem e Mãe de Deus. Essa identidade do Logos com a Pessoa concreta que revelou
aos profetas o Deus invisível do Antigo Testamento, jamais foi posta em dúvida,
e todos creram nela, com exceção de Agostinho, influenciado pelas tradições
gnósticas e maniqueístas.
A controvérsia que opôs os ortodoxos
aos arianos e aos eunômios não girava e torno da questão de saber quem
era o Logos no Antigo e no Novo Testamentos. Ambos concordavam em dizer
que o Logos era Aquele que apareceu aos profetas e que nasceu da Virgem
como homem. A questão que os dividia era a da natureza do Logos e de Sua
relação com o Pai.
Os ortodoxos afirmavam que os profetas
haviam visto o Logos como incriado, impassível e imutável, tendo sempre
existido do Pai, o qual, antes dos séculos, gerou de Si mesmo, por natureza, o Logos.
Arianos e eunômios afirmavam que os profetas haviam visto o Logos como criado, passional,
mutável, tendo recebido Sua existência a partir do não-ser, antes de todos os
séculos, pela vontade de Deus.
A questão fundamental que opunha os
ortodoxos e os heréticos era, portanto, a seguinte: os profetas e os apóstolos,
encontrando-se na glória incriada de Deus, teriam visto um Logos criado,
passional e mutável, ou um Logos incriado, impassível e imutável? Um Logos
que é Deus por natureza, e que, portanto, possui por natureza todas as energias
e poderes de Deus? Ou viram um Deus pela graça, que possuía algumas energias do
Pai, mas não todas, e apenas pela graça e não por natureza, e que não teria a
mesma essência ou natureza do que o Pai, mas uma essência diferente e criada?
Tanto ortodoxos como arianos e
eunômios reconheciam como princípio que, se o Logos possui por natureza
todos os poderes e energias do Pai, Ele é incriado. Caso contrário, Ele é
criatura.
A Bíblia dá testemunho Daquele que os
profetas e os apóstolos viram na glória do Pai, e assim ela permite conhecer quem
Ele é e o que Ele é. Ela revela. Embora ela não constitua em si a
revelação, se o Logos possui ou não por natureza todas as energias do
Pai; por meio dela podemos saber se os profetas e os apóstolos viram um Logos
criado ou um Logos incriado, um Logos consubstancial ao Pai ou um
Logos não consubstancial ao Pai.
Para os Padres, a consubstancialidade
do Logos com o Pai não é apenas a experiência dos apóstolos e dos santos, mas
também a dos profetas. A diferença entre essas visões, é que os profetas, na theoria,
viram a Deus no Logos ou no Anjo sem a carne, pelo Espírito Santo; ao passo
que os apóstolos receberam a mesma revelação, mas na e pela humanidade do Logos,
nascido como homem da Mãe de Deus e que, sendo consubstancial ao Pai, tornou-se
consubstancial para nós.
É fundamental sublinhar que os
ortodoxos, assim como os arianos e os eunômios, se utilizavam indistintamente
do Antigo e do Novo Testamentos em suas demonstrações. A argumentação é simples:
eles levantavam a lista de todos os poderes ou energias do Pai, conforme
consignadas na Bíblia. Depois faziam a mesma coisa com o Logos e o Anjo
da Glória. Por fim eles comparavam as duas listas para verificar se eram
idênticas. O ponto importante é que elas não deveriam ser similares, mas
idênticas.
Acrescentaremos que os arianos e os
ortodoxos concordavam em reconhecer, contra os sabélios e os samosatianos, que
o Pai e o Filho possuem propriedades hipostáticas individuais e também modos de
existência que não são comuns – ainda que eles não estivessem de acordo sobre a
natureza desses atributos pessoais.
Quando o debate se estendeu à
hipóstase do Espírito Santo, o mesmo método teológico foi seguido. Todos os
poderes e todas as energias comuns ao Pai e ao Filho deveriam pertencer também
ao Espírito Santo, em comum com Eles e por natureza, para que se pudesse
afirmar que também Ele era Deus por natureza.
O método teológico dos Padres parece
ser claramente não-especulativo, mas apoiado sobre a autoridade da experiência;
ele não é abstrato, mas simples e esquemático.
Toda a doutrina da Santa Trindade pode
assim ser resumida esquematicamente em dois enunciados:
·
O que é comum na Santa Trindade, ou seja, a
essência, a vontade, a energia e o poder, é comum às três hipóstases e idêntico
nas três;
·
O que é hipostático, de ordem pessoal, a
propriedade hipostática ou modo de existência, é radicalmente individual,
incomunicável, e pertence a cada Pessoa ou hipóstase.
Temos aqui o que é Koina e o
que é Akoinoneta, o comum e o individual e incomunicável.
Isso mostra por que os Romanos não
levaram muito a sério a tese teológica dos Francos sobre o filioque,
ainda mais por ter essa tese sido apresentada como um melhoramento do Credo do
Segundo Concílio ecumênico! Compreenderemos que eles se riram dos silogismos,
que para eles não passavam de bobagens, até que os Francos fossem capazes de
conquistar a parte oriental da Romanidade e impor suas elucubrações teológicas
com um orgulho inimaginável e espadas afiadas.
A argumentação, no método teológico
dos Padres, é paralela à experiência e controlada por sua theoria da
glória de Deus na humanidade de Cristo. Essa experiência verifica e certifica a
interpretação correta da Bíblia a respeito de:
a.
O encontro revelador entre o Logos e
Seus amigos, os profetas e os apóstolos, nos quais Ele veio a habitar
juntamente com o Pai, no Espírito Santo, revelando-lhes palavras indizíveis e
incriadas que transcendem os conceitos;
b.
O caráter incriado do Logos e do
Espírito Santo, a unidade de Sua natureza com o Pai e a identidade de Sua
glória, reino, graça, vontade e outras energias incriadas;
c.
A incomunicabilidade de toda propriedade
hipostática, incluindo a encarnação do Logos, e o caráter para sempre
eterno da humanidade do Logos, sobre a qual o Espírito Santo construiu a
Igreja desde o Pentecostes, até o final dos tempos.
A experiência reveladora da glória de
Deus confirma igualmente o ensinamento da Bíblia sobre a ausência de qualquer
similaridade entre o criado e o incriado. Por conseguinte, não podem existir
universais incriados dos quais as criaturas seriam cópias. Cada criatura
individual depende da glória incriada de Deus, que é absolutamente simples –
mesmo se ela se divide indivisivelmente no interior de e entre as
criaturas individuais. Deus está inteiramente presente em cada energia – Ele
está ali pela vontade, ao mesmo tempo em que, por natureza, permanece ausente
de tudo, salvo por sua união hipostática do Logos com Sua natureza
humana.
O Espírito Santo conduziu os profetas
na verdade e os apóstolos em toda verdade, aquando do Pentecostes não pela
revelação de verdades racionais e conceituais desconhecidas até então, mas pela
experiência da nova presença da humanidade de Cristo, que constituía e
constitui a Igreja vitoriosa sobre a morte e o poder do demônio, a fim de que a
morte não possa prevalecer sobre a Igreja, com acontecia ainda no Antigo
Testamento. É Cristo por inteiro, não uma parte Sua, que está ´presente em cada
amigo de Deus, não somente segundo o reino, a glória ou a divindade incriadas,
mas ainda segundo a humanidade criada de Cristo.
Do ponto de vista da realidade incriada
de Deus, que transcende todo conceito, os profetas e os apóstolos
experimentaram a mesma glorificação no Logos-Cristo. é do ponto de vista
da encarnação, da morte, da ressurreição e da ascensão de Cristo – e de Sua
nova presença no Espírito que funda, no Pentecostes, a Igreja como Seu corpo –
que toda a verdade é revelada pelo Espírito Santo e que os apóstolos a
perceberam em theoria, eles e todos aqueles que, a seguir, participaram
dessa glória. Desde o Pentecostes, cada glorificação específica de um santo –
cuja santidade provém, como de sua fonte, da visão da glória incriada de Deus
na humanidade de Cristo – constitui a extensão do Pentecostes em diferentes
graus de intensidade.
Essa experiência engloba o homem por
inteiro e, ao mesmo tempo, ela o transcende totalmente, incluindo aí seu
intelecto. Assim, ela permanece um mistério para o intelecto, que possui a theoria,
e ela não pode ser comunicada de modo intelectual a outrem. A linguagem pode
indicar, mas não comunicar, essa experiência. O pai espiritual pode conduzir em
sua direção, mas não pode fazer nascer a theoria, que é um dom do
Espírito Santo.
Assim, quando os Padres acrescentaram
termos à linguagem bíblica em uso, a propósito de Deus e de Sua relação com o
mundo, tais como Hypostasis (Pessoa), Ousia (Essência), Physis
(Natureza), Homoousios (Consubstancial), e ainda União por natureza,
União pela vontade, etc., eles não buscavam melhorar a compreensão
corrente que provinha dos tempos antigos. O Pentecostes não pode ser melhorado,
seja como revelação, seja como compreensão de Deus, aspectos que os Padres,
como vimos, identificaram. Todo o esforço dos Padres consistiu em defender, com
a linguagem de seu tempo, a tradição viva da experiência pentecostal que transcende
toda linguagem. Eles a protegeram contra uma heresia concreta que ameaçava os
fiéis, afastando-os dessa experiência, em lugar de os conduzir a ela, o que
implicava a morte espiritual para aqueles que se perdiam.
A autoridade, para os Padres, não
estava apenas na Bíblia, mas na Bíblia associada aos glorificados: profetas,
apóstolos e santos. A Bíblia, enquanto livro, não é em si nem inspirada, nem
infalível. Ela se torna assim na comunhão dos santos que tiveram a experiência
da glória divina descrita, mas não diretamente transmitida, pela Bíblia. Para
todos os que estão de fora da tradição viva da theoria, a Bíblia é um
livro que não revela seus mistérios.
Parece inevitável concluir que existe
aqui um perfeito acordo da teologia com os métodos científicos em uso nos
nossos dias. Toda ciência possui sua própria linguagem, que não pode ser
compreendida senão pelos iniciados da especialidade considerada, por aqueles
que são os especialistas. Como poderia alguém começar a aprender o que é a theoria,
se ele próprio não estiver em contato com a tradição viva da theoria? E
essa tradição viva da theoria não é feita apenas de livros sobre a theoria,
mas também por aqueles que possuem a theoria e que sabem, por sua vez,
aquilo de que falam os livros em questão, e o modo de ensinar outros a lê-los.
Assim é a Bíblia, assim são os escritos dos Padres, assim as decisões dos
Concílios que são o produto do trabalho comum dos Padres.
***
3.
APLICAÇÕES DA TEOLOGIA
Todos os homens foram criados e estão
predestinados à perfeição e à visão da glória de Deus. Todos serão “salvos”
(“eternizados”), mas nem todos serão glorificados na theoria. Isso
acontece porque existem os que alcançarão a “perfeição” (a realização) da
danação eterna e os que avançarão eternamente, em etapas cada vez mais altas de
perfeição, na theoria. Os que serão danados verão a glória incriada de
Deus como um fogo eterno e como trevas exteriores, pois Deus é percebido assim
por todos os que não O amam, como um fogo consumidor, e como luz, por Seus
amigos que progredirão eternamente na perfeição; mas todos verão a mesma glória
de Deus.
Nesse contexto, o sistema escatológico
agostiniano das recompensas e castigos, adotado pela tradição latina e
protestante, é absurdo e sem fundamento.
Todos os homens conhecerão a Cristo
como verdade, mas nem todos participarão da glória de Deus em Cristo. do ponto
de vista de Deus, não existe diferença alguma entre a danação eterna e a
glorificação eterna: Deus ama a todos os homens igualmente.
Nesse sentido, o Paraíso e o Inferno são
a mesma coisa; apenas do ponto de vista da criatura, do homem e dos anjos, eles
são diferentes. Sua diferença radical está na vontade da criatura, que aceita
ou não aceita se elevar nos diversos graus do amor desinteressado. A doutrina
agostiniana da predestinação e da graça irresistível não passa de uma inépcia
infantil.
É por isso que uma teologia – e também
para uma filosofia ou uma ideologia – que não busca a transformação do amor
interessado em amor desinteressado, constitui uma falsa doutrina e um perigo espiritual
para aqueles que a seguem. Ademais, toda teologia – filosofia ou ideologia –
que ensina essa transformação sem apresentar resultados ou sem saber como
enraizar tal amor nos fiéis, deve também ser considerada como enganosa. A
tradição ortodoxa não se contenta em apenas buscar essa transformação, como
ainda ela é capaz de transmiti-la e realizá-la efetivamente. Um ortodoxo
incapaz de compreender isso não pertence à tradição ortodoxa de modo consciente
e autêntico, mas a segue sentimentalmente, ou por simples hábito.
O eixo da teologia ortodoxa para alcançar
um amor totalmente desinteressado parte da seguinte luta dobrada:
a.
Estar unidos uns aos outros, na glória
incriada da humanidade do Logos, no estado de theoria, depois de ter
passado pelo estado de iluminação; e
b.
Vencer o diabo ao longo de todos os diferentes
estágios da perfeição, a começar pela iluminação. Vencer essa luta pressupõe a
vontade de aprender a distinguir entre as energias do diabo e as energias da
Santa Trindade, seguindo um pai espiritual experiente, que tenha atingido no
mínimo o estado de iluminação, senão o da theoria, e que possua o
discernimento dos espíritos.
Como o homem jamais pode conhecer a
Deus senão nas suas energias, na sua glória ou no seu reino, e como, por outro
lado, isso não é possível a não ser pelo discernimento entre as energias
incriadas e as energias da criaturas – em especial do diabo – isso implica que,
segundo a ortodoxia, o teólogo e o pai espiritual são uma única e mesma pessoa.
Não existe teólogo que não seja um pai espiritual e não existe pai espiritual
que não seja teólogo.
Quando as Escrituras e a tradição
falam de iluminação, o que isso significa? Quem é iluminado e quem ilumina?
Os Padres falam de entenebrecimento do
nous de Adão e de seus descendentes. Ag9ostinho e os Francos acreditavam
que isso significava que, no Paraíso, o intelecto de Adão teria tido a visão
imediata dos universais incriados, ou das Ideias que se encontravam na
substância divina, e, por conseguinte, o conhecimento de todas as coisas em sua
essência e sua origem. Assim, a queda implicava que o homem havia sido cortado
desse conhecimento, tendo se tornado ignorante.
Para os Padres da Igreja, o nous
não costuma ser identificado com o intelecto; trata-se de uma faculdade da alma
que, nas condições atuais, se confunde com o intelecto e se torna escrava dele,
do corpo e do mundo exterior, e já não pode cumprir com sua atividade própria.
O nous perdeu seu estado normal de comunhão com Deus e, reduzido a uma
maior ou menor grande enfermidade, se tornou escravo. Seu objetivo primeiro é o
de se libertar, no Espírito Santo, das influências exteriores para, em seguida,
agir sobre o intelecto, o corpo e o mundo ao redor, sem que ele mesmo sofra
outra influência que não a graça e a energia de Deus.
A iluminação e o começo da theoria consiste
assim, por meio dessa faculdade noética, em se libertar inteiramente de toda
influência estranha, e se dedicar à lembrança incessante de Deus, ou seja, à
prece perpétua. Esse estado é um dom de Deus, ao qual um pai espiritual que o
possua deve conduzir seus filhos espirituais. Essa libertação da faculdade
noética pela memória contínua de Deus desenraiza da personalidade o amor a si
próprio e o orgulho, e os substitui pela humanidade e o amor desinteressado.
Os que pertencem a essa tradição
acreditam que esses graus de iluminação e de theoria constituem o
próprio método utilizado por Cristo para guiar, não só os apóstolos, como
também os profetas.
Uma pesquisa metódica e científica,
tal como praticada hoje em dia, deveria verificar a existência dessa faculdade
noética no homem e determinar as condições nas quais ela se torna operacional
em sua especificidade, a fim de que a possamos distinguir do intelecto.
Seria possível também conduzir essa
faculdade a um certo tipo de atividade por meio de exercícios espirituais,
ainda que não ortodoxos, e mesmo não cristãos. Seria então preciso definir as
diferenças específicas. Mas notemos que, do ponto de vista ortodoxo, a
faculdade noética pode igualmente ser movida, ou mantida inativa, pela
influência dos demônios.
Sob a ação do Espírito Santo, a
faculdade noética guarda a lembrança incessante de Deus no Senhor da Glória, o
Cristo encarnado. Na experiência desse estado de unidade em Cristo, o ser
inteiro, liberto das influências demoníacas, liberta o corpo e a alma de todo
erro, e recebe um conhecimento espiritual que o impede de confundir as energias
divinas com as das criaturas, em especial do demônio.
Que semelhante conhecimento espiritual
possa preservar do erro não significa que tenhamos um saber infalível sobre a
verdade criada, mas apenas que a conhecemos em sua ligação com a verdade
incriada e a glória da humanidade de Cristo em sua comunhão dos santos.
Um ser que vive na theoria e
que possui esse conhecimento espiritual não se torna por isso um cientista ou
um erudito infalível; ao contrário, ele se torna um teólogo infalível. Ele não
se engana ao falar de Deus e de Suas relações; mas isso não o torna um sábio ou
um historiador falível – quanto mais, infalível. Nesse sentido, podemos falar
da infalibilidade da Bíblia, dos Padres e dos Concílios dos Padres.
É evidente que uma assembleia de
bispos, dos quais alguns possuidores da prece noética – a memória incessante de
Deus – e outros em luta por adquiri-la, conheceria exatamente a fé da Igreja.
Assim, dado que:
a.
A prece noética é uma tradição à qual não se
pode pertencer a menos que se seja um pai espiritual que viva na theoria;
b.
Que essa tradição da theoria não produz apenas
discursos sobre a piedade, mas também obras vivas de piedade e de amor
desinteressado; e
c.
Que a similaridade, e mesmo a identidade,
dessa piedade viva com a da Bíblia é manifesta;
podemos concluir que os “teólogos”
ortodoxos modernos deveriam estudar o método teológico que serve para formar
teólogos segundo a tradição, a fim de que possam medir se os métodos em uso
hoje em dia são realmente aptos a conduzir à teologia e a responder às
necessidades do homem. Essa deveria ser a formação de um teólogo ortodoxo, não
somente no domínio da teologia dogmática, como também no da exegese bíblica.
É evidente que o mandamento dado à
Igreja, de estudar e interpretar a Bíblia à luz dos Padres da Igreja, constitui
uma perspectiva científica, porque é lógico afirmar que os santos que possuem a
theoria compreendem os profetas e os apóstolos que a possuíram – enquanto
os latinos e os protestantes, que perderam a tradição da theoria, não
podem compreendê-la tal como ela aparece na Bíblia e, assim, desorientam os
ortodoxos que neles se fiam.
Se nos recusamos a ligar à tradição
profética e apostólica a prece noética – a incessante lembrança de Deus – como
o ápice da iluminação e o começo da theoria, restam-nos duas
possibilidades:
a.
Encontrar outro método teológico ou espiritual
para vencer o diabo e produzir uma theoria considerada semelhante à da Bíblia;
ou
b.
Provar que essa tradição já não é válida,
depois do Pentecostes.
Outra alternativa à identificação da
prece noética com a piedade bíblica seria provar que a faculdade noética deve
permanecer inoperante na perfeição cristã – e isso, porque ela não teria nada a
ver com o ensinamento e a prática dos profetas, dos apóstolos e de Cristo.
Uma última alternativa seria provar
que a faculdade noética não é distinta do intelecto. Porém, a única maneira de provar
isso consiste em demonstrar que a prece noética não existe, ou que ela é
impossível.
Mas a prece noética existe e, por
conseguinte, a faculdade noética é bem real. A faculdade noética não é uma
invenção dos Padres. Ela faz parte da natureza humana. Todos os seres humanos
possuem uma faculdade noética, embora nem todos tenham consciência disso. Para
a tradição patrística, essa ignorância da existência da faculdade noética é uma
consequência da queda da natureza humana.
Qualquer pessoa que esteja um pouco
familiarizada com o método científico moderno pode compreender a formidável
força dessa tese, e o porquê dos Padres da Igreja jamais terem mostrado essa
obsessão, tanto agostiniana como franco-latina, da culpa hereditária, esse mito
ridículo.
Se a queda do homem consiste no
entenebrecimento da faculdade noética, sua libertação é uma purificação, uma
iluminação, uma glorificação, uma transformação no modo como vive o homem.
Quando comparamos o estado de entenebrecimento e de escravidão da faculdade
noética com seu estado de iluminação e de glorificação, compreendemos por que
os Padres jamais trataram do “pecado original”, dentro do esquema platônico de
Santo Agostinho. Segundo os Padres, a faculdade noética de todo homem pode, à
imitação da de Adão, se misturar confusamente ao intelecto, às paixões e ao
meio.
Essa compreensão da queda, juntamente
com a compreensão ortodoxa da perfeição em Cristo pela iluminação e a
glorificação da faculdade noética, constitui uma realidade observável, não
apenas pelos autodenominados teólogos, como também por psicólogos e
psiquiatras. Porém, nem teólogos, nem psicólogos ou psiquiatras podem apreender
plenamente a existência da faculdade noética, senão a partir da tradição, da
teologia e da vida espiritual patrística.
Por outro lado, o único método capaz
de colocar cientificamente em evidência a faculdade noética, e de observar sua
função natural no estado de iluminação e de glorificação, consiste em pôr a
trabalhar nossa própria faculdade noética; mas isso não é possível, a não ser
que haja uma fé justa e a obediência a um pai espiritual que possua, ele
próprio, a prece noética, recebida se seu próprio pai espiritual.
Chegamos ao problema mais difícil da
teologia ortodoxa moderna. Os ortodoxos de hoje em dia, cheios de complexos de
inferioridade cultural, não são capazes de apreender a teologia patrística.
Essa exige, para ser bem aprendida, a obediência, que é o método tradicional de
luta contra o diabo para atingir a perfeição. E esse método é ensinado somente
por aqueles que, pela graça de Deus, foram vitoriosos nessa luta. Não é possível
aprender com um herético que ignore esse método. Tampouco é possível aprender
de alguém que se diga ortodoxo, mas que não possua esse método.
As obras dos Padres contêm métodos
absolutos para verificar a autenticidade da experiência espiritual em cada grau
de perfeição. Esses métodos não são especulativos. Eles são a autoridade e
dependem todos os dogmas ortodoxos, dos quais constituem o fundamento.
A visão da glória divina é verificada
pelo fato de que não existe similaridade alguma entre o criado e o incriado.
Por conseguinte, se a luz visível tem cor, forma ou dimensão, ela é criada,
porque a glória incriada de Cristo pode igualmente ser chamada de oposta à luz,
vale dizer, pode ser chamada de treva, não porque ela seja constituída por
trevas, mas porque ela transcende a um tempo todas as categorias da luz e das
trevas. A teologia apofática ortodoxa não é uma filosofia, mas o resultado da theoria.
A teologia dos profetas é a theoria, presente já no Antigo Testamento.
Quando uma visão contém a aparência da
luz ou de um ser de luz que possui cor, forma e dimensão, esse ser se posiciona
apenas exteriormente, ao lado ou em face daquele que toma consciência de sua
presença. Isso acontece porque o diabo não pode se unir ao homem por krasis,
ou total interpenetração, mas apenas por syzxygia, vale dizer por
correlação ou jugo.
Ao contrário, na experiência de
glorificação, o ser vê a si mesmo e a todas as coisas ao redor de si
interpenetradas e saturadas pela glória incriada que emana da humanidade de Cristo,
que habita nele e nos demais.
Todos os homens, sem consideração de
nacionalidade, raça ou cor, possuem a faculdade noética. Consequentemente,
todos têm a possibilidade de alcançar a iluminação pelas vias da purificação;
e, se Deus o quiser, de experimentar a glorificação em seus diversos graus. Os
diferentes graus da theoria são as experiências mais elevadas que
existem na vida espiritual e na teologia ortodoxa.
Semelhante espiritualidade, semelhante
teologia não podem ser consideradas gregas, russas, búlgaras, sérvias, etc.,
mas antes proféticas, apostólicas e, de forma simples, cristãs. Considerando
esse princípio, podemos nos perguntar no que consiste aquilo que alguns chamam
de “espiritualidade russa”, e por que ela é apresentada coo superior, ou
simplesmente diferente das demais espiritualidades ortodoxas?
***
Somente quando os teólogos ortodoxos
tomarem consciência de que a theoria é a forma mais alta da teologia –
que ela constitui a tradição contínua do Pentecostes na história – eles poderão
examinar corretamente essa tradição em sua realidade histórica e avaliar com
justeza as aplicações dessa teologia às relações da Igreja com a sociedade e o
mundo em geral.
A força dessa teologia liberta aquele
que na experimenta de sua escravidão em relação ao meio, porque nele a
faculdade noética se emancipou da influência e do domínio do intelecto, das
paixões e do meio que, quando se alcança a iluminação e a theoria, se veem
transfigurados.
É evidente que Cristo orou pela união
dos apóstolos e de seus discípulos na visão da glória do Pai, em Si mesmo, pelo
Espírito Santo, “a fim de que o mundo pudesse crer” que o Pai o havia enviado.
Se o mundo não crê, é porque os cristãos
não são melhores – e muitas vezes são piores – dos que os membros de outras
religiões. Pela falta desses cristãos, numerosos homens não veem motivo para
levar o Cristianismo a sério, nem para aceitar Cristo como um grande líder
religioso e um predicador moral.
É somente graças aos cristãos que
atingiram o estado de iluminação e de theoria que o mundo crê que o Pai
enviou Seu Filho. Para medir a amplitude da influência exercida sobre seus
iguais pelos seres dotados de theoria, basta examinar atentamente o culto aos
santos, tal como ele se exprime em seus ícones e suas relíquias.
Essa tradição da theoria
permite compreender que um grande número de ídolos e de mitos invadiram a
história – tal como a concebem os modernos ortodoxos – devido, principalmente,
à tradição oficial russa que, desde Pedro o Grande, traiu a civilização
ortodoxa da Nova Roma para se juntar às fileiras da civilização feudal da
Europa franca. Mas enquanto durar a tradição da theoria, é a própria
tradição patrística que perdurará, ou dito de outro modo, o próprio coração da tradição
ortodoxa.
Na época da queda da Nova Roma, essa
tradição estava presente entre os Romanos dos patriarcados da Nova Roma, de
Alexandria, de Antioquia e de Jerusalém. Porém, pouco depois da fundação do
patriarcado de Moscou, a Igreja moscovita condenou oficialmente o hesiquiasmo,
na pessoa dos anciãos do Trans-Volga, chamados de “despossuídos”, suscitando um
novo tipo de monaquismo, estranho à tradição da theoria e mais próximo das
ordens monásticas da Europa feudal.
Existe às vezes uma tendência a pintar
os Romanos ortodoxos da época da dominação árabe ou turca como ortodoxos de
segunda categoria, e a ortodoxia como constituindo o próprio modelo de toda a
ortodoxia. Mas parece, ao contrário, que o estado das Igrejas possuidoras de
uma sólida tradição de theoria não é nem melhor nem pior do que o de
outras Igrejas que possuem igualmente uma sólida tradição de theoria.
Sendo a theoria a mesma, onde quer que se encontre, a piedade, a vida
espiritual e a teologia serão também idênticas.
É claro que a eclosão da querela do filioque
entre os Romanos e os Francos obrigou de facto os Francos a declarar excluída
a tradição patrística, e os Padres Romanos, desde São João Damasceno,
denunciaram ativamente e condenaram o filioque franco em seus escritos.
Seria preciso estudar o momento e a
razão da escolha dos Russos, que seguiram os Francos e aceitaram o fim dado à
tradição patrística. É essa tradição russa que foi importada para o novo reino
da Grécia, com a fundação da Escola Teológica da Universidade de Atenas.
É particularmente significativo o fato
de que, no Concílio de Constantinopla de 1368, a Nova Roma declarou que São
Gregório Palamas era um Padre da Igreja igual aos demais Padres mais
importantes e excomungou os que não pensavam assim. A verdade é que, ao fazer
isso, o Concílio condenou os que concordavam com os Francos, que consideravam a
teologia escolástica superior à teologia patrística, que eles declararam
extinta no século VIII.
Quando a faculdade noética se
identifica exclusivamente com a lembrança incessante de Deus, trazendo-a em si,
o intelecto, a memória, o corpo e as paixões continuam a agir, mas, em lugar de
serem dominados pelo meio, são dominados apenas pela faculdade noética,
totalmente liberta.
Uma vez atingido esse estado, o amor
já não é egoísta, mas desinteressado, e o indivíduo, que alcançou esse grau de perfeição,
não ama somente a Deus, mas a todos os homens e a toda a criação. Ele está
mesmo pronto a abdicar de sua salvação em benefício dos demais. A verdadeira
glorificação transborda da faculdade noética, enche a alma e o corpo e
santifica o meio, vale dizer, a criação material e a sociedade.
O guerreiro pela fé ortodoxa não busca
fugir do mundo material, mas santificá-lo, libertando-o do diabo e de seus
acólitos. Esse é o verdadeiro troféu do exame crítico das aplicações da
teologia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário