“Deus não possui um nome como um
homem.”
(Attala,
mártir de Lyon)
1.
O CONTEXTO HISTÓRICO
O primeiro ponto que deve ser notado é
o seguinte: jamais houve, a respeito do filioque, conflito algum entre
os Romanos do Oriente e os do Ocidente. Claro, houve querelas internas à
Romanidade sobre pontos referentes à cristologia e às decisões dos Concílios
Ecumênicos a respeito da pessoa de Cristo. Se é verdade que os Romanos do
Ocidente se tornaram os campeões do Sétimo Concílio, relativamente aos ícones[1],
por outro lado eles jamais sustentaram a doutrina ou a adição do filioque
ao Credo, contrariamente ao que fizeram os Francos. Portanto, é essencial
compreender que essa controvérsia do filioque jamais constituiu um
conflito entre os Patriarcas da Velha Roma e da Nova Roma, mas entre os Francos
e todos os Romanos, do Oriente e do Ocidente.
A causa da controvérsia foi a
decisão, tomada pelos Francos, de condenar como heréticos os Romanos do
Oriente, fazendo-os passar por “gregos”, vale dizer, uma nação estranha aos
Romanos do Ocidente, então sob o domínio franco. O pretexto da
controvérsia sobre o filioque veio da convicção dos teólogos francos de
que a obra de Santo Agostinho constituía a chave para compreender a teologia
dos Primeiro e Segundo Concílios ecumênicos.
Percebemos a pertinência dessa
distinção entre causa e pretexto pela leitura das decisões do Concílio de
Frankfurt (794), cujos Atos condenaram os dois campos em conflito a respeito da
querela iconoclasta, com a intenção de fazer passar coo heréticos os Romanos do
Oriente.
O objetivo visado pelos Francos consistia
em quebrar a unidade nacional e eclesiástica da nação romana, tentando fomentar
controvérsias doutrinais para assim dividir, definitivamente, os Romanos do
Ocidente – sempre prestes a se revoltar contra seus opressores – dos Romanos do
Oriente. Para tanto, os Francos fizeram crer que os Romanos livres do Oriente
haviam mudado sua nacionalidade, tornando-se “heréticos”, ao transferir sua
capital da Velha Roma para a Nova Roma, e preferindo o grego ao latim. Esses
são os argumentos que encontramos na carta, datada de 871, do Imperador Luis II
ao Imperador Basílio I.
Essa política deliberada dos Francos deu
ao filioque dimensões irreparáveis. Até então, com efeito, o filioque
era uma arma política franca, mas ainda não possuía a dimensão de uma
controvérsia teológica, e os Romanos esperavam, contra todas as evidências, que
o Papado seria capaz de dissuadir os Francos de defender esse dogma absurdo.
Quando se tornou evidente que os
Francos manteriam essa estratégia político-dogmática, os Romanos condenaram ao
mesmo tempo o filioque e a posição equivocada dos Francos sobre os
ícones – por ocasião do Oitavo Concílio que aconteceu em 879 em Constantinopla,
a Nova Roma.
Ao longo dos séculos que se seguiram,
nas controvérsias sobre o filioque, não apenas os Francos fizeram entrar à
força toda a tradição patrística no mundo agostiniano, como ainda confundiram terminologias
trinitária de Agostinho com as dos Padres dos dois primeiros concílios
ecumênicos. Isso ficou evidente no Concílio de Florença (1438-1442), no qual os
Latinos tentaram tomar para si a interpretação ortodoxa do filioque dos
Romanos, dado em 650 por Máximo o Confessor. Ora, em Florença, os Romanos do
Oriente haviam hesitado em apresentar a carta de Máximo a Marino, porque ela
não havia sobrevivido de forma integral. Eles foram então agradavelmente
surpreendidos quando o bispo latino André de Rhodes citou a carta em grego, com
a intenção de provar que na época de Máximo não havia nenhuma objeção a que o filioque
fosse colocado no Credo – o que, evidentemente, não era o caso. Mas, quando
André traduziu São Máximo para o latim, para o Papa, o tradutor oficial
interveio e contestou a tradução de André, acabou-se por estabelecer uma
tradução exata, mas, então chegou a vez dos Francos contestar a autenticidade
da carta de São Máximo. Eles afirmaram enfaticamente quem seu filioque
era o único que jamais houvera no Ocidente e, sobre essas bases, rejeitaram o
texto de Máximo como fundamento da projetada união.
Quando Máximo falava do filioque
ortodoxo, apoiando sua argumentação sobre as passagens dos Padres romanos a
respeito, ele não se limitou a citar aqueles que mais tarde viriam a ser
chamados de “Padres latinos”, porque ele incluiu na sua lista São Cirilo de
Alexandria.
O zelo com que os Romanos se agarraram
ao Papado, a luta dos Romanos a fim de preservar essa instituição e sua
hierarquia até os confins da nação romana, são fatos históricos descritos com
precisão nos livros de história medieval. Em revanche, os historiadores
formados na cultura germânica, que empregavam os termos gregos” e “bizantinos”,
deixaram totalmente de lado o fato de que os Romanos do Ocidente formavam uma
mesma nação com os Romanos do Oriente, e que eles tinham uma fé comum, a dos
Concílios ecumênicos acontecidos na parte Oriental do Império. Ao invés de
explicar a história da Igreja ensinando que a unidade indivisível da nação romana
havia sido rompida em dois pelas invasões germânicas, a maior parte dos
historiadores de cultura europeia, nutridos com o leite da ideologia franca,
trataram a história da Igreja como se houvesse um Cristianismo “latino” e outro
“grego”.
O Cristianismo “grego” inclui os
Romanos do Oriente, enquanto o Cristianismo “latino” corresponde aos
Franco-Germânicos, tornados latinófonos, e aos Romanos do Ocidente, que
compreendiam os Estados Pontificais.
Assim nasceu o mito segundo o qual os
Padres da Igreja, os Romanos do Ocidente, os Francos, os Lombardos, os
Burgúndios, os Normandos etc., formaram um Cristianismo latino, harmonioso e
historicamente unificado, claramente distinto e diferente do Cristianismo todo
místico grego. E esse quadro de um Oriente grego e um Ocidente latino foi
aceito sem reservas depois de tantos séculos, pelos historiadores ocidentais.
Ora, somente uma compreensão mais exata do panorama histórico permite situar a
controvérsia do filioque em sua verdadeira perspectiva e fundamentá-la
de modo legítimo sobre o ponto de vista romano, relativo à história da Igreja,
que transparece tanto nas fontes romanas – gregas ou latinas – como nas sírias,
nas etíopes, árabes e turcas. Todas essas fontes fazem surgir a verdadeira
oposição entre os Cristianismos romano e franco, mas não aquela outra,
puramente mítica, entre os Cristianismo grego e latino. Para os Romanos,
“grego” e “latim” serviam para designar as línguas nacionais, não as das
nações. Da mesma forma, os Padres da Igreja não eram nem latinos, nem gregos,
mas romanos.
É preciso conhecer esse cenário
histórico, se quisermos compreender o significado de certos fatores, tanto
teológicos como históricos, subjacentes à controvérsia do filioque. Com
efeito, essa controvérsia entra fundamentalmente na perspectiva dos esforços
franco-germânicos para controlar, primeiro a nação romana do Ocidente,
submetida à feudalidade franca, e depois o resto da nação romana do Império.
Dentro do quadro histórico,
destacaremos os seguintes pontos:
a.
As diferenças doutrinais surgidas entre
Ambrósio e Agostinho constituem um verdadeiro resumo das diferenças que opunham
o método e a doutrina teológica dos Romanos aos dos Francos. É uma descoberta
inesperada, tão acostumados estamos a considerar Agostinho como aluno e amigo
de Ambrósio, que o instruiu e batizou.
Depois de
comparar as obras de um e de outro, cheguei à conclusão que Agostinho não havia
dado muita atenção aos sermões de Ambrósio, e que, segundo toda evidência, ele
pouco leu de suas obras. Com efeito, eles se opuseram absolutamente sobre a
questão das manifestações do Verbo no Antigo Testamento, sobre a existência dos
universais, sobre o quadro geral do dogma trinitário, a natureza da comunhão
entre Deus e os homens, a maneira como Cristo revelou sua divindade aos apóstolos
e, de modo geral, sobre a relação entre dogma e especulação, entre revelação e
razão. Sobre todos esses pontos Ambrósio segue claramente os Padres Romanos do
Oriente, enquanto Agostinho, influenciado por seu passado maniqueísta,
interpretava a Bíblia segundo uma grade hermenêutica neoplatônica.
b.
A província da Gália foi o campo de batalha
entre os partidários de Agostinho e os de São João Cassiano, quando os Francos
se apoderaram dessa província romana para fazer dela sua “França”. Tanto por
meio da fundação deum movimento monástico, como por seus escritos – espirituais
sobre o monaquismo e dogmáticos sobre a cristologia – São João Cassiano possuía
uma grande autoridade, mesmo na Igreja da Antiga Roma. Nele, como em Ambrósio,
Jerônimo, Rufino, Leão o Grande, a identidade entre os Romanos do Oriente e do
Ocidente era palpável sobre tudo o que concerne aos dogmas, a teologia e a
espiritualidade. Dentro do quadro da Romanidade do Ocidente. Agostinho era
globalmente considerado como dependente da teologia romana; mas, na Romanidade
do Oriente, é preciso reconhecer que ele era pura e simplesmente ignorado.
c.
Em contraste com a teologia romana do Oriente
e do Ocidente, a tradição teológica franca se formara unicamente no pensamento
de Agostinho. Ao descobrir os outros Padres, helenófonos e lationófonos, os
Francos os subordinaram arbitrariamente às categorias agostinianas. Mesmo os
dogmas expressos nos Concílios ecumênicos foram substituídos pela compreensão
agostiniana desses dogmas.
d.
Integrada ao sistema feudal, essa teologia deu
aos Francos a certeza de que possuíam a melhor teologia. Não tinham eles
consigo, junto com aquele que o Cristianismo “latino” considerava como o maior
dentre os Padres da Igreja, esse orgulho de nascimento que elevava sua nobreza
acima dos Romanos, dos Gregos – ou seja, dos Romanos do Oriente – e dos
Eslavos? A consequência natural dessa superioridade era que as raças germânicas
– em especial os Francos, os Normandos, os Lombardos e, por fim, os Germânicos
– não podiam deixar de produzir uma teologia superior àquela dos Romanos. É
assim que a tradição escolástica da Europa franco-germânica suplantaria a época
patrística da Romanidade. Não existe outra explicação para a reivindicação,
ainda recentemente tão popular na Europa, da sucessão e superação da teologia
patrística pela escolástica.
e.
As consequências de todos esses fatos foram
negligenciadas na Europa, na Rússia e nos manuais neo-gregos, porque criou-se
uma identificação, sob a expressão do Cristianismo latino, da teologia franco-germânica
com a teologia latina latinófona.
Historicamente,
a aparição da teologia franca coincidiu com o começo da controvérsia do filioque.
A partir do momento em que os Padres romanos da Igreja reagiram energicamente
sobre essa questão do filioque e sobre a questão dos ícones, às quais os
Francos se mostraram inicialmente hostis, os Francos se apressaram em encerrar
subitamente o período patrístico em São João Damasceno, no Oriente – ao menos
quando eles se decidiram a aceitar o Sétimo Concílio ecumênico – e em Isidoro
de Sevilha no Ocidente. Para eles, era claro que o Império Romano já não podia
produzir Padres da Igreja, a partir do momento em que os Romanos haviam
rejeitado o filioque. Por meio dessa condenação do filioque, os Romanos
seriam – segundo a interpretação franca – retirados do tronco central do
Cristianismo, identificado com o Cristianismo franco – e, mais especificamente,
depois que os Francos do Leste cassassem os Romanos do Papado e o usurpassem em
seu próprio benefício.
f.
Ao contrário, do ponto de vista romano, a
tradição dos Padres da Romanidade não se encerrara no século VIII, mas continuava
plenamente no Oriente, na Roma livre e nos países sob domínio árabe. As
pesquisas atuais mostram que a patrística romana prosseguiu muito além da queda
de Constantinopla, a Nova Roma, sob a Turcocracia. É evidente que o Oitavo
Concílio ecumênico, que aconteceu em Constantinopla em 879, com a presença de
São Photios, os Concílios chamados “palamitas” do século XIV e os sínodos dos
patriarcas romanos durante a dominação otomana, formam a sequência e fazem
parte integrante da teologia patrística.
Assim
prosseguiu a tradição cristã romana, sem o Patriarcado de Roma que, desde sua
usurpação pelos Francos em 1009, cessara de ser um patriarcado romano para se
tornar uma instituição franca.
g.
Sem jamais mencionar os Francos, o Oitavo
Concílio ecumênico condenou os que haviam ousado recortar o acrescentar ao
Credo Niceno-Constantinopolitano, e todos os que continuavam não aceitando o
Sétimo Concílio ecumênico. É preciso lembrar que, pela primeira vez na
história, um Concílio ecumênico condenava heréticos sem nomeá-los; mas não há
nenhuma dúvida de que os heréticos visados eram os Francos.
É
significativo que o memorando do Papa João VIII ao Concílio não faça nenhuma
alusão à necessidade de condenar nominalmente todos os que cortaram e
deformaram o Credo. Na carta do Papa João VIII, que é geralmente publicada ao
final dos Atos do Concílio, o filioque é vigorosamente condenado, e
mesmo descrito como uma adição recente feita no Ocidente, mas desconhecida de
Roma.
Na mesma
carta, o Papa formulava o pedido de utilizar a persuasão para que fosse cortado
do Credo o filioque falsificado, porque uma atitude mais rigorosa
levaria a uma prova de força, na qual o filioque seria imposto pelos
Francos.
Alguns
sustentaram que a versão da carta conservada era uma falsificação do século
XIV. Mas o conteúdo dessa versão corresponde exatamente à situação do Papado
romano sob o domínio Franco à época de João VIII – e esse quadro histórico, nem
um Franco, nem mesmo um Romano do Oriente poderia conhecer ou imaginar, no
século XIV.
Depois da
morte de Carlos Magno em 814, o poder dos Francos sobre o Papado se enfraqueceu
por causa da derrocada do Império; por outro lado, ele seria contrabalançado
pela reconquista do sul da Itália pela armada romana que, a partir de 876, se
substituiu aos Sarracenos. Entretanto, o poder dos Romanos não havia se
restabelecido a ponto de conduzir uma guerra doutrinal aberta contra os Francos.
Um conflito demasiado direto conduziria à transformação do Papado romano num
Ducado franco, à sujeição das populações romanas, similar à derrota sofrida
pelos Romanos de outras partes do Ocidente diante dos franco-germânicos e,
enfim, à adição do filioque pela força, como sublinhara João VIII em sua
carta.
Ao mesmo
tempo, depois da morte de Carlos Magno, os Papas romanos parecem ter conseguido
uma certa autoridade sobre os reinos francos, que reconheciam no Papa o poder
mágico de ungir um imperador no Ocidente e, por isso mesmo, de fazer igualmente
o imperador do Oriente. A esse respeito, João VIII parece ter tido um prestígio
notável, e não resta dúvida de que Photios foi autorizado a usar de persuasão
para que a supressão do filioque repousasse sobre uma possibilidade real
de sucesso.
h.
Os eruditos protestantes, anglicanos e
latinos, sempre afirmaram que, da época de Adriano ou de Leão III até a de João
VIII, o Papado se opôs à adição do filioque ao Credo, mas não ao filioque
enquanto doutrina ou opinião teológica. Eles afirmam que João VIII aceitou a
condenação do Oitavo Concílio ecumênico contra o filioque considerado
não tanto como dogma, mas enquanto adição ilegítima. Porém, tanto a carta de
Photios quando a de João VIII a Photios provam que o Papa condenava o filioque
também enquanto doutrina.
E no
entanto não poderia se tratar, para a Igreja da Velha Roma, de condenar
oficialmente o filioque. Por quê? Porque os Francos controlavam militarmente os
territórios do Papado romano, e esses bárbaros iletrados poderiam perpetrar não
importa qual crime contra o clero e a população romana. Os Francos constituíam
uma presença perigosa para o Papado romano, que tinha que usar com eles de
prudência e diplomacia.
A
Romanidade dos Gauleses e a Romanidade italiana – na qual se encontrava o
Papado romano – formavam para os Romanos uma única nação com a Romanidade do
Oriente.
As
conquistas dos Francos, dos Lombardos, dos Normandos, nas partes livres da
Romanidade, mal foram percebidas do ponto de vista romano, mas os
conquistadores germano-europeus pareciam crer que os Romanos estavam encantados
de se deixar invadir e “libertar” dos pretensos “gregos” ou mesmo “bizantinos”
e que, uma vez conquistados, não teriam mais nada a ver com os Romanos da
Romanidade livre.
i.
O pano de fundo histórico é necessário para
compreender a controvérsia do filioque e o papel desempenhado pelos Papas
romanos nesse conflito espinhoso, desde Pepino até a chegada dos Francos
teutônicos ou orientais na cena do Papado em 926-963 e a supressão da etnarquia
do Papado em 1009.
Podemos
verificar a exatidão do esboço que traçamos, frisando os seguintes fatos:
·
As posições doutrinais de Anastácio o
Bibliotecário, conselheiro principal, tanto do Papa francófilo Nicolau I, como
de João VIII, posições visíveis na preparação do Oitavo Concílio ecumênico de 879,
símbolo do momento em que o poder romano sobre o Papado foi restaurado.
·
A atitude quanto ao filioque do antipapa
Anastácio o Bibliotecário (855-858) e do Papa Leão III.
É
manifesto que Anastácio o Bibliotecário não compreendera o filioque dos
Francos, porque ele reprova aos “Gregos” suas objeções e os acusa de não
aceitar a explicação de São Máximo o Confessor, segundo a qual existem dois
sentidos diferentes da expressão “filioque”. No primeiro sentido, a
processão quer dizer a missão, segundo a unidade de essência, por meio da qual o
Espírito procede do Pai e do Filho – e, nesse caso, o Espírito Santo participa
do ato de enviar, de sorte que se trata realmente de uma ação comum a toda a
Trindade; no segundo sentido, a processão quer dizer a relação causal da qual
teria saído a existência do Espírito Santo. No que se refere a esse último
significado, Máximo o Confessor, escrevendo a Marinho, afirma que os Romanos do
Ocidente aceitam somente a processão causal do Santo Espírito a partir do Pai,
e que, segundo eles, o Filho não é causa.
Cabe crer
que isso reflete o pensamento de Nicolau I sobre a questão. Ao contrário, não
era a posição dos Francos que seguiam, a esse respeito, não os Romanos
ocidentais, mas Agostinho, que podemos interpretar no sentido de uma processão
na qual o Espírito Santo recebe do Pai e do Filho não apenas sua essência, como
também sua existência.
Mas esse
texto implica também que os Romanos do Ocidente não pretendiam introduzir o filioque
no Credo – não pela razão anedótica de que isso desagradaria aos “Gregos”, mas
porque se tratava de uma heresia. Os Romanos do Ocidente sabiam perfeitamente
que a palavra “processão” existente no Credo tinha sido introduzida
paralelamente à ideia de “geração”, e que ambas significavam a relação causal
em relação ao Pai, e não a energia ou a missão.
Quando
percebeu que os Francos ensinavam coisas confusas e perigosas a esse respeito,
Anastácio preferiu mudar de atitude diante da pretensão franca e do perigo que
ela representava. Ele sustentou a posição dos Romanos do Oriente, tal como fora
ap0resentada e defendida por São Photios o Grande e por João VIII no Oitavo
Concílio ecumênico de 879.
Essa
interpretação do filioque, sustentada por Máximo o Confessor e por Anastácio o
Bibliotecário, foi a posição constante dos Papas romanos, especialmente Leão
III. O processo-verbal da conversação havida em 810 entre os três apocrisários
(embaixadores imperiais) de Carlos Magno e de Leão III foi conservado pelo
monge Frank Smaragde e confirma essa constante da política do Papado. Leão
aceita o ensinamento dos Padres, citados pelos Francos, de que o Espírito Santo
procede do Pai e do Filho no sentido ensinado por Ambrósio e Agostinho. Mas o filioque
não deveria ser acrescentado ao Credo como o faziam os Francos, que apenas
obtiveram de Leão a permissão de cantar o Credo, sem nada acrescentar.
Quando
lemos o relato do processo-verbal lembrando-nos de que os Francos constituíam
uma presença perigosa sobre os territórios do Papado romano e capazes, caso
provocados, das maiores crueldades e barbáries, compreendemos que o Papa tenha
dito aos Francos, em termos claros mas diplomáticos, que o filioque acrescentado
ao Credo constituía uma heresia. O que mais pode querer dizer a afirmação de
Leão segundo a qual o Segundo Concílio ecumênico e os demais Concílios haviam
deixado o filioque fora do Credo, não por esquecimento ou ignorância,,
mas intencionalmente e sob inspiração divina? Essa posição é a mesma do Papa
Adriano I (772-795) e dos Concílios de Toledo, nos quais o filioque é
mencionado, mas não no Credo.
h. Os
Francos haviam assegurado uma dominação exclusiva implacável sobre os
territórios do Papado, e a Igreja romana se encontrava como um camundongo nas
garras de um gato, seu inimigo mortal. E os Francos sabiam muito bem a quem
haviam capturado! Então eles se aplicaram em desenvolver doutrinas e uma
política eclesiástica tais, que a instituição romana lhes permitir assegurar a hegemonia
que eles já exerciam sobre os territórios subjugados e de se lanças à conquista
de novas terras.
Mesmo que
o Francos de Neustrie tivessem continuado a política de Carlos Magno, eles
estavam agora enfraquecidos, o que permitiu aos Romanos controlar outra vez o
Papado a partir de 867. A partir de 962, foi a vez dos Francos da Austrásia entrar
na cena do Papado, com os resultados que conhecemos.
A atitude
dos Francos do Oeste ou Nestrianos referente ao Papado e ao filioque era
diferente da dos Francos do Leste ou Austrasianos, sendo os primeiros moderados
e os últimos fanáticos. Aconteceu que, depois de 920, um verdadeiro movimento
de reforma passou a ganhar importância suficiente para modelar a política dos
franco-germânicos austrasianos que se apoderaram do Papado; de modo a que,
quando os Romanos perderam o Papado, o filioque foi introduzido em Roma
pela primeira vez, não antes de 1009, no máximo em 1014.
À luz do
precedente, vemos que o filioque – contrariamente ao que afirmam os
historiadores europeus, norte-americanos e russos – não faz integralmente parte
de qualquer pretenso Cristianismo latino, em conflito com o Cristianismo
“grego” sobre a questão de sua inserção no Credo; e que é igualmente falso
supor que os Papas tivessem sido favoráveis a essa doutrina – mas quiseram não
ferir os “Gregos”, opostos a essa adição. Na realidade, temos diante de nós uma
nação romana, ocidental e oriental, em oposição a um conjunto de etnias
germânicas que se apoderaram do poder político e que pretendiam, sem que
tivessem aprendido seja o que for, ensinar os Romanos. Claro, esses mestres
germânicos sabiam ser convincentes em teologia enquanto praticavam a política
da faca na garganta. Enfim, na época da inclusão do filioque no Credo, os
teólogos da nova teologia germânica ultrapassavam efetivamente seus pares da
nobreza franca, pois sabiam ao menos ler e escrever, e tinham lido alguma coisa
de Agostinho.
j.
A separação entre o Papado romano e o Papado
franco nunca foi tão clara como no pseudo-Concílio de união de Florença (1439),
no qual os Romanos apresentaram aos Francos, como base para a união, a
interpretação de São Máximo o Confessor sobre o filioque. Os Francos,
sem perceber seu exato sentido, rejeitaram-no como controverso, pois estava em
desacordo com a doutrina franco-latina.
***
2.
O PANO DE FUNDO TEOLÓGICO
Na origem
da controvérsia do filioque entre os Francos e os Romanos encontravam-se
diferenças essenciais no método e na substância da teologia, na espiritualidade
e, enfim, na compreensão da natureza dos dogmas e do desenvolvimento de sua
expressão linguística.
Como já
tratei de todos esses aspectos em minhas outras obras publicadas, quero
escolher apenas um ponto necessário para uma compreensão elementar da atitude
dos Romanos diante das pretensões dos Francos sobre o filioque.
Mesmo que
essa segunda parte de nossa exposição se intitule “o pano de fundo teológico”,
iremos falar da teologia de uma perspectiva histórica – e não de forma abstrata,
na base de referências bíblicas fora de contexto.
Quando
lemos o processo-verbal do encontro relatado por Smaragde, entre os emissários
de Carlos Magno e o Papa Leão III, ficamos estupefatos de ver que os Francos
houvessem tão audaciosamente acrescentado ao Credo o filioque, e que
tivessem feito disso um dogma, e mais ainda pelo modo altaneiro com que eles
afirmaram que o filioque, doutrina necessária para a salvação, traria uma
melhoria a um dogma que era certamente muito bom, mas incompleto. Essa foi a
réplica aos subentendidos de Leão II sobre a audácia dos Francos.
Em
resposta, Leão os advertiu que, antes de desenvolver, seria preciso
assegurar-se de que a melhoria em questão não consistiria, na verdade, numa
corrupção. Ele insistiu sobre o fato de que ele não podia se colocar acima dos
Padres dos Concílios ecumênicos, que não haviam omitido o filioque por
esquecimento ou ignorância, mas por inspiração divina.
Se
quisermos responder à questão: “Em que parte do mundo a nova tradição teológica
franca fez sua aparição, afirmando que o filioque constituiu uma melhoria no
Credo, ideia até então omitida, por esquecimento ou ignorância, pelos Padres
dos Concílios ecumênicos?”, devemos nos voltar para Agostinho para buscar um
elemento de resposta, porque ele foi o único representante da teologia romana
com quem os Francos possuíam qualquer familiaridade.
Penso ter
encontrado essa resposta na exposição feita por Agostinho em 393 perante a
assembleia de bispos africanos. Havia sido pedida a ele uma conferência sobre o
Credo, que ele deu e, mais tarde, relendo-a, a publicou.
Não vejo por
que o Credo comentado não foi o Niceno-Constantinopolitano, uma vez que as
ideias gerais e as grandes linhas do discurso de Agostinho coincidem com esse
Credo. Haviam se passado doze anos desde sua proclamação pelo Segundo Concílio
ecumênico, e essa era uma ocasião propícia para que uma assembleia de bispos
estudar o novo Credo, oficialmente aceito como sendo o do Império. Os bispos
africanos conheciam seu próprio Credo local e não tinham necessidade de que
este fosse comentado.
Seja como
for, em sua exposição Agostinho cometeu três erros capitais. Ele morreu muito
tempo depois, sem jamais tê-los compreendido; e são eles que iriam guiar os
Francos e a totalidade da Cristandade franco-germânica.
Em seu De
Fide et Symbolo, Agostinho faz uma afirmação a um tempo falsa e
inacreditavelmente ingênua: “O Espírito Santo não foi, até hoje, objeto de
estudos abundantes ou precisos, de parte dos eruditos e dos comentaristas das
Divinas Escrituras, para que seja possível compreender aquilo que constitui seu
caráter próprio (ejus proprium)”. No Segundo Concílio ecumênico, todo
mundo sabia que essa questão havia sido regulamentada de uma vez por todas pela
utilização no Credo da palavra “processão” para designar o modo de existência
próprio do Espírito Santo foram do Pai – modo que constitui seu atributo
hipostático, sua individualidade.
O Pai é
não -gerado, porque ele não deriva sua existência de ninguém; o Filho é saído
do Pai por geração, e o Espírito Santo é saído do Pai, não por geração, mas por
processão. O pai é a causa, o Filho e o Espírito são causados. A diferença
entre o Filho e o Espírito Santo é que o primeiro é causado por geração e o
segundo por processão, não por geração.
Agostinho
consagrou anos para resolver um problema inexistente a respeito do atributo
hipostático do Espírito Santo e, combinando-o com outros erros próprios à sua
concepção da revelação e ao seu método teológico, ele chegou ao filioque.
Não é de
espantar que os Francos, que supunham que Agostinho havia resolvido um problema
que os demais Padres romanos tinham sido incapazes de tratar e resolver,
concluíram daí que haviam descoberto um teólogo superior a todos os outros
Padres. Os Francos imaginavam possuir, com ele, um teólogo que havia melhorado
o ensinamento do Segundo Concílio ecumênico.
Outra
série de erros de Agostinho no De Fide et Symbolo provêm de sua
identificação do Espírito Santo com a divindade “que os Gregos chamam théotès”,
e que ele explica como sendo “o amor entre o Pai e o Filho”.
Agostinho
reconhecia que “a essa ideia se opõem todos os que consideram que essa comunhão
– que chamamos de deidade, amor ou caridade – não é uma substância: ora, eles
pedem que lhes seja exposto o Espírito Santo segundo a substância, e não
compreendem que não é possível dizer ‘Deus é amor’, se o amor não constituir
uma substância”.
É evidente
que Agostinho não compreendera nada do que falavam os Padres romanos do Oriente,
como São Gregório de Nissa, São Gregório o Teólogo ou São Basílio o Grande. Com
efeito, esses rejeitaram a ideia de que o Espírito Santo pudesse consistir nas
energias comuns do Pai e do Filho, conhecidas como théotès e amor,
porque elas não são nem a essência, nem a hipóstase, enquanto o Espírito Santo
é uma hipóstase. Os Padres do Segundo Concílio ecumênico afirmaram, de fato,
que não se podia identificar o Espírito Santo com nenhuma energia comum do Pai
e do Filho, mas que nem por isso se poderia identificar o Espírito Santo com a
essência comum do Pai e do Filho.
O Espírito
Santo constitui uma hipóstase individual, com suas características ou
propriedades individuais, não partilhadas com as demais hipóstases; mas ele
compartilha plenamente com o Pai e o Filho tudo aquilo que eles têm em comum, a
saber, a essência divina e todas as energias ou potências incriadas. O Espírito
Santo é uma individualidade, que não é o que o Pai e o Filho têm em comum, mas
que tem em comum tudo o que o Pai e o Filho têm em comum.
Toda sua
vida – e embora essa diferenciação seja de origem bíblica – Agostinho rejeitou a
distinção entre o que são as Pessoas e o que elas têm, e ele
identificou o que Deus é com o que Ele tem. E não apenas
isso, como ele tampouco compreendeu a distinção entre:
Ø
A essência comum as três Pessoas e as energias
da Santa Trindade;
Ø
Os caracteres hipostáticos próprios
incomunicáveis das Pessoas divinas;
E ele era
também incapaz de perceber a diferença entre:
Ø
A essência divina comum;
Ø
A divindade e o amor divino comuns.
Ele
próprio admite não compreender a distinção feita em grego entre a ousia
e as hypostaseis de Deus. Não obstante, ele insiste sobre o fato de que
essa distinção deveria ser recebida como um ponto de fé, que ele traduz em
latim como “una essentia et tres substantiae”.
Vemos que
Agostinho aceitava assim o aspecto mais importante da terminologia trinitária
dos Padres Capadócios e do Segundo Concílio. Mas, não tendo entendido bem o
ensinamento desses Padres – em especial de Basílio e dos dois Gregórios – que
não identificavam a divindade théotès – o amor agapé da Trindade
– com a essência comum da Trindade, Agostinho fez as seguintes estranhas
considerações: “Que essa espécie de homens purifiquem seu coração, caso o
tenham, a fim de serem capazes de ver que, na substância de Deus, nada
possibilita que haja algo que seja a substância e outra coisa que seja o
acidente da substância e não a substância; mas tudo o que a inteligência
pode perceber aí é substância”.
Se
admitirmos esses princípios, segue-se que o Espírito Santo, na medida em que
for o que há de comum entre o Pai e o Filho, extrai logicamente sua existência
dos dois. Sendo assim, não pode haver distinção entre o envio do Espírito Santo
pelo Pai e o Filho e a causação, pelo Pai, da existência do Espírito Santo.
Existe aqui a confusão entre o que Deus é por natureza, o modo de existência
das três hipóstases e aquilo que Ele faz por Sua vontade. Fica claro que, para
Agostinho, a geração e a processão acabam por se confundir com as potências e
as energias divinas e, ao mesmo tempo, acabam por significar ambas a mesma
coisa. A partir daí, o filioque aparece como absolutamente necessário se
quisermos salvar qualquer coisa da individualidade do Espírito Santo. Deus Pai
não saiu de ninguém; o Filho saiu de um, e o Espírito Santo deve ter saído dos
dois. Sem isso, e como a geração e a processão se identificaram, não haveria
nenhuma diferença entre o Filho e o Espírito Santo, tendo cada um deles nascido
de um só.
O terceiro
e não menos perturbador erro de Agostinho nasce do fato de que seu método
teológico não era apenas uma especulação individual sobre aquilo que se aceita
pela fé – especulação que visa obter, pela iluminação ou intuição extáticas,
uma compreensão intelectual proporcional às possibilidades da razão de cada um –
mas se aplicava também, a partir da crença especulativa individual, à Igreja
que, sempre pela especulação, melhoraria com o tempo a compreensão dos dogmas.
Assim é
que a Igreja estaria aguardando uma discussão sobre o Espírito Santo “abundante
e precisa o bastante para que fosse possível compreender aquilo que constitui
seu caráter próprio”.
A ironia
da coisa está em que Agostinho começa por buscar as propriedades individuais do
Espírito Santo, para logo em seguida reduzi-lo ao que há de comum entre o Pai e
o Filho. Entretanto, ele irá insistir, nos acréscimos ao seu De Trinitate,
sobre o fato de que o Espírito Santo é uma substância individual da Santa Trindade,
totalmente igual às duas outras substâncias, e possuindo a mesma essência.
A ideia
agostiniana de que a Igreja progrediria para obter uma inteligência melhor e
mais profunda de seus dogmas e ensinamentos serviu de base para a propaganda
franca que afirmava que o filioque era uma compreensão mais profunda e
mais exata da Santa Trindade. A partir daaí, o fato de acrescentá-lo ao Credo
representava um melhoramento da fé dos Romanos, que haviam se deixado levar
pela preguiça e desleixo sobre uma questão de tal importância! Isso, como
vemos, coloca a questão geral da relação da revelação com a expressão verbal,
icônico ou simbólica dessa mesma revelação.
Para
Agostinho, não existe diferença entre a revelação e o entendimento conceitual
dessa revelação. Quer a revelação seja dada diretamente à razão, quer por
intermédio de uma criatura ou de símbolos criados, é sempre o intelecto humano
que recebe sua iluminação ou visão. A visão de Deus é uma experiência
intelectual, ainda que ela ultrapasse a razão – a menos que essa recebe a graça
apropriada.
Nesse
contexto, cada revelação é uma revelação conceitual que a razão pode explorar
minuciosamente para entendê-la mais completa e perfeitamente. Basta que a fé e
a aceitação dos dogmas, definidos pela autoridade eclesial, sirvam sempre de
ponto de partida para essa compreensão. Aquilo que não pudermos compreender
pela razão fundamentada sobre a fé, disso teremos plena compreensão na vida
futura. “Pelo fato de que, uma vez reconciliados e restabelecidos na amizade
(divina) pelo amor, poderemos conhecer todos os segredos de Deus, é por esse
motivo que se diz do Espírito Santo: ‘’Ele os conduzirá à verdade’[2]”.
Podemos compreender o que Agostinho quer dizer, tendo em vista o que ele
afirmara em outra parte: “Eu não serei displicente em perscrutar a substância
de Deus, seja nas Suas Escrituras, seja através da criatura[3]”.
Esse
material teológico, caído nas mãos dos Francos, transformou a teologia num
estudo e na busca da essência divina em si; e, desse ponto de vista, é preciso
reconhecer que a tradição escolástica ultrapassou largamente a tradição dos
Padres romanos – que não cessavam de afirmar que, que não apenas os homens,
como os próprios anjos, não conheciam nem poderiam conhecer a essência de Deus,
que só é conhecida da Santa Trindade.
Os ortodoxos
e os arianos estão plenamente de acordo com a antiga tradição segundo a qual somente
Deus conhece Sua própria essência. Isso significa que aquele que conhece a
natureza divina é Ele próprio Deus por natureza. Para provar que o Logos
era uma criatura, os arianos pretendiam que Ele não conhecia a essência do Pai.
Os ortodoxos responderam que o Logos conhecia de fato a essência do Pai,
sendo, portanto, incriado. Os eunômios falsificaram o debate com a ideia
escandalosa de que, não somente o Logos era capaz de conhecer a essência
de Deus, como todo homem pode conhecê-la. Dessa maneira, o Logos poderia
não ser incriado, e ainda assim conhecer a essência divina.
Contra a
posição, tanto ariana como ortodoxa, segundo a qual a criatura não pode
conhecer a essência divina incriada, mas somente a energia incriada de Deus em
suas múltiplas manifestações, os eunômios afirmavam que a essência divina e a
energia criada seriam idênticas, e que, conhecendo uma, a outra seria
igualmente conhecida. Curiosamente, Agostinho adota as posições dos eunômios.
Assim, quando os Francos apareceram no Oriente com essas teses, eles foram
acusados de ser eunômios.
Do lado
oposto da perspectiva agostiniana, dos conceitos e da linguagem sobre Deus,
está a posição patrística, contrária à dos eunômios, de Gregório o Teólogo.
Enquanto Platão afirmava que era difícil conceber Deus e impossível defini-lo
por meio de palavras, São Gregório afirma que “expressá-lo é impossível e
concebê-lo mais impossível ainda. Porque o que é conhecido pode ser indicado
pela palavra, senão adequadamente, ao menos de modo indistinto”.
O elemento
essencial da epistemologia patrística é que a cognoscibilidade parcial das
ações ou energias divinas e a total incognoscibilidade e incomunicabilidade da
essência divina não podem ser resultado de uma especulação teológica ou
filosófica, como em Paulo de Samosate, e como pensavam os arianos e nestorianos,
mas de uma experiência concreta e pessoal da revelação ou da participação na
glória incriada de Deus na visão da theoria.
São
Gregório chama de “teólogo” a quem alcançou essa theoria ou contemplação,
não por meio da especulação racional, mas pela purificação e a iluminação.
Assim, a autoridade em matéria de verdade cristã não reside na letra da Bíblia,
que em si é incapaz de expressar a Deus ou de fornecer Dele uma noção exata,
mas antes no apóstolo, no profeta ou no santo glorificados em Deus.
A Bíblia,
os escritos dos Padres e as decisões dos Concílios não são a revelação,
mas tratam da revelação. A revelação em si transcende as palavras e os
conceitos, ainda que inspire aqueles que participam da glória divina para
permitir-lhes exprimir com o máximo de justiça possível o que é inexprimível
por palavras e noções. É preciso então que, guiados pelos santos que possuem a
experiência de Deus, os fiéis saibam que Ele não pode ser identificado às
palavras e conceitos bíblicos que se referem a Ele, e que entretanto são
infalíveis.
É por esse
motivo que vemos São Gregório o Teólogo se referir não somente à experiência
revelada dos profetas, dos apóstolos e dos santos, para estabelecer os
princípios teológicos que foram refutados pelos arianos, os eunômios e os macedônios,
mas também à sua própria experiência de uma mesma revelação da glória divina:
“O que
terá acontecido a mim, ó amigos, iniciados e amorosos, comigo, da verdade? Eu
corria para captar Deus, e assim eu subi à montanha e atravessei a nuvem; e eu
penetrei, deixando a matéria e as coisas materiais, retirando-me em mim mesmo
na medida em que o pude fazer. Mas quando lancei um olhar, com dificuldade
divisei o dorso de Deus; e eu estava abrigado no Rochedo, o Verbo que se
encarnou por nós. Olhando mais de perto, eu não vi a natureza primeira e sem
mescla, conhecida só dela mesma – falo da Trindade – nem aquela que reside no
interior, depois do primeiro véu do Templo, oculta pelos Querubins; mas apenas
aquela que está por último, e que nos cabe. Ela é, na medida em que pude
conhecê-la, a Majestade, ou, como a chama o divino Davi, a Magnificência que
existe nas criaturas e nos seres que Ele produziu e governa. Esse é o ‘dorso de
Deus”, aquilo que vem depois Dele e que permite conhecê-Lo”.
Essa distinção
entre a natureza primeira e a glória incriada de Deus – sendo a primeira
conhecida apenas de Deus, e a segunda daqueles a quem Deus se revela – se
encontra não só nos Padres ortodoxos, mas ainda em Paulo de Samosate, e entre
os arianos e os nestorianos: todos afirmam que Deus está ligado às criaturas
por vontade e não por natureza, porque uma relação de natureza com a criação
constituiria uma necessidade e reduziria Deus a um sistema de emanações
semelhante ao de Valentim. Mas Paulo de Samosate e os nestorianos sustentam
que, e, Cristo, Deus está unido à humanidade não pela natureza, mas pela
vontade, enquanto os arianos pensam que Deus está ligado à hipóstase do Logos
não por natureza, mas por vontade.
Contra
essas teses, os Padres ortodoxos defenderam a ideia de que, em Cristo, o Logos
está unido à Sua humanidade por natureza e de modo hipostático, e também que o
Pai gera o Filho não por vontade, mas apenas por natureza primordialmente,
porque a vontade não está em contradição com o que pertence a Deus por
natureza. Assim, Deus gera o Logos por natureza e vontade. A Santa
Trindade cria e se liga à sua criatura pela vontade. O Logos une a Si
próprio por natureza à Sua humanidade.
É claro
que os eunômios e Agostinho suprimiram a distinção entre o que Deus é por
natureza e o que Ele faz pela vontade. Em Agostinho, isso deriva, de um lado,
na impossibilidade de distinguir entre geração e processão – que não são
energias do Pai – e, de outro lado, entre essas duas noções e os atos, como o
fato de conhecer, de enviar, de dar – que são energias comuns ao Pai, ao Filho
e ao Espírito Santo, mas não o modo de existência e os atributos hipostáticos,
totalmente incomunicáveis, da processão e da geração.
Como os
Francos seguiam Agostinho, eles não podiam compreender a posição patrística a
esse respeito. Cheios de sua enfatuação de nobres reais e feudais, eles não se
dignaram escutar aqueles a quem chamavam Gregos. Eles falsificaram textos
patrísticos, citando passagens fora de contexto, com a intenção de provar que,
segundo o conjunto dos Padres – como se podia supor pelo caso de Agostinho – o
envio do Espírito Santo pelo Filho significava que o Espírito Santo extraía sua
existência do Pai e do Filho.
Ora, é bem
claro que, sobre esse ponto, todos os Padres sempre afirmaram que são a geração
e a processão que distinguem o Filho do Espírito Santo. Uma vez que o Filho é o
Filho único de Deus, a processão tem que ser diferente da geração. Sem isso,
não haveria mais um Filho único, mas dois Filhos. Para os Padres, esse era não
só um fato revelado pela Bíblia, como um mistério que precisa ser considerado
com temor: perguntar no que consistem a geração e a processão ´[e tão ridículo
como perguntar o que é a essência divina. Somente as energias de Deus podem ser
conhecidas, e somente na medida em que a criatura as puder receber.
Ao
contrário, Agostinho tenta explicar o que é a geração e identifica a processão
com aquilo que os outros Padres romanos chama de ações ou energias de Deus,
comuns à Santa Trindade. Assim, a processão acabava por se confundir com as
energias, e a única diferença que restava entre o Filho e o Espírito é que o
Filho saíra de um, e o Espírito, de dois.
No início
do De Trinitate, Agostinho se propunha a explicar por que o Filho e o
Espírito Santo não são irmãos. Agostinho terminara o décimo segundo volume
dessa obra, quando seus amigos o roubaram a fim de publicar seu trabalho dessa
forma inacabada. No livro 15, capítulo 45, Agostinho admite não ser capaz de
explicar por que o Espírito Santo não é um Filho do Pai e um irmão do Logos, e
reserva esse conhecimento ao além.
Nas suas Retratações,
Agostinho expôs sua intenção de explicar seu comportamento na outra obra, e de
não publicar o De Trinitates. Mas seus amigos foram mais rápidos, e ele
se contentou em corrigir como pôde os livros do De Trinitate e em
terminar um trabalho com o qual ele não estava nem um pouco satisfeito. O mais
estranho é que os descendentes espirituais e culturais daqueles Francos que
atormentaram os Romanos por tantos séculos ousam afirmar que Agostinho é a
autoridade por excelência para compreensão da doutrina patrística sobre a Santa
Trindade.
Enquanto
nenhum padre helenófono jamais afirmou que o Espírito Santo procedia do Pai e
do Filho, tanto Ambrósio como Agostino se serviram dessa expressão. Ora, dado
que Ambrósio esteve na maior parte do tempo influenciado pelos Padres
helenófonos, como Basílio o Grande e Dídimo o Cego, e que ele se inspirou
notadamente no Tratado desse último sobre o Espírito Santo, seria de se
esperar que ele seguisse o uso oriental.
Na
realidade, parece que foi na época da morte de Ambrósio, antes do Segundo Concílio
ecumênico, que o termo “processão” foi empregado por Dídimo para designar o
atributo hipostático do Espírito Santo. Ele não foi utilizado por São Basílio –
salvo na Carta 38, na qual Basílio parece empregar “processão” no mesmo sentido
que São Gregório o Teólogo – nem mesmo por São Gregório de Nissa, antes do
Segundo Concílio. De todos os Padres capadócios, somente São Gregório o Teólogo
utiliza claramente, em seus Discursos Teológicos, a terminologia que
haveria de se tornar a formulação final da Igreja sobre essa questão do Segundo
Concílio ecumênico.
O primeiro
emprego verdadeiro de “processão” para designar o modo de existência e o
atributo hipopstáti8co do Espírito Santo se encontra no Corpus de
Pseudo-Justino, cuja origem, sem dúvida, é antioquina. Essa terminologia chegou
à Capadócia pelas mãos de Gregório o Teólogo e em Alexandria por intermédio de
Dídimo o Cego. Santo Ambrósio não extraiu nada dessa tradição antioquina.
Agostinho, ao contrário, bebeu daí, mas com uma grande confusão.
É claro
que nos séculos III ou IV o termo “geração” empregado para o Logos
divino, deixou de significar a relação da Santa Trindade com a criação e a
encarnação – onde o Deus preexistente se torna Pai, depois de haver gerado o Logos
preexistente que se torna o Filho, de forma a poder ser visto e entendido pelos
profetas antes de se tornar homem –; e a “geração” passou a significar o modo
de existência do Logos a partir do Pai. Ora, a questão do modo de
existência e do atributo hipostático do Espírito Santo apareceu como
consequência dessa mudança de formulação.
Com
exceção de Antioquia, a tradição dominante – e talvez a única tradição – era
que o Pai não havia saído de nenhuma outra pessoa, que o Logos saíra do
Pai por geração e que o Espírito Santo saíra do Pai, mas não por geração. São
Gregório de Nissa parece ter exposto primeiro que o Espírito Santo difere do
Filho na medida em que o Filho recebe sua existência do Pai, enquanto o
Espírito Santo receberia a sua do Pai por intermédio do Filho; o Pai é seu
único princípio e a causa de sua existência, porque tudo o que é comum pertence
às três Pessoas. A expressão habitual de São Gregório é “não por geração”. A
essa fórmula, Antioquia acrescentou: “por processão”. Essa expressão foi
considerada muito conveniente para ser incluída no Credo por ocasião do Segundo
Concílio ecumênico. Mas o termo “processão” não acrescenta nem retira nada do
ensinamento patrístico sobre a Santa Trindade, porque os Padres sempre
insistiram sobre o fato de que não sabemos o que significam a geração e a
processão. Segundo as evidências, os Padres aceitaram o termo de processão no
Credo porque ele era preferível a uma fórmula tão negativa e pesada como: “do
Pai não por geração”. Combinando a expressão de São Gregório de Nissa “pelo
Filho” com a fórmula definitiva, obtemos a de Máximo o Confessor e João
Damasceno: “o Espírito Santo que procede do Pai pelo Filho”.
Os Padres
helenófonos, antes de todos esses desenvolvimentos, utilizavam o termo de
“processão” como o fazia a Bíblia e falavam do Espírito Santo como procedente
do Pai – mas jamais do Pai e do Filho. Entretanto, parece que a tradição dos
Padres latinófonos utilizava procedere para traduzir ekporeúomai[4],
às vezes para exerchomai[5]
e mesmo para pémpsis[6].
De qualquer modo, quando Ambrósio emprega procedere, ele não está
designando o modo de existência e o atributo hipostático. Com efeito, ele
insiste sobre o fato de que tudo o que o Pai e o Filho têm em comum, também o
Espírito Santo o possui. Quando o Pai e o Filho enviam o Espírito, o Espírito
Santo envia a si próprio. O que é individual pertence apenas a uma Pessoa. O
que é comum pertence às três Pessoas.
Pelo fato
de que Agostinho transformou a doutrina da Santa Trindade num exercício
especulativo e filosófico, a doutrina simples, clara e perfeitamente bíblica da
Santa Trindade dentro da tradição romana foi obscurecida e perdeu-se de vista
para todos os que pertencem à tradição escolástica.
Assim, a
história da doutrina da Trindade se viu reduzida a uma pesquisa conceitual e
terminológica: três pessoas ou hipóstases, uma essência, homoousios,
propriedades pessoais ou hipostáticas, divindade una, etc.
Ao
contrário, para os Padres, assim como para os arianos e eunômios, a doutrina da
Trindade era idêntica a todas as aparições do Logos em Sua glória aos
profetas, apóstolos e santos. O Logos era sempre identificado com o Anjo
de Deus, o Senhor da Glória, o Anjo do Grande Conselho, o Senhor Sabaoth e a
Sabedoria de Deus, que apareceu aos profetas do Antigo Testamento e se tornou o
Cristo por seu nascimento como homem do seio da Virgem e Mãe de Deus. Jamais
alguém duvidou da identificação do Logos com essa pessoa totalmente
concreta, que revelou em Si o Deus invisível do Antigo Testamento aos profetas;
com a singular exceção de Agostinho que, desse ponto de vista, seguiu a
tradição gnóstica e maniqueísta.
A questão
sobre a qual acontecia a controvérsia entre os ortodoxos e os arianos não
consistia em saber quem era o Logos no Antigo e no Novo Testamento, mas
o que era o Logos e qual era sua relação com o Pai. Os ortodoxos diziam
que o Logos é incriado e imutável, tendo sempre existido a partir do
Pai, o qual, por natureza, gerou o Logos antes de todos os tempos. Os arianos
sustentavam que esse mesmo Logos é uma criatura que muda, que tirou sua
existência do não-ser, antes dos tempos, pela vontade do Pai.
A questão
fundamental era a seguinte: na glória incriada de Deus, os profetas viram um Logos
criado ou um Logos incriado? Um Logos que é Deus por natureza e que,
por conseguinte, possui por natureza todas as energias e os poderes de Deus, ou
um Deus pela graça, que possui algumas das energias do Pai, embora não todas, e
isso pela graça, não pela natureza?
Ortodoxos
e arianos reconheciam, como um princípio, que, se o Logos possui, por
natureza, todos os poderes e as energias do Pai, Ele é incriado. Caso
contrário, ele é uma criatura.
A própria
Bíblia testemunha que Aquele que os profetas viram – e daquilo que eles viram –
na glória do Pai, revela que o Logos possui todas as energias e os poderes do
Pai por natureza. Assim podemos saber se os profetas e os apóstolos viram um
Logos criado ou incriado homoousios consubstancial ao Pai.
Vemos que,
para os Padres, a consubstancialidade do Logos com o Pai não constitui
apenas a experiência dos apóstolos e dos santos, mas também dos profetas.
É notável,
para a história dos dogmas, que os ortodoxos e os arianos se servem do Novo e
do Velho Testamentos em uma argumentação muito simples: eles começam por listar
os poderes e as energias do Pai; depois fazem o mesmo do Filho; enfim, comparam
as duas listas para ver se elas são idênticas ou não. O ponto importante é que
elas não devem ser similares, mas idênticas.
Ademais,
os arianos e os ortodoxos sustentavam, contra os sabelianos e os samosatianos,
que o Pai e o Filho possuem atributos hipostáticos que não são comuns – mas
eles não estavam de acordo sobre o que seriam esses atributos hipostáticos.
Quando a
controvérsia se estendeu à questão do Espírito Santo, o mesmo método teológico
foi aplicado. Todos os poderes, todas as energias comuns ao Pai e ao Filho
deveriam pertencer também ao Espírito Santo, tanto em comum com eles como por
natureza, se quiséssemos afirmar que ele era Deus por natureza.
Na
realidade, paralelamente a esses princípios de argumentação, havia também a
experiência pessoal desses mestres espirituais vivos que haviam atingido a theoria
ou contemplação, como expôs São Gregório o Teólogo. Sua experiência verificava
e garantia a interpretação patrística da Bíblia, que testemunha o caráter
incriado do Logos e do Espírito Santo, sua unicidade de natureza com o
Pai e a identidade de sua glória incriada, de seu reino, de sua graça e de sua
vontade.
A
experiência pessoal da glória de Deus confirma outro ensinamento bíblico: não
há similitude alguma entre o criado e o incriado. Isso significa também que não
podem existir universos incriados dos quais as criaturas seriam cópias. Cada
criatura individual depende da glória incriada de Deus que, sendo absolutamente
simples, se divide indivisivelmente em todas as criaturas. Deus está
inteiramente presente em cada energia separadamente e em todas simultaneamente.
Isso os Padres conheciam por experiência, não por especulação.
Esse
resumo do método teológico patrístico deveria bastar apara fazer compreender
que a teologia e a hermenêutica que os Padres aplicam à Bíblia não são de modo
algum especulativas. O método é simples e seu resultado é claro. Estabelecida
com todo rigor, a doutrina sobre a Santa Trindade pode se resumir – ao menos no
que tange ao filioque – em dois enunciados fundamentais:
a.
O que é comum na Santa Trindade é comum às
três Pessoas ou hipóstases, e idêntico nelas;
b.
O que é hipostático, ou o atributo hipostático,
ou o modo de existência, é individual e pertence apenas a uma Pessoa ou
hipóstase da Santa Trindade; assim, temos os koinà e os akoinonéta,
vale dizer, o que é comum e o que é individual e incomunicável.
Se guardarmos
no espírito esses pontos, compreenderemos por que os Romanos não levaram a
sério o filioque dos Francos como tese teológica – e menos ainda como uma tese
capaz de melhorar o Credo definido no Segundo Concílio ecumênico. Ao contrário,
os Romanos deveriam levar os Francos muito a sério, porque eles apoiavam sua
teologia pretensiosa e imaginária tanto sobre um orgulho inimaginável, como
sobre espadas muito bem afiadas. Sua falta de perspicácia histórica era
substituída pela “nobreza” de sua ascendência e pela firme vontade de defender seus
argumentos pela força da espada.
Para
encerrarmos esse capítulo, é útil insistir ainda sobre a simplicidade da tese
romana e o humor com o qual o filioque foi recebido – podemos fazer uma
ideia desse humor romano, face ao filioque, por esses dois jogos de
palavras silogísticas do grande São Photios, que podem explicar todo o furor da
reação franca contra ele:
“Tudo o
que podemos considerar ou enunciar a propósito da Santíssima, conatural e supra
essencial Trindade, pertence, sem exceção alguma, ou bem em comum a Todos, ou
bem a um só dos Três; ora, a Projeção (probolé) do Espírito não é nem
algo comum, nem tampouco, segundo eles, de um e de um só; sendo assim, na
Trindade Perfeitíssima, na Trindade princípio da vida – que nos seja ela
propícia e que essa blasfêmia recaia sobre sua cabeça – a Projeção do Espírito
Santo não tem lugar”.
Em outros
termos, o Espírito Santo deveria forçosamente extrair sua existência de fora da
Santa Trindade, porque tudo na Trindade é, ou comum a todos, ou pertence a um
só.
“Se tudo o
que pertence em comum ao Pai e ao Filho é também o bem indiviso do Espírito, e
se a proveniência do Espírito fora do Pai e do Filho pertence em comum ao Pai e
ao Filho, então o Espírito Santo procederá ele próprio de si mesmo. Ele será
princípio (arché) de si mesmo e, ao mesmo tempo, causa e causado. Essa é
uma quimera da qual nem os mitos pagãos oferecem exemplos”.
Se não
tivermos em mente que o Padres começam sempre a falar da Santa Trindade
fundamentados em sua própria experiência do Anjo do Senhor, ou do Grande
Conselho, que se tornou homem em Cristo, não seremos capazes de compreender a
problemática subjacente às crises ariana e eunômia. Essa problemática é a
seguinte: a pessoa concreta do Filho extrai sua existência da essência ou da
hipóstase do Pai, ou a extrai da vontade do Pai que o criou do não-ser? Se a
tradição houvesse seguido o método teológico semelhante ao de Agostinho, se ela
tivesse entendido a teologia no mesmo sentido que ele, jamais teriam existido
as heresias ariana e eunômia. Aqueles que atingiram a deificação (theosis)
sabem por experiência que tudo o que foi feito a partir do não-ser pela vontade
de Deus é criatura; e que tudo aquilo cuja existência não provém do não-ser,
mas do Pai, é incriado. Entre o criado e o incriado não há semelhança.
Antes que
os Capadócios tivessem pendido em favor da distinção entre as três hipóstases
divinas e uma essência divina, muitos dos Padres da Igreja ortodoxa evitavam
falar de uma essência ou uma hipóstase, porque essa fórmula cheirava a
monaquismo sabeliano e samosatiano. A maior parte dos Padres preferiam falar do
Filho como extraindo sua existência da essência do Pai, e sendo semelhante ao
Pai por natureza (homoiousios). Santo Atanásio explicou que é exatamente
esse os significado de homoousios – consubstancial. Os ortodoxos não
buscavam uma fé comum, mas antes uma terminologia e noções comuns para exprimir
sua experiência comum do Corpo de Cristo.
Também é
notável o fato de que os Capadócios tenham pendido em favor da distinção do Pai
como causa (aítios) e o Filho e o Espírito como efeito (aitiata)
completada pelos modos de existência (tropoi hupárxeos), essa
terminologia se tornou: o Pai causa a existência do Filho por geração e do
Espírito Santo por processão, ou “não por geração”. É claro que o Pai não saiu
de ninguém (ex oudenós), nem extrai sua existência de Si mesmo, nem de
outro. E São Basílio ri de Eunômio por ter isso esse o primeiro a afirmar tal
evidência, mostrando assim seu amor pela verborragia e sua ausência de
seriedade. Nem a essência, nem a energia da natureza do Pai têm causa ou modo
de existência. O Pai as possui em Sua própria natureza e as comunica ao Filho e
ao Espírito, de tal forma que eles as possuem também por natureza. Não se deve
confundir o modo de existência do Pai não-causado, pelo qual o Pai existe e
pelo qual o Filho e o Espírito Santo recebem sua existência, com o modo de
comunicação pelo Pai de Sua essência e energia ao Filho e ao Espírito Santo.
Seria estranho falar do Pai causando a existência de Sua própria essência e de
Sua energia, ao mesmo tempo que as hipóstases do Filho e do Espírito Santo.
Devemos
sublinhar que, para os Padres que compuseram o Credo Niceno-Constantinopolitano,
nem geração nem processão significam uma energia ou uma ação. Ao contrário,
essa era a posição dos heréticos que foram condenados. Os ari8anos afirmavam
que o Filho era produto da vontade de Deus. Os eunômios tinham uma opinião mais
original e mais bizarra. Segundo eles, a energia incriada do Pai era idêntica à
sua essência; o Filho seria o produto de uma simples energia criada de Deus; e
o Espírito Santo seria produto de uma simples energia do Filho; e cada espécie
criada, produto de uma energia específica do Espírito Santo – haveria tantas
energias criadas quantas espécies criadas. Se o Espírito Santo não tivesse mais
do que uma energia criada, não haveria mais do que uma única espécie de coisas
na criação. É também à luz dessas heresias que devemos apreciar o fato de que a
geração e a processão no Credo não significam, de modo algum, energia ou ação.
Agostinho
não entendeu a geração e a processão como os Padres, porque ele as identifica
com as energias. Isso lhe permitiu especulações “psicológicas” a respeito da
Santa Trindade – luxo que o método interditava aos Padres. Ademais, Agostinho
jamais se serviu da compreensão conciliar, própria aos Romanos do Oriente,
sobre a geração e a processão. Ele identifica esses termos com a comunicação,
perlo Pai, do ser, ou seja, simultaneamente da essência e da ação ou energia,
ao Filho e ao Espírito Santo, ideia que existe em todos os Padres, mas que eles
jamais identificaram com a geração e a processão, ao menos dos dois primeiros
Concílios ecumênicos.
É nesse
contexto que devemos entender Agostinho quando esse fala do Espírito Santo recebendo
seu ser (essência) procedente principalmente do Pai, mas também do Filho. É
exatamente o que os Padres romanos querem dizer quando falam do Espírito Santo
recebendo sua essência e sua energia do Pai “pelo” ou até “e do” Filho – esse
“e” se encontra em São Gregório Palamas – simultaneamente com Sua processão, ou
recepção de Sua existência própria (individual), ou de Sua hipóstase própria,
do Pai. Nem a essência, nem a energia naturais do Pai são causadas, nem mesmo
são elas causa da existência do Filho e do Espírito Santo. A essência do Pai e
a energia são comunicadas e comuns à Santa Trindade (koina), que é,
assim, a causa única da criação. Mas nem a hipóstase do Pai, nem a do Filho,
nem a do Espírito Santo são comunicadas. As hipóstases são absolutamente
incomunicáveis (akoinoneta). As Pessoas da Santa trindade são uma, não
pela união ou a identidade de pessoas, mas pela unidade e identidade de
essência, e porque o Pai é a causa única da existência do Filho e do Espírito
Santo.
Na
experiência de iluminação e da deificação em Cristo, tomamos consciência de que
Deus é três realidades absolutamente idênticas – duas derivando de uma, e
contendo-se mutuamente – e, ao mesmo tempo, uma só e mesma realidade da glória
incriada comunicada, que é ao mesmo tempo reino (Basileia) e graça, na
qual Deus se divide indivisivelmente nos seres divididos, de modo que sua
morada (Moné) se torna múltipla ao mesmo tempo em que permanece uma.
Entretanto, a essência divina não é comunicada às criaturas e assim não pode
ser conhecida.
Enquanto todos os demais Padres
romanos do Ocidente puderam encontrar seus correspondentes na tradição viva da
Romanidade oriental, a perspectiva agostiniana da doutrina trinitária é
diferente da dos Padres. Como Agostinho aceitou as decisões do Segundo Concílio
ecumênico e os Padres que as estabeleceram, os Padres do Oriente foram também
recebidos no Ocidente como Padres da Igreja. Sendo assim, falar de uma doutrina
trinitária ocidental equivale a falsificar a própria interpretação dos Romanos
ocidentais. No Ocidente, a processão acabou por receber dois significados
diferentes, coo explicaram Máximo e Anastácio.
Quando os Francos, na busca de
argumentos em defesa de sua adição ao Credo, começaram sua pilhagem dos Padres,
eles tomaram primeiramente as categorias de modo de existência, as expressões
de “causa” e “efeito”, identificando-as com a geração e a processão segundo
Agostinho, e, ao fazer isso, transformaram numa doutrina herética o antigo filioque
ortodoxo dos Romanos do Ocidente.. esse erro nunca foi tão patente quanto
durante as discussões do Concílio de Florença, no qual os Francos empregaram os
termos de “causa” e “efeito” como sendo idênticos à geração e à processão, e
afirmaram que o Pai e o Filho eram ambos uma mesma causa da processão do
Espírito Santo. Mas eles foram confundidos por Máximo o Confessor, que explicou
que para o Ocidente de seu tempo o Filho não era a causa da existência do
Espírito Santo, e que, nesse sentido, o Espírito Santo não poderia proceder do
Pai! Que Anastácio o Bibliotecário não deixa deixado de repetir isso, é uma
prova da confusão cometida pelos Francos e por seus descendentes espirituais e
teológicos.
Concluamos lembrando que, para os
Padres, nenhuma palavra, nenhum conceito poderia dar a menor ideia do mistério
da Santa Trindade. São Gregório o Teólogo foi claro sobre esse ponto. Com seu
tom inimitável, ele ridicularizou seus adversários: “Se vocês me disserem no
que consiste a não-nascença do Pai, eu lhes explicarei a fisiologia da geração
do Filho e da processão do Espírito Santo, e seremos os dois tomados pela mesma
loucura, por causa da nossa curiosidade indiscreta em relação aos mistérios de
Deus”.
Os termos e conceitos relativos a Deus
conferem aos que alcançam a theoria ou contemplação, não o conhecimento
do Mistério da Santa Trindade, mas o de sua expressão dogmática e de seu papel
na salvação. Na experiência da deificação, o conhecimento de Deus, assim como a
oração, tanto a profecia como a fé são abolidas. Só o amor permanece[7]. O
mistério subsiste e subsistirá para sempre, mesmo que vejamos a Deus em Cristo,
face a face, e que sejamos conhecidos por Deus como o foi Paulo[8].
***
3.
O SIGNIFICADO DA QUESTÃO DO FILIOQUE
Segundo Smaragde, os emissários de
Caros Magno ficaram consternados com o fato de que o papa Leão III pudesse ir
às minúcias por causa de quatro pequenas sílabas. Claro, quatro sílabas não são
grande coisa. E, no entanto, as consequências dessas quatro sílabas foram tão
grandes que os Francos se lançaram numa história da teologia e numa prática
eclesiástica que teriam sido bem diferentes, caso eles houvessem prestado um
pouco de atenção aos “Gregos”.
Ponhamos em destaque algumas
consequências dos pressupostos da questão do filioque e dos problemas
que ela realmente coloca.
a.
Um estudo, ainda que rápido, das histórias
contemporâneas dos dogmas e da erudição bíblica de nossos dias, bastaria ´para
provar que os teólogos protestantes, anglicanos, papistas, e mesmo alguns
teólogos ortodoxos, não aceitam senão de modo puramente formal o Primeiro e o
Segundo Concílios ecumênicos. Se existia uma identidade mínima de doutrina
entre os Padres e os arianos sobre a questão das aparições reais do Logos
aos profetas do Antigo Testamento, e que esse mesmo Logos tenha se
revestido de carne no Novo Testamento, já não mais existe hoje, a esse
respeito, nenhuma identidade de visão entre ortodoxos e latinos. Ora, era um
princípio comum ao debate referente ao Logos visto pelos profetas: era
Ele criado ou incriado? O reconhecimento do papel do Logos no Antigo
Testamento é a base do ensinamento de todos os Concílios ecumênicos da
Romanidade.
É notável
que os Padres romanos do Oriente jamais renunciaram a essa leitura das
teofanias do Antigo Testamento. Esse é também o caso de todos os Padres romanos
do Ocidente, com a única exceção de Agostinho – que, com sua incapacidade de
compreender o ensinamento dos Padres, rejeitou como blasfemo que os profetas
tenham podido ver o Logos com os olhos do corpo, realmente, no fogo, na
treva, na nuvem...
Como os
gnósticos, os arianos e eunômios utilizaram a aparição visível do Logos aos
olhos dos profetas com o objetivo de provar que ele seria um ser inferior a
Deus, e uma criatura. Agostinho concorda com eles sobre a ideia de que os
profetas viram uma criatura angélica, uma chama, uma nuvem, uma luz, uma treva,
todas criadas. Entretanto ele afirma contra eles que nada disso seria o Logos
em si, mas apenas símbolos por meio dos quais Deus ou a Trindade por inteiro
podem ser vistos e entendidos.
Agostinho
era hostil ao ensinamento patrístico segundo o qual o Anjo do Senhor, o fogo, a
glória, a nuvem e as línguas de fogo do Pentecostes constituem símbolos
linguísticos de realidades incriadas que foram diretamente comunicados aos
profetas e aos apóstolos. De acordo com ele, isso implicaria uma visão da
essência divina. Segundo o bispo de Hipona, a visão de Deus é a da totalidade
de tudo o que foi criado. Ela não pode ser percebida senão por um êxtase da
alma, de tipo platônico, fora do corpo, e na esfera de uma eternidade
intemporal e imóvel que transcende todo raciocínio discursivo. Não tendo
encontrado na Bíblia esse tipo de visão, Agostinho decidiu que as visões
reportadas pelas Escrituras não eram símbolos linguísticos de verdadeiras
visões de Deus, mas criaturas que simbolizavam as realidades eternas. Todos os
símbolos linguísticos empregados pela Bíblia se tornariam assim símbolos reais
e criados. As palavras que simbolizam as energias incriadas, como fogo, nuvem,
etc., se tornavam, na realidade objetiva, verdadeiro fogo, verdadeira nuvem,
verdadeiras línguas, todos criados.
b.
Essa incapacidade, esse fracasso de Agostinho
em distinguir entre a essência divina e as energias de sua natureza – das
quais, algumas podem ser comunicadas aos amigos de Deus – conduziu a uma
leitura singular da Bíblia segundo a qual criaturas ou símbolos ganhavam vida
para transmitir uma mensagem divina, deixando de existir em seguida. Dessa
forma a Bíblia se torna um texto ditado por Deus, cheio de milagres
inacreditáveis.
c.
Por outro lado, as noções bíblicas do paraíso
e do inferno são completamente distorcidas. O fogo eterno do inferno e as
trevas exteriores se tornam também criaturas de Deus, quando na realidade eles
são a glória incriada de Deus, tal como percebida por aqueles que se recusam a
amá-lo. E isso conduz a um universo em três estágios, no qual Deus está
localizado. Concepções como essas implicam ao final uma desmitificação da
Bíblia, se quisermos salvar o que for possível de uma tradição cristã que se
tornou estranha ao homem moderno. Mas não é a Bíblia que precisa ser
desmitificada, mas sim a tradição franco-latina agostiniana e a caricatura como
é tomada, no Ocidente, a teologia patrística “grega”.
d.
Por se recusarem a acatar os pressupostos da
teologia patrística romana e dos Concílios ecumênicos como sendo
verdadeiramente a chave para a compreensão da Bíblia, os exegetas modernos
aplicaram os pressupostos de Agostinho com uma coerência tão metódica, que
destruíram toda verdadeira unidade e identidade entre o Novo e o Antigo
testamento, permitindo-se aceitar eles próprios a interpretação judaica da
Bíblia que Cristo rejeitava explicitamente.
Da mesma
forma, em lugar de tratar da pessoa concreta do Anjo de Deus, do Senhor da
Glória, do Anjo do Grande Conselho e da Sabedoria de Deus, identificando-os com
o Logos feito carne em Cristo, aceitando essa doutrina como sendo a da
Trindade, a maior parte dos intérpretes ocidentais acabaram por identificar
Cristo com o Messas do Antigo Testamento, e confundir a doutrina da Trindade
com o desenvolvimento de uma terminologia trinitária extrabíblica, dentro de um
contexto que, de fato, já não é patrístico, mas agostiniano. Assim, os chamados
Padres “gregos” são lidos no Ocidente à luz de Agostinho – e na Rússia, desde
Pierre Moghila.
e.
Outra consequência dramática desses
pressupostos agostinianos sobre o filioque foi que eles destruíram a doutrina
dos profetas e dos apóstolos sobre a graça, para substituí-la por todo um
sistema de graças criadas, distribuídas aos cuidados de um clero mistificador no
seio da cristandade latina.
Para a
Bíblia, assim como para os Padres, a graça é a glória incriada e o reino
incriado de Deus, que os profetas e os santos viram e dos quais participam
também aqueles que, pela fé, seguem os profetas e os apóstolos. A fonte dessa
glória e desse reino é o Pai que, gerando o logos e projetando o Espírito,
comunica Sua glória e Seu reino de tal modo que o Filho e o Espírito constituem
igualmente, por natureza e junto com o Pai, uma única fonte de graça. Os fieis participam
dessa graça incriada e desse reino na medida de seu grau de preparação, e os
amigos de Deus, que se tornaram Deus pela graça, os veem plenamente.
Como o filioque
dos Francos pressupunha a identidade da essência e da energia divina incriadas,
e sendo impossível toda e qualquer participação na essência divina, a tradição
latina foi levada a aceitar a ideia de que a graça comunicada é criada, o que
implicou transformá-la em coisa e fazer dela objeto de manipulações da parte do
clero ocidental.
Por outro
lado, a redução agostiniana dessa glória e dessa glória reveladas ao status de
criatura fizeram com que os biblistas modernos se perdessem, e fossem levados a
discussões sem fim sobre a vinda do “reino”, sem compreender que esse reino é
de fato idêntico à glória e a graça incriadas de Deus.
f.
Analisemos, por fim, os pressupostos do filioque
sobre a questão da autoridade, no que concerne à interpretação do dogma e da
Bíblia.
Na tradição
patrística, todo dogma – toda verdade – é experimentado na deificação. A
deificação suprema é a do Pentecostes, para a qual o Espírito Santo, na
plenitude da verdade, conduziu os apóstolos, conforme Cristo lhes havia
prometido durante a Ceia. Desde o Pentecostes, qualquer aspecto da deificação
de um santo – em outros termos, de um santo que tenha tido a visão da glória
incriada de Deus em Cristo, como sua fonte – é uma continuação do Pentecostes,
em diferentes níveis de intensidade.
Essa
experiência inclui todo o homem e, ao mesmo tempo, o transcende inteiramente,
incluindo o intelecto. Ela permanece sendo um mistério para a inteligência
humana e não pode ser transmitida intelectualmente a outra pessoa. A linguagem
pode designar tal experiência, mas não pode transmiti-la. Da mesma forma, o pai
espiritual pode conduzir a essa experiência aquele a quem guia, mas não pode
provocá-la nele, porque se trata de um dom do Espírito.
Quando os
Padres acrescentam à linguagem bíblica, sobre Deus e Sua relação com o mundo,
termos como hipóstase, ousia, physis, homoousios, eles não
visam uma compreensão melhor daquilo
que, até então, fôra apenas percebido. O Pentecostes não pode ser melhorado.
Tudo o que os Padres podem fazer é defender essa experiência pentecostal que
transcende todo símbolo, na linguagem de sua época, porque essa ou aquela
heresia afasta dessa experiência e conduz à morte espiritual aqueles que se
perdem assim.
Para os
Padres, a autoridade não está apenas na Bíblia, mas também naqueles que foram
glorificados e deificados como os profetas e os apóstolos; a Bíblia não é
inspirada e infalível na sua letra, ela se torna assim na assembleia dos santos
para aqueles que possuem a experiência da glória divina descrita na Bíblia.
Os
pressupostos do filioque dos Francos não estão fundamentados sobre essa
experiência da glória. Não importa quem possa afirmar ser autoridade e
compreendê-lo. Quanto a nós, sigamos os Padres e aceitemos unicamente como mestres
e autoridades aqueles que, como os apóstolos, alcançaram o grau da deificação
pentecostal.
A partir
desse quadro de referência, já não pode haver infalibilidade institucional ou
oficial, nem coisa alguma que não seja a tradição espiritual que conduz à
contemplação, e que é mencionada por são Gregório o Teólogo.
O filioque é uma doutrina tão
maléfica quanto o arianismo, e a prova disso é que os defensores dessa heresia
reduzem as línguas de fogo do Pentecostes ao status de criaturas, assim como
Arius fez com o Anjo da Glória.
Se, por hipótese, Arius e os
escolásticos tivessem recebido a glorificação pentecostal dos Padres, eles
teriam experimentado que o Logos, que apareceu aos profetas e aos
apóstolos em glória, bem como as línguas de fogo, são incriados: o Logos
como hipóstase incriada e as línguas como energias comuns e únicas da Santa
Trindade jorrando, pelo Espírito Santo, da presença da humanidade de Cristo que
apareceu nos últimos tempos.
O que é verdade para a Bíblia, é
verdade para os Concílios ecumênicos – que exprimem, como a Bíblia, por meio de
símbolos, aquilo que ultrapassa todo símbolo e que se torna conhecido por
intermédio daqueles que alcançaram a theoria ou contemplação.
Os Concílios ecumênicos se referem não
apenas à autoridade dos Pais e dos Patriarcas da Bíblia, como também dos Padres
de todas as épocas, porque todos os santos, em qualquer tempo, participam da
mesma verdade que é a glória de Deus em Cristo.
O para Leão III disse claramente aos
Francos que os Padres não introduziram o filioque no Credo, não por
ignorância ou por omissão, mas em virtude de uma inspiração divina. E também as
implicações do filioque dos Francos não foram aceitas por todos os cristãos
romanos das províncias romanas do Ocidente conquistado e dominado pela
cristandade franco-latina e sua teologia escolástica.
Restos da ortodoxia romana bíblica e
de sua piedade conseguiram sobreviver no Ocidente e poderiam um dia ser
reunidas, se as implicações da tradição patrística aí se fizessem conhecer, e
se a espiritualidade – compreendida como o próprio fundamento do dogma – se
tornasse o ponto essencial dos estudos.
[1] Durant
les années 727-787, au moment où l’Orient, c’està-dire la Partie orientale de
l’Empire romain, sous la férule d’une série d’empereurs hérétiques, bascula
dans l’hérésie de l’iconoclasme, l’Occident, et Rome en premier lieu, resta
fidèle aux icônes.
[2] De
Fide et Symbolo, 19.
[3] De
Trinitate, 2.
[4]
Proceder, sair de.
[5] Extrair.
[6] Enviar.
[7] I
Coríntios 13: 8-13, 14:1.
[8] I
Coríntios 13: 12.
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