segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Leonid Ouspensky & Vladimir Lossky: O Sentido e o Significado dos Ícones - Parte 2 - Leonid Ouspensky: O Significado e a linguagem dos Ícones




Os ícones utilizados para oração (eikwn, imagem, retrato) que datam dos primeiros séculos do Cristianismo não chegaram até nós, mas temos notícias deles tanto pela Tradição da Igreja quanto pelas evidências históricas. Como poderemos ver ao estudarmos individualmente as imagens, a Tradição da Igreja recua os primeiros ícones até o tempo do próprio Salvador e ao período imediatamente posterior a Ele. Como se sabe, a arte do retrato estava em florescimento no Império Romano. Eram feitos retratos dos antepassados e de pessoas distintas da sociedade. Assim sendo, não existe base para supor que Cristãos, em especial aqueles de origem pagã, fossem uma exceção à regra geral, ainda mais considerando-se que mesmo no Judaísmo, que aderia à proibição de imagens do Velho Testamento, existiam à época correntes de opinião que aceitavam as imagens humanas. Na História da Igreja de Eusébio encontramos, por exemplo, a seguinte frase: “Eu vi um grande número de retratos do Salvador, de Pedro e de Paulo, que foram preservados até os nossos dias[1]”.  Antes dessa passagem Eusébio descreve em detalhes a estátua do Salvador que ele viu na cidade de Paneas (Caesarea Philipi) na Palestina, que teria sido erguida pela mulher que sofria de fluxos sanguíneos e que foi curada pelo Salvador[2]. O testemunho de Eusébio é tanto mais valioso na medida em que ele próprio era contrário aos ícones. Consequentemente, sua referência aos retratos que ele viu vem acompanhada de um comentário desapontado de que se tratava de um costume pagão[3].

A existência de correntes iconoclastas nos primeiros séculos do Cristianismo é bastante conhecida em perfeitamente Inteligível. As comunidades Cristãs estavam cercadas de todos os lados por paganismo e idolatria, era assim natural que muitos Cristãos, tanto de origem Judaica como pagã, conscientes da experiência negativa do paganismo, se esforçassem para proteger o Cristianismo da infecção da idolatria, que poderia se insinuar através da criação artística; baseando-se no Antigo Testamento, que proibia as imagens, eles negavam da mesma maneira a possibilidade de sua existência no Cristianismo.

Entretanto, apesar da ocorrência dessas tendências iconoclastas, existia a linha fundamental que viria a ser gradual e consecutivamente desenvolvida pela Igreja, embora ainda sem uma formulação exterior. Uma expressão dessa linha fundamental nos é dada pela Tradição da Igreja que nos fala da existência de um ícone do Senhor durante sua vida terrena e de ícones da Santa Virgem imediatamente após Sua vida. Essa tradição testifica que desde o início havia um claro entendimento do significado e das possibilidades da imagem, e que a atitude da Igreja perante elas nunca mudou, dado que ela deriva do ensinamento atualizado da Divina Encarnação. Esse ensinamento nos mostra que a imagem é necessariamente inerente à própria essência do Cristianismo, desde seus começos, uma vez que o Cristianismo é a revelação, pelo Deus Homem, não apenas do Verbo de Deus, como também da Imagem de Deus.

“Nenhum homem jamais viu a Deus; somente o Filho único, que está no seio do Pai, no-lo revelou[4]” – revelou Sua imagem – o ícone de Deus. Por meio de Sua Encarnação, Deus o Verbo “sendo a irradiação de Sua glória, e a imagem expressa de Sua Pessoa [do Pai][5]”, revelou ao mundo, em Sua Divindade, a imagem do Pai. Quando Filipe diz: “Senhor, mostra-nos o Pai”, o Senhor responde: “Eu estou há tanto tempo convosco, e tu ainda não me conheces, Felipe? Pois quem viu a mim, viu ao Pai[6]”. Se “no seio do Pai”, ou seja, depois da Encarnação, o Filho é consubstancial ao Pai, ele é, segundo Sua Divindade, Sua imagem, e igual em honra. Essa verdade revelada pelo Cristianismo está na base de sua arte pictórica. Assim sendo, não apenas a imagem não contradiz a essência do Cristianismo, como, por constituir sua verdade básica, está inalienavelmente conectada a ele. Esse é o fundamento da tradição que mostra que a pregação do Cristianismo foi, nos seus começos, feita por meio de palavras e de imagens. Precisamente baseados nisso os Padres do VII Concílio Ecumênico puderam dizer: “A tradição de fazer imagens [...] existiu desde os tempos da pregação do Cristianismo pelos Apóstolos [...] A iconografia não é, de modo algum, uma invenção de pintores, mas, ao contrário, uma regra estabelecida e uma tradição da Igreja Católica[7]”. O fato de que as imagem foram, desde o início, inerentes ao Cristianismo, explica sua aparição na Igreja e o modo como ela, silenciosa e imperceptivelmente, ocupou seu lugar natural nas práticas da Igreja como algo auto-evidente, apesar da proibição do Velho Testamento e da subsequente oposição. Já no século IV uma série inteira de Padres, tais como Basílio o Grande, Gregório o Teólogo, Gregório de Nissa, João Crisóstomo e outros, referem-se em suas obras a imagens como sendo algo normal e como uma instituição geralmente aceita pela Igreja[8].

Quanto à aparência dos ícones dos primeiros séculos do Cristianismo nada sabemos, e nos faltam dados para julgá-los. Entretanto, com base em investigações recentes, é possível formar uma ideia clara da tendência da arte desse período. Em seu trabalho fundamental sobre a história da arte Bizantina, V. N. Lazarev, examinando as complexas circunstâncias dentre as quais se originou a arte Cristã primitiva, e baseando-se numa série de investigações prévias, chegou à seguinte conclusão: “Ao associar-se em muitas coisas com a antiguidade clássica, especialmente com suas últimas e mais espiritualizadas formas, ela não obstante desenvolveu para si uma série de trabalhos individuais desde o começo de sua existência. Não se trata absolutamente de uma antiguidade Cristianizada, como pretendeu Sibel provar. O novo conteúdo temático da arte Cristã primitiva não constituiu uma fato puramente exterior. Ele refletiu uma nova visão, uma nova religião, um entendimento da realidade que era novo desde a sua origem. Por conseguinte o novo conteúdo não poderia revestir-se das velhas formas da antiguidade. Ele precisava de um estilo que pudesse expressar da melhor maneira possível os ideais espirituais do Cristianismo. Assim, todos os esforços criativos dos artistas Cristãos foram no sentido da elaboração desse estilo[9]”. Mais adiante, o autor se refere ao trabalho de Dvorak[10] e fala do fato de que esse novo estilo começa a tomar forma, em suas linhas gerais, já nas pinturas das catacumbas.

Os temas das pinturas das catacumbas, começando nos séculos I e II, incluem, ao lado de representações simbólicas e alegóricas, como a âncora, o peixe, o cordeiro e outras, uma série de pinturas extraídas do Velho e do Novo Testamentos. Essas pinturas correspondem aos textos sagrados, bíblicos, litúrgicos e patrísticos. O princípio fundamental dessa arte consiste numa expressão pictórica do ensinamento da Igreja, representando os eventos concretos da História sagrada e indicando seu sentido interior[11]. Essa arte pretendia não refletir os problemas da vida, mas responder a eles, e assim, desde seus começos, foi um veículo do ensinamento dos Evangelhos. Os traços principais da arte da Igreja começaram a tomar forma aqui. O espaço tridimensional ilusório foi substituído pelo plano da realidade; a conexão entre figuras e objetos se tornou convencionalmente simbólica. A imagem foi reduzida ao mínimo de detalhes e ao máximo de expressividade. A grande maioria das figuras está representada com as faces voltadas para a congregação, pois a importância reside não apenas na ação e na interação das pessoas representadas, mas também no seu estado, que, em geral, é um estado de oração. O artista vivia e pensava em imagens e reduzia as formas até o limite da simplicidade, cujo profundo conteúdo interior só era acessível ao olhar espiritual. Ele limpava seu trabalho de tudo o que fosse pessoal e permanecia anônimo; seu principal objetivo era o de transmitir a tradição. Ele entendia, de um lado, a necessidade de cortar toda fruição sensorial, e, de outro, a necessidade de usar toda a natureza visível para expressar o mundo do espírito; pois transmitir o mundo invisível para uma visão sensorial requeria não uma obscura neblina, mas uma clareza e precisão de expressão, para expressar a apreensão do mundo celestial com a mesma formulação particularmente clara e exata como o fizeram os santos Padres.

A beleza da arte Cristã primitiva reside no fato de que ela não constituía uma revelação da plenitude contida dentro dela, mas apenas na promessa de possibilidades ilimitadas.

Que essa arte esteja conectada com os textos sagrados não significa que ela esteja divorciada da vida. Fora o fato de que ela fala na linguagem pictórica de seu tempo, sua ligação com a vida reside não na representação de um ou outro evento, de um ou outro momento psicológico da vida e da atividade humana, mas na representação dessa atividade em si, como, por exemplo, nas representações de diferentes tipos de trabalhos e profissões, como um sinal de que o trabalho consagrado a Deus é santificado. Mais do que isso, como dissemos, os próprios temas dessa arte não refletem os problemas da vida, mas respondem a eles. Nesse tempo de mártires, os sofrimentos não são mostrados, assim como eles não são descritos nos textos litúrgicos. O que é mostrado não é o sofrimento em si, mas a postura que devemos ter em relação a ele como resposta. Isso explica a popularidade generalizada nas catacumbas de temas como o de Daniel na cova dos leões, do martírio de Tecla, e assim por diante.

Desde os primeiros séculos, a arte Cristã foi profundamente simbólica e esse simbolismo não foi produto apenas desse período do Cristianismo. Ele é essencialmente inseparável da arte da Igreja, porque a realidade espiritual que ela representa não poderia ser transmitida de outra forma senão por símbolos. Já nos primeiros séculos do Cristianismo esse simbolismo era principalmente iconográfico, ou seja, conectado com um tema. Por exemplo, para indicar que uma mulher com uma criança no colo era a Mãe de Deus, ao lado dela era representado um profeta que apontava para uma estrela (Balaam)[12]. Para indicar que o Batismo significa a entrada numa nova vida, o batizando, mesmo que fosse adulto, era mostrado como um jovem ou uma criança, e assim por diante. Símbolos isolados eram utilizados não apenas a partir do Velho e do Novo Testamentos (o cordeiro, o bom pastor, o peixe...) mas também da mitologia pagã, como Cupido e Psique, Orfeu, etc. Ao utilizar esses mitos, o Cristianismo restabelecia seu significado profundo e verdadeiro, preenchendo-os com um novo conteúdo. Essa adoção pelo Cristianismo de elementos da arte pagã não está limitada apenas ao primeiro período de sua existência. Também mais tarde ela irá emprestar do mundo que a cerca tudo o que possa servir como meio e forma de expressão, da mesma forma como os Padres da Igreja utilizaram o instrumento da filosofia Grega, adaptando seu entendimento e linguagem à teologia Cristã. Por intermédio das tradições clássicas da arte Alexandrina, que preservou o Helenismo Grego nas suas formas mais puras[13], a arte Cristã se tornou herdeira das tradições da antiga arte da Grécia. Ela atraiu elementos artísticos do Egito, da Síria, da Ásia Menor, etc., introduziu na Igreja toda essa herança e utilizou suas conquistas para a plenitude e perfeição de sua linguagem pictórica, transformando todas essas coisas para corresponder às exigências da dogmática Cristã[14]. Em outras palavras a Cristandade selecionou e adotou do mundo pagão tudo o que lhe cabia, ou seja, tudo o que era “Cristão antes de Cristo” – tudo o que se encontrava espalhado como partículas isoladas e fragmentadas da verdade – e uniu tudo isso, ligando-o à plenitude da revelação. “Assim como esse pão foi espalhado pelas colinas, mas, reunido, se tornou um, que a Tua Igreja se reúna desde os confins da terra no Teu Reino”; assim é que essa ideia foi expressa na prece Eucarística dos primitivos Cristãos[15]. Esse processo de reunião não representa a influência do mundo pagão sobre o Cristianismo, mas o influxo dentro do Cristianismo daqueles elementos do mundo pagão que, por sua própria natureza, afluíram para ele; não se trata da penetração de costumes pagãos na Igreja, mas em sua “igrejificação”, não a “paganização da arte Cristã”, mas a cristianização da arte pagã.

Essa incorporação com a plenitude da revelação toca todos os lados da atividade humana. O que foi reunido na Igreja constituía tudo o que era inerente à natureza humana criada por Deus; e isso incluía a arte criativa, santificada por sua participação na construção do Reino de Deus, a missão da Igreja nesse mundo. Assim sendo, o que a Igreja aceitou do mundo foi determinado não pelas necessidades da Igreja, mas pelas do mundo, porque é nessa participação do mundo na construção do Reino de Deus (dependendo, é claro, de sua livre vontade) que reside o principal sentido de sua existência. Inversamente, o principal sentido da existência da Igreja no mundo é o trabalho de conduzir esse mundo à plenitude da revelação – sua salvação. Assim sendo, o processo de reunião, que começou nos primeiros séculos do Cristianismo, constitui o trabalho normal e incessante da Igreja no mundo. Em outras palavras, esse processo não se limita a determinados períodos de sua existência, mas constitui sua função constante. Na medida em que a Igreja prossegue com seu trabalho de construção ela absorve e continuará a absorver até o final tudo o que for genuíno e verdadeiro, ainda que escasso e incompleto, e seguirá suplementando o que falta.

Isso não é um processo de despersonalização. A Igreja não rejeita particularidades conectadas com a natureza humana, nem com tempos e lugares (por exemplo, aspectos nacionais ou pessoais, etc.), mas santifica seus conteúdos, preenchendo-os com um novo sentido. Por sua vez, essas particularidades não interferem na unidade da Igreja, mas trazem para ela novas formas de expressão peculiares a elas. Dessa maneira realiza-se a unidade na multiplicidade e a riqueza na unidade, ambas expressando em totalidade e detalhe o princípio católico da Igreja. Aplicado à linguagem da arte, isso não implica uma uniformidade ou algum modo estereotipado, mas a expressão de uma verdade única em formas variadas de arte, apropriadas a cada povo, tempo e pessoas, formas que permitem distinguir ícones de diferentes nacionalidades e épocas, apesar da similaridade de seu conteúdo.

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Como já dissemos, na consciência da Igreja a mensagem Divina está organicamente conectada com a imagem. Assim sendo, a doutrina relativa à imagem não é algo separado, não é um apêndice, mas acompanha naturalmente a doutrina da salvação, da qual é parte inalienável. Em sua plenitude, ela foi inerente à Igreja desde o começo, mas, assim como outros aspectos de seu ensinamento, ela se afirmou gradualmente, em resposta às necessidades de momento, como, por exemplo, na 82ª Regra do Concílio Quinisexto (692), ou em resposta a heresias e erros, como no período iconoclástico. O mesmo acontece aqui, como aconteceu com a verdade dogmática das duas naturezas de Cristo. Essa verdade foi professada pelos primeiros Cristãos de um modo mais prático, em suas próprias vidas, sem que tenha tido uma formulação teórica completa o suficiente; porém, mais tarde, por força da necessidade externa, devido à aparição de heresias e falsos ensinamentos, ela foi formulada com precisão. O mesmo se deu com os ícones: a base dogmática para sua existência foi estabelecida pelo Concílio Quinisexto, em conexão com uma mudança no simbolismo da arte da Igreja; no decurso de seu desenvolvimento a regra mencionada marca um estágio importante, pois aqui, pela primeira vez, foi dada uma direção em princípio. Essa 82ª Regra diz: “Alguns santos ícones trazem a imagem de um cordeiro, para o qual está apontado o dedo do Precursor. Esse cordeiro é tomado como uma imagem da graça, representando o verdadeiro Cordeiro, Cristo nosso Deus, que a lei prenunciou. Portanto, aceitando com amor as imagens antigas e as sombras[16] como prefigurações e símbolos da verdade transmitida à Igreja, preferimos a graça e a verdade, recebendo-as como a plenitude da lei. Assim, de modo a tornar clara essa plenitude a todos os olhos para que vejam, ainda que por meio de imagens, ordenamos que daqui por diante os ícones devem representar, ao invés do antigo cordeiro, a imagem humana do Cordeiro, que assumiu sobre Si os peados do mundo, Cristo nosso Deus, de modo a que, por meio disso, possamos perceber a altura do rebaixamento de Deus o Verbo, e para que sejamos levados a lembrar Sua vida na carne, Sua Paixão e morte para nossa salvação e a subsequente redenção do mundo”.

Em primeiro lugar, essa regra era uma resposta à situação que existia nesse tempo, em especial, que na prática da Igreja, ao lado das representações históricas, ainda eram utilizados símbolos para substituir a imagem humana de Deus[17]. A importância da 82ª Regra repousa, sobretudo, no fato de que ela está baseada na conexão do ícone com o dogma da verdade da Divina Encarnação, com a vida de Cristo na carne; isso constitui o começo do embasamento do ícone sobre o dogma Cristológico, que mais tarde foi amplamente usado e que, no período do iconoclasmo, seria ainda desenvolvido pelos apologistas dos ícones. Mais do que isso, o Concílio descontinuou, como pertencendo a um estágio superado, o uso de temas simbólicos no lugar da imagem humana de Cristo. É verdade que o Concílio mencionou apenas um tema simbólico – o Cordeiro. Porém, imediatamente depois ele fala em geral de “antigas imagens e sombras”, evidentemente por não considerar o cordeiro como meramente um dos símbolos, mas como o principal deles; assim sendo, ao revelar o significado desse símbolo, isso naturalmente levaria a revelar o significado de todos os demais símbolos. Isso se baseava na injunção do fato de que as prefigurações do Antigo Testamento se realizavam no Novo Testamento, e ordenava a transição dos símbolos do Velho Testamento e do Cristianismo primitivo para a representação daquilo que era simbolizado, à revelação de seu significado direto, daquilo que se manifestar ano tempo e se tornara acessível à percepção, à representação e à descrição sensoriais. A imagem, que no Antigo Testamento aparecia como símbolo, se tornara realidade através da Encarnação, a qual, por sua vez, aparecia como uma imagem da futura glória de Deus, a imagem da “altura do rebaixamento de Deus o Verbo”. O tema em si, a imagem de Jesus Cristo, é um testemunho de Seu advento e de Sua vida na carne, a kenosis da Divindade, Seu rebaixamento. E o modo como esse rebaixamento é representado, o modo como ele é transmitido numa representação visual, reflete a glória de Deus. Em outras palavras, o rebaixamento de Deus o Verbo é mostrado de tal maneira que ao vê-lo contemplamos Sua divina glória em Sua imagem humana; e assim podemos entender que Sua morte significa a Salvação e a Redenção do mundo. A última parte da 82ª Regra indica no que consiste o simbolismo do ícone. O símbolo não está na iconografia, no que está representado, mas no método de representar, no como ele é representado.  Em outras palavras, o ensinamento da Igreja é transmitido não apenas pelo tema, mas também pelo modo de expressão. Dessa maneira, a definição do Concílio Quinisexto não apenas estabelece o começo da formulação do significado dogmático do ícone, como, ao mesmo tempo, indica a possibilidade de fazer com a arte reflita, por meio de um novo simbolismo, a glória de Deus. Ela enfatiza o sentido e a importância da realidade histórica, mostrando que somente uma imagem realista é capaz de transmitir o ensinamento da Igreja, e define todo o resto (as “imagens e as sombras”) como incapaz de expressar a plenitude da graça, embora fosse digno de reverência e capaz de satisfazer as necessidades de uma dada época. Essa declaração não chega a abolir o símbolo iconográfico, mas o torna auxiliar, ou de importância secundária. Essencialmente essa regra estabelece a fundação do Cânone iconográfico, ou seja, de um determinado critério de julgamento da medida em que uma imagem é litúrgica, assim como, no domínio das palavras e da música o Cânone estabelece quando um texto ou hino é litúrgico. A definição do Concílio estabeleceu o princípio de correspondência do ícone com as Sagradas Escrituras e definiu no que consiste essa correspondência: a realidade histórica e o tipo de simbolismo que reflete verdadeiramente o advento do Reino de Deus.

Assim a Igreja criou gradualmente uma arte nova, tanto em forma como em conteúdo, que utiliza imagens e formas extraídas do mundo para transmitir a revelação do mundo Divino, tornando esse mundo acessível ao entendimento e à contemplação. Essa arte se desenvolveu lado a lado com os ofícios Divinos, e, como esses, expressa o ensinamento da Igreja em conformidade com a palavra das Escrituras. Essa conformidade entre palavra e imagem ficou em especial claramente expressa pela regulamentação do VII Concílio Ecumênico, que restabeleceu a veneração dos ícones. Através da voz dos padres desse Concílio a Igreja rejeitou o compromisso proposto de colocar a veneração dos ícones no nível dos recipientes sagrados, e ordenou que ela fosse estabelecida no mesmo nível da Cruz e dos Evangelhos: com a Cruz, como símbolos distintivos do Cristianismo, e com os Evangelhos, por representarem a completa correspondência entre a imagem verbal e a imagem visível[18]. A formulação do Santo Concílio diz: “Nós preservamos, sem inovações, todas as tradições da Igreja que foram estabelecidas para nós, escritas ou não, uma das quais é a pintura dos ícones, como correspondência ao que os Evangelhos pregam e relatam [...] Porque, se um é mostrado pelo outro, esse um é sem dúvida tornado claro pelo outro”. Essa formulação mostra que a Igreja vê no ícone não uma simples arte, servindo de ilustração às Santas Escrituras, mas como uma completa correspondência entre ambos, e assim ela atribui ao ícone a mesma importância dogmática, litúrgica e educacional que possuem as Santas Escrituras. Assim como as palavras da Santa Escritura são imagens, as imagens são também palavras. “O que a palavra transmite ao ouvido, a pintura mostra silenciosamente através da imagem”, disse Basílio o Grande[19], e “por esses dois meios, que se acompanham mutuamente [...] recebemos o conhecimento de uma só e mesma coisa[20]”. Em outras palavras, o ícone contém e professa a mesma verdade que os Evangelhos e, portanto, como os Evangelhos, está baseado em dados concretos exatos, e de modo algum numa invenção, pois de outro modo ele não poderia explicar os Evangelhos, nem corresponder a eles.

Assim é que o ícone está colocado no nível das Sagradas Escrituras e da Cruz, como uma das formas da revelação e do conhecimento de Deus, na qual as vontades Divina e humana se tornam mescladas. Independentemente de seu significado direto, cada um é igualmente um reflexo do mundo superior; cada um é um símbolo do Espírito contido nele. Por conseguinte, o significado, tanto da palavra quanto da imagem, seu papel e sua importância são iguais. A imagem, assim como o ofício Divino, transmite o ensinamento da Igreja e expressa a vida na graça vivificadora da sagrada Tradição da Igreja. Por intermédio do Ofício Divino e através do ícone, a revelação se torna propriedade e preceito de vida para os fiéis. Por essa razão a arte da Igreja adquiriu desde o começo uma forma que corresponde àquilo que ela expressa.  A Igreja desenvolveu uma categoria inteiramente particular de imagens, de acordo com sua natureza, e esse caráter especial foi condicionado pelo objetivo a que ela serve. A Igreja é “um Reino que não é desse mundo[21]”, que existe no mundo e para o mundo, para sua salvação. Sua natureza é própria, distinta da do mundo, e ela serve ao mundo precisamente por ser tão diferente dele. Consequentemente, as manifestações da Igreja, por meio das quais ela cumpre seu ofício, sejam elas palavras, imagens, cantos ou outras, diferem da manifestações análogas do mundo. Todas elas trazem o selo da natureza transcendental, que as distingue externamente do mundo.

A arquitetura, a pintura, a música, a poesia, cessam de ser formas de arte, cada qual seguindo seu caminho independente das demais, em busca de efeitos apropriados, e se tornam parte de um todo litúrgico único que, de modo algum, diminui sua importância, mas que implica para cada uma a renúncia a um papel individual de auto afirmação. De formas de arte com finalidades separadas, elas se veem transformadas em diferentes modos de expressão, cada qual em seu domínio, de uma mesma e única coisa – a essência da Igreja. Em outras palavras, elas se tornam os vários instrumentos do conhecimento de Deus. Segue-se daí que, por sua própria natureza, a arte da Igreja é uma arte litúrgica. Seu caráter litúrgico não se deve ao fato de que a imagem serve como uma estrutura acrescentada ao ofício Divino, mas como sua mútua e completa correspondência. O mistério descrito e o mistério representado são o mesmo, tanto internamente, em seu significado, como externamente, enquanto símbolo que expressa esse significado. É por isso que a imagem da Igreja Ortodoxa, o ícone, não se define como uma arte que pertença a essa ou àquela época histórica, nem como expressão de peculiaridades nacionais desse ou daquele povo, mas apenas por sua função, que é tão universal quanto a própria Ortodoxia, sendo determinada pela essência mesma da imagem e de seu papel para a Igreja. Uma vez que o ícone em sua essência, assim como a palavra, constitui uma arte litúrgica, ele não serve a religião, mas, como a palavra, sempre foi, e é, parte da religião, um dos instrumentos de conhecimento de Deus, um dos meios de comunhão com Ele. Isso explica a importância que a Igreja atribui à imagem – uma importância tal, que de todas as vitórias sobre a multitude de diferentes heresias, somente a vitória sobre o iconoclasmo e o restabelecimento da veneração dos ícones foi proclamada como Triunfo da Ortodoxia, celebrada no primeiro Domingo da Quaresma.

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O mais completo ensinamento sobre os ícones foi dado pelo VII Concílio Ecumênico (787) e pelos santos Padres que foram apologistas do ícone durante o período iconoclasta. Numa forma concisa isso está contido no Kontakion do Domingo do Triunfo da Ortodoxia, estabelecido, como vimos, para comemorar a vitória sobre o iconoclasmo. O texto do Kontakion é o seguinte:

“O indefinível Verbo do Pai tornou a Si mesmo definível, tomando de ti a carne, ó Mãe de Deus, e tendo reformado a imagem de terra à sua forma original, a infundiu com a beleza Divina. Confessando a salvação, nós a mostramos em atos e palavras”.

A 82ª. Regra do Concílio Quinisexto fornece orientações sobre como expressar de modo mais completo e preciso o ensinamento da Igreja numa imagem; em contraste com isso, o Kontakion oferece uma explanação dogmática da imagem canônica, de uma imagem que sempre corresponde ao seu propósito e que responde às exigências da arte litúrgica. Essa formulação breve, mas maravilhosamente completa e exata do ensinamento do ícone, por conseguinte, contém ainda todo o ensinamento da salvação. Ele é reverentemente preservado pela Igreja Ortodoxa e permanece como o fundamento do entendimento Ortodoxo do ícone e de sua atitude em relação a ele.

A primeira parte do Kontakion revela a conexão entre o ícone e o dogma Cristológico, a base do ícone da Divina Encarnação. A parte seguinte revela o significado da Divina Encarnação, a realização do desígnio de Deus referente ao homem, e, consequentemente, ao mundo. Essencialmente, as duas partes do Kontakion são uma reiteração da fórmula patrística: “Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar Deus”. A última parte do Kontakion fornece a resposta do homem a Deus, nossa confissão da verdade salvadora da Encarnação Divina, a aceitação pelo homem da Divina revelação e a sua participação nela. Por essas últimas palavras a Igreja mostra em que se exprime nossa participação, e no que consiste a realização de nossa salvação.

Um aspecto característico do Kontakion é que ele não está endereçado a nenhuma das Pessoas da Santa trindade, mas à Mãe de Deus. Assim é que ele representa uma expressão litúrgica e orante do ensinamento dogmático sobre a Divina Encarnação. É evidente que, assim como a negação da imagem humana do Salvador implica a negação da Divina Maternidade[22] e, portanto, a afirmação desse ícone exige em primeiro lugar a manifestação do papel da Mãe de Deus, sua veneração como condição indispensável da Encarnação, a causa do fato de que Deus se tornou representável. De acordo com o ensinamento dos Padres, é precisamente pelo fato de que o Deus Homem, Jesus Cristo, tem uma Mãe representável, que sua imagem está justificada. “Na medida em que Ele, procedendo do Pai, não poderia ser representado”, diz São Teodoro o Estudita[23], “Cristo, não sendo assim representável, não poderia ter uma imagem feita pela arte. De fato, qual imagem poderia corresponder à Divindade, cuja representação é absolutamente proibida pela Escritura divinamente inspirada? Mas, a partir do momento em que Cristo nasceu de uma Mãe representável, ele claramente possui uma representação que corresponda à imagem de Sua Mãe. Se Ele não tivesse uma imagem feita pela arte, isso significaria que ele não nasceu de uma Mãe representável, que ele teria nascido apenas do Pai; mas isso contradiz toda a economia”. Assim, uma vez que o Filho de Deus se tornou homem, é preciso que ele seja representado como homem[24]. Esse pensamento é predominante em todos os Padres que defenderam a veneração dos ícones. O fato de que o Filho de Deus é representável de acordo com Sua carne assumida da Virgem é contrastado por São João Damasceno e pelos Padres do VII Concílio Ecumênico com o fato de que Deus Pai, sendo inconcebível e invisível, é por isso impossível de ser representado. “Por que nós não descrevemos o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo? Porque nunca o vimos... Mas, se O tivéssemos visto como vimos Seu Filho, poderíamos tentar descrevê-Lo e representá-Lo[25]”, disseram os Padres do Concílio. A mesma questão de representar a Deus Pai foi levantada em 1667, no Grande Concílio de Moscou, em conexão com a composição Ocidental, popular na Rússia à época, que representava a Santa Trindade com Deus Pai apresentado como um homem velho. Baseado nos santos Padres – em especial no grande confessor da fé e apologista da veneração dos ícones, São João Damasceno – o Concílio concluiu pela impossibilidade de descrever a Deus Pai e proibiu Sua representação em ícones.

Ao representar o Salvador, não estamos representando nem Sua natureza Divina, nem a humana, mas Sua Pessoa, na qual essas duas naturezas estão incompreensivelmente combinadas. Representamos Sua Pessoa, uma vez que o ícone só pode ser uma imagem pessoal e hipostática, enquanto que a natureza é uma “essência que não possui uma existência independente, mas que é vista nas pessoas[26]”. O ícone está conectado com o original, não a título de uma identidade entre sua própria natureza e natureza daquele, mas porque representa sua pessoa e traz seu nome, o que conecta o ícone à pessoa representada e fornece a possibilidade de comunhão com essa e a possibilidade de conhecê-la. Devido a essa conexão, “a homenagem prestada à imagem é transmitida ao original”, dizem os santos Padres do Concílio Ecumênico, citando as palavras de Basílio o Grande. Na medida em que o ícone é uma imagem, ele não pode ser consubstancial com o original; de outro modo ele deixaria de ser a imagem e passaria a ser o original, e teria uma só natureza com ele. O ícone difere do original exatamente por possuir uma outra natureza[27], diferente, “pois a representação é uma coisa, e o que ela representa é outra coisa[28]”. Em outras palavras, apesar dos dois objetos serem essencialmente diferentes, existe entre eles uma conexão conhecida, uma certa participação de um no outro. Para a perspectiva Ortodoxa, a possibilidade de ser ao mesmo tempo idêntico e diferente é praticamente evidente – hipostaticamente diferente, mas idêntica em natureza (a Santa Trindade), e hipostaticamente igual, mas diferente em natureza (os santos ícones)[29]. É isso que São Teodoro o Estudita tinha em mente quando disse que “Assim como (na Trindade) Cristo difere do Pai em hipóstase, aqui (nos santos ícones) Ele difere de Sua própria imagem em natureza[30]”. E ao mesmo tempo “a imagem de Cristo é Cristo, e a imagem de um santo é esse santo. O poder não é fendido, a glória não é dividida, mas a glória se torna um atributo daquele que é representando[31]”.

Assim é que Deus o Verbo, a Segunda Hipóstase da Santa Trindade, que não pode ser descrito nem por palavras nem por imagens, assume a natureza do homem, nasce da Virgem Mãe de Deus, e, ao mesmo tempo em que permanece perfeito Deus, faz-se perfeito Homem; Ele se torna visível, tangível e, portanto, descritível. Sabendo-se disso, o próprio fato da existência do ícone está baseado na Divina Encarnação. E a imutabilidade da Divina Encarnação é afirmada e demonstrada pelo ícone. Dessa forma, aos olhos da Igreja, a recusa ao ícone de Cristo aparece como a negação da verdade e da imutabilidade do fato de que Ele se tornou homem, e a partir daí, aparece a negação de toda a economia da Divina Revelação. Ao defender o ícone no período do iconoclasmo, a Igreja não estava defendendo apenas seu papel educacional, e menos ainda seu valor estético; ela lutava pelos fundamentos da fé Cristã, o testemunho visível do Deus tornado homem, como base para a nossa salvação. “Eu vi a imagem humana de Deus, e minha alma foi salva[32]”, disse São João Damasceno. Esse entendimento do ícone explica a inflexibilidade e a intransigência com as quais os seus defensores enfrentaram a tortura e a morte no período do iconoclasmo.

Se a primeira parte do Kontakion do Domingo do Triunfo da Ortodoxia formula a base dogmática do ícone, sua segunda parte, como dissemos, ao revelar a essência da economia da Divina Revelação – a realização do desígnio de Deus em relação ao homem – revela ao mesmo tempo o significado e a importância do ícone.

A Divina Pessoa de Jesus Cristo, que possuía toda a plenitude da vida Divina, e que ao mesmo tempo se tornou homem perfeito (isto é, homem em todas as coisas, exceto no pecado) não apenas restabeleceu eu sua pureza original a imagem de Deus corrompida pelo homem em sua queda (“...tendo reformado a imagem de terra à sua forma original...”)[33], como ainda associou a natureza humana assumida por Ele com a vida Divina – “a infundiu com a beleza Divina”. Os Padres do VII Concílio Ecumênico disseram: “Ele (Deus) recriou a ele (homem) na imortalidade, concedendo a ele um dom inalienável. Essa recriação foi mais do que a semelhança de Deus e melhor do que a primeira criação – esse dom é eterno[34]”: o dom da comunhão com a beleza e a glória Divinas. Cristo, o novo Adão, o começo da nova criatura – o homem celeste portador do Espírito Santo – trouxe o homem de volta ao objetivo para o qual o primeiro Adão fôra criado, e do qual ele se desviou por causa de sua queda: Ele o conduziu à realização plena do desígnio da Santa Trindade referente a ele: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança[35]”. De acordo com esse desígnio, o homem não deveria apenas ser a imagem de Deus, seu Criador, como ainda deveria realizar em si Sua semelhança. Mas já na descrição do cumprimento do ato da criação – “E Deus criou o homem, de acordo com Sua imagem o criou[36]” – nada é dito a respeito da semelhança. Ao homem foi dada uma tarefa, a de ser preenchido pela ação da graça do Espírito Santo, com a livre participação do próprio homem. Livre e conscientemente, “uma vez que a expressão ‘de acordo com a nossa imagem’ indica a capacidade de escolha e liberdade”, o homem penetra no desígnio da Santa trindade referente a ele e a partir daí cria sua semelhança com Deus, “pois a expressão ‘à sua semelhança’ significa a semelhança com Deus em Suas virtudes (perfeições)[37]”, participando, dessa forma, da obra da Divina criação.

Assim, se por um lado a Divina Hipóstase do Filho de Deus se tornou Homem, por outro, nosso caso é o inverso: o homem pode se tornar deus, não por natureza, mas pela graça. Deus desceu e se fez Homem; o homem se eleva e se torna deus. Assumindo a semelhança com Cristo, ele se torna “o templo do Espírito Santo”, que existe nele[38], e restabelece assim sua semelhança com Deus[39]. A natureza humana permanece sendo o que ela é – a natureza da criatura; mas sua pessoa, sua hipóstase, ao adquirir a graça do Espírito Santo, por esse simples fato associa a si mesma à vida Divina, transformando o próprio ser de sua natureza criada. A graça do Espírito Santo penetra em sua natureza, combina-se com ela, preenche-a e a transfigura. O homem nasce, por assim dizer, para a vida eterna, adquirindo já na terra o começo dessa vida, o começo da deificação, que se manifestará plenamente no século futuro.

A revelação dessa futura corporeidade transfigurada nos é mostrada na Transfiguração do Senhor sobre o Monte Tabor. “E Ele se transfigurou diante deles: e seu rosto brilhava como o sol, e suas roupas eram brancas como a luz[40]”. Em outras palavras, todo o corpo do Senhor foi transfigurado, tornando-se como se fosse a radiosa vestimenta da Divindade. “Em relação ao caráter da Transfiguração”, dizem os Padres do VII Concílio, referindo-se a Santo Atanásio o Grande, “não foi o Verbo que deixou de lado Sua forma humana, mas foi essa forma humana que foi iluminada pela Sua glória[41]”. Assim é que na Transfiguração, “no Monte Tabor não apenas a Divindade apareceu aos homens, como a hominidade apareceu na glória Divina[42]”. Um homem que tenha adquirido a graça do Espírito Santo se torna participante dessa Divina glória, dessa “irradiação Divina incriada, como chamou São Gregório Palamas[43] a luz do Monte Tabor. Em outras palavras, unindo-se com a Divindade, ele se torna iluminado por Sua luz incriada, assumindo assim a semelhança com o corpo radioso de Cristo. São Simeão o Novo Teólogo descreve sua experiência pessoal da iluminação interior nas seguintes palavras: “Tendo se tornado inteiramente fogo em sua alma, ele (o homem) transmite a irradiação interior obtida também ao corpo, da mesma maneira como o fogo físico transmite seu efeito ao ferro[44]”. Todavia, assim como o ferro não se transforma em fogo, mas permanece sendo ferro, apenas purificado, também aqui a inteira natureza do homem se torna transfigurada, mas nada lhe é retirado, nem destruído. Ao contrário, tendo sido purificado dos elementos estranhos e alheios do pecado, ele se torna espiritualizado e iluminado. Dessa forma podemos dizer que um santo é mais verdadeiramente um homem do que um pecador, uma vez que, ao reassumir sua semelhança com Deus, ele readquire o propósito original de sua existência, reveste-se da incorruptível beleza do Reino de Deus, de cuja criação ele participa com sua vida. Portanto, a própria beleza, tal como a Igreja Ortodoxa a entende, não é uma beleza que pertence à criatura, mas um atributo do Reino de Deus, onde Deus é tudo em todos. São Dionísio o Areopagita diz da Beleza de Deus que “devido ao seu esplendor, Ele se derrama em todos os seres, em cada um na sua medida própria”, e assim ele vê em Deus “a causa da harmonia e a veste brilhante de toda criatura, pois Ele ilumina todas as coisas, como uma luz, derramando beleza dessa fonte radiante que brota de Si mesmo[45]”. Desse modo, toda criatura participa da Beleza Divina na sua medida própria, e a traz em si como o selo do seu Criador. Porém, esse selo não constitui e semelhança com Deus, mas apenas uma beleza que pertence à criatura. É um meio, não um fim; um meio pelo qual “as coisas invisíveis feitas desde a criação do mundo são claramente vistas, e podem ser compreendidas a partir das coisas que Ele fez, mesmo Seu poder eterno e Sua Divindade[46]”. A beleza do mundo visível reside não no esplendor transitório de seu estado presente, mas no verdadeiro significado de sua existência, na sua transfiguração potencial que aguarda como uma possibilidade a ser realizada pelo homem. Em outras palavras, beleza é santidade, e sua irradiação é a participação da criatura na Beleza Divina.

No plano do trabalho humano criativo, a beleza é o coroamento dado por Deus, o selo da conformidade da imagem com o protótipo, do símbolo para com aquilo que ele representa, ou seja, o Reino do Espírito. A beleza de um ícone e a beleza da semelhança adquirida de Deus, e assim seu valor jaz não em ser belo em si, em sua aparência enquanto objeto belo, mas no fato de que ele representa a Beleza.

Quanto à relação da representação – o ícone – para com o que é representado, os Padres do VII Concílio dizem o seguinte, claramente em resposta à acusação de nestorianismo feita pelos iconoclastas contra a Ortodoxia: “Embora a Igreja Católica represente a Cristo sob Seu aspecto humano, ela não separa Sua carne da Divindade associada a ela. Ao contrário, ela acredita que a carne é deificada e professa isso sendo uma com a Divindade, de acordo com o ensinamento do grande Gregório o Teólogo e com a verdade. Isso não faz com que a carne do Senhor deixe de ser deificada. Assim como um pintor que faz o retrato de um homem não o torna por isso inanimado, mas ao contrário, o homem permanece animado e a pintura é chamada de retrato seu devido à sua semelhança com ele, também nós, quando fazemos um ícone, confessamos o corpo do Senhor como deificado e vemos o ícone como nada além de um ícone, representando sua semelhança com o protótipo. Por essa razão o ícone recebe o nome do Senhor. É por esse meio que ele está em comunhão com o Senhor; e é por essa razão que ele é santo e digno de homenagens[47]”. Como essas palavras demonstram, o ícone é a semelhança não de um protótipo animado, mas de um protótipo deificado, ou seja, é uma imagem (convencional, é claro) não da carne corruptível, mas da carne transfigurada, radiante com a luz Divina. É a Beleza e a Glória, representadas por meios materiais visíveis no ícone aos olhos físicos. Por conseguinte tudo o que lembra a carne humana corruptível é contrário à verdadeira natureza do ícone pois “a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, assim como a corrupção não pode herdar a incorrupção[48]”, e um retrato temporal de um santo não pode ser um ícone, precisamente porque ele não reflete seu estado transfigurado, mas seu estado carnal atual. É ainda essa particularidade do ícone que o coloca à parte de todas as formas de arte pictórica.

Assim, por representar a Hipóstase do Deus Verbo encarnado, o ícone atesta a imutabilidade e a plenitude de Sua encarnação. Por outro lado, por intermédio desse ícone nós confessamos que o “Filho do Homem” representado nele é verdadeiramente Deus – a Verdade revelada. Os esforços do homem em direção a Deus, o lado subjetivo e pessoal da fé encontra aqui a resposta de Deus ao homem, com a revelação – o conhecimento objetivo experienciado, que o homem expressa em palavras ou em imagens. Por essa razão, a arte litúrgica não consiste apenas na nossa oferenda a Deus, mas também a descida de Deus entre nós, sendo uma das formas pelas quais se realiza esse encontro de Deus com o homem, da graça com a natureza, da eternidade com o tempo. As formas que registram essa mútua interpenetração do Divino com o humano são asseguradas pela Tradição e, sendo continuamente renovadas, vivem eternamente no corpo de Cristo, a Igreja. Dado que, como Jesus Cristo, Deus e Homem, a Igreja é um organismo tanto humano como Divino, ela combina em si, indivisivelmente mas sem confusão, duas realidades: a realidade histórica e terrena, e a realidade da graça do Espírito Santo que santifica todas as coisas. O significado da arte da Igreja, e do ícone em particular, reside precisamente no fato de que ele transmite, ou antes atesta visualmente essas duas realidades, a realidade de Deus e a do mundo, da graça e da natureza. Ele é realístico em dois sentidos. Assim como as Santas Escrituras, o ícone transmite um fato histórico, um evento da História Sagrada ou de um personagem histórico, representado na sua forma física e, também como as Escrituras, ele indica a revelação que existe fora do tempo, contida numa determinada realidade histórica. Assim, através do ícone, como através das Santas Escrituras, podemos não apenas aprender sobre Deus, como também conhecer a Deus.

Se a transfiguração constitui uma iluminação do homem por inteiro, a iluminação, por meio da oração, de sua constituição material e espiritual pela luz incriada da Graça Divina, a manifestação do homem como ícone vivo de Deus, então o ícone é uma expressão externa dessa transfiguração, a representação de um homem cheio da graça do Espírito Santo. Assim sendo, o ícone não é a representação da Divindade, mas uma indicação da participação de uma dada pessoa na vida Divina. Trata-se de um testemunho do conhecimento concreto e prático da santificação do corpo humano[49].

Por meio da Encarnação do Filho de Deus, o homem recebeu a possibilidade de não apenas restaurar sua semelhança com Deus, com a ajuda da graça do Espírito Santo, ou seja, de fazer de si um ícone pelo trabalho interior, como ainda de revelar seu estado de graça aos demais por meio de imagens por palavras e de imagens visuais. Em outras palavras, ele pode criar um ícone exterior a partir da matéria que o cerca, e que foi santificada pela descida de Deus à terra – “nós mostramos isso por atos e palavras”. Assim sendo, a santidade é a realização de possibilidades dadas ao homem pela Encarnação Divina, uma exemplo para nós: o ícone é o meio de revelar essa realização, uma exposição pictórica desse exemplo. Em outras palavras, o ícone transmite visualmente a realização da fórmula patrística que mencionamos antes: “Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar deus”. A decorrência disso é a ligação orgânica, que existe na Igreja Ortodoxa, entre a veneração dos ícones e o culto dos santos. Isso também explica o cuidado com que cada traço de um santo é preservado. Graças a isso, a iconografia dos santos se distingue por uma extraordinária estabilidade. Isso se deve não só ao desejo de preservar a imagem santificada pela Tradição, mas também pela necessidade de preservar uma conexão viva e direta com a pessoa representada no ícone. Dessa maneira, o ícone necessariamente mostra a natureza do ofício do santo, seja ele um Apóstolo, um bispo ou um mártir, e reproduz com especial cuidado suas características e traços distintivos. Esse realismo iconográfico está na base do ícone e é um de seus elementos mais importantes[50]. Mais do que isso, tudo o que é pessoal e individual é muitas vezes indicado apenas por sutis linhas e sombras, especialmente quando as pessoas representadas possuem traços externos em comum. É por isso que quando muitos ícones são agrupados, eles produzem em que não está acostumado com eles uma impressão de uniformidade, e mesmo uma monotonia estereotipada. Exatamente a mesma impressão é produzida por uma leitura superficial das vidas dos santos. Tanto nos ícones quanto nas vidas dos santos, a primeira coisa que emerge não é a individualidade, mas sua subordinação àquilo de que eles são os portadores.


De qualquer forma, a falta de semelhança não causa um rompimento da conexão com o protótipo ou da veneração dirigida a ele. São Teodoro o Estudita diz: “Mesmo quando não reconhecemos que o ícone representa uma imagem idêntica ao seu protótipo devido a uma falta de talento ou estilo, isso não significa que nossas palavras sejam ineptas. Pois a veneração não é demonstrada a um ícone na medida em que ele lembre o protótipo, mas na medida em que ele representa uma semelhança para com ele[51]”. Assim sendo a similaridade pode ser limitada à reprodução fiel das características do protótipo e, sem expressar sua individualidade, satisfazer a semelhança, como, por exemplo, nos desenhos apresentados nesse livro[52]. Todavia, a fidelidade ao protótipo normalmente é tal que o fiel Ortodoxo não tem dificuldade em reconhecer os santos reverenciados em cada ícone, para não falar dos ícones do Salvador e da Mãe de Deus. Ainda que um dado santo não lhe seja familiar, ele sempre é capaz de dizer a que ordem de santidade ele pertence: se um monge, um mártir, um bispo, etc. Preservando com reverência a memória dos santos e suas características, a Igreja Ortodoxa jamais aceitou a pintura de ícones da imaginação do artista, ou a partir de um modelo vivo, pois isso envolveria uma ruptura consciente e completa para com o protótipo, e o protótipo cujo nome está inscrito no ícone seria arbitrariamente substituído por outra pessoa. Para evitar a invenção, e uma ruptura entre a imagem e o protótipo, os iconógrafos pintam a partir de antigos ícones e se socorrem deles. Para os iconógrafos antigos as faces dos santos eram tão familiares quanto as de seus amigos. Eles tanto pintavam de memória, como se utilizavam de esquemas, desenhos, etc.[53] Quando a Tradição viva começou a se perder, por volta do final do século XVI, esses auxílios foram sistematizados e os chamados manuais pessoais e interpretativos apareceram. Os primeiros forneciam uma iconografia esquemática dos santos e dos dias de festa[54], com a indicação das cores básicas; os segundos davam a mesma indicação das cores básicas e uma breve descrição dos traços característicos dos santos. Desde esse tempo esses manuais servem como um auxílio técnico necessário aos iconógrafos. Eles não devem ser confundidos com o Cânone iconográfico ou com a sagrada Tradição, como às vezes se faz.

Encontramos a mesma constância na iconografia das festas, e pela mesma razão. A maior parte dessas imagens data dos primeiros séculos do Cristianismo e se originaram nas localidades onde esses eventos aconteceram. Quase todas essas imagens, como também as próprias festas, se originaram na Síria e na Palestina. Elas foram aceitas pela Igreja como historicamente exatas[55], e são cuidadosamente preservadas pela Igreja Ortodoxa. Aqui também, esforçando-se para evitar qualquer tipo de invenção, o ícone adere estritamente às Santas Escrituras e à Santa Tradição, transmitindo os fatos tão laconicamente quanto os Evangelhos e representando apenas o que um determinado texto ou tradição relata, e o que indispensável para transmitir a revelação extra-temporal manifestada num dado evento concreto. Assim como nas Santas Escrituras, só são admitidos os detalhes necessários e suficientes para o propósito. Em algumas imagens de festas, certos momentos, que aconteceram em diferentes tempos e lugares, são colocados juntos numa composição (por exemplo, na Natividade de Cristo, no Nascimento da Theotokos, nas Miróforas junto ao Sepulcro, etc.). Nesses casos, como no Ofício Divino, o ícone transmite o sentido da festa tão completamente quanto possível.

A segunda realidade, a presença da graça santificante do Espírito Santo, a santidade, não pode ser representada por nenhum meio humano, uma vez que ela é invisível à percepção exterior. Ao encontrarmos com um santo vivo podemos passar por ele sem perceber sua santidade, porque a santidade não possui características externas. “O mundo não vê os santos, assim como um cego não vê a luz”, diz o Metropolita Filarete[56]. Mas ao mesmo tempo em que permanece invisível ao olhar não iluminado, a santidade é evidente aos olhos do espírito. Ao reconhecer a um homem como santo e glorificá-lo a Igreja indica sua santidade por meios visíveis nos ícones, usando uma linguagem simbólica estabelecida, tal como as auréolas, certas formas específicas, cores e linhas. Esse simbolismo indica o que não pode ser expresso diretamente. Mas por esse meio, a revelação que chega ao mundo vinda do alto, expressando-se na matéria, se torna manifesta a todos os homens e acessível ao sem entendimento e contemplação. Esse simbolismo revela aquilo que um homem pode alcançar esforçando-se, e o modo de atingi-lo. Consequentemente, o Cânone iconográfico, que mencionamos antes, determina não apenas o tema de um ícone, o que será representado, mas também como isso deverá ser representado, por quais meios é possível indicar a presença da graça do Espírito Santo num homem e exprimir seu estado aos demais.

Dissemos antes que um ícone é uma expressão externa do estado transfigurado de um homem, de sua santificação pela Divina luz incriada. Tanto nos escritos dos santos Padres como nas vidas dos santos Ortodoxos, encontramos com frequência essa manifestação da luz, um tipo de irradiação interna quase solar que chega ao rosto dos santos em momentos de alta exaltação espiritual e de glorificação. Essa manifestação da luz é mostrada no ícone por meio da auréola, que constitui uma representação exata de uma manifestação real do mundo espiritual. Mas o próprio estado espiritual, a perfeição interior de um homem, da qual a luz é uma manifestação exterior, não pode ser transmitida nem por palavras, nem por imagens. Como regra geral, quando os padres e os escritores ascéticos chegam a descrever o momento real da santificação eles o caracterizam pelo silêncio, uma vez que ele é totalmente indescritível e inexprimível. Todavia, o efeito desse estado na natureza humana e em especial sobre o corpo pode, em certa medida, ser representado e expresso. Assim é que, como vimos, São Simeão o Novo Teólogo utilizou como recurso a imagem do fogo e do ferro. O Bispo Russo Inácio Brianchaninov, que viveu no século XIX, fornece uma descrição mais completa disso: “Quando a oração é santificada pela Divina graça”, diz ele, “toda a alma é levada a Deus por um poder incompreensível, arrastando o corpo consigo [...] No homem [...] não apenas a alma, não apenas o coração, mas também a carne se enche de conforto e de bendita alegria no Deus vivo[57]”. Em outras palavras, quando o homem alcança o estado no qual sua condição dispersa normal, “os pensamentos e os sentimentos provindos da natureza decaída[58]”, com a ajuda do Espírito Santo, é substituída por um estado de concentração na prece, todo o seu ser se torna um, em total impulso para Deus. “Tudo o que era desordem nele”, diz São Dionísio o Areopagita, “se torna ordem; o que não tinha forma adquire forma, e sua vida [...] se torna inteiramente preenchida pela luz[59]”. Correspondendo a esse estado do santo, toda a sua imagem no ícone, tanto o rosto como os detalhes, perde seu aspecto sensorial da carne corruptível e se torna espiritualizada. Transmitido pelo ícone, esses estado transformado do corpo humano é a expressão visível do dogma da transfiguração e dessa forma adquire uma grande importância educacional. O nariz muito fino, a boca pequena e os grandes olhos – tudo isso são métodos convencionais de transmitir o estado de um santo cujos sentidos foram “refinados”, como se dizia nos tempos antigos. Os órgãos dos sentidos, assim como outros detalhes, como as rugas, o cabelo, etc., são submetidos à harmonia geral da imagem e, junto com todo o corpo do santo, se unem no impulso comum para Deus. Tudo é levado à suprema ordem; no Reino do Espírito Santo não existe desordem, porque “Deus é o Deus da ordem e da paz[60]”. A desordem é um atributo do homem decaído, uma consequência da queda. Isso não significa, é claro, que o corpo deixa de ser o que ele é; não apenas ele continua sendo o corpo, como, segundo dissemos antes, ele preserva todas as particularidades da pessoa dada. Mas essas são representadas no ícone de maneira tal a mostrar não a fisionomia do homem como num retrato, mas sua face eterna e glorificada[61].

Se essa linguagem dos ícones se tornou tão pouco familiar para nós, e nos parece “ingênua” e “primitiva”, isso não se deve ao fato do ícone ter “sobrevivido”, ou de ter perdido sua força vital e sua significância, mas porque “mesmo o conhecimento de que é capaz de levar conforto espiritual ao corpo humano [...] foi perdido para o homem[62]”.

O método mencionado acima faz mais do que representar simbolicamente, por meio da imagem, o estado transfigurado do santo; ele tem ainda uma importância criativa e instrutiva. Ele está endereçado a nós e fornece um guia e instruções sobre como devemos nos comportar em nossas orações, em nossa comunhão com Deus. Ele nos mostra que nossos sentidos não devem estar dispersos e distraídos da prece por causa de manifestações do mundo externo. Encontramos uma linda ilustração verbal desse método da iconografia na Filocalia, nas palavras de Santo Antônio o Grande: “O espírito”, diz ele, “combinado com a mente [...] ensina a manter o corpo em ordem, da cabeça aos pés: os olhos, para ver com pureza; os ouvidos, para ouvir em paz e não se deleitar com calúnias, fuxicos e difamações; a língua, para só dizer o que é bom; [...] as mãos, para acima de tudo só se moverem para se elevar em oração e para as obras da caridade; [...] o estômago, para manter o uso da comida e da bebida dentro dos limites necessários; [...] os pés, para só se moverem corretamente e seguirem em direção a Deus [...] dessa forma todo o corpo é treinado para o bom e sofre uma mudança, submetendo-se à lei do Espírito Santo, de modo a que afinal ele começa em certa medida a partilhar das propriedades do corpo espiritual, que ele receberá quando da ressurreição dos justos[63]”.  Assim, o ícone não se corta do mundo, não se tranca sobre si mesmo. O fato de que ele se dirige ao mundo é também enfatizado pelo fato de que os santos geralmente são representados olhando para a congregação, seja de frente ou de três quartos. Raramente eles são representados de perfil, mesmo em composições complexas em que o movimento geral se dirige a um ponto central da composição por sua importância. Num certo sentido, o perfil rompe a comunhão, e constitui o começo de uma ausência. Entretanto, ele é admitido no caso de pessoas que ainda não obtiveram a santidade, como, por exemplo, os pastores ou os Reis Magos no ícone da Natividade de Cristo.


O ícone nunca se esforça por provocar emoções no fiel. Sua função não é a de provocar nele essa ou aquela emoção humana, mas a de guiar toda emoção, assim como a própria razão e outras faculdades da natureza humana, num caminho em direção à transfiguração. Como já dissemos, a santificação pela graça não elimina nenhuma das faculdades dessa natureza, assim como o fogo não elimina as propriedades do ferro. Do mesmo modo o ícone, ao representar o corpo de um homem com todas as suas particularidades, não elimina nada do que seja humano: ele não exclui sequer os elementos psicológicos e mundanos. Ele também transmite os sentimentos da pessoa (a perturbação da Theotokos na Anunciação, a consternação dos Apóstolos na Transfiguração, etc.), seus conhecimentos, sua criatividade artística[64], uma específica ocupação externa, seja eclesial (um dignitário da Igreja, um monge) ou temporal (um príncipe, um guerreiro, um médico), que o santo em questão tenha transformado numa empreitada espiritual. Mas, assim como nas Santas Escrituras, toda a carga de pensamentos, sentimentos e conhecimentos humanos é representada no ícone em seu ponto de contato com o mundo da Divina Graça e, nesse contato, tudo o que não está purificado é queimado pelo fogo. Toda manifestação da natureza humana adquire sentido, se torna iluminada, encontra seu lugar verdadeiro e sua importância. Então, é precisamente no ícone que todos os sentimentos, ações e pensamentos humanos, assim como o próprio corpo, adquirem seu pleno valor.

Assim é que o ícone é a um tempo o veículo e o significado: ele é a própria oração. Daí sua qualidade hierática, de sua simplicidade majestática e da calma de seu movimento; daí o ritmo de suas linhas, o ritmo e a alegria de suas cores, que brotam da perfeição de uma harmonia interna[65]. A transfiguração do homem se comunica a tudo o que o cerca, porque um atributo da santidade consiste na santificação de todo o mundo do entorno com o qual o santo entra em contato. A santidade não possui apenas uma importância pessoal, como também para o humano em geral, e mesmo para o cosmo. Por isso todo o mundo visível representado no ícone se transforma, e se torna a imagem da futura unidade de toda a criação – o Reino do Espírito Santo. Conforme a isso, tudo o que está representado num ícone reflete, não a desordem de nosso mundo de pecado, mas a Divina ordem, a paz, um domínio governado não pela lógica terrena, não pela moralidade humana, mas pela Graça Divina. Trata-se da nova ordem na nova criação. É por isso que o que vemos no ícone é tão diferente daquilo que vemos em nossa vida comum. A Luz Divina permeia todas as coisas, e assim não existe uma fonte de luz, que ilumine os objetos de um lado ou de outro; os objetos não possuem sombras, pois não existem sombras no Reino de Deus. Tudo está banhado pela luz; em linguagem técnica, os iconógrafos chamam de “luz” o fundo do ícone. As pessoas não gesticulam: seus movimentos não são desordenados e aleatórios. Elas estão oficiando, e cada um de seus movimentos carrega um caráter litúrgico e sacramental. A começar pelas roupas do santo, tudo perde seu caráter aleatório: as pessoas, a paisagem, a arquitetura, os animais. Juntamente com a forma do próprio santo, tudo é governado por uma lei rítmica, tudo está centrado no conteúdo espiritual e age como um todo harmonioso: a terra, os reinos vegetal e animal, não são representados tendo em vista trazer o espectador para perto daquilo que ele vê na realidade que o cerca, mas para fazer com que a própria natureza participe da transfiguração do homem e se conecte com uma existência que está fora do tempo. Assim como toda a criação caiu junto com a queda do homem, também ela se santifica com sua santificação. Por isso não existem ícones das criaturas sem a presença do homem.
 
A arquitetura desempenha um papel peculiar no ícone. Ao mesmo tempo em que ela serve, assim como a paisagem, para denotar que o evento representado no ícone está realmente conectado com a história num lugar definido, ela nunca contém esse evento dentro de si, mas serve apenas como pano de fundo para ele, pois, de acordo com o sentido do ícone, a ação não está encerrada nem limitada a um local em particular, da mesma forma como, ao mesmo tempo em que se manifesta no tempo, ela não está limitada a um determinado tempo. Desse modo, a cena que acontece dentro de um edifício é sempre mostrada ocorrendo com o edifício como fundo. Foi apenas no século XVII que os iconógrafos, influenciados pelo Ocidente, começaram a apresentar os eventos tendo lugar dentro de um edifício. As construções arquitetônicas estão conectadas com a figura humana pelo sentido geral da composição, mas com frequência não existe ligação lógica entre eles[66] (Ver reproduções anexadas). Se compararmos a maneira como um ícone representa a figura humana com a maneira como ele retrata um edifício, podemos notar a grande diferença entre eles. Com raras exceções, a figura humana é sempre construída corretamente – tudo está no lugar certo. O mesmo acontece com as roupas: seus detalhes, os planejamentos, etc., são perfeitamente lógicos. Mas a arquitetura, tanto na forma como no conjunto, é quase sempre contrária à lógica humana e, nos detalhes, enfaticamente ilógica. Portas e janelas são abertas nos lugares errados, seu tamanho não corresponde às suas funções, e assim por diante[67]. O significado desse fenômeno é que a arquitetura é o único elemento do ícone com cujo auxílio é possível mostrar claramente que a ação que tem lugar diante de nossos olhos está fora das leis da lógica humana, fora das leis da existência terrestre. É digno de nota que esse caráter ilógico da arquitetura tenha existido nos ícones Russos até o começo da decadência, ou seja, até o momento em que, na virada do século XVI para o XVII, a compreensão da linguagem dos ícones começou a se perder. Desse tempo em diante a arquitetura se tornou lógica e passou a se revestir de uma profusão de formas arquitetônicas puramente lógicas, conquanto fantásticas e fantasistas.


É claro, a partir do que foi dito, que a função do ícone de modo algum inclui a criação de uma ilusão do tema ou evento representado, pois, de acordo com sua própria definição, o ícone (isso é, a imagem) é o oposto da ilusão. Quando o olhamos, não apenas sabemos como vemos que estamos não diante de uma pessoa ou evento em si, mas diante de sua imagem, de um objeto que, por sua própria natureza, é fundamentalmente diferente de seu protótipo. Isso exclui toda tentativa de criar uma ilusão de espaço real ou de volume. No ícone o espaço e o volume estão limitados à superfície do painel e não devem criar a ilusão de ir além daí. Ainda assim, não se trata de uma arte bidimensional, no sentido em que a arte do Oriente não é bidimensional. A ideia pictórica de volume existe sempre no ícone, no tratamento das figuras, dos rostos, das vestimentas, dos edifícios, etc. A composição de um ícone é sempre espacial e tem uma profundidade definida. O ícone exprime as três dimensões, mas essas três dimensões jamais violam o plano do painel. Qualquer violação desse plano, ainda que parcial, prejudica o sentido do ícone. A preservação da realidade do plano é grandemente favorecida pela assim chamada perspectiva invertida, cujo ponto de fuga não se localiza na profundidade da imagem, mas em frente a ela, como se estivesse no próprio espectador[68]. Um homem se coloca como se fosse no início de um caminho que não está concentrado em algum ponto em profundidade, mas que se revela diante dele em toda sua imensidão. A perspectiva inversa não conduz o olho do espectador: ao contrário, ela o detém, impedindo a possibilidade de penetrar e entrar na imagem em profundidade; e isso concentra a atenção na imagem em si.



O simbolismo iconográfico que descrevemos levanta naturalmente a questão: com que fundamento podemos afirmar que os símbolos utilizados para retratar o estado transfigurado do homem realmente indicam esse fato, e não estão na verdade nos conduzindo a um mundo fantástico e inventado? Podemos responder a essa questão com as palavras do Apóstolo Paulo: “estamos rodeados dessa grande nuvem de testemunhos[69]”. E, de fato, se na iconografia dos santos e dos eventos das Santas Escrituras foram adotadas as versões que melhor expressam a realidade histórica de forma completa e exata, a realidade do Reino do Espírito Santo é comunicada por homens que adquiriram os rudimentos desse Reino enquanto ainda viviam aqui, nas condições de nossa vida terrena. Da mesma forma como alguns grandes espirituais nos deixaram descrições verbais do Reino de Deus, que estava dentro deles[70], outros deixaram também descrições desse Reino, mas em imagens visíveis, na linguagem nos símbolos artísticos; e seu testemunho é igualmente autêntico. É a mesma teologia revelada, apenas colocada em imagens ao invés de palavras. É um tipo de desenho da natureza por meio de símbolos, tanto quanto as descrições verbais dos santos Padres. “Pois nós falamos disso por contemplação”, atesta São Simeão o Novo Teólogo, “de maneira que o que relatamos pode ser considerado como um registro do que foi contemplado, mais do que de uma ideia (nohma)[71]”. A imagem sagrada, tal como as Santas Escrituras, transmitem, não ideias humanas e concepções da verdade, mas a própria verdade – a Divina revelação. Nem a realidade histórica, nem a espiritual, admitem invenção. Assim sendo, como dissemos, a arte da Igreja é realista no sentido estrito da palavra, tanto na sua iconografia quanto no seu simbolismo. Na verdadeira arte da Igreja não existe idealização, assim como não existe nas Santas Escrituras ou na Liturgia. Tampouco pode existir aqui, porque a idealização introduz um elemento subjetivo e limitativo e inevitavelmente mutila ou distorce a verdade, em maior ou menor grau. A ideia corrente de que a arte da Igreja, e em especial o ícone, é idealista, que o ícone representa uma espécie de ideia mais elevada – uma opinião baseada no fato de que o realismo na arte é, acima de tudo o mais, compreensível ao mundo – é um puro engano. De fato, é exatamente o contrário: assim que surge a idealização, desaparece o ícone. Isso é bastante compreensível pois, por si mesmo, o homem pode falar apenas de si mesmo. Ninguém pode falar da vida Divina a partir de si próprio. “Quem pode falar por si próprio de um objeto que nunca foi visto antes? [...] como é possível falar e proclamar seja lá o que for sobre Deus, sobre as coisas divinas e os santos de Deus, vale dizer, como pode alguém falar sobre o tipo de comunhão com Deus que foi concedida a esses santos, e sobre o conhecimento de Deus, que está dentro deles e que produz inefáveis ações em seus corações – como pode qualquer coisa ser dita por um homem que ainda não foi iluminado pela luz do conhecimento?[72]”. Consequentemente, um ícone não pode ser inventado. Apenas aqueles que conhecem, por uma experiência pessoal, o estado retratado, pode criar imagens que correspondam àquilo que é verdadeiramente “uma revelação e uma evidência das coisas ocultas”, ou, em outras palavras, a evidência da participação do homem na vida do mundo transfigurado que ele contempla, assim como Moisés criou imagens daquilo que ele viu e fez os querubins conforme vira[73], ou seja, segundo o padrão que ele viu na montanha[74]. Somente uma imagem assim pode ser autêntica e convincente, e dessa forma pode nos mostrar o caminho e nos conduzir a Deus. Nenhuma fantasia artística, nenhuma perfeição técnica, nenhum dom artístico pode substituir o conhecimento direto, obtido pela “visão e a contemplação[75]”.

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Seria errôneo, é claro, concluir daí que somente os santos podem pintar ícones. A Igreja não é constituída apenas por santos. Todos os seus membros que levam uma vida sacramental têm o direito e a tarefa de seguir os seus passos. Por isso, todo iconógrafo Ortodoxo, que viva dentro da Tradição, pode fazer ícones genuínos. Além disso, a fonte inexaurível que alimenta a arte da Igreja é o próprio Espírito Santo, que age através da Igreja por intermédio de homens iluminados pela Divina Graça; homens que alcançaram o conhecimento direto de Deus e a comunhão com Ele, e que assim foram glorificados pela Igreja como santos iconógrafos. Desse modo, o papel da Tradição não está limitado a transmitir o efetivo fato da existência de um ícone. Por um lado ela transmite a imagem de um evento da História Sagrada, ou de um santo glorificado pela Igreja, como uma memória do evento ou do santo. Por outro lado, ela constitui uma fonte inesgotável de conhecimento transmitido à Igreja pelo Espírito Santo. Por isso a Igreja sempre enfatizou a necessidade de seguir a Tradição, tanto através das regras dos Concílios, pela voz de seus dignitários, e ordenou que os ícones fossem pintados “como os antigos santos iconógrafos os pintaram”. “Retratem em cores de acordo com a Tradição;”, diz São Simeão de Tessalônica, “isso consiste em pintar tão verdadeiramente quanto está escrito nos livros, e a graça de Deus está aí, porque o que está pintado é sagrado[76]”.

Por essa razão, a criação de um ícone pertence a uma categoria fundamentalmente diferente daquilo que normalmente se entende por essa palavra. Ela possui o caráter de uma criação católica (soborny), não pessoal. O iconógrafo transmite, não a sua “ideia” (nohma), mas uma “descrição do que foi contemplado”, ou seja, um conhecimento de fato, algo que foi visto, senão por si mesmo, por uma testemunha digna de fé. A experiência da testemunha, que recebeu e transmitiu a revelação, é aumentada pela adição da experiência daqueles que a receberam dela. Dessa maneira, a singularidade da verdade revelada é unida à experiência pessoal multiforme dos que a receberam. A fim de receber e repassar o testemunho, o iconógrafo deve não apenas confiar que ele é genuíno, como ainda partilhar da vida, a mesma que a testemunha da revelação viveu, deve seguir o mesmo caminho, ou seja, ser um membro do corpo da Igreja. Somente assim ele pode transmitir o testemunho recebido de forma exata e consciente. Daí a necessidade de uma participação contínua na vida sacramental da Igreja; daí também a exigência moral que a Igreja faz aos iconógrafos. Pois para o verdadeiro iconógrafo, a criação é um caminho de ascetismo e oração, ou seja, essencialmente, uma via monástica. Embora a beleza e o conteúdo de um ícone sejam percebidos subjetivamente por cada espectador, de acordo com suas capacidades, essas coisas são expressas pelo iconógrafo objetivamente, superando conscientemente seu próprio “eu” e subordinando-o à verdade revelada – a autoridade da Tradição. Os costumeiros “eu vejo isso assim”, “eu entendo isso assim”, estão nesse caso completamente excluídos. O iconógrafo não trabalha para si, não para sua própria glória, mas para a glória de Deus. Por isso, um ícone nunca é assinado. A liberdade de um iconógrafo consiste não numa expressão entremeada de sua personalidade, de seu “eu”[77], mas em sua “libertação de todas as paixões e vícios do mundo e da carne[78]”. Essa é a liberdade espiritual da qual o Apóstolo Paulo fala: “Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade[79]”. O princípio orientador é assim o Cânone mencionado mais acima. Ele representa não a totalização das regulamentações externas restritivas da criatividade do artista, mas uma necessidade interior conscientemente aceita como uma regra construtiva, como um dos aspectos da Tradição da Igreja, paralelo às demais tradições, litúrgica, ascética e outras. Em outras palavras, o Cânone é forma pela qual a Igreja institui a subordinação da vontade humana à vontade de Deus, sua união, e essa forma de fato capacita a personalidade a não ser escrava da natureza pecaminosa, mas a superá-la, a subjugá-la, a “se tornar senhora de suas próprias ações e ser livre[80]”, conforme disse o Apóstolo Paulo – “todas as coisas me são permitidas, mas não me tornarei escravo de nenhuma[81]”. Essa maneira propicia o máximo de liberdade à arte criativa do homem, e a fonte que a alimenta é a graça do Espírito Santo. Assim, somente a arte criativa da Igreja constitui uma participação direta no ato Divino, uma ação totalmente litúrgica e, portanto, totalmente livre.

O grau em que essa arte possui uma qualidade litúrgica está em relação direta com a liberdade espiritual do artista. Um ícone pode ser tecnicamente perfeito mas possuir um baixo nível espiritual; inversamente, existem ícones toscos e primitivamente pintados, nos quais estamos diante de um alto nível espiritual.

O trabalho de um iconógrafo tem muito em comum como o trabalho de um padre oficiando. Theodosio o Eremita estabelece um paralelo definitivo entre ambos. Diz ele: “O Ofício Divino da representação sobre o ícone extrai sua origem dos santos Apóstolos. O padre e o iconógrafo devem ser ambos castos, ou casados e vivendo segundo a lei; pois o padre, oficiando de acordo com as palavras divinas, prepara o Corpo, do qual participamos pela remissão dos pecados; enquanto que o artista, ao invés de usar palavras, desenha e figura um corpo e lhe dá vida, e nós veneramos os ícones por causa dos seus protótipos[82]”. Assim como o padre não pode nem alterar os textos litúrgicos à sua vontade, nem colocar emoções em sua leitura, de modo a impressionar os fiéis com seu próprio estado ou percepção, também o iconógrafo deve se conformar à imagem consagrada pela Igreja, sem introduzir um conteúdo pessoal ou emocional, mas colocando aqueles que oram diante da mesma realidade, e deixando cada pessoa livre para reagir na medida das suas possibilidades e de acordo com seu caráter, suas necessidades, suas circunstâncias e assim por diante. Ademais, assim como um padre oficia de acordo com seus dons naturais e suas peculiaridades, também o iconógrafo transmite uma imagem de acordo com seu caráter, seus dons e sua proficiência técnica.

A iconografia, portanto, não consiste em copiar. Ela está longe de ser impessoal, porque seguir a Tradição nunca acorrenta o potencial criativo do iconógrafo, cuja individualidade se expressa na composição, nas cores e nas linhas. Mas o aspecto pessoal aqui é muito mais sutil do que em outras artes e muitas vezes escapa à observação superficial. A ausência de ícones idênticos já foi notada há muito tempo. Mais do que isso, entre ícones com a mesma temática, embora às vezes extremamente parecidos, nunca encontramos dois absolutamente idênticos (a não ser no caso das cópias, nos tempos mais recentes). Os ícones não são copiados, mas pintados a partir de, o que implica sua livre transposição criativa.

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Começando pelo sentido e o conteúdo do ícone, os Padres do VII Concílio Ecumênico confirmaram que o estado abençoado de um homem pode ser expresso por meio da matéria santificada pela Encarnação de Deus; e eles ordenaram a execução de ícones para veneração em todas as partes, da mesma forma como a imagem da vivificadora Cruz, “nas santas igrejas de Deus, nos vasos sagrados e nas vestimentas, nas paredes e painéis, nas casas e nos caminhos[83]”. Esse regulamento do santo Concílio mostra que na consciência da Igreja o papel do ícone, transmitido pela Tradição, não está limitado a preservar a memória de um passado santo. Seu papel, tanto na Igreja como no mundo, não é conservador, mas dramaticamente criativo. O ícone é visto como um dos meios pelos quais é possível e necessário se esforçar para adquirir a tarefa estabelecida para a humanidade, de adquirir a semelhança com o protótipo, de incorporar na vida aquilo que foi manifestado e transmitido pelo Deus Homem. Com essa importância, os ícones são colocados por toda parte como a revelação da futura santificação do mundo, de sua transfiguração vindoura, como padrão de sua realização e, finalmente, como a promulgação da graça e da presença no mundo de objetos santos, que o santificam. “Pois os santos estão cheios do Espírito Santo já desde suas vidas. Depois de sua morte a graça do Espírito Santo habita inexaurivelmente em suas almas e em seus corpos que jazem nos sepulcros, em seus semblantes e em suas santas imagens[84]”.

Assim é que, no século XIV, em resposta à doutrina escolástica colocada na controvérsia sobre a luz do Tabor, quando a Igreja foi forçada a estabelecer como uma definição dogmática seu ensinamento sobre a deificação do homem, ela também instruiu sobre a ação da Divina energia no homem, sobre sua iluminação pela graça, sua transfiguração, e não apenas por meio de fatos, através da experiência espiritual de seus santos, como também em imagens, na linguagem da arte. Essa linguagem duplamente realista da arte da Igreja, que fez sua aparição no início da era Cristã, recebeu sua confirmação dogmática em conexão com o estabelecimento do dogma da Encarnação da Segunda Pessoa da Santa Trindade (“Deus tornou-se homem...”), no primeiro período da história da Igreja, que culminou com o Triunfo da Ortodoxia. No segundo período, no decurso dos seis séculos que se seguiram ao Iconoclasmo, quando a questão central era a do Espírito Santo em conexão com a defesa do segundo aspecto do dogma (“...para que o homem se tornasse deus.”), a linguagem pictórica da Igreja se fez mais perfeita e precisa. Esse período assistiu à formatação final da linguagem iconográfica, que se tornou clássica e que corresponde inteiramente ao conteúdo do ícone. Esse foi o período de florescimento da arte da Igreja em diferentes países Ortodoxos: na Grécia, nos Balcãs, na Rússia, na Geórgia e em outros lugares.

De qualquer modo, assim como a própria santidade, da qual o ícone é um reflexo, se manifesta diferentemente em povos e épocas diferentes em correspondência às suas particularidades, também cada nação e cada período, transmitindo em imagens a mesma verdade, cria tipos diferentes de ícones, às vezes similares, mas em geral diferindo muito uns dos outros. Não existe contradição nisso, pois a revelação única se manifesta sob aspectos diferentes de acordo com o que requer esse ou aquele povo, essa ou aquela época. Assim, o caráter inflexivelmente hierático dos ícones Bizantinos não se opõem aos ternos e cálidos ícones Russos, pois Deus não é somente o juiz Onipotente e inflexível, como também é o Salvador do mundo, que se sacrificou pelos pecados do homem. Como no primeiro período, também mais tarde o ícone não se limitou a expressar apenas o dogmático e o espiritual, isso é, a vida interior da Igreja. Por intermédio dos homens que os criaram, esses ícones possuíam uma ligação viva com o mundo exterior, manifestando a feição espiritual de cada nação, seu caráter, sua história, respondendo a todos os complexos problemas do tempo e lugar por meios e métodos correspondentes a cada povo e a cada época. Mas, por fortes que fossem as características que ligavam o ícone ao mundo exterior, sua representação sempre foi um traço, e não a essência do ícone, que consistia e sempre consistiu em expressar o dogma da Igreja.

Conforme o dom da expressão que pertence a cada indivíduo e à nação como um todo, e também de acordo com a medida em que a revelação é experimentada na prática, ela é transmitida pela imagem com maior ou menor perfeição. Essas duas condições estão na base tanto das similaridades quanto das diferenças que existem entre os ícones de diferentes povos e períodos. O grau em que o dom da expressão está subordinado à revelação que pretende exprimir, determina o nível espiritual e a pureza da imagem. Nesse sentido o exemplo mais característico é o de Bizâncio e Rússia, os dois países onde a arte da Igreja alcançou seu mais alto grau de expressão. A arte de Bizâncio, ascética e rígida, solene e refinada, nem sempre alcança a altura espiritual e a pureza características do nível geral da iconografia Russa. Ela cresceu e se formou em tempos de luta e essa luta deixou sua marca nela. Bizâncio foi fruto da cultura do mundo antigo, cuja rica e variada herança foi chamado a introduzir na Igreja. Nessa tarefa, seu dom inerente por pensamentos e palavras sutis e profundos foi capaz de trazer para a Igreja tudo o que dizia respeito à linguagem verbal da Igreja. Bizâncio produziu grandes teólogos; ele desempenhou um grande papel na luta dogmática da Igreja, e foi particularmente decisivo na batalha pelo ícone. Mesmo assim, no nível da própria imagem, apesar do alto nível de expressão artística, permaneceu muitas vezes um traço da antiga herança que não foi inteiramente superada, e que se fez sentir, em maior ou menor grau, em diferentes aspectos que se refletiram na pureza espiritual da imagem[85]. Mesmo as obras primas do período clássico dessa arte, como nos mosaicos de Santa Sofia em Constantinopla (século XII), não são totalmente destituídos de um certo peso sensual; diante deles sentimos que a paz da alma e do corpo não foi ainda completamente alcançada[86]. E os mosaicos do século IX da mesma Santa Sofia estão definitivamente embebidos de sensualidade ancestral[87]. Posteriormente, vamos encontrar ainda os mesmos traços da antiga arte e de sua dependência da matéria, tanto nos ícones Bizantinos, como nos Gregos que se seguiram.

Por outro lado, a Rússia, que não esteve limitada pela complexa herança da antiguidade e pelas raízes de sua própria cultura, que eram muito mais rasas, atingiu um grau excepcionalmente alto de pureza da imagem, que fez com que a iconografia Russa se tornasse proeminente dentre as ramificações da iconografia Ortodoxa. Coube à Rússia produzir essa perfeição da linguagem pictórica do ícone, que revelou com enorme força a profundidade do significado da imagem litúrgica, sua espiritualidade. Podemos dizer que Bizâncio foi proeminente em dar ao mundo a teologia expressa em palavras, enquanto que a teologia expressa em imagens foi dada principalmente pela Rússia. É característico a esse respeito que, até a época de Pedro o Grande, existiam poucos escritores espirituais dentre os santos Russos; por outro lado, muitos santos eram iconógrafos, desde simples monges até metropolitas. O ícone Russo não é menos ascético do que o Bizantino. Mas seu ascetismo é de outra ordem. Aqui, a ênfase não está na dificuldade e no esforço, mas na alegria trazida por seu fruto, pela facilidade e leveza do jugo do Senhor, do qual Ele falou no Evangelho, que é lido no dia dos santos ascetas: “Tomem meu jugo sobre vós e aprendei comigo, que sou doce e humilde de coração; e encontrareis o repouso para vossas almas; pois meu jugo é simples, e meu fardo é leve[88]”. O ícone Russo é a mais alta expressão da humildade divina no homem. É por isso que, apesar de seu significado extremamente profundo, ele possui uma leveza e alegria infantis, e está cheio de uma paz tranquila e afetuosa. Tendo entrado em contato com as tradições do mundo antigo através de Bizâncio, especialmente nas sua base Helênica e não na sua versão Romana, a iconografia Russa não se deixou fascinar pelo encanto dessa herança. Ela a utilizou apenas como um meio, introduzindo-a por completo na Igreja, e a transfigurou; e assim a beleza da antiga arte adquiriu seu verdadeiro sentido na fisionomia transfigurada do ícone Russo[89].

Juntamente com o Cristianismo, a Rússia recebeu de Bizâncio, no final do século X uma imagem litúrgica já estabelecida, uma doutrina formulada referente a ela e uma técnica madura trabalhada do longo de séculos. Seus primeiros professores foram Gregos visitantes, mestres do período clássico da arte Bizantina, os quais, desde o início, nos afrescos das primeiras igrejas, como por exemplo em Santa Sofia de Kiev (1037-1161/67), utilizaram artistas Russos como assistentes[90].  A atividade desses pupilos, os primeiros santos iconógrafos Russos conhecidos, pertence ao século XI. Esses eram monges do mosteiro de Kiev-Pechersky: Santo Alípio, falecido cerca de 1114, e seu colaborador São Gregório. Santo Alípio é considerado o pai da iconografia Russa. Ele começou a pintar ícones desde a infância, visitando os mestres Gregos; depois ele se tornou monge e foi ordenado presbítero. Ele se distinguiu por uma incansável diligência, e pela humildade, castidade, paciência, jejum e amor pela meditação e pelos temas divinos. “Nunca se enraiveceu contra aqueles que o ofendiam, nem retribuiu o mal com o mal”, diz o hino da Igreja em sua honra[91]. Ele foi um dos monges ascetas que tornaram famosa a Lavra de Kiev-Perchesky[92]. Por intermédio de Santo Alípio e São Gregório, a arte da Igreja Russa, desde seus começos, foi guiada por homens iluminados pelo conhecimento recebido pela revelação direta, de que a iconografia Russa iria possuir muitos futuramente. Infelizmente, apesar da evidência de um grande número de ícones pintados por esses dois primeiros iconógrafos, hoje em dia só existem suposições e conjecturas a respeito deles; não temos nenhuma informação autorizada. De modo geral, podemos formar uma ideia do período de Kiev na arte da Igreja Russa, principalmente a partir de afrescos e mosaicos. A invasão Tártara de meados do século XIII, que envolveu a maior parte da Rússia, não apenas destruiu muitos ícones existentes, como também prejudicou consideravelmente a produção de novos. A maior parte dos poucos ícones desse período que foi preservada e depois descoberta pertence ao final do século XI, e aos séculos XII e XIII. Ademais, quase todos são atribuídos, mais ou menos corretamente, a Novgorod, que também foi uma fonte para a arte do século XI.

Os ícones da era pré Mongólica possuem um caráter excessivamente monumental que distingue a pintura mural, sob cuja influência a iconografia Russa permaneceu até o século XIV, e um caráter de expressão artística lacônico, tanto na composição, como nas figuras, nos gestos, nos planejamentos, etc. As cores prevalecentes são escuras, restritas e sombrias. Mas já no século XIII esse colorido sombrio começa a ser substituído pelas cores variadas e claras características da arte Russa. Surgiu um maior dinamismo interno e externo e uma tendência maior a preservar a superfície plana. Os primeiros ícones, embora mostrando traços Russos, ainda dependem em maior ou menor grau dos padrões Gregos. Presumivelmente o século XII foi o período de assimilação dos princípios e formas que a arte da Igreja herdou de Bizâncio; no século XIII esta começa a assumir o caráter nacional Russo, que encontrou sua expressão final no século XIV[93]. Os ícones desse período se distinguem pelo frescor e a franqueza de expressão, pelas cores vívidas, pelo sentido de ritmo e a simplicidade da composição. A atividade dos santos iconógrafos São Pedro, Metropolita de Moscou (falecido em 1326) e São Teodoro, Arcebispo de Rostov (falecido em 1394), pertencem a esse período.

Os séculos XIV, XV e a primeira metade do século XVI representam o mais refinado florescimento da iconografia Russa, que coincide com um igual florescimento da santidade Russa, em especial do tipo ascético, que declinou rapidamente na segunda metade do século XVI. Esse tempo produziu o maior número de santos canonizados, especialmente o século XV. De 1420 a 1500 o número de santos canonizados chegou a cinquenta.


A fronteira entre os séculos XIV e XV está ligada ao nome do maior de todos os iconógrafos, Santo Andrei Rublev, que trabalhou com seu amigo e professor, Daniel o Negro. Nos últimos dez anos toda uma série de afrescos e ícones pintados por ele vieram à luz, dos quais o primeiro lugar cabe à sua insuperável Trindade. (Ver reprodução anexa) A extraordinária profundidade da visão espiritual de Santo Andrei encontrou sua expressão através de seu excepcional talento artístico. A arte criativa de Andrei Rublev é a mais vívida manifestação da iconografia Russa de herança antiga. Toda a beleza da arte antiga é vivificada, cheia de um novo e verdadeiro sentido espiritual. Sua arte se distingue por um frescor juvenil, um senso de medida, uma suprema harmonia de cores, um ritmo encantador e a música de suas linhas. A influência de Santo Andrei na arte da Igreja Russa foi imensa. Referências a ele foram preservadas em manuais de iconografia, e o Concílio convocado em Moscou em 1551 pelo Metropolita Macário (ele próprio um iconógrafo) para decidir questões relacionadas à iconografia, aceitou a seguinte resolução: “pintar ícones a partir de padrões antigos, como fizeram os iconógrafos Gregos e como fez Andrei Rublev e outros artistas celebrados[94]”. Se qualquer de seus ícones fosse destruído, isso era reportado nos anais como um evento de graves consequências e de importância pública. A arte de Santo Andrei deixou sua impressão por todo o século XV na arte da Igreja Russa, a qual, nesse período, atingiu sua mais alta expressão artística. Esse é o período clássico da iconografia Russa. Os mestres do século XV atingiram uma extraordinária perfeição no controle da linha, na habilidade de inserir figuras num espaço definido, na excelência da correlação entre silhueta e fundo livre. Esse século foi de muitas maneiras uma repetição do precedente, mas difere dele por um maior equilíbrio e por uma estrutura mais perfeita. Um senso de ritmo excepcional permeia todas as coisas, uma pureza extraordinária e uma profundidade dos tons, a força e a alegria das cores expressam inteiramente a alegria e a serenidade de uma arte que encontrou sua maturidade combinada com uma inusitada profundidade e percepção espiritual.

A segunda metade do século XV e o começo do século XVI estão ligados a outro gênio, cujo nome se iguala ao de Santo Andrei: Dionísio, que trabalhou com seus filhos. Sua arte está baseada na tradição de Rublev e representa uma brilhante culminação da iconografia Russa do século XV. Essa culminação está ligada, numa certa medida, à preponderância dos meios externos de expressão. Por volta do final do século XV e início do XVI, a pintura se tornou sofisticada e formalmente refinada. Esse período mostra uma grande perfeição da técnica, a elegância das linhas e a sofisticação das formas e das cores. A arte de Dionísio está cheia de uma alegria particularmente viva, as proporções de suas figuras são alongadas e refinadas, com uma acentuada graça nos movimentos. Os contornos são ondulantes, suaves e fortes. Suas cores límpidas com delicados verdes, rosas e zuis pálidos possuem uma qualidade musical singular.

O século XVI preservou totalmente a impregnação da imagem pelo Espírito Santo; tampouco as cores vivas diminuem; ao contrário, elas assumem uma riqueza ainda maior de matizes. Esse século, como o anterior, continua a produzir ícones marcantes. Mas na sua segunda metade, a simplicidade majestática e a moderação clássica, que duraram por séculos, começa a vacilar. Os amplos planos e o sentimento monumental da imagem, o ritmo clássico e a antiga pureza e força da cor desaparecem. Surge um desejo por complexidade, virtuosismo e abundância de detalhes. Os tons se tornam sombrios e opacos e no lugar das antigas cores leves e límpidas, aparecem tons matizados de terra opacos que, combinados com o ouro, criam uma impressão pomposa e um esplendor algo lúgubre. Esse período marca uma reviravolta na iconografia Russa. O sentido dogmático do ícone deixa de ser sentido como um ponto essencial e o momento da narrativa assume um papel dominante[95] (Ver a descrição do Ícone da Natividade do Senhor no texto correspondente). Toda uma série de novos temas aparece, sugerida pela influência de figuras Ocidentais.

Esse período, e o começo do século XVII, estão ligados à atividade da nova escola de Stroganov, formada no nordeste da Rússia sob a influência da família Stroganov, grandes amantes da iconografia. A feição característica dos mestres de Stroganov desse tempo consistiu em ícones complexos com muitas figuras em pequena escala e um acabamento minucioso. Eles se distinguem pela notável fineza e virtuosismo de execução, e se assemelham a objetos de arte de joalheria. O desenho é complicado e rico em detalhes; as cores tendem a seguir um matiz geral, perdendo assim o brilho das cores individuais.

No século XVII começa o declínio da arte da Igreja. Esse declínio foi o resultado de uma profunda crise espiritual, de uma secularização da consciência religiosa, graças à qual, apesar da vigorosa oposição da Igreja[96], teve início a penetração não somente de elementos separados, como dos próprios princípio da arte religiosa do Ocidente, que eram estranhos à Ortodoxia. O conteúdo dogmático do ícone desapareceu da consciência dos homens e o realismo simbólico se tornou uma linguagem incompreensível para os iconógrafos que caíram sob a influência do Ocidente. A ligação com a Tradição foi quebrada. A arte da Igreja se tornou secularizada sob a influência de uma arte secular realística nascente, cujo pai foi o famoso iconógrafo Simon Oushakov. Essa secularização foi o reflexo, no domínio da arte, da secularização generalizada da vida da Igreja. O resultado foi uma mistura da imagem da Igreja com a imagem mundana, da Igreja com o mundo. O realismo simbólico, baseado na experiência espiritual e na visão, desapareceu devido à ausência dessa última e da perda dos laços com a Tradição. Esse fato deu origem a uma imagem que já não testemunhava o estado transfigurado do homem – a realidade espiritual – mas que expressava diferentes ideias e opiniões conectadas com essa realidade; assim é que, aquilo que era o realismo para a arte secular, tornou-se o idealismo quando aplicado à arte da Igreja. Isso também permitiu o surgimento de um tratamento mais ou menos arbitrário do próprio tema, que se tornou meramente uma ocasião para expressar essa ou aquela ideia ou concepção, levando também inevitavelmente a uma distorção da realidade histórica.

A perda da consciência do sentido dogmático da arte conduziu ainda inevitavelmente a uma distorção de seus próprios fundamentos[97], e nenhum dom artístico, nenhuma técnica refinada se mostrou capaz de substituí-los; assim sendo, a iconografia se tornou um meio-ofício, ou simplesmente um ofício.

Mas a consciência dogmática da imagem não foi perdida pela Igreja, e seria errado pensar que essa decadência representou o fim do ícone. O ofício da iconografia sempre existiu lado a lado com a grande arte; mas nos séculos XVIII, XIX e XX, ele assumiu uma importância dominante. Mas mesmo aqui, “mesmo nos tempos de completa decadência, afrescos e ícones, desprovidos de qualquer mérito, atraíram os olhares pela harmonia e a força de seu efeito geral. Mesmo hoje, no nível de uma péssima produção comercial, essas coisas possuem algo como ‘cada coisa em seu lugar’, que tão frequentemente falta à pintura moderna[98]”. Tal é a força da tradição da Igreja que, mesmo no nível mais baixo da criação artística, preserva os ecos da grande arte. Ademais, esse nível de artesania nunca foi e continua não sendo uma regra absoluta. Lado a lado com a imagem que perdeu sua ligação com a Tradição da Igreja e que se tornou em parte ou totalmente mundana, lado a lado com ícones ruins pintados por artesãos, sempre foram produzidos, e continuam a ser produzidos, ícones de alto nível, tanto na Rússia como em outros países Ortodoxos, em meio à decadência que os assolou em épocas diferentes. Os iconógrafos que não desertaram da tradição iconográfica da Igreja, mantiveram-na durante esses séculos de decadência e preservaram até os nossos tempos a verdadeira imagem litúrgica, muitas vezes de grande conteúdo espiritual e alto padrão artístico.

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Como já dissemos, o Cristianismo é a revelação não apenas do Verbo de Deus, mas também da Imagem de Deus, na qual se manifesta Sua Semelhança. Essa imagem divina é a característica distintiva do Novo Testamento, sendo o testemunho visível da deificação do homem. Os caminhos da iconografia, como meios de expressar o que se refere à Divindade, são os mesmos caminhos da teologia. A tarefa de ambas é a mesma, a de expressar aquilo que não pode ser expresso por meios humanos, pois essa expressão seria sempre imperfeita e insuficiente. Não existem palavras, nem cores ou linhas, que possam representar o Reino de Deus do mesmo modo como representamos e descrevemos nosso mundo. Tanto a teologia como a iconografia encaram um problema que é absolutamente insolúvel – expressar por meios que pertencem ao mundo criado aquilo que está infinitamente acima da criatura. Nesse plano, não se pode ter sucesso, porque o próprio objeto está fora da compreensão e, por mais elevado em conteúdo e beleza que possa ser um ícone, ele não pode ser perfeito, assim como nenhuma imagem em palavras pode ser perfeita. Nesse sentido, tanto a teologia como a iconografia são sempre falhas. E é precisamente nessa falha que reside o valor de ambas: pois esse valor resulta do fato de que tanto a teologia como a iconografia buscam o limite das possibilidades humanas e provam sua insuficiência. Por isso os métodos da iconografia para apontar o Reino de Deus podem ser apenas figurativos, simbólicos, como a linguagem das parábolas das Santas Escrituras. Mas o conteúdo expresso por essa linguagem simbólica é imutável, tanto nas Escrituras como na imagem litúrgica.

Assim como o ensinamento que se refere à finalidade da vida Cristã – a deificação do homem – continua a existir, também o ensinamento dogmático referente ao ícone continua a existir e viver nos ofícios Divinos da Igreja Ortodoxa, graças aos quais a correta atitude para com o ícone foi preservada. Para o fiel Ortodoxo de nosso tempo, um ícone, seja moderno ou antigo, não é objeto de uma admiração estética ou tema de estudo: é uma arte viva, inspirada pela graça, que o alimenta. Nos nossos tempos, como antigamente, não apenas o ícone continua a ser pintado de acordo como Cânone, como a consciência de seu conteúdo e importância está mais uma vez despertando; pois agora, como antes, ele corresponde a uma realidade concreta definida, a uma experiência vívida definida, que em todos os tempos esteve viva na Igreja. Por exemplo, um de nossos contemporâneos, um staretz do Monte Athos que faleceu em 1938, descreveu sua experiência pessoal nos seguintes termos: “Existe uma grande diferença entre meramente acreditar que Deus existe, conhecê-lo a partir da natureza ou das Santas Escrituras, e conhecer o Senhor pelo Espírito Santo [...] O Senhor é conhecido no Espírito Santo, e o Espírito Santo está no homem inteiro – em sua alma, em sua mente e em seu corpo [...] Aquele que chegou a conhecer o Senhor pelo Espírito Santo assume a semelhança com o Senhor; como disse São João Evangelista, ‘Nós seremos como Ele, pois O veremos tal como Ele é[99]’, e então poderemos contemplar a Sua glória[100]”. Assim sendo, do mesmo modo como a experiência viva de deificação do homem continua a existir, também a Tradição iconográfica, e, com ela, sua técnica; pois desde que essa experiência vive, sua expressão, seja em palavras ou em imagens, não pode desaparecer. Em outras palavras, sendo a expressão exterior da semelhança de Deus no homem, o ícone não pode desaparecer, assim como a semelhança do homem para com Deus tampouco pode desaparecer. As palavras de São Simeão o Novo Teólogo, ditas no século IX, se aplicam aqui, como aliás se aplicam a qualquer período da história da Igreja: “Aqueles que dizem que já não existem homens [...] dignos de receber o Espírito Santo [...] de serem regenerados por meio da graça do Espírito Santo e se tornarem filhos de Deus com consciência, experiência prática e visão, invertem a revelação da Encarnação de nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, e claramente negam a renovação da imagem de Deus ou da natureza humana, corrompida e castigada pelo pecado[101]”.














[1] Eusébio, Bispo de Cesareia na Capadócia (265-340), História da Igreja, Livro VII, cap. 18; PG. 20 col 680.
[2] Cf. Mateus 9: 20-23; Marcos 5: 24-34; Lucas 8: 43-48. Supõe-se que o baixo-relevo que se encontra num dos sarcófagos do século IV preservados no museu Laterano é uma reprodução dessa estátua.
[3] A existência desse tipo de atitude em relação à arte nos primeiros séculos do Cristianismo deu origem à afirmação de que “a arte Cristã nasceu fora da Igreja e, pelo menos no início, se desenvolveu contra sua vontade. O Cristianismo, que brotou do Judaísmo, era naturalmente tão avesso a qualquer tipo de idolatria quanto o era a religião que lhe deu origem”. Essa opinião de L. Bréhier (L’Art Chrétien, pg. 13, Paris 1928) expressa uma visão que é muito difundida quanto ao relacionamento da Igreja antiga com a arte. Ainda assim, deixando de lado a identificação da veneração aos ícones com a idolatria – identificação incompreensível para a consciência do fiel da Igreja – essa asserção nos parece tão pouco convincente quanto os testemunhos de escritores antigos citados em seu favor. Por exemplo, o mais implacável deles, Clemente de Alexandria (ca. 215), protestando contra as imagens, obviamente tinha em mente os ídolos, porque ele indica ao mesmo tempo quais símbolos poderiam ser utilizados em selos, e alguns desses símbolos incluíam figuras humanas (Pedagogo, I, III, c. CI; PG. 8. Col. 633). E as referências aos “Padres da Igreja” Tertuliano (160-240) e Orígenes (185-249) são ainda menos convincentes, porque, apesar do respeito que a Igreja tem por eles, não apenas nunca foram vistos como Padres ou como santos, como ainda grande parte do seu ensinamento foi rejeitado pela Igreja como inaceitável. Consequentemente, nos parece mais justificável aceitar a asserção oposta, baseada, antes de tudo, no fato da existência de imagens nas catacumbas, a quais, como se sabe, serviam como locais de culto. Essas imagens eram conhecidas pelos fiéis mais simples e também pela alta hierarquia eclesiástica, e sua distribuição indica uma orientação definida pela Igreja. Se considerarmos a conhecida 36ª. Regra do Concílio local de Elvira (Espanha, 300), tantas vezes citada, que proíbe exibir nas paredes das igrejas coisas que sejam objeto de culto e veneração, isso não fornece base suficiente para que seja interpretado num sentido iconoclasta. Os padres desse Concílio estavam se referindo apenas a imagens nas paredes, ou seja, de pinturas monumentais que fizessem parte do edifício, mas não disseram nada sobre imagens de outros tipos que existiam e que se encontram preservadas até hoje (como, por exemplo, em sarcófagos). Só podemos concluir que essa proibição foi devida a razões práticas e não a uma atitude em relação às imagens sagradas baseada num princípio. Nesse último caso a regra teria que ser formulada de modo diferente e não teria proibido unicamente as imagens sobre as paredes. O Concílio aconteceu pouco antes das perseguições de Deocleciano, que já podiam ser antevistas. Assim sendo, esse texto poderia também ser interpretado como um desejo de proteger as imagens do ultraje. (Cf. Hefele, Histoire des Conciles, vol. I, parte I, pg. 240, Paris 1907.
[4] João 1: 18.
[5] Hebreus 1: 3.
[6] João 14: 8-9.
[7] Atos do Concílio, 6ª. Sessão.
[8] Assim, por exemplo, São Basílio o Grande diz em seu 17º. Discurso no dia do santo mártir Balaam: “Levantem-se diante de mim, ó iconógrafos dos méritos dos santos [...] Conquistem-me com pinturas dos valorosos atos desse mártir! [...] Deixem-me olhar para esse guerreiro vividamente representado em suas imagens [...] E que o Instigador dessa luta, Cristo, seja representado em sua pintura.” (PG. 31, col. 489C). A conhecida orientação de uma dos maiores escritores ascéticos da antiguidade, São Nilo do Sinai (morto por volta de 430 ou 450) é característica no mesmo sentido. Endereçada ao Prefeito Olympiodoros, que construíra uma igreja e tencionava embelezá-la com pinturas decorativas e cenas cotidianas, ela diz: “Deixe que a mão do artista encha a igreja de ambos os lados com pinturas do Velho e do Novo Testamentos, para que os iletrados, que não podem ler as Divinas Escrituras, possam, ao olhar para as imagens pintadas, trazer à mente os valorosos atos daqueles que serviram a Deus com toda sinceridade, e que possam eles próprios serem incitados a rivalizar com essas empresas gloriosas e memoráveis, por meio das quais eles possam trocar a terra pelos céus, preferindo o invisível ao visível.” (São Nilo, Epist. PG 79, col. 577)
[9] V. N. Lazarev, History of Bizantine Painting, Moscou 1947, pg. 38.
[10] Katakombenmalereien: Die Anfänge des christlichen Kunst, Munique, 1924.
[11] Eventualmente o significado de pinturas individuais só se torna claro quando colocado ao lado de outros fatos dentre os quais ele ocorre. Por exemplo, numa série de três imagens, 1) um pescador tira um peixe da água, 2) um batismo e 3) um paralítico carrega sua cama, a primeira imagem é o símbolo da conversão à fé Cristã, e depois se mostra como, por meio do batismo, o homem é inteiramente curado de seus pecados e enfermidades. Roma, catacumba de Calixto.
[12] Catacumba romana de Priscila, século II.
[13] V. N. Lazarev, op. cit. vol. I, pg. 48.
[14] Dada a complexa formação da arte Cristã, fazer a imagem Cristã derivar dos retratos funerários Egípcios, como se costuma, constitui uma excessiva simplificação de sua gênese, incorreta tanto histórica como dogmaticamente.
[15] Didaque, IX, 4, Les Pères Apostoliques, Doctrine des Apôtres, pgs. 16-18, Paris, 1926.
[16] Cf. Hebreus 8: 5; 10: 1.
[17] Em conexão com a mudança de posição da Igreja, quando esta obteve sob São Constantino o direito à existência no Império Romano, o caráter da arte da Igreja também mudou. Nesse tempo, uma grande onda de novos convertidos inundou a Igreja, que sentiu a necessidade de igrejas mais espaçosas e uma mudança no caráter da pregação. Os símbolos dos primeiros séculos, que pertenciam a um pequeno número de iniciados – para os quais seu significado e conteúdo eram claros e inteligíveis, eram menos compreensíveis para os conversos. Daí que, a fim de tornar o alcance do ensinamento da Igreja mais acessível a esses, tornou-se necessária uma expressão pictórica do ensinamento mais concreta e clara. Nesse contexto apareceram, nos séculos IV e V, pinturas colossais representando os grandes ciclos históricos de eventos dos Velho e Novo Testamentos. A maior parte das principais festas da Igreja foram estabelecidas nessa época, assim como as grandes linhas de composição correspondentes a elas, que até hoje são preservadas na Igreja Ortodoxa. Deve-se notar que os temas da arte da Igreja desse tempo apresentam um definitivo caráter de respostas dogmáticas a questões levantadas na esfera da fé, refletindo a luta dogmática da Igreja contra as heresias existentes. Por exemplo, em resposta à heresia Ariana condenada pelo Primeiro Concílio Ecumênico (325), de cada lado da imagem do Salvador foram colocados o Alfa e o Ômega, indicando que Jesus Cristo é consubstancial ao Pai. Depois da condenação de Nestorius pelo Concílio de Éfeso em 431, e da solene proclamação da verdade da Divina Gestação de Maria, apareceram imagens triunfais da Mãe de Deus, com a Divina Criança entronizada em glória. O mesmo tema do combate contra o nestorianismo deu origem a a todo um ciclo de imagens na Igreja de Santa Maria Maggiore em Roma, enfatizando a Divindade do Menino Jesus e a importância da Mãe de Deus. Afrescos nas igrejas do século VI de Santa Sofia e dos Santos Apóstolos em Constantinopla também refletem o combate aos ensinamentos de Nestorius e Eutíquio. Os combates dogmáticos por meio de imagens foi mantido ainda nos séculos subsequentes. Assim, por exemplo, após o fim do período iconoclasta, a imagem do Salvador Emanuel foi amplamente utilizada como testemunho da Encarnação Divina. Essa imagem foi usada na luta contra a heresia dos Judaizantes na Rússia no século XV. Contra essa mesma heresia apareceram, na iconografia dos séculos XV e XVI uma série de novos temas, demonstrando a conexão entre o Velho Testamento e o Novo como seu sucessor.
[18] Por isso é impossível entender a imagem de uma festa ou de um santo, descobrir o sentido e a importância de seus detalhes, a menos que se conheça o ofício Divino correspondente, e, no caso de uma santo, também sua vida. As análises e explicações existentes de ícones erram exatamente porque a aderência a essas coisas é meramente superficial, quando não ausente.
[19] Discurso 19, Sobre os 40 Mártires. PG. 31, col. 509 A.
[20] Atas do VII Concílio Ecumênico, Ata 6.
[21] João 18: 36.
[22] Esse era o caso da ala extrema dos iconoclastas dos séculos VIII e IX. De fato, embora muitos iconoclastas tolerassem imagens nas igrejas e protestassem apenas contra sua veneração, a ala extrema, ao contrário, negava a veneração de qualquer coisa material, chegando assim logicamente à negação de toda santidade terrestre, da veneração da Virgem e do santos.
[23] Refutação 3, cap. 2, sec. 3. PG. 99, col. 417C.
[24] Ver a explicação da primeira parte do Kontakion do Triunfo da ortodoxia no comentário sobre o ícone de Cristo adiante.
[25] Atas do VII Concílio Ecumênico, Ata 4.
[26] São João Damasceno, A Fé Ortodoxa, Livro III, cap. 6. PG. 94, col. 1004 A.
[27] Esse ponto constitui a diferença fundamental entre a Ortodoxia e o iconoclasmo. Os iconoclastas viam a imagem como consubstancial com o original, possuindo a mesma natureza que este. Partindo dessa premissa, eles chegaram à conclusão lógica de que o único ícone possível de Cristo é a Eucaristia. “Cristo deliberadamente escolheu, como imagem de Sua Encarnação, o pão, que não traz semelhança com o homem, de modo a prevenir a idolatria” (exposição da doutrina iconoclasta no VII Concílio Ecumênico). “Mas nada é mais estranho aos fiéis Ortodoxos do que identificar o ícone com a pessoa representada. O santo Patriarca Nicéforo [...] tendo indicado a diferença entre o ícone e o original, disse: ‘Aqueles que não podem entender essa diferença podem com justiça ser chamados de idólatras.’” (G. Ostrogorsky, Gnoseological grounds of the dispute regarding the holy icons, Seminarium Kondakovianum, vol 2, pg. 50, Praga, 1928). Todo o argumento dos iconoclastas derivava assim de uma premissa fundamental – um falso entendimento daquilo que é a imagem. É por isso que os Ortodoxos e os iconoclastas nunca puderam chegar a um acordo mútuo: eles falavam linguagens diferentes e todos os argumentos dos iconoclastas erraram o alvo.
[28] São João Damasceno. 3º. Discurso em Defesa dos Santos Ícones, par. 16. PG. 94, col. 1337AB.
[29] G. Ostrogorsky, op. cit., pg. 49.
[30] São Teodoro o Estudita, Refutação 3, cap. 3, par. 7. PG. 99, col. 424.
[31] São João Damasceno, Comentário de São Basílio o Grande, apêndice do 1º. Discurso em Defesa dos Santos Ícones, pg. 94, col. 1256 A.
[32] 1º. Discurso em Defesa dos Santos Ícones, cap. 22. PG. 94, col. 1256 A.
[33] Essa “imagem de terra” é a causa de sua proibição no Antigo Testamento. A perda da semelhança com Deus e a Queda distorceram a imagem de Deus no homem e a representação dessa imagem distorcida inevitavelmente levaria à idolatria. Por conseguinte, o culto das imagens no Antigo testamento só poderia admitir símbolos como a vara, o vaso de ouro (Hebreus 9: 4), etc., isto é, o ícone do ícone, pois somente esses poderiam ser imagens da futura realização da promessa do Novo Testamento. A única exceção era a imagem dos querubins, feitas de acordo com o mandamento de Deus (Êxodo, 25: 18-22), como seres previamente estabelecidos a serviço de Deus. Além disso, suas imagens eram permitidas apenas em lugar e posição que enfatizassem sua subordinação a Deus (como guardiões da arca da Aliança). Essencialmente, essa exceção anulava a proibição, na medida em que consentia num sentido pedagógico condicionado. Ela admitia em princípio, por um lado, a possibilidade do culta da imagem, e, por outro, a representação do mundo espiritual por meio da arte.
[34] Atas, ibid., Ata 6.
[35] Gênesis 1: 27.
[36] Ibid.
[37] São João Damasceno, Exposição da Fé Ortodoxa, Livro II, cap. 12, Do Homem. PG. 94, col. 920B.
[38] I Coríntios 6: 19.
[39] Essa é a origem do termo eslavônio prepodobny, “muito parecido”, usado com referência ao tipo de santidade monástica. Essa palavra, criada no tempo de São Cirilo e São Metódio para traduzir o termo Grego osios, indica que um homem adquiriu a semelhança perdida com Deus. Não existe correspondência em outras línguas. Por outro lado, os termos antônimos nepodobny (dissemelhante) e nepodobnye (dissemelhança) podem ser resgatados de uma grande antiguidade. Platão utiliza esses termos num sentido filosófico no diálogo Político, para expressar a dissimilaridade entre o mundo e sua ideia. Santo Atanásio o Grande já os utilizava no sentido Cristão: “Ele, que criou o mundo, vendo-o agitado pelas tempestades e em perigo de ser engolido num ‘lugar de dissemelhança’, tomou o elmo da alma e foi em seu socorro, corrigindo todas as suas transgressões”. Santo agostinho diz nas suas Confissões (VII, 10, 16): “Eu vi a mim mesmo longe de Ti, na região da dissemelhança”.
[40] Mateus 17: 2.
[41] Atas, ata 6.
[42] Works of Philaret, Metropolitan of Moscow and Kolomna, Discurso 12, Moscou, 1873.
[43] PG. 150, 1225 A, cap. 149.
[44] Discursos de São Simeão o Novo Teólogo, Discurso 83, sec. 3, pag. 385, Moscou, 1892.
[45] São Dionísio o Areopagita, Os Nomes Divinos, cap. 4, sec. 7. PG. 3, col. 701C.
[46] Romanos 1: 20.
[47] Atas, Ata 6.
[48] I Coríntios 15: 50.
[49] Portanto, atribuir ao ícone, como se faz às vezes, um monofisitismo ou algo que possa conduzir ao monofisitismo significa não entender absolutamente sua essência. O que se toma usualmente como sendo monofisitismo é a presença no ícone de uma indicação da segunda realidade, como mencionamos, que o distingue das outas formas de arte. Por sua vez, no mesmo campo, o monofisitismo pode também ser atribuído às Santas Escrituras, pois, não menos do que o ícone, elas contêm uma indicação da mesma realidade, e pela mesma razão, e no mesmo sentido, elas diferem de toda a demais literatura.
[50] Olhar o ícone como a personificação de alguma ideia, virtude, etc., como costuma acontecer (por exemplo, tomar a Santa Mártir Paraskeva como personificação da morte do Salvador, e a Santa Mártir Anastácia como personificando Sua Ressurreição, e coisas assim) demonstra uma aproximação demasiado teórica da questão, desprovida de fundamento factual. É verdade que às vezes são admitidas alegorias nos ícones, como a personificação do Rio Jordão, ou das florestas e campos, do sol e da lua, etc., mas isso nunca acontece com os ícones dos santos.
[51] 2ª. Refutação, cap. 3, sec. 5. PG. 99, col. 421.
[52] Cf. o original. Ver reprodução acima.
[53] “De acordo com o costume estabelecido na Igreja Ortodoxa [...] antes ainda de que um santo fosse canonizado e seus restos desenterrados, eram feitos ícones daqueles que houvessem conquistado mais respeito dentre o povo enquanto vivos, e esses ícones eram depois distribuídos nos tempos das gerações próximas. Informações gerais e distintivas sobre o santo eram preservadas, assim como esboços, desenhos e notas verbais” (N.P. Kondakov, The Russian Icon, parte I, pg. 19). Conhecem-se casos na Rússia em que eram feitos ícones, embora não distribuídos, durante a própria vida do santo, senão diretamente, pelo menos de memória.
[54] Cf. esquemas apresentados no original. Ver reprodução acima.
[55] “A arte Cristã”, diz N.P. Kondakov, “geralmente constrói suas composições obre uma base realista, reproduzindo, mesmo que apenas nos ambientes e nos detalhes, as reais condições nas quais os eventos Cristãos tiveram lugar”.
[56] Filarete, Metropolita de Moscou e Kolomna, vol. 3, Discurso 57 Sobre a Anunciação.
[57] Bispo Inácio Brianchaninov, A Experiência Ascética, vol. I.
[58] Ibid.
[59] A Hierarquia Eclesiástica, cap. 2, III, sec. 8. PG. 3, col. 437.
[60] São Simeão o Novo Teólogo, ibid., Discurso 15, par. 2, pg. 143.
[61] Como exemplo de tradução do aspecto terrestre de um santo para o ícone, citaremos o seguinte caso: na exumação dos restos de São Nicetas, Arcebispo de Novgorod, em 1558, que se encontravam intactos, foi feito um retrato póstumo de sua face e enviado às autoridades da Igreja, com a seguinte mensagem: “Senhores, graças à misericórdia do santo, enviamos em papel essa imagem de São Nicetas, o Bispo [...] e pedimos que seja feito um ícone pintado – uma imagem do santo, a partir desse original”. (N.P. Kondakov, O Ícone Russo, III, parte I, pg. 19)
[62] Bispo Inácio Brianchaninov, ibid.
[63] Filocalia, vol. I, pg. 21, Londres 1954.
[64] Cf. no original, ver a descrição do ícone da Natividade. Ver reprodução.
[65] Embora o ícone seja acima de tudo uma linguagem de cores, que são tão simbólicas quanto as formas e as linhas, não tocamos aqui em seu simbolismo, e não nos estenderemos a esse respeito nas descrições de ícones específicos, com a exceção de algumas cores fundamentais, porque o significado das cores se perdeu quase que por completo ao longo dos séculos. Consequentemente, existe o perigo de incorrermos em interpretações individuais arbitrárias, que podem nos levar ao domínio das conjecturas, muito tentadoras, mas desprovidas de autenticidade e, portanto, quase nunca – ou nunca – convincentes, embora E. Trubetskoy tenha tido sucesso ao notar certos princípios gerais (Ver Icons: Theology in Color, St. Vladimir’s Seminary Press, 1975). Partindo do princípio geral do simbolismo Ortodoxo, devemos dizer que não se deve ligar um significado simbólico a cada sombra, seja na iconografia, ou a cada detalhe e cada linha, seja num desenho. Em ambos os casos o simbolismo estará sempre no que é fundamental: nas cores principais e nas linhas gerais.
[66] Cf. no original, São Macário de Unsha na pg. 134 e o Evangelista Lucas na pg. 115). Ver reprodução.
[67] Cf. no original, o ícone da Anunciação, pg. 171, onde a base de uma estrutura incompreensível pende de uma igualmente incompreensível abertura no teto. Ver reprodução.
[68] A opinião de que os antigos iconógrafos não conheciam a perspectiva direta e por isso utilizavam a inversa não tem fundamento e é refutada pelo próprio ícone. Se olharmos com atenção para o ícone da Trindade de Rublev, por exemplo (pg. 198 no original), podemos ver que ambas as perspectivas são usadas aqui. Assim é que a abertura da cavidade para a gaveta na mesa e o edifício ao fundo estão representados em perspectiva direta, enquanto que os escabelos dos Anjos, a própria mesa e as cabeças dos Anjos estão em perspectiva inversa. Esse método de combinar as duas perspectivas não é raro nos ícones antigos; mas a preferência é sempre pela perspectiva invertida.
[69] Hebreus 12: 1.
[70] Cf. Lucas 17: 21.
[71] São Simeão o Novo Teólogo, Discurso 63, par. 3, pg. 115.
[72] São Simeão o Novo Teólogo, ibid., pg. 116.
[73] São João Damasceno, Terceiro Discurso em Defesa dos Santos Ícones, cap. 17. PG. 96, col. 1337B.
[74] Êxodo 25: 9.
[75] São Simeão o Novo Teólogo, ibid. pg. 115.
[76] Diálogo contra as heresias, c. 23. PG. 155, col. 113D.
[77] Nesse plano, a arte criativa do iconógrafo é diametralmente oposta das criações da arte religiosa Ocidental e Ocidentalizada, na qual a liberdade é entendida como totalmente entremesclada com a expressão da personalidade do artista, com seu “eu”, e na qual as emoções individuais, as crenças, o entendimento e a experiência dessa ou daquela personalidade humana estão colocadas acima da profissão da verdade objetiva da Divina revelação. Sem o sacramento da confissão, que purifica por meio do arrependimento, todo o trabalho criativo de uma pintor se torna como se fosse uma confissão pública. Sem esse arrependimento, essa confissão pública não purifica ou liberta o artista, mas infecta o espectador com tudo o que existe nele. Aqui a “liberdade” do artista se manifesta às expensas da liberdade do espectador, a quem é imposta a percepção pessoal do artista, projetando-o para fora da realidade da Igreja. Um artista que, consciente ou inconscientemente, siga esse caminho, se torna escravo de seus sentidos e emoções, e assim a imagem que ele cria perde inevitavelmente seu conteúdo litúrgico e sua significância. Mais do que isso, uma perspectiva individualista da arte na Igreja destrói sua unidade, quebra-a, corrompe o vínculo de um artista com outros e com a Igreja. Em outras palavras, o princípio da catolicidade é substituído pelo culto ao individualismo, à exclusividade, à originalidade, como podemos ver por exemplo, na nova decoração da Igreja Católica de Assy (França). Nesse sentido, o exemplo de Bernadette de Lourdes é significativo: “Tendo sido mostrado a ela um álbum com imagens de Nossa Senhora, ela rejeitou com horror as da renascença; tolerou as de Fra Angelico; mas demorou-se com certa satisfação sobre os rígidos e despersonalizados mosaicos e afrescos antigos”. (Ver. C.C. Martindale, S.J., What the Saints Looked Like, Catholic Truth Soiciety, B. 397, pg. 4)
[78] São Simeão o Novo Teólogo, Discurso 87, ibid., pg. 456.
[79] II Coríntios 3: 17.
[80] São João Damasceno, A Fé Ortodoxa, Livro II, cap. 27. PG. 94, col. 960D.
[81] I Coríntios 6: 12.
[82] The Iconographic Manual of Bolshakov, ed. Por A.I. Ouspensky, Moscou, 1903, pg. 3.
[83] Regulamentações do VII Concílio Ecumênico.
[84] São João Damasceno, Primeiro Discurso em Defesa dos Santos Ícones, par. 19. PG. 94, col. 1294CD.
[85] Em geral, o desenvolvimento da arte da Igreja em Bizâncio foi “conectada a toda uma série de longas crises – renascimentos da antiga arte clássica [...] Tal recrudescência da arte antiga foi muito forte no século IV, quando o Cristianismo triunfante adotou quase que in toto o aparato pictórico da antiguidade. Retornos similares à arte clássica ocorreram esporadicamente em Bizâncio” (V. Lazarev, History of Byzantine Painting, vol. I, pg. 39). Essencialmente, essas recrudescências da arte clássica não passaram de ecos, no domínio da arte da Igreja, do processo de introduzir de tudo na Igreja, um processo que afetou todos os aspectos da perspectiva mundial da antiguidade. Nesse processo de infusão no Cristianismo, chegaram à Igreja muitas coisas que não tinham nada a ver com ela e que não tinham como ser assimiladas, mas que deixaram suas marcas na arte da Igreja. Assim sendo, o efeito desses “renascimentos” foi introduzir nessa arte o caráter ilusório e sensual da arte pagã, que é totalmente estranho à Ortodoxia. Mais tarde s mesmos elementos, artificialmente ressuscitados pelo Renascimento Italiano, infiltraram-se na Igreja sob o disfarce do naturalismo, do idealismo e outros.
[86] Por exemplo, o mosaico da Deisis na galeria Sul.
[87] Por exemplo os mosaicos da abside: a Mãe de Deus entronizada com o Menino e o Arcanjo Gabriel na abóboda do santuário.
[88] Mateus 11: 29-30.
[89] A iconografia Russa representa o maior e mais explorado campo da Arte Ortodoxa. Assim sendo, daqui em diante vamos nos manter apenas dentro dos contornos dessa arte, não tocando mais na arte dos demais países Ortodoxos.
[90] V. Lazarev, op. cit., pg. 94. Dado que o Cristianismo se espalhou pela Rússia antes do século X, parece não haver dúvida de que iconógrafos Russos já existiam em períodos anteriores à aceitação oficial da religião Cristã, embora não disponhamos de dados positivos a respeito.
[91] Tropário, tom 8. Cânone do santo.
[92] Ver M. e V.I. Ouspensky, Notes on Ancient Russian Iconography: St. Alipy and A. Rublev, pg. 6, São Petersburgo, 1901.
[93] Peculiaridades locais influenciam e determinam também o caráter particular da criação artística. Por exemplo, a preferência do povo de Novgorod pelas coisas simples, poderosas e expressivas se refletiu na arte da Igreja daquela cidade. I. Grabar nos dá uma bonita descrição dessa arte: “O ideal do homem de Novgorod é força e beleza – a beleza da força. Sua arte é por vezes rude, mas sempre magnificente, pois ela é forte, majestosa, impressionante. Assim é a iconografia de Novgorod – vívida em cores, forte e ousada, com um pincel seguro, contornos feitos por uma mão confiante, decidida e imperiosamente” (I. Grabar, Problems in Restoration, pg. 587, Moscou 1926). Os artistas de Novgorod utilizavam cores não misturadas, nas quais predominavam o vermelho, o verde e o amarelo. Os ícones vivamente coloridos de Novgorod se baseiam em contrastes entre cores opostas. Os ícones são dinâmicos no desenho e na composição.
Os ícones de Suzdal se distinguem por seu caráter aristocrático e pelo requinte e elegância das proporções e das linhas. Eles possuem “uma peculiaridade que os distinguem agudamente daqueles de Novgorod. Sua tonalidade geral é sempre fresca, tingida de azul e prata, ao contrário dos ícones de Novgorod, que invariavelmente pendem para o amarelo quente e os matizes dourados. Em Novgorod, predominam o ocre e o vermelhão, mas o ocre jamais predomina nos ícones de Suzdal, e, mesmo quando utilizado, é subordinado a outros matizes, que produzem a impressão de uma escala de azuis prateados” (Problems in Restoration, pg. 61).
As cores gerais dos ícones de Pskov são quase sempre escuras e limitadas a três tons, sem contar o fundo – vermelho, marrom e verde escuro, e às vezes apenas s dois tons – vermelho e verde. É típico de um mestre de Pskov usar o dourado para indicar realces, por meio de linhas paralelas radiantes. (G. N. Dmitriev, Guide to the Russiam State Museum, 1940)
Os ícones de Vladimir e os de Moscou, que se seguiram e se tornaram dominantes no século XIV, diferem dos demais por se basearem num equilíbrio exato de diferentes matizes com o objetivo de criar um todo harmonioso. Devido a isso a paleta de Vladimir, e depois a de Moscou, se distinguem não tanto pela intensidade, como pela harmonia de suas cores, apesar da existência de tons individuais vivos (A. I. Anisimov, Masterpieces of Russian Paintings, Londres, 1930). Em contraste com os rostos longos de Novgorod, os de Moscou são caracteristicamente arredondados.
Naturalmente, todas essas características possuem um valor meramente relativo e convencional, e, para o conhecimento moderno, são apenas transitórios. Ademais dos centros mencionados, existiam outros, ainda não investigados, como os de Smolensk, Tver, Riazan e outros. Ademais, as constantes descobertas de novos ícones tornam necessários frequentes emendas na história.
[94] N. V. Pokrovsky, Notes on Monnuments of Russian Iconography and Art, pg. 356, S. Petersburgo, 1900.
[95] Cf. no original, o ícone da Natividade de Cristo. Ver reprodução anexada.
[96] A partir do momento que as distorções começaram a aparecer na arte da Igreja e essa se viu forçada a fazer pronunciamentos relativos à iconografia, ela sempre protegeu as formas canônicas da arte litúrgica, fosse através dos Concílios (por exemplo, o Concílio dos Cem Capítulos no século XVI e o Grande Concílio de Moscou no século XVII), fosse através dos seus altos dignitários. Assim foi que, nos dias do Triunfo da Ortodoxia, o Patriarca Nicon (1652-1658) destruía ícones pintados sob influência Ocidental e anatematizava todos os que os pintassem no futuro ou que os mantivessem em suas casas. O Patriarca Joaquim (1670-1690) escreveu em seu testamento: “Eu ordeno em nome do Senhor que os ícones do Deus Homem e da Santíssima Mãe de Deus e de todos os santos sejam pintados de acordo com as versões antigas [...]; e acima de tudo que eles não sejam pintados a partir de imagens Latinas ou Germânicas, que são inadequadas, inventadas de acordo com caprichos pessoais e que corrompem a Tradição da Igreja. Essas imagens irregulares que existem em igrejas devem ser removidas” (Bolshakov Manual, publ. A. I. Ouspensky, Moscou, 1903). Na Igreja Grega, onde a decadência começou primeiro, já no século XV São Simeão de Tessalônica, em seu texto Contra as Heresias (cap. 23) apontava para elementos irregulares que penetravam na arte litúrgica e distorciam o sentido dos ícones: “Mais uma vez, enfatizando tudo o que foi dito, os santos ícones têm sido pintados, não de acordo com a tradição, mas de outras maneiras; eles estão adornados não com vestimentas e cabelos iconográficos, mas naturalistas, e assim produzem não a imagem e a semelhança do original, mas são pintados sem reverência, o que é totalmente oposto à natureza do santo ícone”.
[97] Assim como o pensamento religioso nem sempre atinge o nível da teologia, nem sempre a criação artística alcança o nível da genuína iconografia. Assim, não se pode tomar toda imagem como sendo uma autoridade indiscutível, pois ela pode ou não corresponder a um ensinamento da Igreja, podendo assim nos induzir a erro. Em outras palavras, é possível, é possível distorcer o ensinamento da Igreja tanto pelas imagens quanto pelas palavras.
[98] I. Grabar, History of Russian Art (artigo de P. Muratov), vol. 6, pg. 48.
[99] I João 3: 2.
[100] Arquimandrita Sofrônio, Wisdom from Mount Athos: The Writings os Staretz Silouan 1866-1938, St. Vladimir’s Seminary Press, 1975.
[101] Simeão o Novo Teólogo, Discurso 64, pg. 127, Moscou, 1892.

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