Os ícones utilizados para oração (eikwn,
imagem, retrato) que datam dos primeiros séculos do Cristianismo não chegaram
até nós, mas temos notícias deles tanto pela Tradição da Igreja quanto pelas
evidências históricas. Como poderemos ver ao estudarmos individualmente as
imagens, a Tradição da Igreja recua os primeiros ícones até o tempo do próprio
Salvador e ao período imediatamente posterior a Ele. Como se sabe, a arte do
retrato estava em florescimento no Império Romano. Eram feitos retratos dos
antepassados e de pessoas distintas da sociedade. Assim sendo, não existe base
para supor que Cristãos, em especial aqueles de origem pagã, fossem uma exceção
à regra geral, ainda mais considerando-se que mesmo no Judaísmo, que aderia à
proibição de imagens do Velho Testamento, existiam à época correntes de opinião
que aceitavam as imagens humanas. Na História
da Igreja de Eusébio encontramos, por exemplo, a seguinte frase: “Eu vi um
grande número de retratos do Salvador, de Pedro e de Paulo, que foram
preservados até os nossos dias[1]”.
Antes dessa passagem Eusébio descreve em
detalhes a estátua do Salvador que ele viu na cidade de Paneas (Caesarea
Philipi) na Palestina, que teria sido erguida pela mulher que sofria de fluxos
sanguíneos e que foi curada pelo Salvador[2].
O testemunho de Eusébio é tanto mais valioso na medida em que ele próprio era
contrário aos ícones. Consequentemente, sua referência aos retratos que ele viu
vem acompanhada de um comentário desapontado de que se tratava de um costume
pagão[3].
A existência de correntes iconoclastas nos primeiros séculos do
Cristianismo é bastante conhecida em perfeitamente Inteligível. As comunidades
Cristãs estavam cercadas de todos os lados por paganismo e idolatria, era assim
natural que muitos Cristãos, tanto de origem Judaica como pagã, conscientes da
experiência negativa do paganismo, se esforçassem para proteger o Cristianismo
da infecção da idolatria, que poderia se insinuar através da criação artística;
baseando-se no Antigo Testamento, que proibia as imagens, eles negavam da mesma
maneira a possibilidade de sua existência no Cristianismo.
Entretanto, apesar da ocorrência dessas tendências iconoclastas,
existia a linha fundamental que viria a ser gradual e consecutivamente desenvolvida
pela Igreja, embora ainda sem uma formulação exterior. Uma expressão dessa
linha fundamental nos é dada pela Tradição da Igreja que nos fala da existência
de um ícone do Senhor durante sua vida terrena e de ícones da Santa Virgem
imediatamente após Sua vida. Essa tradição testifica que desde o início havia
um claro entendimento do significado e das possibilidades da imagem, e que a
atitude da Igreja perante elas nunca mudou, dado que ela deriva do ensinamento
atualizado da Divina Encarnação. Esse ensinamento nos mostra que a imagem é
necessariamente inerente à própria essência do Cristianismo, desde seus
começos, uma vez que o Cristianismo é a revelação, pelo Deus Homem, não apenas
do Verbo de Deus, como também da Imagem de Deus.
“Nenhum homem jamais viu a Deus; somente o Filho único, que está no
seio do Pai, no-lo revelou[4]”
– revelou Sua imagem – o ícone de Deus. Por meio de Sua Encarnação, Deus o
Verbo “sendo a irradiação de Sua glória, e a imagem expressa de Sua Pessoa [do
Pai][5]”,
revelou ao mundo, em Sua Divindade, a imagem do Pai. Quando Filipe diz:
“Senhor, mostra-nos o Pai”, o Senhor responde: “Eu estou há tanto tempo
convosco, e tu ainda não me conheces, Felipe? Pois quem viu a mim, viu ao Pai[6]”.
Se “no seio do Pai”, ou seja, depois da Encarnação, o Filho é consubstancial ao
Pai, ele é, segundo Sua Divindade, Sua imagem, e igual em honra. Essa verdade
revelada pelo Cristianismo está na base de sua arte pictórica. Assim sendo, não
apenas a imagem não contradiz a essência do Cristianismo, como, por constituir
sua verdade básica, está inalienavelmente conectada a ele. Esse é o fundamento
da tradição que mostra que a pregação do Cristianismo foi, nos seus começos,
feita por meio de palavras e de imagens. Precisamente baseados nisso os Padres
do VII Concílio Ecumênico puderam dizer: “A tradição de fazer imagens [...]
existiu desde os tempos da pregação do Cristianismo pelos Apóstolos [...] A
iconografia não é, de modo algum, uma invenção de pintores, mas, ao contrário,
uma regra estabelecida e uma tradição da Igreja Católica[7]”.
O fato de que as imagem foram, desde o início, inerentes ao Cristianismo,
explica sua aparição na Igreja e o modo como ela, silenciosa e
imperceptivelmente, ocupou seu lugar natural nas práticas da Igreja como algo
auto-evidente, apesar da proibição do Velho Testamento e da subsequente
oposição. Já no século IV uma série inteira de Padres, tais como Basílio o
Grande, Gregório o Teólogo, Gregório de Nissa, João Crisóstomo e outros,
referem-se em suas obras a imagens como sendo algo normal e como uma
instituição geralmente aceita pela Igreja[8].
Quanto à aparência dos ícones dos primeiros séculos do Cristianismo
nada sabemos, e nos faltam dados para julgá-los. Entretanto, com base em
investigações recentes, é possível formar uma ideia clara da tendência da arte
desse período. Em seu trabalho fundamental sobre a história da arte Bizantina,
V. N. Lazarev, examinando as complexas circunstâncias dentre as quais se
originou a arte Cristã primitiva, e baseando-se numa série de investigações
prévias, chegou à seguinte conclusão: “Ao associar-se em muitas coisas com a
antiguidade clássica, especialmente com suas últimas e mais espiritualizadas
formas, ela não obstante desenvolveu para si uma série de trabalhos individuais
desde o começo de sua existência. Não se trata absolutamente de uma antiguidade
Cristianizada, como pretendeu Sibel provar. O novo conteúdo temático da arte
Cristã primitiva não constituiu uma fato puramente exterior. Ele refletiu uma
nova visão, uma nova religião, um entendimento da realidade que era novo desde
a sua origem. Por conseguinte o novo conteúdo não poderia revestir-se das
velhas formas da antiguidade. Ele precisava de um estilo que pudesse expressar
da melhor maneira possível os ideais espirituais do Cristianismo. Assim, todos
os esforços criativos dos artistas Cristãos foram no sentido da elaboração
desse estilo[9]”.
Mais adiante, o autor se refere ao trabalho de Dvorak[10]
e fala do fato de que esse novo estilo começa a tomar forma, em suas linhas
gerais, já nas pinturas das catacumbas.
Os temas das pinturas das catacumbas, começando nos séculos I e II,
incluem, ao lado de representações simbólicas e alegóricas, como a âncora, o
peixe, o cordeiro e outras, uma série de pinturas extraídas do Velho e do Novo
Testamentos. Essas pinturas correspondem aos textos sagrados, bíblicos,
litúrgicos e patrísticos. O princípio fundamental dessa arte consiste numa
expressão pictórica do ensinamento da Igreja, representando os eventos
concretos da História sagrada e indicando seu sentido interior[11].
Essa arte pretendia não refletir os problemas da vida, mas responder a eles, e
assim, desde seus começos, foi um veículo do ensinamento dos Evangelhos. Os
traços principais da arte da Igreja começaram a tomar forma aqui. O espaço
tridimensional ilusório foi substituído pelo plano da realidade; a conexão
entre figuras e objetos se tornou convencionalmente simbólica. A imagem foi
reduzida ao mínimo de detalhes e ao máximo de expressividade. A grande maioria
das figuras está representada com as faces voltadas para a congregação, pois a
importância reside não apenas na ação e na interação das pessoas representadas,
mas também no seu estado, que, em geral, é um estado de oração. O artista vivia
e pensava em imagens e reduzia as formas até o limite da simplicidade, cujo
profundo conteúdo interior só era acessível ao olhar espiritual. Ele limpava
seu trabalho de tudo o que fosse pessoal e permanecia anônimo; seu principal
objetivo era o de transmitir a tradição. Ele entendia, de um lado, a necessidade
de cortar toda fruição sensorial, e, de outro, a necessidade de usar toda a
natureza visível para expressar o mundo do espírito; pois transmitir o mundo
invisível para uma visão sensorial requeria não uma obscura neblina, mas uma
clareza e precisão de expressão, para expressar a apreensão do mundo celestial
com a mesma formulação particularmente clara e exata como o fizeram os santos
Padres.
A beleza da arte Cristã primitiva reside no fato de que ela não
constituía uma revelação da plenitude contida dentro dela, mas apenas na
promessa de possibilidades ilimitadas.
Que essa arte esteja conectada com os textos sagrados não significa
que ela esteja divorciada da vida. Fora o fato de que ela fala na linguagem
pictórica de seu tempo, sua ligação com a vida reside não na representação de
um ou outro evento, de um ou outro momento psicológico da vida e da atividade
humana, mas na representação dessa atividade em si, como, por exemplo, nas
representações de diferentes tipos de trabalhos e profissões, como um sinal de
que o trabalho consagrado a Deus é santificado. Mais do que isso, como
dissemos, os próprios temas dessa arte não refletem os problemas da vida, mas
respondem a eles. Nesse tempo de mártires, os sofrimentos não são mostrados,
assim como eles não são descritos nos textos litúrgicos. O que é mostrado não é
o sofrimento em si, mas a postura que devemos ter em relação a ele como
resposta. Isso explica a popularidade generalizada nas catacumbas de temas como
o de Daniel na cova dos leões, do martírio de Tecla, e assim por diante.
Desde os primeiros séculos, a arte Cristã foi profundamente simbólica
e esse simbolismo não foi produto apenas desse período do Cristianismo. Ele é
essencialmente inseparável da arte da Igreja, porque a realidade espiritual que
ela representa não poderia ser transmitida de outra forma senão por símbolos.
Já nos primeiros séculos do Cristianismo esse simbolismo era principalmente
iconográfico, ou seja, conectado com um tema. Por exemplo, para indicar que uma
mulher com uma criança no colo era a Mãe de Deus, ao lado dela era representado
um profeta que apontava para uma estrela (Balaam)[12].
Para indicar que o Batismo significa a entrada numa nova vida, o batizando,
mesmo que fosse adulto, era mostrado como um jovem ou uma criança, e assim por
diante. Símbolos isolados eram utilizados não apenas a partir do Velho e do
Novo Testamentos (o cordeiro, o bom pastor, o peixe...) mas também da mitologia
pagã, como Cupido e Psique, Orfeu, etc. Ao utilizar esses mitos, o Cristianismo
restabelecia seu significado profundo e verdadeiro, preenchendo-os com um novo
conteúdo. Essa adoção pelo Cristianismo de elementos da arte pagã não está
limitada apenas ao primeiro período de sua existência. Também mais tarde ela
irá emprestar do mundo que a cerca tudo o que possa servir como meio e forma de
expressão, da mesma forma como os Padres da Igreja utilizaram o instrumento da
filosofia Grega, adaptando seu entendimento e linguagem à teologia Cristã. Por
intermédio das tradições clássicas da arte Alexandrina, que preservou o
Helenismo Grego nas suas formas mais puras[13],
a arte Cristã se tornou herdeira das tradições da antiga arte da Grécia. Ela
atraiu elementos artísticos do Egito, da Síria, da Ásia Menor, etc., introduziu
na Igreja toda essa herança e utilizou suas conquistas para a plenitude e
perfeição de sua linguagem pictórica, transformando todas essas coisas para
corresponder às exigências da dogmática Cristã[14].
Em outras palavras a Cristandade selecionou e adotou do mundo pagão tudo o que
lhe cabia, ou seja, tudo o que era “Cristão antes de Cristo” – tudo o que se
encontrava espalhado como partículas isoladas e fragmentadas da verdade – e
uniu tudo isso, ligando-o à plenitude da revelação. “Assim como esse pão foi
espalhado pelas colinas, mas, reunido, se tornou um, que a Tua Igreja se reúna
desde os confins da terra no Teu Reino”; assim é que essa ideia foi expressa na
prece Eucarística dos primitivos Cristãos[15].
Esse processo de reunião não representa a influência do mundo pagão sobre o
Cristianismo, mas o influxo dentro do Cristianismo daqueles elementos do mundo
pagão que, por sua própria natureza, afluíram para ele; não se trata da
penetração de costumes pagãos na Igreja, mas em sua “igrejificação”, não a
“paganização da arte Cristã”, mas a cristianização da arte pagã.
Essa incorporação com a plenitude da revelação toca todos os lados da
atividade humana. O que foi reunido na Igreja constituía tudo o que era
inerente à natureza humana criada por Deus; e isso incluía a arte criativa,
santificada por sua participação na construção do Reino de Deus, a missão da
Igreja nesse mundo. Assim sendo, o que a Igreja aceitou do mundo foi
determinado não pelas necessidades da Igreja, mas pelas do mundo, porque é
nessa participação do mundo na construção do Reino de Deus (dependendo, é
claro, de sua livre vontade) que reside o principal sentido de sua existência.
Inversamente, o principal sentido da existência da Igreja no mundo é o trabalho
de conduzir esse mundo à plenitude da revelação – sua salvação. Assim sendo, o
processo de reunião, que começou nos primeiros séculos do Cristianismo,
constitui o trabalho normal e incessante da Igreja no mundo. Em outras
palavras, esse processo não se limita a determinados períodos de sua
existência, mas constitui sua função constante. Na medida em que a Igreja
prossegue com seu trabalho de construção ela absorve e continuará a absorver
até o final tudo o que for genuíno e verdadeiro, ainda que escasso e
incompleto, e seguirá suplementando o que falta.
Isso não é um processo de despersonalização. A Igreja não rejeita
particularidades conectadas com a natureza humana, nem com tempos e lugares
(por exemplo, aspectos nacionais ou pessoais, etc.), mas santifica seus
conteúdos, preenchendo-os com um novo sentido. Por sua vez, essas particularidades
não interferem na unidade da Igreja, mas trazem para ela novas formas de
expressão peculiares a elas. Dessa maneira realiza-se a unidade na
multiplicidade e a riqueza na unidade, ambas expressando em totalidade e
detalhe o princípio católico da Igreja. Aplicado à linguagem da arte, isso não
implica uma uniformidade ou algum modo estereotipado, mas a expressão de uma
verdade única em formas variadas de arte, apropriadas a cada povo, tempo e
pessoas, formas que permitem distinguir ícones de diferentes nacionalidades e
épocas, apesar da similaridade de seu conteúdo.
***
Como já dissemos, na consciência da Igreja a mensagem Divina está
organicamente conectada com a imagem. Assim sendo, a doutrina relativa à imagem
não é algo separado, não é um apêndice, mas acompanha naturalmente a doutrina
da salvação, da qual é parte inalienável. Em sua plenitude, ela foi inerente à
Igreja desde o começo, mas, assim como outros aspectos de seu ensinamento, ela
se afirmou gradualmente, em resposta às necessidades de momento, como, por
exemplo, na 82ª Regra do Concílio Quinisexto (692), ou em resposta a heresias e
erros, como no período iconoclástico. O mesmo acontece aqui, como aconteceu com
a verdade dogmática das duas naturezas de Cristo. Essa verdade foi professada
pelos primeiros Cristãos de um modo mais prático, em suas próprias vidas, sem
que tenha tido uma formulação teórica completa o suficiente; porém, mais tarde,
por força da necessidade externa, devido à aparição de heresias e falsos
ensinamentos, ela foi formulada com precisão. O mesmo se deu com os ícones: a
base dogmática para sua existência foi estabelecida pelo Concílio Quinisexto,
em conexão com uma mudança no simbolismo da arte da Igreja; no decurso de seu
desenvolvimento a regra mencionada marca um estágio importante, pois aqui, pela
primeira vez, foi dada uma direção em princípio. Essa 82ª Regra diz: “Alguns
santos ícones trazem a imagem de um cordeiro, para o qual está apontado o dedo
do Precursor. Esse cordeiro é tomado como uma imagem da graça, representando o
verdadeiro Cordeiro, Cristo nosso Deus, que a lei prenunciou. Portanto,
aceitando com amor as imagens antigas e as sombras[16]
como prefigurações e símbolos da verdade transmitida à Igreja, preferimos a
graça e a verdade, recebendo-as como a plenitude da lei. Assim, de modo a
tornar clara essa plenitude a todos os olhos para que vejam, ainda que por meio
de imagens, ordenamos que daqui por diante os ícones devem representar, ao
invés do antigo cordeiro, a imagem humana do Cordeiro, que assumiu sobre Si os
peados do mundo, Cristo nosso Deus, de modo a que, por meio disso, possamos
perceber a altura do rebaixamento de Deus o Verbo, e para que sejamos levados a
lembrar Sua vida na carne, Sua Paixão e morte para nossa salvação e a
subsequente redenção do mundo”.
Em primeiro lugar, essa regra era uma resposta à situação que existia
nesse tempo, em especial, que na prática da Igreja, ao lado das representações
históricas, ainda eram utilizados símbolos para substituir a imagem humana de
Deus[17].
A importância da 82ª Regra repousa, sobretudo, no fato de que ela está baseada
na conexão do ícone com o dogma da verdade da Divina Encarnação, com a vida de
Cristo na carne; isso constitui o começo do embasamento do ícone sobre o dogma
Cristológico, que mais tarde foi amplamente usado e que, no período do
iconoclasmo, seria ainda desenvolvido pelos apologistas dos ícones. Mais do que
isso, o Concílio descontinuou, como pertencendo a um estágio superado, o uso de
temas simbólicos no lugar da imagem humana de Cristo. É verdade que o Concílio
mencionou apenas um tema simbólico – o Cordeiro. Porém, imediatamente depois
ele fala em geral de “antigas imagens e sombras”, evidentemente por não
considerar o cordeiro como meramente um dos símbolos, mas como o principal deles;
assim sendo, ao revelar o significado desse símbolo, isso naturalmente levaria
a revelar o significado de todos os demais símbolos. Isso se baseava na
injunção do fato de que as prefigurações do Antigo Testamento se realizavam no
Novo Testamento, e ordenava a transição dos símbolos do Velho Testamento e do
Cristianismo primitivo para a representação daquilo que era simbolizado, à
revelação de seu significado direto, daquilo que se manifestar ano tempo e se
tornara acessível à percepção, à representação e à descrição sensoriais. A
imagem, que no Antigo Testamento aparecia como símbolo, se tornara realidade
através da Encarnação, a qual, por sua vez, aparecia como uma imagem da futura
glória de Deus, a imagem da “altura do rebaixamento de Deus o Verbo”. O tema em
si, a imagem de Jesus Cristo, é um testemunho de Seu advento e de Sua vida na
carne, a kenosis da Divindade, Seu
rebaixamento. E o modo como esse rebaixamento é representado, o modo como ele é
transmitido numa representação visual, reflete a glória de Deus. Em outras
palavras, o rebaixamento de Deus o Verbo é mostrado de tal maneira que ao vê-lo
contemplamos Sua divina glória em Sua imagem humana; e assim podemos entender
que Sua morte significa a Salvação e a Redenção do mundo. A última parte da 82ª
Regra indica no que consiste o simbolismo do ícone. O símbolo não está na
iconografia, no que está
representado, mas no método de representar, no como ele é representado. Em
outras palavras, o ensinamento da Igreja é transmitido não apenas pelo tema,
mas também pelo modo de expressão. Dessa maneira, a definição do Concílio
Quinisexto não apenas estabelece o começo da formulação do significado
dogmático do ícone, como, ao mesmo tempo, indica a possibilidade de fazer com a
arte reflita, por meio de um novo simbolismo, a glória de Deus. Ela enfatiza o
sentido e a importância da realidade histórica, mostrando que somente uma
imagem realista é capaz de transmitir o ensinamento da Igreja, e define todo o
resto (as “imagens e as sombras”) como incapaz de expressar a plenitude da
graça, embora fosse digno de reverência e capaz de satisfazer as necessidades
de uma dada época. Essa declaração não chega a abolir o símbolo iconográfico,
mas o torna auxiliar, ou de importância secundária. Essencialmente essa regra
estabelece a fundação do Cânone iconográfico, ou seja, de um determinado
critério de julgamento da medida em que uma imagem é litúrgica, assim como, no
domínio das palavras e da música o Cânone estabelece quando um texto ou hino é
litúrgico. A definição do Concílio estabeleceu o princípio de correspondência
do ícone com as Sagradas Escrituras e definiu no que consiste essa
correspondência: a realidade histórica e o tipo de simbolismo que reflete
verdadeiramente o advento do Reino de Deus.
Assim a Igreja criou gradualmente uma arte nova, tanto em forma como
em conteúdo, que utiliza imagens e formas extraídas do mundo para transmitir a
revelação do mundo Divino, tornando esse mundo acessível ao entendimento e à
contemplação. Essa arte se desenvolveu lado a lado com os ofícios Divinos, e,
como esses, expressa o ensinamento da Igreja em conformidade com a palavra das
Escrituras. Essa conformidade entre palavra e imagem ficou em especial
claramente expressa pela regulamentação do VII Concílio Ecumênico, que
restabeleceu a veneração dos ícones. Através da voz dos padres desse Concílio a
Igreja rejeitou o compromisso proposto de colocar a veneração dos ícones no
nível dos recipientes sagrados, e ordenou que ela fosse estabelecida no mesmo
nível da Cruz e dos Evangelhos: com a Cruz, como símbolos distintivos do
Cristianismo, e com os Evangelhos, por representarem a completa correspondência
entre a imagem verbal e a imagem visível[18].
A formulação do Santo Concílio diz: “Nós preservamos, sem inovações, todas as
tradições da Igreja que foram estabelecidas para nós, escritas ou não, uma das
quais é a pintura dos ícones, como correspondência ao que os Evangelhos pregam
e relatam [...] Porque, se um é mostrado pelo outro, esse um é sem dúvida
tornado claro pelo outro”. Essa formulação mostra que a Igreja vê no ícone não
uma simples arte, servindo de ilustração às Santas Escrituras, mas como uma
completa correspondência entre ambos, e assim ela atribui ao ícone a mesma
importância dogmática, litúrgica e educacional que possuem as Santas
Escrituras. Assim como as palavras da Santa Escritura são imagens, as imagens
são também palavras. “O que a palavra transmite ao ouvido, a pintura mostra
silenciosamente através da imagem”, disse Basílio o Grande[19],
e “por esses dois meios, que se acompanham mutuamente [...] recebemos o
conhecimento de uma só e mesma coisa[20]”.
Em outras palavras, o ícone contém e professa a mesma verdade que os Evangelhos
e, portanto, como os Evangelhos, está baseado em dados concretos exatos, e de
modo algum numa invenção, pois de outro modo ele não poderia explicar os
Evangelhos, nem corresponder a eles.
Assim é que o ícone está colocado no nível das Sagradas Escrituras e
da Cruz, como uma das formas da revelação e do conhecimento de Deus, na qual as
vontades Divina e humana se tornam mescladas. Independentemente de seu
significado direto, cada um é igualmente um reflexo do mundo superior; cada um
é um símbolo do Espírito contido nele. Por conseguinte, o significado, tanto da
palavra quanto da imagem, seu papel e sua importância são iguais. A imagem,
assim como o ofício Divino, transmite o ensinamento da Igreja e expressa a vida
na graça vivificadora da sagrada Tradição da Igreja. Por intermédio do Ofício
Divino e através do ícone, a revelação se torna propriedade e preceito de vida
para os fiéis. Por essa razão a arte da Igreja adquiriu desde o começo uma
forma que corresponde àquilo que ela expressa. A Igreja desenvolveu uma categoria
inteiramente particular de imagens, de acordo com sua natureza, e esse caráter
especial foi condicionado pelo objetivo a que ela serve. A Igreja é “um Reino
que não é desse mundo[21]”,
que existe no mundo e para o mundo, para sua salvação. Sua natureza é própria,
distinta da do mundo, e ela serve ao mundo precisamente por ser tão diferente
dele. Consequentemente, as manifestações da Igreja, por meio das quais ela
cumpre seu ofício, sejam elas palavras, imagens, cantos ou outras, diferem da
manifestações análogas do mundo. Todas elas trazem o selo da natureza
transcendental, que as distingue externamente do mundo.
A arquitetura, a pintura, a música, a poesia, cessam de ser formas de
arte, cada qual seguindo seu caminho independente das demais, em busca de
efeitos apropriados, e se tornam parte de um todo litúrgico único que, de modo
algum, diminui sua importância, mas que implica para cada uma a renúncia a um
papel individual de auto afirmação. De formas de arte com finalidades
separadas, elas se veem transformadas em diferentes modos de expressão, cada
qual em seu domínio, de uma mesma e única coisa – a essência da Igreja. Em
outras palavras, elas se tornam os vários instrumentos do conhecimento de Deus.
Segue-se daí que, por sua própria natureza, a arte da Igreja é uma arte
litúrgica. Seu caráter litúrgico não se deve ao fato de que a imagem serve como
uma estrutura acrescentada ao ofício Divino, mas como sua mútua e completa
correspondência. O mistério descrito e o mistério representado são o mesmo,
tanto internamente, em seu significado, como externamente, enquanto símbolo que
expressa esse significado. É por isso que a imagem da Igreja Ortodoxa, o ícone,
não se define como uma arte que pertença a essa ou àquela época histórica, nem
como expressão de peculiaridades nacionais desse ou daquele povo, mas apenas
por sua função, que é tão universal quanto a própria Ortodoxia, sendo
determinada pela essência mesma da imagem e de seu papel para a Igreja. Uma vez
que o ícone em sua essência, assim como a palavra, constitui uma arte
litúrgica, ele não serve a religião, mas, como a palavra, sempre foi, e é,
parte da religião, um dos instrumentos de conhecimento de Deus, um dos meios de
comunhão com Ele. Isso explica a importância que a Igreja atribui à imagem – uma
importância tal, que de todas as vitórias sobre a multitude de diferentes
heresias, somente a vitória sobre o iconoclasmo e o restabelecimento da
veneração dos ícones foi proclamada como Triunfo da Ortodoxia, celebrada no
primeiro Domingo da Quaresma.
***
O mais completo ensinamento sobre os ícones foi dado pelo VII Concílio
Ecumênico (787) e pelos santos Padres que foram apologistas do ícone durante o
período iconoclasta. Numa forma concisa isso está contido no Kontakion do
Domingo do Triunfo da Ortodoxia, estabelecido, como vimos, para comemorar a
vitória sobre o iconoclasmo. O texto do Kontakion é o seguinte:
“O indefinível Verbo do Pai tornou a Si mesmo definível, tomando de ti
a carne, ó Mãe de Deus, e tendo reformado a imagem de terra à sua forma
original, a infundiu com a beleza Divina. Confessando a salvação, nós a
mostramos em atos e palavras”.
A 82ª. Regra do Concílio Quinisexto fornece orientações sobre como
expressar de modo mais completo e preciso o ensinamento da Igreja numa imagem;
em contraste com isso, o Kontakion oferece uma explanação dogmática da imagem
canônica, de uma imagem que sempre corresponde ao seu propósito e que responde
às exigências da arte litúrgica. Essa formulação breve, mas maravilhosamente
completa e exata do ensinamento do ícone, por conseguinte, contém ainda todo o
ensinamento da salvação. Ele é reverentemente preservado pela Igreja Ortodoxa e
permanece como o fundamento do entendimento Ortodoxo do ícone e de sua atitude
em relação a ele.
A primeira parte do Kontakion revela a conexão entre o ícone e o dogma
Cristológico, a base do ícone da Divina Encarnação. A parte seguinte revela o
significado da Divina Encarnação, a realização do desígnio de Deus referente ao
homem, e, consequentemente, ao mundo. Essencialmente, as duas partes do
Kontakion são uma reiteração da fórmula patrística: “Deus se tornou homem para
que o homem possa se tornar Deus”. A última parte do Kontakion fornece a
resposta do homem a Deus, nossa confissão da verdade salvadora da Encarnação
Divina, a aceitação pelo homem da Divina revelação e a sua participação nela.
Por essas últimas palavras a Igreja mostra em que se exprime nossa
participação, e no que consiste a realização de nossa salvação.
Um aspecto característico do Kontakion é que ele não está endereçado a
nenhuma das Pessoas da Santa trindade, mas à Mãe de Deus. Assim é que ele
representa uma expressão litúrgica e orante do ensinamento dogmático sobre a
Divina Encarnação. É evidente que, assim como a negação da imagem humana do
Salvador implica a negação da Divina Maternidade[22]
e, portanto, a afirmação desse ícone exige em primeiro lugar a manifestação do
papel da Mãe de Deus, sua veneração como condição indispensável da Encarnação,
a causa do fato de que Deus se tornou representável. De acordo com o
ensinamento dos Padres, é precisamente pelo fato de que o Deus Homem, Jesus
Cristo, tem uma Mãe representável, que sua imagem está justificada. “Na medida
em que Ele, procedendo do Pai, não poderia ser representado”, diz São Teodoro o
Estudita[23],
“Cristo, não sendo assim representável, não poderia ter uma imagem feita pela
arte. De fato, qual imagem poderia corresponder à Divindade, cuja representação
é absolutamente proibida pela Escritura divinamente inspirada? Mas, a partir do
momento em que Cristo nasceu de uma Mãe representável, ele claramente possui
uma representação que corresponda à imagem de Sua Mãe. Se Ele não tivesse uma
imagem feita pela arte, isso significaria que ele não nasceu de uma Mãe
representável, que ele teria nascido apenas do Pai; mas isso contradiz toda a
economia”. Assim, uma vez que o Filho de Deus se tornou homem, é preciso que
ele seja representado como homem[24].
Esse pensamento é predominante em todos os Padres que defenderam a veneração
dos ícones. O fato de que o Filho de Deus é representável de acordo com Sua
carne assumida da Virgem é contrastado por São João Damasceno e pelos Padres do
VII Concílio Ecumênico com o fato de que Deus Pai, sendo inconcebível e
invisível, é por isso impossível de ser representado. “Por que nós não
descrevemos o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo? Porque nunca o vimos... Mas, se
O tivéssemos visto como vimos Seu Filho, poderíamos tentar descrevê-Lo e
representá-Lo[25]”,
disseram os Padres do Concílio. A mesma questão de representar a Deus Pai foi
levantada em 1667, no Grande Concílio de Moscou, em conexão com a composição
Ocidental, popular na Rússia à época, que representava a Santa Trindade com
Deus Pai apresentado como um homem velho. Baseado nos santos Padres – em
especial no grande confessor da fé e apologista da veneração dos ícones, São
João Damasceno – o Concílio concluiu pela impossibilidade de descrever a Deus
Pai e proibiu Sua representação em ícones.
Ao representar o Salvador, não estamos representando nem Sua natureza
Divina, nem a humana, mas Sua Pessoa, na qual essas duas naturezas estão
incompreensivelmente combinadas. Representamos Sua Pessoa, uma vez que o ícone
só pode ser uma imagem pessoal e hipostática, enquanto que a natureza é uma
“essência que não possui uma existência independente, mas que é vista nas
pessoas[26]”.
O ícone está conectado com o original, não a título de uma identidade entre sua
própria natureza e natureza daquele, mas porque representa sua pessoa e traz
seu nome, o que conecta o ícone à pessoa representada e fornece a possibilidade
de comunhão com essa e a possibilidade de conhecê-la. Devido a essa conexão, “a
homenagem prestada à imagem é transmitida ao original”, dizem os santos Padres
do Concílio Ecumênico, citando as palavras de Basílio o Grande. Na medida em
que o ícone é uma imagem, ele não pode ser consubstancial com o original; de
outro modo ele deixaria de ser a imagem e passaria a ser o original, e teria
uma só natureza com ele. O ícone difere do original exatamente por possuir uma
outra natureza[27],
diferente, “pois a representação é uma coisa, e o que ela representa é outra
coisa[28]”.
Em outras palavras, apesar dos dois objetos serem essencialmente diferentes,
existe entre eles uma conexão conhecida, uma certa participação de um no outro.
Para a perspectiva Ortodoxa, a possibilidade de ser ao mesmo tempo idêntico e
diferente é praticamente evidente – hipostaticamente diferente, mas idêntica em
natureza (a Santa Trindade), e hipostaticamente igual, mas diferente em
natureza (os santos ícones)[29].
É isso que São Teodoro o Estudita tinha em mente quando disse que “Assim como
(na Trindade) Cristo difere do Pai em hipóstase, aqui (nos santos ícones) Ele
difere de Sua própria imagem em natureza[30]”.
E ao mesmo tempo “a imagem de Cristo é Cristo, e a imagem de um santo é esse
santo. O poder não é fendido, a glória não é dividida, mas a glória se torna um
atributo daquele que é representando[31]”.
Assim é que Deus o Verbo, a Segunda Hipóstase da Santa Trindade, que
não pode ser descrito nem por palavras nem por imagens, assume a natureza do
homem, nasce da Virgem Mãe de Deus, e, ao mesmo tempo em que permanece perfeito
Deus, faz-se perfeito Homem; Ele se torna visível, tangível e, portanto,
descritível. Sabendo-se disso, o próprio fato da existência do ícone está
baseado na Divina Encarnação. E a imutabilidade da Divina Encarnação é afirmada
e demonstrada pelo ícone. Dessa forma, aos olhos da Igreja, a recusa ao ícone
de Cristo aparece como a negação da verdade e da imutabilidade do fato de que
Ele se tornou homem, e a partir daí, aparece a negação de toda a economia da
Divina Revelação. Ao defender o ícone no período do iconoclasmo, a Igreja não
estava defendendo apenas seu papel educacional, e menos ainda seu valor
estético; ela lutava pelos fundamentos da fé Cristã, o testemunho visível do
Deus tornado homem, como base para a nossa salvação. “Eu vi a imagem humana de Deus,
e minha alma foi salva[32]”,
disse São João Damasceno. Esse entendimento do ícone explica a inflexibilidade
e a intransigência com as quais os seus defensores enfrentaram a tortura e a
morte no período do iconoclasmo.
Se a primeira parte do Kontakion do Domingo do Triunfo da Ortodoxia
formula a base dogmática do ícone, sua segunda parte, como dissemos, ao revelar
a essência da economia da Divina Revelação – a realização do desígnio de Deus
em relação ao homem – revela ao mesmo tempo o significado e a importância do
ícone.
A Divina Pessoa de Jesus Cristo, que possuía toda a plenitude da vida
Divina, e que ao mesmo tempo se tornou homem perfeito (isto é, homem em todas
as coisas, exceto no pecado) não apenas restabeleceu eu sua pureza original a
imagem de Deus corrompida pelo homem em sua queda (“...tendo reformado a imagem
de terra à sua forma original...”)[33],
como ainda associou a natureza humana assumida por Ele com a vida Divina – “a
infundiu com a beleza Divina”. Os Padres do VII Concílio Ecumênico disseram:
“Ele (Deus) recriou a ele (homem) na imortalidade, concedendo a ele um dom
inalienável. Essa recriação foi mais do que a semelhança de Deus e melhor do
que a primeira criação – esse dom é eterno[34]”:
o dom da comunhão com a beleza e a glória Divinas. Cristo, o novo Adão, o
começo da nova criatura – o homem celeste portador do Espírito Santo – trouxe o
homem de volta ao objetivo para o qual o primeiro Adão fôra criado, e do qual
ele se desviou por causa de sua queda: Ele o conduziu à realização plena do desígnio
da Santa Trindade referente a ele: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança[35]”.
De acordo com esse desígnio, o homem não deveria apenas ser a imagem de Deus,
seu Criador, como ainda deveria realizar em si Sua semelhança. Mas já na
descrição do cumprimento do ato da criação – “E Deus criou o homem, de acordo
com Sua imagem o criou[36]”
– nada é dito a respeito da semelhança. Ao homem foi dada uma tarefa, a de ser
preenchido pela ação da graça do Espírito Santo, com a livre participação do
próprio homem. Livre e conscientemente, “uma vez que a expressão ‘de acordo com
a nossa imagem’ indica a capacidade de escolha e liberdade”, o homem penetra no
desígnio da Santa trindade referente a ele e a partir daí cria sua semelhança
com Deus, “pois a expressão ‘à sua semelhança’ significa a semelhança com Deus
em Suas virtudes (perfeições)[37]”,
participando, dessa forma, da obra da Divina criação.
Assim, se por um lado a Divina Hipóstase do Filho de Deus se tornou
Homem, por outro, nosso caso é o inverso: o homem pode se tornar deus, não por
natureza, mas pela graça. Deus desceu e se fez Homem; o homem se eleva e se
torna deus. Assumindo a semelhança com Cristo, ele se torna “o templo do
Espírito Santo”, que existe nele[38],
e restabelece assim sua semelhança com Deus[39].
A natureza humana permanece sendo o que ela é – a natureza da criatura; mas sua
pessoa, sua hipóstase, ao adquirir a graça do Espírito Santo, por esse simples
fato associa a si mesma à vida Divina, transformando o próprio ser de sua
natureza criada. A graça do Espírito Santo penetra em sua natureza, combina-se
com ela, preenche-a e a transfigura. O homem nasce, por assim dizer, para a
vida eterna, adquirindo já na terra o começo dessa vida, o começo da
deificação, que se manifestará plenamente no século futuro.
A revelação dessa futura corporeidade transfigurada nos é mostrada na
Transfiguração do Senhor sobre o Monte Tabor. “E Ele se transfigurou diante
deles: e seu rosto brilhava como o sol, e suas roupas eram brancas como a luz[40]”.
Em outras palavras, todo o corpo do Senhor foi transfigurado, tornando-se como
se fosse a radiosa vestimenta da Divindade. “Em relação ao caráter da
Transfiguração”, dizem os Padres do VII Concílio, referindo-se a Santo Atanásio
o Grande, “não foi o Verbo que deixou de lado Sua forma humana, mas foi essa
forma humana que foi iluminada pela Sua glória[41]”.
Assim é que na Transfiguração, “no Monte Tabor não apenas a Divindade apareceu
aos homens, como a hominidade apareceu na glória Divina[42]”.
Um homem que tenha adquirido a graça do Espírito Santo se torna participante
dessa Divina glória, dessa “irradiação Divina incriada, como chamou São
Gregório Palamas[43] a
luz do Monte Tabor. Em outras palavras, unindo-se com a Divindade, ele se torna
iluminado por Sua luz incriada, assumindo assim a semelhança com o corpo
radioso de Cristo. São Simeão o Novo Teólogo descreve sua experiência pessoal
da iluminação interior nas seguintes palavras: “Tendo se tornado inteiramente
fogo em sua alma, ele (o homem) transmite a irradiação interior obtida também
ao corpo, da mesma maneira como o fogo físico transmite seu efeito ao ferro[44]”.
Todavia, assim como o ferro não se transforma em fogo, mas permanece sendo
ferro, apenas purificado, também aqui a inteira natureza do homem se torna
transfigurada, mas nada lhe é retirado, nem destruído. Ao contrário, tendo sido
purificado dos elementos estranhos e alheios do pecado, ele se torna
espiritualizado e iluminado. Dessa forma podemos dizer que um santo é mais
verdadeiramente um homem do que um pecador, uma vez que, ao reassumir sua
semelhança com Deus, ele readquire o propósito original de sua existência,
reveste-se da incorruptível beleza do Reino de Deus, de cuja criação ele
participa com sua vida. Portanto, a própria beleza, tal como a Igreja Ortodoxa
a entende, não é uma beleza que pertence à criatura, mas um atributo do Reino
de Deus, onde Deus é tudo em todos. São Dionísio o Areopagita diz da Beleza de
Deus que “devido ao seu esplendor, Ele se derrama em todos os seres, em cada um
na sua medida própria”, e assim ele vê em Deus “a causa da harmonia e a veste
brilhante de toda criatura, pois Ele ilumina todas as coisas, como uma luz,
derramando beleza dessa fonte radiante que brota de Si mesmo[45]”.
Desse modo, toda criatura participa da Beleza Divina na sua medida própria, e a
traz em si como o selo do seu Criador. Porém, esse selo não constitui e
semelhança com Deus, mas apenas uma beleza que pertence à criatura. É um meio,
não um fim; um meio pelo qual “as coisas invisíveis feitas desde a criação do
mundo são claramente vistas, e podem ser compreendidas a partir das coisas que
Ele fez, mesmo Seu poder eterno e Sua Divindade[46]”.
A beleza do mundo visível reside não no esplendor transitório de seu estado
presente, mas no verdadeiro significado de sua existência, na sua
transfiguração potencial que aguarda como uma possibilidade a ser realizada
pelo homem. Em outras palavras, beleza é santidade, e sua irradiação é a
participação da criatura na Beleza Divina.
No plano do trabalho humano criativo, a beleza é o coroamento dado por
Deus, o selo da conformidade da imagem com o protótipo, do símbolo para com
aquilo que ele representa, ou seja, o Reino do Espírito. A beleza de um ícone e
a beleza da semelhança adquirida de Deus, e assim seu valor jaz não em ser belo
em si, em sua aparência enquanto objeto belo, mas no fato de que ele representa
a Beleza.
Quanto à relação da representação – o ícone – para com o que é
representado, os Padres do VII Concílio dizem o seguinte, claramente em
resposta à acusação de nestorianismo feita pelos iconoclastas contra a
Ortodoxia: “Embora a Igreja Católica represente a Cristo sob Seu aspecto
humano, ela não separa Sua carne da Divindade associada a ela. Ao contrário,
ela acredita que a carne é deificada e professa isso sendo uma com a Divindade,
de acordo com o ensinamento do grande Gregório o Teólogo e com a verdade. Isso
não faz com que a carne do Senhor deixe de ser deificada. Assim como um pintor
que faz o retrato de um homem não o torna por isso inanimado, mas ao contrário,
o homem permanece animado e a pintura é chamada de retrato seu devido à sua
semelhança com ele, também nós, quando fazemos um ícone, confessamos o corpo do
Senhor como deificado e vemos o ícone como nada além de um ícone, representando
sua semelhança com o protótipo. Por essa razão o ícone recebe o nome do Senhor.
É por esse meio que ele está em comunhão com o Senhor; e é por essa razão que
ele é santo e digno de homenagens[47]”.
Como essas palavras demonstram, o ícone é a semelhança não de um protótipo
animado, mas de um protótipo deificado, ou seja, é uma imagem (convencional, é
claro) não da carne corruptível, mas da carne transfigurada, radiante com a luz
Divina. É a Beleza e a Glória, representadas por meios materiais visíveis no
ícone aos olhos físicos. Por conseguinte tudo o que lembra a carne humana
corruptível é contrário à verdadeira natureza do ícone pois “a carne e o sangue
não podem herdar o Reino de Deus, assim como a corrupção não pode herdar a
incorrupção[48]”,
e um retrato temporal de um santo não pode ser um ícone, precisamente porque
ele não reflete seu estado transfigurado, mas seu estado carnal atual. É ainda
essa particularidade do ícone que o coloca à parte de todas as formas de arte
pictórica.
Assim, por representar a Hipóstase do Deus Verbo encarnado, o ícone
atesta a imutabilidade e a plenitude de Sua encarnação. Por outro lado, por
intermédio desse ícone nós confessamos que o “Filho do Homem” representado nele
é verdadeiramente Deus – a Verdade revelada. Os esforços do homem em direção a
Deus, o lado subjetivo e pessoal da fé encontra aqui a resposta de Deus ao
homem, com a revelação – o conhecimento objetivo experienciado, que o homem
expressa em palavras ou em imagens. Por essa razão, a arte litúrgica não
consiste apenas na nossa oferenda a Deus, mas também a descida de Deus entre
nós, sendo uma das formas pelas quais se realiza esse encontro de Deus com o
homem, da graça com a natureza, da eternidade com o tempo. As formas que
registram essa mútua interpenetração do Divino com o humano são asseguradas
pela Tradição e, sendo continuamente renovadas, vivem eternamente no corpo de
Cristo, a Igreja. Dado que, como Jesus Cristo, Deus e Homem, a Igreja é um
organismo tanto humano como Divino, ela combina em si, indivisivelmente mas sem
confusão, duas realidades: a realidade histórica e terrena, e a realidade da
graça do Espírito Santo que santifica todas as coisas. O significado da arte da
Igreja, e do ícone em particular, reside precisamente no fato de que ele
transmite, ou antes atesta visualmente essas duas realidades, a realidade de
Deus e a do mundo, da graça e da natureza. Ele é realístico em dois sentidos.
Assim como as Santas Escrituras, o ícone transmite um fato histórico, um evento
da História Sagrada ou de um personagem histórico, representado na sua forma
física e, também como as Escrituras, ele indica a revelação que existe fora do
tempo, contida numa determinada realidade histórica. Assim, através do ícone,
como através das Santas Escrituras, podemos não apenas aprender sobre Deus,
como também conhecer a Deus.
Se a transfiguração constitui uma iluminação do homem por inteiro, a
iluminação, por meio da oração, de sua constituição material e espiritual pela
luz incriada da Graça Divina, a manifestação do homem como ícone vivo de Deus,
então o ícone é uma expressão externa dessa transfiguração, a representação de
um homem cheio da graça do Espírito Santo. Assim
sendo, o ícone não é a representação da Divindade, mas uma indicação da
participação de uma dada pessoa na vida Divina. Trata-se de um testemunho
do conhecimento concreto e prático da santificação do corpo humano[49].
Por meio da Encarnação do Filho de Deus, o homem recebeu a
possibilidade de não apenas restaurar sua semelhança com Deus, com a ajuda da
graça do Espírito Santo, ou seja, de fazer de si um ícone pelo trabalho
interior, como ainda de revelar seu estado de graça aos demais por meio de
imagens por palavras e de imagens visuais. Em outras palavras, ele pode criar
um ícone exterior a partir da matéria que o cerca, e que foi santificada pela
descida de Deus à terra – “nós mostramos isso por atos e palavras”. Assim
sendo, a santidade é a realização de possibilidades dadas ao homem pela
Encarnação Divina, uma exemplo para nós: o ícone é o meio de revelar essa
realização, uma exposição pictórica desse exemplo. Em outras palavras, o ícone
transmite visualmente a realização da fórmula patrística que mencionamos antes:
“Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar deus”. A decorrência
disso é a ligação orgânica, que existe na Igreja Ortodoxa, entre a veneração
dos ícones e o culto dos santos. Isso também explica o cuidado com que cada
traço de um santo é preservado. Graças a isso, a iconografia dos santos se
distingue por uma extraordinária estabilidade. Isso se deve não só ao desejo de
preservar a imagem santificada pela Tradição, mas também pela necessidade de
preservar uma conexão viva e direta com a pessoa representada no ícone. Dessa
maneira, o ícone necessariamente mostra a natureza do ofício do santo, seja ele
um Apóstolo, um bispo ou um mártir, e reproduz com especial cuidado suas
características e traços distintivos. Esse realismo iconográfico está na base
do ícone e é um de seus elementos mais importantes[50].
Mais do que isso, tudo o que é pessoal e individual é muitas vezes indicado
apenas por sutis linhas e sombras, especialmente quando as pessoas
representadas possuem traços externos em comum. É por isso que quando muitos
ícones são agrupados, eles produzem em que não está acostumado com eles uma
impressão de uniformidade, e mesmo uma monotonia estereotipada. Exatamente a
mesma impressão é produzida por uma leitura superficial das vidas dos santos.
Tanto nos ícones quanto nas vidas dos santos, a primeira coisa que emerge não é
a individualidade, mas sua subordinação àquilo de que eles são os portadores.
De qualquer forma, a
falta de semelhança não causa um rompimento da conexão com o protótipo ou da
veneração dirigida a ele. São Teodoro o Estudita diz: “Mesmo quando não
reconhecemos que o ícone representa uma imagem idêntica ao seu protótipo devido
a uma falta de talento ou estilo, isso não significa que nossas palavras sejam
ineptas. Pois a veneração não é demonstrada a um ícone na medida em que ele
lembre o protótipo, mas na medida em que ele representa uma semelhança para com
ele[51]”.
Assim sendo a similaridade pode ser limitada à reprodução fiel das
características do protótipo e, sem expressar sua individualidade, satisfazer a
semelhança, como, por exemplo, nos desenhos apresentados nesse livro[52].
Todavia, a fidelidade ao protótipo normalmente é tal que o fiel Ortodoxo não
tem dificuldade em reconhecer os santos reverenciados em cada ícone, para não
falar dos ícones do Salvador e da Mãe de Deus. Ainda que um dado santo não lhe
seja familiar, ele sempre é capaz de dizer a que ordem de santidade ele
pertence: se um monge, um mártir, um bispo, etc. Preservando com reverência a
memória dos santos e suas características, a Igreja Ortodoxa jamais aceitou a
pintura de ícones da imaginação do artista, ou a partir de um modelo vivo, pois
isso envolveria uma ruptura consciente e completa para com o protótipo, e o
protótipo cujo nome está inscrito no ícone seria arbitrariamente substituído
por outra pessoa. Para evitar a invenção, e uma ruptura entre a imagem e o
protótipo, os iconógrafos pintam a partir de antigos ícones e se socorrem
deles. Para os iconógrafos antigos as faces dos santos eram tão familiares
quanto as de seus amigos. Eles tanto pintavam de memória, como se utilizavam de
esquemas, desenhos, etc.[53]
Quando a Tradição viva começou a se perder, por volta do final do século XVI,
esses auxílios foram sistematizados e os chamados manuais pessoais e
interpretativos apareceram. Os primeiros forneciam uma iconografia esquemática
dos santos e dos dias de festa[54],
com a indicação das cores básicas; os segundos davam a mesma indicação das
cores básicas e uma breve descrição dos traços característicos dos santos.
Desde esse tempo esses manuais servem como um auxílio técnico necessário aos
iconógrafos. Eles não devem ser confundidos com o Cânone iconográfico ou com a
sagrada Tradição, como às vezes se faz.
Encontramos a mesma constância na iconografia das festas, e pela mesma
razão. A maior parte dessas imagens data dos primeiros séculos do Cristianismo
e se originaram nas localidades onde esses eventos aconteceram. Quase todas
essas imagens, como também as próprias festas, se originaram na Síria e na
Palestina. Elas foram aceitas pela Igreja como historicamente exatas[55],
e são cuidadosamente preservadas pela Igreja Ortodoxa. Aqui também, esforçando-se
para evitar qualquer tipo de invenção, o ícone adere estritamente às Santas
Escrituras e à Santa Tradição, transmitindo os fatos tão laconicamente quanto
os Evangelhos e representando apenas o que um determinado texto ou tradição
relata, e o que indispensável para transmitir a revelação extra-temporal
manifestada num dado evento concreto. Assim como nas Santas Escrituras, só são
admitidos os detalhes necessários e suficientes para o propósito. Em algumas
imagens de festas, certos momentos, que aconteceram em diferentes tempos e
lugares, são colocados juntos numa composição (por exemplo, na Natividade de
Cristo, no Nascimento da Theotokos, nas Miróforas junto ao Sepulcro, etc.).
Nesses casos, como no Ofício Divino, o ícone transmite o sentido da festa tão completamente
quanto possível.
A segunda realidade, a presença da graça santificante do Espírito
Santo, a santidade, não pode ser representada por nenhum meio humano, uma vez
que ela é invisível à percepção exterior. Ao encontrarmos com um santo vivo
podemos passar por ele sem perceber sua santidade, porque a santidade não
possui características externas. “O mundo não vê os santos, assim como um cego
não vê a luz”, diz o Metropolita Filarete[56].
Mas ao mesmo tempo em que permanece invisível ao olhar não iluminado, a
santidade é evidente aos olhos do espírito. Ao reconhecer a um homem como santo
e glorificá-lo a Igreja indica sua santidade por meios visíveis nos ícones,
usando uma linguagem simbólica estabelecida, tal como as auréolas, certas
formas específicas, cores e linhas. Esse simbolismo indica o que não pode ser
expresso diretamente. Mas por esse meio, a revelação que chega ao mundo vinda
do alto, expressando-se na matéria, se torna manifesta a todos os homens e
acessível ao sem entendimento e contemplação. Esse simbolismo revela aquilo que
um homem pode alcançar esforçando-se, e o modo de atingi-lo. Consequentemente,
o Cânone iconográfico, que mencionamos antes, determina não apenas o tema de um
ícone, o que será representado, mas
também como isso deverá ser
representado, por quais meios é possível indicar a presença da graça do
Espírito Santo num homem e exprimir seu estado aos demais.
Dissemos antes que um ícone é uma expressão externa do estado
transfigurado de um homem, de sua santificação pela Divina luz incriada. Tanto
nos escritos dos santos Padres como nas vidas dos santos Ortodoxos, encontramos
com frequência essa manifestação da luz, um tipo de irradiação interna quase
solar que chega ao rosto dos santos em momentos de alta exaltação espiritual e
de glorificação. Essa manifestação da luz é mostrada no ícone por meio da
auréola, que constitui uma representação exata de uma manifestação real do
mundo espiritual. Mas o próprio estado espiritual, a perfeição interior de um
homem, da qual a luz é uma manifestação exterior, não pode ser transmitida nem
por palavras, nem por imagens. Como regra geral, quando os padres e os
escritores ascéticos chegam a descrever o momento real da santificação eles o
caracterizam pelo silêncio, uma vez que ele é totalmente indescritível e
inexprimível. Todavia, o efeito desse estado na natureza humana e em especial
sobre o corpo pode, em certa medida, ser representado e expresso. Assim é que,
como vimos, São Simeão o Novo Teólogo utilizou como recurso a imagem do fogo e
do ferro. O Bispo Russo Inácio Brianchaninov, que viveu no século XIX, fornece
uma descrição mais completa disso: “Quando a oração é santificada pela Divina
graça”, diz ele, “toda a alma é levada a Deus por um poder incompreensível,
arrastando o corpo consigo [...] No homem [...] não apenas a alma, não apenas o
coração, mas também a carne se enche de conforto e de bendita alegria no Deus
vivo[57]”.
Em outras palavras, quando o homem alcança o estado no qual sua condição
dispersa normal, “os pensamentos e os sentimentos provindos da natureza decaída[58]”,
com a ajuda do Espírito Santo, é substituída por um estado de concentração na
prece, todo o seu ser se torna um, em total impulso para Deus. “Tudo o que era
desordem nele”, diz São Dionísio o Areopagita, “se torna ordem; o que não tinha
forma adquire forma, e sua vida [...] se torna inteiramente preenchida pela luz[59]”.
Correspondendo a esse estado do santo, toda a sua imagem no ícone, tanto o
rosto como os detalhes, perde seu aspecto sensorial da carne corruptível e se
torna espiritualizada. Transmitido pelo ícone, esses estado transformado do
corpo humano é a expressão visível do dogma da transfiguração e dessa forma
adquire uma grande importância educacional. O nariz muito fino, a boca pequena
e os grandes olhos – tudo isso são métodos convencionais de transmitir o estado
de um santo cujos sentidos foram “refinados”, como se dizia nos tempos antigos.
Os órgãos dos sentidos, assim como outros detalhes, como as rugas, o cabelo,
etc., são submetidos à harmonia geral da imagem e, junto com todo o corpo do
santo, se unem no impulso comum para Deus. Tudo é levado à suprema ordem; no
Reino do Espírito Santo não existe desordem, porque “Deus é o Deus da ordem e
da paz[60]”.
A desordem é um atributo do homem decaído, uma consequência da queda. Isso não
significa, é claro, que o corpo deixa de ser o que ele é; não apenas ele
continua sendo o corpo, como, segundo dissemos antes, ele preserva todas as
particularidades da pessoa dada. Mas essas são representadas no ícone de
maneira tal a mostrar não a fisionomia do homem como num retrato, mas sua face
eterna e glorificada[61].
Se essa linguagem dos ícones se tornou tão pouco familiar para nós, e
nos parece “ingênua” e “primitiva”, isso não se deve ao fato do ícone ter
“sobrevivido”, ou de ter perdido sua força vital e sua significância, mas
porque “mesmo o conhecimento de que é capaz de levar conforto espiritual ao
corpo humano [...] foi perdido para o homem[62]”.
O método mencionado acima faz mais do que representar simbolicamente,
por meio da imagem, o estado transfigurado do santo; ele tem ainda uma
importância criativa e instrutiva. Ele está endereçado a nós e fornece um guia
e instruções sobre como devemos nos comportar em nossas orações, em nossa
comunhão com Deus. Ele nos mostra que nossos sentidos não devem estar dispersos
e distraídos da prece por causa de manifestações do mundo externo. Encontramos
uma linda ilustração verbal desse método da iconografia na Filocalia, nas
palavras de Santo Antônio o Grande: “O espírito”, diz ele, “combinado com a
mente [...] ensina a manter o corpo em ordem, da cabeça aos pés: os olhos, para
ver com pureza; os ouvidos, para ouvir em paz e não se deleitar com calúnias,
fuxicos e difamações; a língua, para só dizer o que é bom; [...] as mãos, para
acima de tudo só se moverem para se elevar em oração e para as obras da
caridade; [...] o estômago, para manter o uso da comida e da bebida dentro dos
limites necessários; [...] os pés, para só se moverem corretamente e seguirem
em direção a Deus [...] dessa forma todo o corpo é treinado para o bom e sofre
uma mudança, submetendo-se à lei do Espírito Santo, de modo a que afinal ele
começa em certa medida a partilhar das propriedades do corpo espiritual, que
ele receberá quando da ressurreição dos justos[63]”. Assim, o ícone não se corta do mundo, não se
tranca sobre si mesmo. O fato de que ele se dirige ao mundo é também enfatizado
pelo fato de que os santos geralmente são representados olhando para a
congregação, seja de frente ou de três quartos. Raramente eles são
representados de perfil, mesmo em composições complexas em que o movimento
geral se dirige a um ponto central da composição por sua importância. Num certo
sentido, o perfil rompe a comunhão, e constitui o começo de uma ausência.
Entretanto, ele é admitido no caso de pessoas que ainda não obtiveram a
santidade, como, por exemplo, os pastores ou os Reis Magos no ícone da
Natividade de Cristo.
O ícone nunca se
esforça por provocar emoções no fiel. Sua função não é a de provocar nele essa
ou aquela emoção humana, mas a de guiar toda emoção, assim como a própria razão
e outras faculdades da natureza humana, num caminho em direção à
transfiguração. Como já dissemos, a santificação pela graça não elimina nenhuma
das faculdades dessa natureza, assim como o fogo não elimina as propriedades do
ferro. Do mesmo modo o ícone, ao representar o corpo de um homem com todas as
suas particularidades, não elimina nada do que seja humano: ele não exclui
sequer os elementos psicológicos e mundanos. Ele também transmite os sentimentos
da pessoa (a perturbação da Theotokos na Anunciação, a consternação dos
Apóstolos na Transfiguração, etc.), seus conhecimentos, sua criatividade
artística[64],
uma específica ocupação externa, seja eclesial (um dignitário da Igreja, um
monge) ou temporal (um príncipe, um guerreiro, um médico), que o santo em
questão tenha transformado numa empreitada espiritual. Mas, assim como nas
Santas Escrituras, toda a carga de pensamentos, sentimentos e conhecimentos humanos
é representada no ícone em seu ponto de contato com o mundo da Divina Graça e,
nesse contato, tudo o que não está purificado é queimado pelo fogo. Toda
manifestação da natureza humana adquire sentido, se torna iluminada, encontra
seu lugar verdadeiro e sua importância. Então, é precisamente no ícone que
todos os sentimentos, ações e pensamentos humanos, assim como o próprio corpo,
adquirem seu pleno valor.
Assim é que o ícone é a um tempo o veículo e o significado: ele é a
própria oração. Daí sua qualidade hierática, de sua simplicidade majestática e
da calma de seu movimento; daí o ritmo de suas linhas, o ritmo e a alegria de
suas cores, que brotam da perfeição de uma harmonia interna[65].
A transfiguração do homem se comunica a tudo o que o cerca, porque um atributo
da santidade consiste na santificação de todo o mundo do entorno com o qual o
santo entra em contato. A santidade não possui apenas uma importância pessoal,
como também para o humano em geral, e mesmo para o cosmo. Por isso todo o mundo
visível representado no ícone se transforma, e se torna a imagem da futura
unidade de toda a criação – o Reino do Espírito Santo. Conforme a isso, tudo o
que está representado num ícone reflete, não a desordem de nosso mundo de
pecado, mas a Divina ordem, a paz, um domínio governado não pela lógica terrena,
não pela moralidade humana, mas pela Graça Divina. Trata-se da nova ordem na
nova criação. É por isso que o que vemos no ícone é tão diferente daquilo que
vemos em nossa vida comum. A Luz Divina permeia todas as coisas, e assim não
existe uma fonte de luz, que ilumine os objetos de um lado ou de outro; os
objetos não possuem sombras, pois não existem sombras no Reino de Deus. Tudo
está banhado pela luz; em linguagem técnica, os iconógrafos chamam de “luz” o
fundo do ícone. As pessoas não gesticulam: seus movimentos não são desordenados
e aleatórios. Elas estão oficiando, e cada um de seus movimentos carrega um
caráter litúrgico e sacramental. A começar pelas roupas do santo, tudo perde
seu caráter aleatório: as pessoas, a paisagem, a arquitetura, os animais.
Juntamente com a forma do próprio santo, tudo é governado por uma lei rítmica,
tudo está centrado no conteúdo espiritual e age como um todo harmonioso: a
terra, os reinos vegetal e animal, não são representados tendo em vista trazer
o espectador para perto daquilo que ele vê na realidade que o cerca, mas para
fazer com que a própria natureza participe da transfiguração do homem e se
conecte com uma existência que está fora do tempo. Assim como toda a criação
caiu junto com a queda do homem, também ela se santifica com sua santificação.
Por isso não existem ícones das criaturas sem a presença do homem.
A arquitetura desempenha um papel peculiar no ícone. Ao mesmo tempo em
que ela serve, assim como a paisagem, para denotar que o evento representado no
ícone está realmente conectado com a história num lugar definido, ela nunca
contém esse evento dentro de si, mas serve apenas como pano
de fundo para ele, pois, de acordo com o sentido do ícone, a ação não está
encerrada nem limitada a um local em particular, da mesma forma como, ao mesmo
tempo em que se manifesta no tempo, ela não está limitada a um determinado
tempo. Desse modo, a cena que acontece dentro de um edifício é sempre mostrada
ocorrendo com o edifício como fundo. Foi apenas no século XVII que os
iconógrafos, influenciados pelo Ocidente, começaram a apresentar os eventos
tendo lugar dentro de um edifício. As construções arquitetônicas estão
conectadas com a figura humana pelo sentido geral da composição, mas com
frequência não existe ligação lógica entre eles[66] (Ver reproduções anexadas).
Se compararmos a maneira como um ícone representa a figura humana com a maneira
como ele retrata um edifício, podemos notar a grande diferença entre eles. Com
raras exceções, a figura humana é sempre construída corretamente – tudo está no
lugar certo. O mesmo acontece com as roupas: seus detalhes, os planejamentos,
etc., são perfeitamente lógicos. Mas a arquitetura, tanto na forma como
no conjunto, é quase sempre contrária à lógica humana e, nos detalhes,
enfaticamente ilógica. Portas e janelas são abertas nos lugares errados, seu
tamanho não corresponde às suas funções, e assim por diante[67].
O significado desse fenômeno é que a arquitetura é o único elemento do ícone
com cujo auxílio é possível mostrar claramente que a ação que tem lugar diante
de nossos olhos está fora das leis da lógica humana, fora das leis da
existência terrestre. É digno de nota que esse caráter ilógico da arquitetura
tenha existido nos ícones Russos até o começo da decadência, ou seja, até o
momento em que, na virada do século XVI para o XVII, a compreensão da linguagem
dos ícones começou a se perder. Desse tempo em diante a arquitetura se tornou
lógica e passou a se revestir de uma profusão de formas arquitetônicas
puramente lógicas, conquanto fantásticas e fantasistas.
É claro, a partir do que foi dito, que a função do ícone de modo algum
inclui a criação de uma ilusão do tema ou evento representado, pois, de acordo
com sua própria definição, o ícone (isso é, a imagem) é o oposto da ilusão.
Quando o olhamos, não apenas sabemos como vemos que estamos não diante de uma
pessoa ou evento em si, mas diante de sua imagem, de um objeto que, por sua
própria natureza, é fundamentalmente diferente de seu protótipo. Isso exclui
toda tentativa de criar uma
ilusão de espaço real ou de volume. No ícone o espaço e o volume estão
limitados à superfície do painel e não devem criar a ilusão de ir além daí.
Ainda assim, não se trata de uma arte bidimensional, no sentido em que a arte
do Oriente não é bidimensional. A ideia pictórica de volume existe sempre no
ícone, no tratamento das figuras, dos rostos, das vestimentas, dos edifícios,
etc. A composição de um ícone é sempre espacial e tem uma profundidade
definida. O ícone exprime as três dimensões, mas essas três dimensões jamais
violam o plano do painel. Qualquer violação desse plano, ainda que parcial,
prejudica o sentido do ícone. A preservação da realidade do plano é grandemente
favorecida pela assim chamada perspectiva invertida, cujo ponto de fuga não se
localiza na profundidade da imagem, mas em frente a ela, como se estivesse no
próprio espectador[68].
Um homem se coloca como se fosse no início de um caminho que não está
concentrado em algum ponto em profundidade, mas que se revela diante dele em
toda sua imensidão. A perspectiva inversa não conduz o olho do espectador: ao
contrário, ela o detém, impedindo a possibilidade de penetrar e entrar na
imagem em profundidade; e isso concentra a atenção na imagem em si.
O simbolismo iconográfico que descrevemos levanta naturalmente a
questão: com que fundamento podemos afirmar que os símbolos utilizados para
retratar o estado transfigurado do homem realmente indicam esse fato, e não
estão na verdade nos conduzindo a um mundo fantástico e inventado? Podemos
responder a essa questão com as palavras do Apóstolo Paulo: “estamos rodeados
dessa grande nuvem de testemunhos[69]”.
E, de fato, se na iconografia dos santos e dos eventos das Santas Escrituras
foram adotadas as versões que melhor expressam a realidade histórica de forma
completa e exata, a realidade do Reino do Espírito Santo é comunicada por
homens que adquiriram os rudimentos desse Reino enquanto ainda viviam aqui, nas
condições de nossa vida terrena. Da mesma forma como alguns grandes espirituais
nos deixaram descrições verbais do Reino de Deus, que estava dentro deles[70],
outros deixaram também descrições desse Reino, mas em imagens visíveis, na
linguagem nos símbolos artísticos; e seu testemunho é igualmente autêntico. É a
mesma teologia revelada, apenas colocada em imagens ao invés de palavras. É um
tipo de desenho da natureza por meio de símbolos, tanto quanto as descrições
verbais dos santos Padres. “Pois nós falamos disso por contemplação”, atesta
São Simeão o Novo Teólogo, “de maneira que o que relatamos pode ser considerado
como um registro do que foi contemplado, mais do que de uma ideia (nohma)[71]”.
A imagem sagrada, tal como as Santas Escrituras, transmitem, não ideias humanas
e concepções da verdade, mas a própria verdade – a Divina revelação. Nem a
realidade histórica, nem a espiritual, admitem invenção. Assim sendo, como
dissemos, a arte da Igreja é realista no sentido estrito da palavra, tanto na
sua iconografia quanto no seu simbolismo. Na verdadeira arte da Igreja não
existe idealização, assim como não existe nas Santas Escrituras ou na Liturgia.
Tampouco pode existir aqui, porque a idealização introduz um elemento subjetivo
e limitativo e inevitavelmente mutila ou distorce a verdade, em maior ou menor
grau. A ideia corrente de que a arte da Igreja, e em especial o ícone, é
idealista, que o ícone representa uma espécie de ideia mais elevada – uma
opinião baseada no fato de que o realismo na arte é, acima de tudo o mais,
compreensível ao mundo – é um puro engano. De fato, é exatamente o contrário:
assim que surge a idealização, desaparece o ícone. Isso é bastante
compreensível pois, por si mesmo, o homem pode falar apenas de si mesmo.
Ninguém pode falar da vida Divina a partir de si próprio. “Quem pode falar por
si próprio de um objeto que nunca foi visto antes? [...] como é possível falar
e proclamar seja lá o que for sobre Deus, sobre as coisas divinas e os santos
de Deus, vale dizer, como pode alguém falar sobre o tipo de comunhão com Deus
que foi concedida a esses santos, e sobre o conhecimento de Deus, que está
dentro deles e que produz inefáveis ações em seus corações – como pode qualquer
coisa ser dita por um homem que ainda não foi iluminado pela luz do
conhecimento?[72]”.
Consequentemente, um ícone não pode ser inventado. Apenas aqueles que conhecem,
por uma experiência pessoal, o estado retratado, pode criar imagens que
correspondam àquilo que é verdadeiramente “uma revelação e uma evidência das
coisas ocultas”, ou, em outras palavras, a evidência da participação do homem
na vida do mundo transfigurado que ele contempla, assim como Moisés criou
imagens daquilo que ele viu e fez os querubins conforme vira[73],
ou seja, segundo o padrão que ele viu na montanha[74].
Somente uma imagem assim pode ser autêntica e convincente, e dessa forma pode
nos mostrar o caminho e nos conduzir a Deus. Nenhuma fantasia artística,
nenhuma perfeição técnica, nenhum dom artístico pode substituir o conhecimento
direto, obtido pela “visão e a contemplação[75]”.
***
Seria errôneo, é claro, concluir daí que somente os santos podem
pintar ícones. A Igreja não é constituída apenas por santos. Todos os seus
membros que levam uma vida sacramental têm o direito e a tarefa de seguir os
seus passos. Por isso, todo iconógrafo Ortodoxo, que viva dentro da Tradição,
pode fazer ícones genuínos. Além disso, a fonte inexaurível que alimenta a arte
da Igreja é o próprio Espírito Santo, que age através da Igreja por intermédio
de homens iluminados pela Divina Graça; homens que alcançaram o conhecimento
direto de Deus e a comunhão com Ele, e que assim foram glorificados pela Igreja
como santos iconógrafos. Desse modo, o papel da Tradição não está limitado a
transmitir o efetivo fato da existência de um ícone. Por um lado ela transmite
a imagem de um evento da História Sagrada, ou de um santo glorificado pela
Igreja, como uma memória do evento ou do santo. Por outro lado, ela constitui
uma fonte inesgotável de conhecimento transmitido à Igreja pelo Espírito Santo.
Por isso a Igreja sempre enfatizou a necessidade de seguir a Tradição, tanto
através das regras dos Concílios, pela voz de seus dignitários, e ordenou que
os ícones fossem pintados “como os antigos santos iconógrafos os pintaram”.
“Retratem em cores de acordo com a Tradição;”, diz São Simeão de Tessalônica,
“isso consiste em pintar tão verdadeiramente quanto está escrito nos livros, e
a graça de Deus está aí, porque o que está pintado é sagrado[76]”.
Por essa razão, a criação de um ícone pertence a uma categoria
fundamentalmente diferente daquilo que normalmente se entende por essa palavra.
Ela possui o caráter de uma criação católica (soborny), não pessoal. O iconógrafo transmite, não a sua “ideia” (nohma), mas uma “descrição do que foi
contemplado”, ou seja, um conhecimento de fato, algo que foi visto, senão por
si mesmo, por uma testemunha digna de fé. A experiência da testemunha, que
recebeu e transmitiu a revelação, é aumentada pela adição da experiência
daqueles que a receberam dela. Dessa maneira, a singularidade da verdade
revelada é unida à experiência pessoal multiforme dos que a receberam. A fim de
receber e repassar o testemunho, o iconógrafo deve não apenas confiar que ele é
genuíno, como ainda partilhar da vida, a mesma que a testemunha da revelação
viveu, deve seguir o mesmo caminho, ou seja, ser um membro do corpo da Igreja.
Somente assim ele pode transmitir o testemunho recebido de forma exata e
consciente. Daí a necessidade de uma participação contínua na vida sacramental
da Igreja; daí também a exigência moral que a Igreja faz aos iconógrafos. Pois
para o verdadeiro iconógrafo, a criação é um caminho de ascetismo e oração, ou
seja, essencialmente, uma via monástica. Embora a beleza e o conteúdo de um
ícone sejam percebidos subjetivamente por cada espectador, de acordo com suas
capacidades, essas coisas são expressas pelo iconógrafo objetivamente,
superando conscientemente seu próprio “eu” e subordinando-o à verdade revelada
– a autoridade da Tradição. Os costumeiros “eu vejo isso assim”, “eu entendo
isso assim”, estão nesse caso completamente excluídos. O iconógrafo não
trabalha para si, não para sua própria glória, mas para a glória de Deus. Por
isso, um ícone nunca é assinado. A liberdade de um iconógrafo consiste não numa
expressão entremeada de sua personalidade, de seu “eu”[77],
mas em sua “libertação de todas as paixões e vícios do mundo e da carne[78]”.
Essa é a liberdade espiritual da qual o Apóstolo Paulo fala: “Onde está o
Espírito do Senhor, aí está a liberdade[79]”.
O princípio orientador é assim o Cânone mencionado mais acima. Ele representa
não a totalização das regulamentações externas restritivas da criatividade do
artista, mas uma necessidade interior conscientemente aceita como uma regra
construtiva, como um dos aspectos da Tradição da Igreja, paralelo às demais
tradições, litúrgica, ascética e outras. Em outras palavras, o Cânone é forma
pela qual a Igreja institui a subordinação da vontade humana à vontade de Deus,
sua união, e essa forma de fato capacita a personalidade a não ser escrava da
natureza pecaminosa, mas a superá-la, a subjugá-la, a “se tornar senhora de
suas próprias ações e ser livre[80]”,
conforme disse o Apóstolo Paulo – “todas as coisas me são permitidas, mas não
me tornarei escravo de nenhuma[81]”.
Essa maneira propicia o máximo de liberdade à arte criativa do homem, e a fonte
que a alimenta é a graça do Espírito Santo. Assim, somente a arte criativa da
Igreja constitui uma participação direta no ato Divino, uma ação totalmente
litúrgica e, portanto, totalmente livre.
O grau em que essa arte possui uma qualidade litúrgica está em relação
direta com a liberdade espiritual do artista. Um ícone pode ser tecnicamente
perfeito mas possuir um baixo nível espiritual; inversamente, existem ícones
toscos e primitivamente pintados, nos quais estamos diante de um alto nível
espiritual.
O trabalho de um iconógrafo tem muito em comum como o trabalho de um
padre oficiando. Theodosio o Eremita estabelece um paralelo definitivo entre ambos.
Diz ele: “O Ofício Divino da representação sobre o ícone extrai sua origem dos
santos Apóstolos. O padre e o iconógrafo devem ser ambos castos, ou casados e
vivendo segundo a lei; pois o padre, oficiando de acordo com as palavras
divinas, prepara o Corpo, do qual participamos pela remissão dos pecados;
enquanto que o artista, ao invés de usar palavras, desenha e figura um corpo e
lhe dá vida, e nós veneramos os ícones por causa dos seus protótipos[82]”.
Assim como o padre não pode nem alterar os textos litúrgicos à sua vontade, nem
colocar emoções em sua leitura, de modo a impressionar os fiéis com seu próprio
estado ou percepção, também o iconógrafo deve se conformar à imagem consagrada
pela Igreja, sem introduzir um conteúdo pessoal ou emocional, mas colocando
aqueles que oram diante da mesma realidade, e deixando cada pessoa livre para
reagir na medida das suas possibilidades e de acordo com seu caráter, suas
necessidades, suas circunstâncias e assim por diante. Ademais, assim como um
padre oficia de acordo com seus dons naturais e suas peculiaridades, também o
iconógrafo transmite uma imagem de acordo com seu caráter, seus dons e sua
proficiência técnica.
A iconografia, portanto, não consiste em copiar. Ela está longe de ser
impessoal, porque seguir a Tradição nunca acorrenta o potencial criativo do
iconógrafo, cuja individualidade se expressa na composição, nas cores e nas
linhas. Mas o aspecto pessoal aqui é muito mais sutil do que em outras artes e
muitas vezes escapa à observação superficial. A ausência de ícones idênticos já
foi notada há muito tempo. Mais do que isso, entre ícones com a mesma temática,
embora às vezes extremamente parecidos, nunca encontramos dois absolutamente
idênticos (a não ser no caso das cópias, nos tempos mais recentes). Os ícones
não são copiados, mas pintados a partir de, o que implica sua livre
transposição criativa.
***
Começando pelo sentido e o conteúdo do ícone, os Padres do VII
Concílio Ecumênico confirmaram que o estado abençoado de um homem pode ser
expresso por meio da matéria santificada pela Encarnação de Deus; e eles
ordenaram a execução de ícones para veneração em todas as partes, da mesma
forma como a imagem da vivificadora Cruz, “nas santas igrejas de Deus, nos
vasos sagrados e nas vestimentas, nas paredes e painéis, nas casas e nos
caminhos[83]”.
Esse regulamento do santo Concílio mostra que na consciência da Igreja o papel
do ícone, transmitido pela Tradição, não está limitado a preservar a memória de
um passado santo. Seu papel, tanto na Igreja como no mundo, não é conservador,
mas dramaticamente criativo. O ícone é visto como um dos meios pelos quais é
possível e necessário se esforçar para adquirir a tarefa estabelecida para a
humanidade, de adquirir a semelhança com o protótipo, de incorporar na vida
aquilo que foi manifestado e transmitido pelo Deus Homem. Com essa importância,
os ícones são colocados por toda parte como a revelação da futura santificação
do mundo, de sua transfiguração vindoura, como padrão de sua realização e,
finalmente, como a promulgação da graça e da presença no mundo de objetos
santos, que o santificam. “Pois os santos estão cheios do Espírito Santo já
desde suas vidas. Depois de sua morte a graça do Espírito Santo habita
inexaurivelmente em suas almas e em seus corpos que jazem nos sepulcros, em
seus semblantes e em suas santas imagens[84]”.
Assim é que, no século XIV, em resposta à doutrina escolástica
colocada na controvérsia sobre a luz do Tabor, quando a Igreja foi forçada a
estabelecer como uma definição dogmática seu ensinamento sobre a deificação do
homem, ela também instruiu sobre a ação da Divina energia no homem, sobre sua
iluminação pela graça, sua transfiguração, e não apenas por meio de fatos,
através da experiência espiritual de seus santos, como também em imagens, na
linguagem da arte. Essa linguagem duplamente realista da arte da Igreja, que
fez sua aparição no início da era Cristã, recebeu sua confirmação dogmática em
conexão com o estabelecimento do dogma da Encarnação da Segunda Pessoa da Santa
Trindade (“Deus tornou-se homem...”), no primeiro período da história da
Igreja, que culminou com o Triunfo da Ortodoxia. No segundo período, no decurso
dos seis séculos que se seguiram ao Iconoclasmo, quando a questão central era a
do Espírito Santo em conexão com a defesa do segundo aspecto do dogma (“...para
que o homem se tornasse deus.”), a linguagem pictórica da Igreja se fez mais
perfeita e precisa. Esse período assistiu à formatação final da linguagem
iconográfica, que se tornou clássica e que corresponde inteiramente ao conteúdo
do ícone. Esse foi o período de florescimento da arte da Igreja em diferentes
países Ortodoxos: na Grécia, nos Balcãs, na Rússia, na Geórgia e em outros
lugares.
De qualquer modo, assim como a própria santidade, da qual o ícone é um
reflexo, se manifesta diferentemente em povos e épocas diferentes em
correspondência às suas particularidades, também cada nação e cada período,
transmitindo em imagens a mesma verdade, cria tipos diferentes de ícones, às
vezes similares, mas em geral diferindo muito uns dos outros. Não existe
contradição nisso, pois a revelação única se manifesta sob aspectos diferentes
de acordo com o que requer esse ou aquele povo, essa ou aquela época. Assim, o
caráter inflexivelmente hierático dos ícones Bizantinos não se opõem aos ternos
e cálidos ícones Russos, pois Deus não é somente o juiz Onipotente e
inflexível, como também é o Salvador do mundo, que se sacrificou pelos pecados
do homem. Como no primeiro período, também mais tarde o ícone não se limitou a
expressar apenas o dogmático e o espiritual, isso é, a vida interior da Igreja.
Por intermédio dos homens que os criaram, esses ícones possuíam uma ligação
viva com o mundo exterior, manifestando a feição espiritual de cada nação, seu
caráter, sua história, respondendo a todos os complexos problemas do tempo e
lugar por meios e métodos correspondentes a cada povo e a cada época. Mas, por
fortes que fossem as características que ligavam o ícone ao mundo exterior, sua
representação sempre foi um traço, e não a essência do ícone, que consistia e
sempre consistiu em expressar o dogma da Igreja.
Conforme o dom da expressão que pertence a cada indivíduo e à nação
como um todo, e também de acordo com a medida em que a revelação é
experimentada na prática, ela é transmitida pela imagem com maior ou menor
perfeição. Essas duas condições estão na base tanto das similaridades quanto
das diferenças que existem entre os ícones de diferentes povos e períodos. O
grau em que o dom da expressão está subordinado à revelação que pretende
exprimir, determina o nível espiritual e a pureza da imagem. Nesse sentido o
exemplo mais característico é o de Bizâncio e Rússia, os dois países onde a
arte da Igreja alcançou seu mais alto grau de expressão. A arte de Bizâncio,
ascética e rígida, solene e refinada, nem sempre alcança a altura espiritual e
a pureza características do nível geral da iconografia Russa. Ela cresceu e se
formou em tempos de luta e essa luta deixou sua marca nela. Bizâncio foi fruto
da cultura do mundo antigo, cuja rica e variada herança foi chamado a
introduzir na Igreja. Nessa tarefa, seu dom inerente por pensamentos e palavras
sutis e profundos foi capaz de trazer para a Igreja tudo o que dizia respeito à
linguagem verbal da Igreja. Bizâncio produziu grandes teólogos; ele desempenhou
um grande papel na luta dogmática da Igreja, e foi particularmente decisivo na
batalha pelo ícone. Mesmo assim, no nível da própria imagem, apesar do alto
nível de expressão artística, permaneceu muitas vezes um traço da antiga
herança que não foi inteiramente superada, e que se fez sentir, em maior ou
menor grau, em diferentes aspectos que se refletiram na pureza espiritual da
imagem[85].
Mesmo as obras primas do período clássico dessa arte, como nos mosaicos de
Santa Sofia em Constantinopla (século XII), não são totalmente destituídos de
um certo peso sensual; diante deles sentimos que a paz da alma e do corpo não
foi ainda completamente alcançada[86].
E os mosaicos do século IX da mesma Santa Sofia estão definitivamente embebidos
de sensualidade ancestral[87].
Posteriormente, vamos encontrar ainda os mesmos traços da antiga arte e de sua
dependência da matéria, tanto nos ícones Bizantinos, como nos Gregos que se
seguiram.
Por outro lado, a Rússia, que não esteve limitada pela complexa
herança da antiguidade e pelas raízes de sua própria cultura, que eram muito
mais rasas, atingiu um grau excepcionalmente alto de pureza da imagem, que fez
com que a iconografia Russa se tornasse proeminente dentre as ramificações da
iconografia Ortodoxa. Coube à Rússia produzir essa perfeição da linguagem
pictórica do ícone, que revelou com enorme força a profundidade do significado
da imagem litúrgica, sua espiritualidade. Podemos dizer que Bizâncio foi
proeminente em dar ao mundo a teologia expressa em palavras, enquanto que a
teologia expressa em imagens foi dada principalmente pela Rússia. É
característico a esse respeito que, até a época de Pedro o Grande, existiam
poucos escritores espirituais dentre os santos Russos; por outro lado, muitos
santos eram iconógrafos, desde simples monges até metropolitas. O ícone Russo
não é menos ascético do que o Bizantino. Mas seu ascetismo é de outra ordem.
Aqui, a ênfase não está na dificuldade e no esforço, mas na alegria trazida por
seu fruto, pela facilidade e leveza do jugo do Senhor, do qual Ele falou no
Evangelho, que é lido no dia dos santos ascetas: “Tomem meu jugo sobre vós e
aprendei comigo, que sou doce e humilde de coração; e encontrareis o repouso
para vossas almas; pois meu jugo é simples, e meu fardo é leve[88]”.
O ícone Russo é a mais alta expressão da humildade divina no homem. É por isso
que, apesar de seu significado extremamente profundo, ele possui uma leveza e
alegria infantis, e está cheio de uma paz tranquila e afetuosa. Tendo entrado
em contato com as tradições do mundo antigo através de Bizâncio, especialmente
nas sua base Helênica e não na sua versão Romana, a iconografia Russa não se
deixou fascinar pelo encanto dessa herança. Ela a utilizou apenas como um meio,
introduzindo-a por completo na Igreja, e a transfigurou; e assim a beleza da
antiga arte adquiriu seu verdadeiro sentido na fisionomia transfigurada do
ícone Russo[89].
Juntamente com o Cristianismo, a Rússia recebeu de Bizâncio, no final
do século X uma imagem litúrgica já estabelecida, uma doutrina formulada
referente a ela e uma técnica madura trabalhada do longo de séculos. Seus
primeiros professores foram Gregos visitantes, mestres do período clássico da
arte Bizantina, os quais, desde o início, nos afrescos das primeiras igrejas,
como por exemplo em Santa Sofia de Kiev (1037-1161/67), utilizaram artistas
Russos como assistentes[90]. A atividade desses pupilos, os primeiros
santos iconógrafos Russos conhecidos, pertence ao século XI. Esses eram monges
do mosteiro de Kiev-Pechersky: Santo Alípio, falecido cerca de 1114, e seu
colaborador São Gregório. Santo Alípio é considerado o pai da iconografia
Russa. Ele começou a pintar ícones desde a infância, visitando os mestres
Gregos; depois ele se tornou monge e foi ordenado presbítero. Ele se distinguiu
por uma incansável diligência, e pela humildade, castidade, paciência, jejum e
amor pela meditação e pelos temas divinos. “Nunca se enraiveceu contra aqueles
que o ofendiam, nem retribuiu o mal com o mal”, diz o hino da Igreja em sua
honra[91].
Ele foi um dos monges ascetas que tornaram famosa a Lavra de Kiev-Perchesky[92].
Por intermédio de Santo Alípio e São Gregório, a arte da Igreja Russa, desde
seus começos, foi guiada por homens iluminados pelo conhecimento recebido pela
revelação direta, de que a iconografia Russa iria possuir muitos futuramente.
Infelizmente, apesar da evidência de um grande número de ícones pintados por
esses dois primeiros iconógrafos, hoje em dia só existem suposições e
conjecturas a respeito deles; não temos nenhuma informação autorizada. De modo
geral, podemos formar uma ideia do período de Kiev na arte da Igreja Russa,
principalmente a partir de afrescos e mosaicos. A invasão Tártara de meados do
século XIII, que envolveu a maior parte da Rússia, não apenas destruiu muitos
ícones existentes, como também prejudicou consideravelmente a produção de
novos. A maior parte dos poucos ícones desse período que foi preservada e
depois descoberta pertence ao final do século XI, e aos séculos XII e XIII.
Ademais, quase todos são atribuídos, mais ou menos corretamente, a Novgorod,
que também foi uma fonte para a arte do século XI.
Os ícones da era pré Mongólica possuem um caráter excessivamente
monumental que distingue a pintura mural, sob cuja influência a iconografia
Russa permaneceu até o século XIV, e um caráter de expressão artística
lacônico, tanto na composição, como nas figuras, nos gestos, nos planejamentos,
etc. As cores prevalecentes são escuras, restritas e sombrias. Mas já no século
XIII esse colorido sombrio começa a ser substituído pelas cores variadas e claras
características da arte Russa. Surgiu um maior dinamismo interno e externo e
uma tendência maior a preservar a superfície plana. Os primeiros ícones, embora
mostrando traços Russos, ainda dependem em maior ou menor grau dos padrões
Gregos. Presumivelmente o século XII foi o período de assimilação dos
princípios e formas que a arte da Igreja herdou de Bizâncio; no século XIII
esta começa a assumir o caráter nacional Russo, que encontrou sua expressão
final no século XIV[93].
Os ícones desse período se distinguem pelo frescor e a franqueza de expressão,
pelas cores vívidas, pelo sentido de ritmo e a simplicidade da composição. A
atividade dos santos iconógrafos São Pedro, Metropolita de Moscou (falecido em
1326) e São Teodoro, Arcebispo de Rostov (falecido em 1394), pertencem a esse
período.
Os séculos XIV, XV e a primeira metade do século XVI representam o
mais refinado florescimento da iconografia Russa, que coincide com um igual
florescimento da santidade Russa, em especial do tipo ascético, que declinou
rapidamente na segunda metade do século XVI. Esse tempo produziu o maior número
de santos canonizados, especialmente o século XV. De 1420 a 1500 o número de
santos canonizados chegou a cinquenta.
A fronteira entre os séculos XIV e XV está ligada ao nome do maior de
todos os iconógrafos, Santo Andrei Rublev, que trabalhou com seu amigo e
professor, Daniel o Negro. Nos últimos dez anos toda uma série de afrescos e
ícones pintados por ele vieram à luz, dos quais o primeiro lugar cabe à sua
insuperável Trindade. (Ver reprodução anexa) A
extraordinária profundidade da visão espiritual de Santo Andrei encontrou sua
expressão através de seu excepcional talento artístico. A arte criativa de
Andrei Rublev é a mais vívida manifestação da iconografia Russa de herança
antiga. Toda a beleza da arte antiga é vivificada, cheia de um novo e
verdadeiro sentido espiritual. Sua arte se distingue por um frescor juvenil, um
senso de medida, uma suprema harmonia de cores, um ritmo encantador e a música
de suas linhas. A influência de Santo Andrei na arte da Igreja Russa foi imensa.
Referências a ele foram preservadas em manuais de iconografia, e o Concílio
convocado em Moscou em 1551 pelo Metropolita Macário (ele próprio um
iconógrafo) para decidir questões relacionadas à iconografia, aceitou a seguinte
resolução: “pintar ícones a partir de padrões antigos, como fizeram os
iconógrafos Gregos e como fez Andrei Rublev e outros artistas celebrados[94]”.
Se qualquer de seus ícones fosse destruído, isso era reportado nos anais como
um evento de graves consequências e de importância pública. A arte de Santo
Andrei deixou sua impressão por todo o século XV na arte da Igreja Russa, a
qual, nesse período, atingiu sua mais alta expressão artística. Esse é o
período clássico da iconografia Russa. Os mestres do século XV atingiram uma
extraordinária perfeição no controle da linha, na habilidade de inserir figuras
num espaço definido, na excelência da correlação entre silhueta e fundo livre.
Esse século foi de muitas maneiras uma repetição do precedente, mas difere dele
por um maior equilíbrio e por uma estrutura mais perfeita. Um senso de ritmo
excepcional permeia todas as coisas, uma pureza extraordinária e uma
profundidade dos tons, a força e a alegria das cores expressam inteiramente a
alegria e a serenidade de uma arte que encontrou sua maturidade combinada com
uma inusitada profundidade e percepção espiritual.
A segunda metade do século XV e o começo do século XVI estão ligados a
outro gênio, cujo nome se iguala ao de Santo Andrei: Dionísio, que trabalhou
com seus filhos. Sua arte está baseada na tradição de Rublev e representa uma
brilhante culminação da iconografia Russa do século XV. Essa culminação está
ligada, numa certa medida, à preponderância dos meios externos de expressão.
Por volta do final do século XV e início do XVI, a pintura se tornou
sofisticada e formalmente refinada. Esse período mostra uma grande perfeição da
técnica, a elegância das linhas e a sofisticação das formas e das cores. A arte
de Dionísio está cheia de uma alegria particularmente viva, as proporções de
suas figuras são alongadas e refinadas, com uma acentuada graça nos movimentos.
Os contornos são ondulantes, suaves e fortes. Suas cores límpidas com delicados
verdes, rosas e zuis pálidos possuem uma qualidade musical singular.
O século XVI preservou
totalmente a impregnação da imagem pelo Espírito Santo; tampouco as cores vivas
diminuem; ao contrário, elas assumem uma riqueza ainda maior de matizes. Esse
século, como o anterior, continua a produzir ícones marcantes. Mas na sua
segunda metade, a simplicidade majestática e a moderação clássica, que duraram
por séculos, começa a vacilar. Os amplos planos e o sentimento monumental da
imagem, o ritmo clássico e a antiga pureza e força da cor desaparecem. Surge um
desejo por complexidade, virtuosismo e abundância de detalhes. Os tons se
tornam sombrios e opacos e no lugar das antigas cores leves e límpidas,
aparecem tons matizados de terra opacos que, combinados com o ouro, criam uma
impressão pomposa e um esplendor algo lúgubre. Esse período marca uma
reviravolta na iconografia Russa. O sentido dogmático do ícone deixa de ser
sentido como um ponto essencial e o momento da narrativa assume um papel
dominante[95] (Ver a descrição do Ícone da Natividade do Senhor no texto correspondente).
Toda uma série de novos temas aparece, sugerida pela influência de figuras
Ocidentais.
Esse período, e o começo do século XVII, estão ligados à atividade da
nova escola de Stroganov, formada no nordeste da Rússia sob a influência da
família Stroganov, grandes amantes da iconografia. A feição característica dos
mestres de Stroganov desse tempo consistiu em ícones complexos com muitas
figuras em pequena escala e um acabamento minucioso. Eles se distinguem pela
notável fineza e virtuosismo de execução, e se assemelham a objetos de arte de
joalheria. O desenho é complicado e rico em detalhes; as cores tendem a seguir
um matiz geral, perdendo assim o brilho das cores individuais.
No século XVII começa o declínio da arte da Igreja. Esse declínio foi
o resultado de uma profunda crise espiritual, de uma secularização da
consciência religiosa, graças à qual, apesar da vigorosa oposição da Igreja[96],
teve início a penetração não somente de elementos separados, como dos próprios
princípio da arte religiosa do Ocidente, que eram estranhos à Ortodoxia. O
conteúdo dogmático do ícone desapareceu da consciência dos homens e o realismo
simbólico se tornou uma linguagem incompreensível para os iconógrafos que
caíram sob a influência do Ocidente. A ligação com a Tradição foi quebrada. A arte
da Igreja se tornou secularizada sob a influência de uma arte secular
realística nascente, cujo pai foi o famoso iconógrafo Simon Oushakov. Essa secularização
foi o reflexo, no domínio da arte, da secularização generalizada da vida da
Igreja. O resultado foi uma mistura da imagem da Igreja com a imagem mundana, da
Igreja com o mundo. O realismo simbólico, baseado na experiência espiritual e
na visão, desapareceu devido à ausência dessa última e da perda dos laços com a
Tradição. Esse fato deu origem a uma imagem que já não testemunhava o estado transfigurado
do homem – a realidade espiritual – mas que expressava diferentes ideias e
opiniões conectadas com essa realidade; assim é que, aquilo que era o realismo
para a arte secular, tornou-se o idealismo quando aplicado à arte da Igreja. Isso
também permitiu o surgimento de um tratamento mais ou menos arbitrário do próprio
tema, que se tornou meramente uma ocasião para expressar essa ou aquela ideia
ou concepção, levando também inevitavelmente a uma distorção da realidade
histórica.
A perda da consciência do sentido dogmático da arte conduziu ainda
inevitavelmente a uma distorção de seus próprios fundamentos[97],
e nenhum dom artístico, nenhuma técnica refinada se mostrou capaz de
substituí-los; assim sendo, a iconografia se tornou um meio-ofício, ou
simplesmente um ofício.
Mas a consciência dogmática da imagem não foi perdida pela Igreja, e
seria errado pensar que essa decadência representou o fim do ícone. O ofício da
iconografia sempre existiu lado a lado com a grande arte; mas nos séculos
XVIII, XIX e XX, ele assumiu uma importância dominante. Mas mesmo aqui, “mesmo
nos tempos de completa decadência, afrescos e ícones, desprovidos de qualquer
mérito, atraíram os olhares pela harmonia e a força de seu efeito geral. Mesmo hoje,
no nível de uma péssima produção comercial, essas coisas possuem algo como ‘cada
coisa em seu lugar’, que tão frequentemente falta à pintura moderna[98]”.
Tal é a força da tradição da Igreja que, mesmo no nível mais baixo da criação
artística, preserva os ecos da grande arte. Ademais, esse nível de artesania
nunca foi e continua não sendo uma regra absoluta. Lado a lado com a imagem que
perdeu sua ligação com a Tradição da Igreja e que se tornou em parte ou totalmente
mundana, lado a lado com ícones ruins pintados por artesãos, sempre foram
produzidos, e continuam a ser produzidos, ícones de alto nível, tanto na Rússia
como em outros países Ortodoxos, em meio à decadência que os assolou em épocas
diferentes. Os iconógrafos que não desertaram da tradição iconográfica da
Igreja, mantiveram-na durante esses séculos de decadência e preservaram até os
nossos tempos a verdadeira imagem litúrgica, muitas vezes de grande conteúdo
espiritual e alto padrão artístico.
***
Como já dissemos, o Cristianismo é a revelação não apenas do Verbo de
Deus, mas também da Imagem de Deus, na qual se manifesta Sua Semelhança. Essa imagem
divina é a característica distintiva do Novo Testamento, sendo o testemunho
visível da deificação do homem. Os caminhos da iconografia, como meios de
expressar o que se refere à Divindade, são os mesmos caminhos da teologia. A tarefa
de ambas é a mesma, a de expressar aquilo que não pode ser expresso por meios
humanos, pois essa expressão seria sempre imperfeita e insuficiente. Não
existem palavras, nem cores ou linhas, que possam representar o Reino de Deus
do mesmo modo como representamos e descrevemos nosso mundo. Tanto a teologia
como a iconografia encaram um problema que é absolutamente insolúvel –
expressar por meios que pertencem ao mundo criado aquilo que está infinitamente
acima da criatura. Nesse plano, não se pode ter sucesso, porque o próprio
objeto está fora da compreensão e, por mais elevado em conteúdo e beleza que
possa ser um ícone, ele não pode ser perfeito, assim como nenhuma imagem em
palavras pode ser perfeita. Nesse sentido, tanto a teologia como a iconografia
são sempre falhas. E é precisamente nessa falha que reside o valor de ambas:
pois esse valor resulta do fato de que tanto a teologia como a iconografia
buscam o limite das possibilidades humanas e provam sua insuficiência. Por isso
os métodos da iconografia para apontar o Reino de Deus podem ser apenas
figurativos, simbólicos, como a linguagem das parábolas das Santas Escrituras.
Mas o conteúdo expresso por essa linguagem simbólica é imutável, tanto nas
Escrituras como na imagem litúrgica.
Assim como o ensinamento que se refere à finalidade da vida Cristã – a
deificação do homem – continua a existir, também o ensinamento dogmático
referente ao ícone continua a existir e viver nos ofícios Divinos da Igreja
Ortodoxa, graças aos quais a correta atitude para com o ícone foi preservada. Para
o fiel Ortodoxo de nosso tempo, um ícone, seja moderno ou antigo, não é objeto
de uma admiração estética ou tema de estudo: é uma arte viva, inspirada pela
graça, que o alimenta. Nos nossos tempos, como antigamente, não apenas o ícone
continua a ser pintado de acordo como Cânone, como a consciência de seu
conteúdo e importância está mais uma vez despertando; pois agora, como antes,
ele corresponde a uma realidade concreta definida, a uma experiência vívida
definida, que em todos os tempos esteve viva na Igreja. Por exemplo, um de
nossos contemporâneos, um staretz do
Monte Athos que faleceu em 1938, descreveu sua experiência pessoal nos
seguintes termos: “Existe uma grande diferença entre meramente acreditar que Deus
existe, conhecê-lo a partir da natureza ou das Santas Escrituras, e conhecer o
Senhor pelo Espírito Santo [...] O Senhor é conhecido no Espírito Santo, e o
Espírito Santo está no homem inteiro – em sua alma, em sua mente e em seu corpo
[...] Aquele que chegou a conhecer o Senhor pelo Espírito Santo assume a
semelhança com o Senhor; como disse São João Evangelista, ‘Nós seremos como
Ele, pois O veremos tal como Ele é[99]’,
e então poderemos contemplar a Sua glória[100]”.
Assim sendo, do mesmo modo como a experiência viva de deificação do homem
continua a existir, também a Tradição iconográfica, e, com ela, sua técnica;
pois desde que essa experiência vive, sua expressão, seja em palavras ou em imagens,
não pode desaparecer. Em outras palavras, sendo a expressão exterior da
semelhança de Deus no homem, o ícone não pode desaparecer, assim como a
semelhança do homem para com Deus tampouco pode desaparecer. As palavras de São
Simeão o Novo Teólogo, ditas no século IX, se aplicam aqui, como aliás se
aplicam a qualquer período da história da Igreja: “Aqueles que dizem que já não
existem homens [...] dignos de receber o Espírito Santo [...] de serem
regenerados por meio da graça do Espírito Santo e se tornarem filhos de Deus com
consciência, experiência prática e visão, invertem a revelação da Encarnação de
nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, e claramente negam a renovação da
imagem de Deus ou da natureza humana, corrompida e castigada pelo pecado[101]”.
[1]
Eusébio, Bispo de Cesareia na Capadócia (265-340), História da Igreja, Livro VII, cap. 18; PG. 20 col 680.
[2]
Cf. Mateus 9: 20-23; Marcos 5: 24-34; Lucas 8: 43-48. Supõe-se que o
baixo-relevo que se encontra num dos sarcófagos do século IV preservados no
museu Laterano é uma reprodução dessa estátua.
[3]
A existência desse tipo de atitude em relação à arte nos primeiros séculos do
Cristianismo deu origem à afirmação de que “a arte Cristã nasceu fora da Igreja
e, pelo menos no início, se desenvolveu contra sua vontade. O Cristianismo, que
brotou do Judaísmo, era naturalmente tão avesso a qualquer tipo de idolatria
quanto o era a religião que lhe deu origem”. Essa opinião de L. Bréhier (L’Art Chrétien, pg. 13, Paris 1928)
expressa uma visão que é muito difundida quanto ao relacionamento da Igreja
antiga com a arte. Ainda assim, deixando de lado a identificação da veneração
aos ícones com a idolatria – identificação incompreensível para a consciência
do fiel da Igreja – essa asserção nos parece tão pouco convincente quanto os
testemunhos de escritores antigos citados em seu favor. Por exemplo, o mais
implacável deles, Clemente de Alexandria (ca. 215), protestando contra as
imagens, obviamente tinha em mente os ídolos, porque ele indica ao mesmo tempo
quais símbolos poderiam ser utilizados em selos, e alguns desses símbolos
incluíam figuras humanas (Pedagogo,
I, III, c. CI; PG. 8. Col. 633). E as referências aos “Padres da Igreja”
Tertuliano (160-240) e Orígenes (185-249) são ainda menos convincentes, porque,
apesar do respeito que a Igreja tem por eles, não apenas nunca foram vistos
como Padres ou como santos, como ainda grande parte do seu ensinamento foi
rejeitado pela Igreja como inaceitável. Consequentemente, nos parece mais
justificável aceitar a asserção oposta, baseada, antes de tudo, no fato da
existência de imagens nas catacumbas, a quais, como se sabe, serviam como
locais de culto. Essas imagens eram conhecidas pelos fiéis mais simples e
também pela alta hierarquia eclesiástica, e sua distribuição indica uma
orientação definida pela Igreja. Se considerarmos a conhecida 36ª. Regra do Concílio
local de Elvira (Espanha, 300), tantas vezes citada, que proíbe exibir nas
paredes das igrejas coisas que sejam objeto de culto e veneração, isso não
fornece base suficiente para que seja interpretado num sentido iconoclasta. Os
padres desse Concílio estavam se referindo apenas a imagens nas paredes, ou
seja, de pinturas monumentais que fizessem parte do edifício, mas não disseram
nada sobre imagens de outros tipos que existiam e que se encontram preservadas
até hoje (como, por exemplo, em sarcófagos). Só podemos concluir que essa
proibição foi devida a razões práticas e não a uma atitude em relação às
imagens sagradas baseada num princípio. Nesse último caso a regra teria que ser
formulada de modo diferente e não teria proibido unicamente as imagens sobre as
paredes. O Concílio aconteceu pouco antes das perseguições de Deocleciano, que
já podiam ser antevistas. Assim sendo, esse texto poderia também ser
interpretado como um desejo de proteger as imagens do ultraje. (Cf. Hefele, Histoire des Conciles, vol. I, parte I,
pg. 240, Paris 1907.
[4]
João 1: 18.
[5]
Hebreus 1: 3.
[6]
João 14: 8-9.
[7] Atos do Concílio, 6ª. Sessão.
[8]
Assim, por exemplo, São Basílio o Grande diz em seu 17º. Discurso no dia do santo mártir Balaam: “Levantem-se diante de mim,
ó iconógrafos dos méritos dos santos [...] Conquistem-me com pinturas dos
valorosos atos desse mártir! [...] Deixem-me olhar para esse guerreiro
vividamente representado em suas imagens [...] E que o Instigador dessa luta,
Cristo, seja representado em sua pintura.” (PG. 31, col. 489C). A conhecida
orientação de uma dos maiores escritores ascéticos da antiguidade, São Nilo do
Sinai (morto por volta de 430 ou 450) é característica no mesmo sentido.
Endereçada ao Prefeito Olympiodoros, que construíra uma igreja e tencionava
embelezá-la com pinturas decorativas e cenas cotidianas, ela diz: “Deixe que a
mão do artista encha a igreja de ambos os lados com pinturas do Velho e do Novo
Testamentos, para que os iletrados, que não podem ler as Divinas Escrituras,
possam, ao olhar para as imagens pintadas, trazer à mente os valorosos atos
daqueles que serviram a Deus com toda sinceridade, e que possam eles próprios
serem incitados a rivalizar com essas empresas gloriosas e memoráveis, por meio
das quais eles possam trocar a terra pelos céus, preferindo o invisível ao
visível.” (São Nilo, Epist. PG 79,
col. 577)
[9] V.
N. Lazarev, History of Bizantine Painting,
Moscou 1947, pg. 38.
[10] Katakombenmalereien: Die Anfänge des
christlichen Kunst, Munique, 1924.
[11]
Eventualmente o significado de pinturas individuais só se torna claro quando
colocado ao lado de outros fatos dentre os quais ele ocorre. Por exemplo, numa
série de três imagens, 1) um pescador tira um peixe da água, 2) um batismo e 3)
um paralítico carrega sua cama, a primeira imagem é o símbolo da conversão à fé
Cristã, e depois se mostra como, por meio do batismo, o homem é inteiramente
curado de seus pecados e enfermidades. Roma, catacumba de Calixto.
[12]
Catacumba romana de Priscila, século II.
[13]
V. N. Lazarev, op. cit. vol. I, pg.
48.
[14]
Dada a complexa formação da arte Cristã, fazer a imagem Cristã derivar dos
retratos funerários Egípcios, como se costuma, constitui uma excessiva
simplificação de sua gênese, incorreta tanto histórica como dogmaticamente.
[15] Didaque, IX, 4, Les Pères Apostoliques, Doctrine des Apôtres, pgs. 16-18, Paris,
1926.
[16]
Cf. Hebreus 8: 5; 10: 1.
[17]
Em conexão com a mudança de posição da Igreja, quando esta obteve sob São
Constantino o direito à existência no Império Romano, o caráter da arte da
Igreja também mudou. Nesse tempo, uma grande onda de novos convertidos inundou
a Igreja, que sentiu a necessidade de igrejas mais espaçosas e uma mudança no
caráter da pregação. Os símbolos dos primeiros séculos, que pertenciam a um
pequeno número de iniciados – para os quais seu significado e conteúdo eram
claros e inteligíveis, eram menos compreensíveis para os conversos. Daí que, a
fim de tornar o alcance do ensinamento da Igreja mais acessível a esses,
tornou-se necessária uma expressão pictórica do ensinamento mais concreta e
clara. Nesse contexto apareceram, nos séculos IV e V, pinturas colossais
representando os grandes ciclos históricos de eventos dos Velho e Novo
Testamentos. A maior parte das principais festas da Igreja foram estabelecidas
nessa época, assim como as grandes linhas de composição correspondentes a elas,
que até hoje são preservadas na Igreja Ortodoxa. Deve-se notar que os temas da
arte da Igreja desse tempo apresentam um definitivo caráter de respostas
dogmáticas a questões levantadas na esfera da fé, refletindo a luta dogmática
da Igreja contra as heresias existentes. Por exemplo, em resposta à heresia
Ariana condenada pelo Primeiro Concílio Ecumênico (325), de cada lado da imagem
do Salvador foram colocados o Alfa e o Ômega, indicando que Jesus Cristo é
consubstancial ao Pai. Depois da condenação de Nestorius pelo Concílio de Éfeso
em 431, e da solene proclamação da verdade da Divina Gestação de Maria,
apareceram imagens triunfais da Mãe de Deus, com a Divina Criança entronizada
em glória. O mesmo tema do combate contra o nestorianismo deu origem a a todo
um ciclo de imagens na Igreja de Santa Maria Maggiore em Roma, enfatizando a
Divindade do Menino Jesus e a importância da Mãe de Deus. Afrescos nas igrejas
do século VI de Santa Sofia e dos Santos Apóstolos em Constantinopla também
refletem o combate aos ensinamentos de Nestorius e Eutíquio. Os combates
dogmáticos por meio de imagens foi mantido ainda nos séculos subsequentes.
Assim, por exemplo, após o fim do período iconoclasta, a imagem do Salvador Emanuel
foi amplamente utilizada como testemunho da Encarnação Divina. Essa imagem foi
usada na luta contra a heresia dos Judaizantes na Rússia no século XV. Contra
essa mesma heresia apareceram, na iconografia dos séculos XV e XVI uma série de
novos temas, demonstrando a conexão entre o Velho Testamento e o Novo como seu
sucessor.
[18]
Por isso é impossível entender a imagem de uma festa ou de um santo, descobrir
o sentido e a importância de seus detalhes, a menos que se conheça o ofício
Divino correspondente, e, no caso de uma santo, também sua vida. As análises e
explicações existentes de ícones erram exatamente porque a aderência a essas
coisas é meramente superficial, quando não ausente.
[19] Discurso 19, Sobre os 40 Mártires. PG. 31, col. 509 A.
[20] Atas do VII Concílio Ecumênico, Ata 6.
[21]
João 18: 36.
[22]
Esse era o caso da ala extrema dos iconoclastas dos séculos VIII e IX. De fato,
embora muitos iconoclastas tolerassem imagens nas igrejas e protestassem apenas
contra sua veneração, a ala extrema, ao contrário, negava a veneração de
qualquer coisa material, chegando assim logicamente à negação de toda santidade
terrestre, da veneração da Virgem e do santos.
[23] Refutação 3, cap. 2, sec. 3. PG. 99,
col. 417C.
[24]
Ver a explicação da primeira parte do Kontakion do Triunfo da ortodoxia no
comentário sobre o ícone de Cristo adiante.
[25] Atas do VII Concílio Ecumênico, Ata 4.
[26]
São João Damasceno, A Fé Ortodoxa,
Livro III, cap. 6. PG. 94, col. 1004 A.
[27]
Esse ponto constitui a diferença fundamental entre a Ortodoxia e o iconoclasmo.
Os iconoclastas viam a imagem como consubstancial com o original, possuindo a
mesma natureza que este. Partindo dessa premissa, eles chegaram à conclusão
lógica de que o único ícone possível de Cristo é a Eucaristia. “Cristo
deliberadamente escolheu, como imagem de Sua Encarnação, o pão, que não traz
semelhança com o homem, de modo a prevenir a idolatria” (exposição da doutrina
iconoclasta no VII Concílio Ecumênico). “Mas nada é mais estranho aos fiéis
Ortodoxos do que identificar o ícone com a pessoa representada. O santo
Patriarca Nicéforo [...] tendo indicado a diferença entre o ícone e o original,
disse: ‘Aqueles que não podem entender essa diferença podem com justiça ser
chamados de idólatras.’” (G. Ostrogorsky, Gnoseological
grounds of the dispute regarding the holy icons, Seminarium Kondakovianum,
vol 2, pg. 50, Praga, 1928). Todo o argumento dos iconoclastas derivava assim
de uma premissa fundamental – um falso entendimento daquilo que é a imagem. É
por isso que os Ortodoxos e os iconoclastas nunca puderam chegar a um acordo
mútuo: eles falavam linguagens diferentes e todos os argumentos dos
iconoclastas erraram o alvo.
[28]
São João Damasceno. 3º. Discurso em
Defesa dos Santos Ícones, par. 16. PG. 94, col. 1337AB.
[29]
G. Ostrogorsky, op. cit., pg. 49.
[30]
São Teodoro o Estudita, Refutação 3,
cap. 3, par. 7. PG. 99, col. 424.
[31]
São João Damasceno, Comentário de São
Basílio o Grande, apêndice do 1º.
Discurso em Defesa dos Santos Ícones, pg. 94, col. 1256 A.
[32] 1º. Discurso em Defesa dos Santos Ícones,
cap. 22. PG. 94, col. 1256 A.
[33]
Essa “imagem de terra” é a causa de sua proibição no Antigo Testamento. A perda
da semelhança com Deus e a Queda distorceram a imagem de Deus no homem e a
representação dessa imagem distorcida inevitavelmente levaria à idolatria. Por
conseguinte, o culto das imagens no Antigo testamento só poderia admitir
símbolos como a vara, o vaso de ouro (Hebreus 9: 4), etc., isto é, o ícone do
ícone, pois somente esses poderiam ser imagens da futura realização da promessa
do Novo Testamento. A única exceção era a imagem dos querubins, feitas de
acordo com o mandamento de Deus (Êxodo, 25: 18-22), como seres previamente
estabelecidos a serviço de Deus. Além disso, suas imagens eram permitidas
apenas em lugar e posição que enfatizassem sua subordinação a Deus (como
guardiões da arca da Aliança). Essencialmente, essa exceção anulava a
proibição, na medida em que consentia num sentido pedagógico condicionado. Ela
admitia em princípio, por um lado, a possibilidade do culta da imagem, e, por
outro, a representação do mundo espiritual por meio da arte.
[34] Atas, ibid., Ata 6.
[35]
Gênesis 1: 27.
[36] Ibid.
[37]
São João Damasceno, Exposição da Fé
Ortodoxa, Livro II, cap. 12, Do Homem.
PG. 94, col. 920B.
[38] I
Coríntios 6: 19.
[39]
Essa é a origem do termo eslavônio prepodobny,
“muito parecido”, usado com referência ao tipo de santidade monástica. Essa
palavra, criada no tempo de São Cirilo e São Metódio para traduzir o termo
Grego osios, indica que um homem
adquiriu a semelhança perdida com Deus. Não existe correspondência em outras
línguas. Por outro lado, os termos antônimos nepodobny (dissemelhante) e nepodobnye
(dissemelhança) podem ser resgatados de uma grande antiguidade. Platão utiliza
esses termos num sentido filosófico no diálogo Político, para expressar a dissimilaridade entre o mundo e sua
ideia. Santo Atanásio o Grande já os utilizava no sentido Cristão: “Ele, que
criou o mundo, vendo-o agitado pelas tempestades e em perigo de ser engolido
num ‘lugar de dissemelhança’, tomou o elmo da alma e foi em seu socorro,
corrigindo todas as suas transgressões”. Santo agostinho diz nas suas Confissões (VII, 10, 16): “Eu vi a mim
mesmo longe de Ti, na região da dissemelhança”.
[40]
Mateus 17: 2.
[41] Atas, ata 6.
[42] Works of Philaret, Metropolitan of Moscow
and Kolomna, Discurso 12, Moscou, 1873.
[43]
PG. 150, 1225 A, cap. 149.
[44] Discursos de São Simeão o Novo Teólogo,
Discurso 83, sec. 3, pag. 385, Moscou, 1892.
[45]
São Dionísio o Areopagita, Os Nomes
Divinos, cap. 4, sec. 7. PG. 3, col. 701C.
[46]
Romanos 1: 20.
[47] Atas, Ata 6.
[48] I
Coríntios 15: 50.
[49]
Portanto, atribuir ao ícone, como se faz às vezes, um monofisitismo ou algo que
possa conduzir ao monofisitismo significa não entender absolutamente sua
essência. O que se toma usualmente como sendo monofisitismo é a presença no
ícone de uma indicação da segunda realidade, como mencionamos, que o distingue
das outas formas de arte. Por sua vez, no mesmo campo, o monofisitismo pode
também ser atribuído às Santas Escrituras, pois, não menos do que o ícone, elas
contêm uma indicação da mesma realidade, e pela mesma razão, e no mesmo
sentido, elas diferem de toda a demais literatura.
[50]
Olhar o ícone como a personificação de alguma ideia, virtude, etc., como
costuma acontecer (por exemplo, tomar a Santa Mártir Paraskeva como
personificação da morte do Salvador, e a Santa Mártir Anastácia como
personificando Sua Ressurreição, e coisas assim) demonstra uma aproximação
demasiado teórica da questão, desprovida de fundamento factual. É verdade que
às vezes são admitidas alegorias nos ícones, como a personificação do Rio
Jordão, ou das florestas e campos, do sol e da lua, etc., mas isso nunca
acontece com os ícones dos santos.
[51]
2ª. Refutação, cap. 3, sec. 5. PG.
99, col. 421.
[52]
Cf. o original. Ver reprodução acima.
[53]
“De acordo com o costume estabelecido na Igreja Ortodoxa [...] antes ainda de
que um santo fosse canonizado e seus restos desenterrados, eram feitos ícones
daqueles que houvessem conquistado mais respeito dentre o povo enquanto vivos,
e esses ícones eram depois distribuídos nos tempos das gerações próximas. Informações
gerais e distintivas sobre o santo eram preservadas, assim como esboços,
desenhos e notas verbais” (N.P. Kondakov, The
Russian Icon, parte I, pg. 19). Conhecem-se casos na Rússia em que eram
feitos ícones, embora não distribuídos, durante a própria vida do santo, senão
diretamente, pelo menos de memória.
[54]
Cf. esquemas apresentados no original. Ver reprodução acima.
[55]
“A arte Cristã”, diz N.P. Kondakov, “geralmente constrói suas composições obre
uma base realista, reproduzindo, mesmo que apenas nos ambientes e nos detalhes,
as reais condições nas quais os eventos Cristãos tiveram lugar”.
[56]
Filarete, Metropolita de Moscou e Kolomna, vol. 3, Discurso 57 Sobre a
Anunciação.
[57]
Bispo Inácio Brianchaninov, A Experiência
Ascética, vol. I.
[58] Ibid.
[59] A Hierarquia Eclesiástica, cap. 2, III,
sec. 8. PG. 3, col. 437.
[60]
São Simeão o Novo Teólogo, ibid., Discurso 15, par. 2, pg. 143.
[61]
Como exemplo de tradução do aspecto terrestre de um santo para o ícone,
citaremos o seguinte caso: na exumação dos restos de São Nicetas, Arcebispo de Novgorod,
em 1558, que se encontravam intactos, foi feito um retrato póstumo de sua face
e enviado às autoridades da Igreja, com a seguinte mensagem: “Senhores, graças
à misericórdia do santo, enviamos em papel essa imagem de São Nicetas, o Bispo
[...] e pedimos que seja feito um ícone pintado – uma imagem do santo, a partir
desse original”. (N.P. Kondakov, O Ícone
Russo, III, parte I, pg. 19)
[62]
Bispo Inácio Brianchaninov, ibid.
[63] Filocalia, vol. I, pg. 21, Londres 1954.
[64]
Cf. no original, ver a descrição do ícone da Natividade. Ver reprodução.
[65]
Embora o ícone seja acima de tudo uma linguagem de cores, que são tão
simbólicas quanto as formas e as linhas, não tocamos aqui em seu simbolismo, e
não nos estenderemos a esse respeito nas descrições de ícones específicos, com
a exceção de algumas cores fundamentais, porque o significado das cores se
perdeu quase que por completo ao longo dos séculos. Consequentemente, existe o
perigo de incorrermos em interpretações individuais arbitrárias, que podem nos
levar ao domínio das conjecturas, muito tentadoras, mas desprovidas de
autenticidade e, portanto, quase nunca – ou nunca – convincentes, embora E.
Trubetskoy tenha tido sucesso ao notar certos princípios gerais (Ver Icons: Theology in Color, St. Vladimir’s
Seminary Press, 1975). Partindo do princípio geral do simbolismo Ortodoxo,
devemos dizer que não se deve ligar um significado simbólico a cada sombra,
seja na iconografia, ou a cada detalhe e cada linha, seja num desenho. Em ambos
os casos o simbolismo estará sempre no que é fundamental: nas cores principais
e nas linhas gerais.
[66]
Cf. no original, São Macário de Unsha na pg. 134 e o Evangelista Lucas na pg.
115). Ver reprodução.
[67]
Cf. no original, o ícone da Anunciação, pg. 171, onde a base de uma estrutura
incompreensível pende de uma igualmente incompreensível abertura no teto. Ver
reprodução.
[68]
A opinião de que os antigos iconógrafos não conheciam a perspectiva direta e
por isso utilizavam a inversa não tem fundamento e é refutada pelo próprio
ícone. Se olharmos com atenção para o ícone da Trindade de Rublev, por exemplo
(pg. 198 no original), podemos ver que ambas as perspectivas são usadas aqui.
Assim é que a abertura da cavidade para a gaveta na mesa e o edifício ao fundo
estão representados em perspectiva direta, enquanto que os escabelos dos Anjos,
a própria mesa e as cabeças dos Anjos estão em perspectiva inversa. Esse método
de combinar as duas perspectivas não é raro nos ícones antigos; mas a
preferência é sempre pela perspectiva invertida.
[69]
Hebreus 12: 1.
[70]
Cf. Lucas 17: 21.
[71]
São Simeão o Novo Teólogo, Discurso
63, par. 3, pg. 115.
[72]
São Simeão o Novo Teólogo, ibid., pg.
116.
[73]
São João Damasceno, Terceiro Discurso em
Defesa dos Santos Ícones, cap. 17. PG. 96, col. 1337B.
[74]
Êxodo 25: 9.
[75]
São Simeão o Novo Teólogo, ibid. pg.
115.
[76] Diálogo contra as heresias, c. 23. PG.
155, col. 113D.
[77]
Nesse plano, a arte criativa do iconógrafo é diametralmente oposta das criações
da arte religiosa Ocidental e Ocidentalizada, na qual a liberdade é entendida
como totalmente entremesclada com a expressão da personalidade do artista, com
seu “eu”, e na qual as emoções individuais, as crenças, o entendimento e a
experiência dessa ou daquela personalidade humana estão colocadas acima da
profissão da verdade objetiva da Divina revelação. Sem o sacramento da
confissão, que purifica por meio do arrependimento, todo o trabalho criativo de
uma pintor se torna como se fosse uma confissão pública. Sem esse
arrependimento, essa confissão pública não purifica ou liberta o artista, mas
infecta o espectador com tudo o que existe nele. Aqui a “liberdade” do artista
se manifesta às expensas da liberdade do espectador, a quem é imposta a
percepção pessoal do artista, projetando-o para fora da realidade da Igreja. Um
artista que, consciente ou inconscientemente, siga esse caminho, se torna
escravo de seus sentidos e emoções, e assim a imagem que ele cria perde
inevitavelmente seu conteúdo litúrgico e sua significância. Mais do que isso,
uma perspectiva individualista da arte na Igreja destrói sua unidade, quebra-a,
corrompe o vínculo de um artista com outros e com a Igreja. Em outras palavras,
o princípio da catolicidade é substituído pelo culto ao individualismo, à
exclusividade, à originalidade, como podemos ver por exemplo, na nova decoração
da Igreja Católica de Assy (França). Nesse sentido, o exemplo de Bernadette de
Lourdes é significativo: “Tendo sido mostrado a ela um álbum com imagens de
Nossa Senhora, ela rejeitou com horror as da renascença; tolerou as de Fra
Angelico; mas demorou-se com certa satisfação sobre os rígidos e
despersonalizados mosaicos e afrescos antigos”. (Ver. C.C. Martindale, S.J., What the Saints Looked Like, Catholic
Truth Soiciety, B. 397, pg. 4)
[78]
São Simeão o Novo Teólogo, Discurso 87, ibid.,
pg. 456.
[79]
II Coríntios 3: 17.
[80]
São João Damasceno, A Fé Ortodoxa,
Livro II, cap. 27. PG. 94, col. 960D.
[81] I
Coríntios 6: 12.
[82] The Iconographic Manual of Bolshakov,
ed. Por A.I. Ouspensky, Moscou, 1903, pg. 3.
[83] Regulamentações do VII Concílio
Ecumênico.
[84]
São João Damasceno, Primeiro Discurso em
Defesa dos Santos Ícones, par. 19. PG. 94, col. 1294CD.
[85]
Em geral, o desenvolvimento da arte da Igreja em Bizâncio foi “conectada a toda
uma série de longas crises – renascimentos da antiga arte clássica [...] Tal
recrudescência da arte antiga foi muito forte no século IV, quando o Cristianismo
triunfante adotou quase que in toto o
aparato pictórico da antiguidade. Retornos similares à arte clássica ocorreram
esporadicamente em Bizâncio” (V. Lazarev, History
of Byzantine Painting, vol. I, pg. 39). Essencialmente, essas
recrudescências da arte clássica não passaram de ecos, no domínio da arte da
Igreja, do processo de introduzir de tudo na Igreja, um processo que afetou
todos os aspectos da perspectiva mundial da antiguidade. Nesse processo de
infusão no Cristianismo, chegaram à Igreja muitas coisas que não tinham nada a
ver com ela e que não tinham como ser assimiladas, mas que deixaram suas marcas
na arte da Igreja. Assim sendo, o efeito desses “renascimentos” foi introduzir
nessa arte o caráter ilusório e sensual da arte pagã, que é totalmente estranho
à Ortodoxia. Mais tarde s mesmos elementos, artificialmente ressuscitados pelo
Renascimento Italiano, infiltraram-se na Igreja sob o disfarce do naturalismo,
do idealismo e outros.
[86]
Por exemplo, o mosaico da Deisis na galeria Sul.
[87]
Por exemplo os mosaicos da abside: a Mãe de Deus entronizada com o Menino e o
Arcanjo Gabriel na abóboda do santuário.
[88]
Mateus 11: 29-30.
[89]
A iconografia Russa representa o maior e mais explorado campo da Arte Ortodoxa.
Assim sendo, daqui em diante vamos nos manter apenas dentro dos contornos dessa
arte, não tocando mais na arte dos demais países Ortodoxos.
[90]
V. Lazarev, op. cit., pg. 94. Dado
que o Cristianismo se espalhou pela Rússia antes do século X, parece não haver
dúvida de que iconógrafos Russos já existiam em períodos anteriores à aceitação
oficial da religião Cristã, embora não disponhamos de dados positivos a
respeito.
[91]
Tropário, tom 8. Cânone do santo.
[92]
Ver M. e V.I. Ouspensky, Notes on Ancient
Russian Iconography: St. Alipy and A. Rublev, pg. 6, São Petersburgo, 1901.
[93]
Peculiaridades locais influenciam e determinam também o caráter particular da
criação artística. Por exemplo, a preferência do povo de Novgorod pelas coisas
simples, poderosas e expressivas se refletiu na arte da Igreja daquela cidade. I.
Grabar nos dá uma bonita descrição dessa arte: “O ideal do homem de Novgorod é
força e beleza – a beleza da força. Sua arte é por vezes rude, mas sempre
magnificente, pois ela é forte, majestosa, impressionante. Assim é a
iconografia de Novgorod – vívida em cores, forte e ousada, com um pincel
seguro, contornos feitos por uma mão confiante, decidida e imperiosamente” (I.
Grabar, Problems in Restoration, pg.
587, Moscou 1926). Os artistas de Novgorod utilizavam cores não misturadas, nas
quais predominavam o vermelho, o verde e o amarelo. Os ícones vivamente
coloridos de Novgorod se baseiam em contrastes entre cores opostas. Os ícones
são dinâmicos no desenho e na composição.
Os ícones de Suzdal se
distinguem por seu caráter aristocrático e pelo requinte e elegância das
proporções e das linhas. Eles possuem “uma peculiaridade que os distinguem
agudamente daqueles de Novgorod. Sua tonalidade geral é sempre fresca, tingida
de azul e prata, ao contrário dos ícones de Novgorod, que invariavelmente
pendem para o amarelo quente e os matizes dourados. Em Novgorod, predominam o
ocre e o vermelhão, mas o ocre jamais predomina nos ícones de Suzdal, e, mesmo
quando utilizado, é subordinado a outros matizes, que produzem a impressão de
uma escala de azuis prateados” (Problems
in Restoration, pg. 61).
As cores gerais dos ícones
de Pskov são quase sempre escuras e limitadas a três tons, sem contar o fundo –
vermelho, marrom e verde escuro, e às vezes apenas s dois tons – vermelho e
verde. É típico de um mestre de Pskov usar o dourado para indicar realces, por
meio de linhas paralelas radiantes. (G. N. Dmitriev, Guide to the Russiam State Museum, 1940)
Os ícones de Vladimir e os
de Moscou, que se seguiram e se tornaram dominantes no século XIV, diferem dos
demais por se basearem num equilíbrio exato de diferentes matizes com o
objetivo de criar um todo harmonioso. Devido a isso a paleta de Vladimir, e
depois a de Moscou, se distinguem não tanto pela intensidade, como pela
harmonia de suas cores, apesar da existência de tons individuais vivos (A. I.
Anisimov, Masterpieces of Russian
Paintings, Londres, 1930). Em contraste com os rostos longos de Novgorod,
os de Moscou são caracteristicamente arredondados.
Naturalmente, todas essas
características possuem um valor meramente relativo e convencional, e, para o
conhecimento moderno, são apenas transitórios. Ademais dos centros mencionados,
existiam outros, ainda não investigados, como os de Smolensk, Tver, Riazan e
outros. Ademais, as constantes descobertas de novos ícones tornam necessários
frequentes emendas na história.
[94]
N. V. Pokrovsky, Notes on Monnuments of
Russian Iconography and Art, pg. 356, S. Petersburgo, 1900.
[95]
Cf. no original, o ícone da Natividade de Cristo. Ver reprodução anexada.
[96]
A partir do momento que as distorções começaram a aparecer na arte da Igreja e
essa se viu forçada a fazer pronunciamentos relativos à iconografia, ela sempre
protegeu as formas canônicas da arte litúrgica, fosse através dos Concílios
(por exemplo, o Concílio dos Cem Capítulos no século XVI e o Grande Concílio de
Moscou no século XVII), fosse através dos seus altos dignitários. Assim foi
que, nos dias do Triunfo da Ortodoxia, o Patriarca Nicon (1652-1658) destruía
ícones pintados sob influência Ocidental e anatematizava todos os que os
pintassem no futuro ou que os mantivessem em suas casas. O Patriarca Joaquim
(1670-1690) escreveu em seu testamento: “Eu ordeno em nome do Senhor que os
ícones do Deus Homem e da Santíssima Mãe de Deus e de todos os santos sejam
pintados de acordo com as versões antigas [...]; e acima de tudo que eles não
sejam pintados a partir de imagens Latinas ou Germânicas, que são inadequadas,
inventadas de acordo com caprichos pessoais e que corrompem a Tradição da
Igreja. Essas imagens irregulares que existem em igrejas devem ser removidas” (Bolshakov Manual, publ. A. I. Ouspensky,
Moscou, 1903). Na Igreja Grega, onde a decadência começou primeiro, já no
século XV São Simeão de Tessalônica, em seu texto Contra as Heresias (cap. 23) apontava para elementos irregulares
que penetravam na arte litúrgica e distorciam o sentido dos ícones: “Mais uma
vez, enfatizando tudo o que foi dito, os santos ícones têm sido pintados, não
de acordo com a tradição, mas de outras maneiras; eles estão adornados não com
vestimentas e cabelos iconográficos, mas naturalistas, e assim produzem não a
imagem e a semelhança do original, mas são pintados sem reverência, o que é
totalmente oposto à natureza do santo ícone”.
[97]
Assim como o pensamento religioso nem sempre atinge o nível da teologia, nem
sempre a criação artística alcança o nível da genuína iconografia. Assim, não
se pode tomar toda imagem como sendo uma autoridade indiscutível, pois ela pode
ou não corresponder a um ensinamento da Igreja, podendo assim nos induzir a
erro. Em outras palavras, é possível, é possível distorcer o ensinamento da
Igreja tanto pelas imagens quanto pelas palavras.
[98]
I. Grabar, History of Russian Art
(artigo de P. Muratov), vol. 6, pg. 48.
[99] I
João 3: 2.
[100]
Arquimandrita Sofrônio, Wisdom from Mount
Athos: The Writings os Staretz Silouan 1866-1938, St. Vladimir’s Seminary
Press, 1975.
[101]
Simeão o Novo Teólogo, Discurso 64,
pg. 127, Moscou, 1892.
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