sábado, 6 de outubro de 2018

Leonid Ouspensky & Vladimir Lossky: O Sentido e o Significado dos Ícones - Parte 3 - Leonid Ouspensky: a Técnica dos Ícones





Ao falar do conteúdo e do significado dos ícones, tivemos em vista a imagem litúrgica, independentemente dos meios de sua execução, ou seja, se o ícone é pintado, lavrado em madeira ou pedra, ou ainda executado em afresco ou mosaico. De qualquer forma, o método que possui as mais ricas possibilidades e que melhor corresponde ao significado e ao propósito do ícone, é a pintura clássica com têmpera de ovo. Essa técnica tem atrás de si séculos de tradição, remontando à mais remota antiguidade. Esse capital foi cuidadosamente preservado, como a tradição viva da pintura dos ícones, e foi conservado de geração em geração, recuando suas fontes até Bizâncio, e daí, aparentemente, até o mundo antigo. Naturalmente, novos materiais apareceram ao longo do tempo, e esses são cuidadosamente estudados e adaptados à pintura do ícone. Também os métodos dessa técnica, elaborados no decurso de séculos de prática, formam um sistema tradicional e são utilizados pelos iconógrafos contemporâneos quase sem alteração.

O processo de preparação do ícone possui um caráter especificamente seu, e se divide numa série de operações, requerendo grande habilidade e experiência. O material mais tradicional e conveniente sempre consistiu numa prancha de madeira, cuja seleção é de tremenda importância, tanto para a pintura do ícone como para sua preservação. As pranchas mais adequadas são feitas com madeiras não resinosas, tais como tília, amieiro, bétula (que dá melhor aderência como base), cipreste, et. O pinho é muito usado, desde que seja do tipo pouco resinoso. A prancha escolhida para um ícone deve ser totalmente seca, sem nós, e deve ser cuidadosamente aplainada. Para proteger da possibilidade de empenamentos e rachaduras prematuras, são inseridos em canais na parte de trás – mas não fixados – duas barras horizontais de madeiras mais duras. É costume fazer na parte dianteira do painel um recesso, cujas margens servirão de moldura para o ícone. Essa moldura natural tem uma finalidade prática, uma vez que ela aumenta a resistência do ícone ao empenamento, e ainda permite que a mão fique próxima da madeira, mas sem encostar na pintura, durante o trabalho. Ademais, isso corresponde ao sentido do ícone: se a moldura de uma pintura enfatiza a impressão de ilusão, aqui a margem do ícone desempenha um papel oposto e evita a impressão de ilusão. Para tornar mais sólida a coesão com a superfície, a prancha é raspada com um instrumento agudo. Essa superfície áspera será recoberta com um líquido de base, e a seguir bem seca, em geral por vinte e quatro horas. Então cola-se sobre a prancha uma peça de linho rústico, que servirá de primeira camada do fundo. Essa primeira camada é muito importante, pois ela adere o fundo com mais firmeza à prancha, protege a prancha contra rachadura e, caso ela se deforme, evita que o fundo lasque.

A próxima operação consiste na preparação e aplicação do fundo (levkas), e é complexa e importante. Para preparar o fundo usa-se alabastro ou gesso da melhor qualidade e da melhor finura[1]. A prancha será revestida com diversas aplicações consecutivas de cola e gesso, com cuidado para sejam o mais finas possível. O número de aplicações deve ser de três a oito, dependendo da consistência do fundo. Cada camada deve ser cuidadosamente seca e limpa, o excesso de gesso e toda poeira removidos da prancha. Como regra geral, quanto mais fina for a camada, melhor será sua coesão. O fundo do levkas deve ser pesado, denso, de consistência uniforme, uniformemente branco e macio, livre de rachaduras e fosca.

Depois de preparar a prancha, o desenho do ícone é feito sobre ela com um pincel ou um lápis. Um iconógrafo experiente tanto pode desenhar de cabeça, se o tema é conhecido por ele, guiando-se por meio de uma imagem, estabelecendo a composição e as figuras ao seu dispor, ou, se o tema é menos familiar, ele pode auxiliar-se de outros ícones, de manuais de iconografia, de esboços preliminares[2], etc. O desenho é então riscado sobre o fundo em suas linhas gerais com o uso de um objeto pontudo, como uma agulha – chamada de stylus. Esse método, adotado na iconografia a partir dos afrescos, é de grande ajuda no trabalho, porque permite que os contornos originais sejam preservados sem que sejam cobertos pela tinta durante o trabalho. Mas é claro que não existe obrigatoriedade em seguir essas linhas gravadas; por exemplo, se o padrão do desenho não corresponde ao efeito de cor requerido, o contorno pode ser alterado pelo pincel no processo de pintura. Quando os contornos e as linhas principais estão gravadas, o desenho preliminar pode ser apagado com cuidado.

Se algumas áreas forem recobertas com ouro, isso deve ser feito antes da pintura, pois de outro modo o ouro irá aderir às tintas. Isso se refere, naturalmente, a áreas inteiras, grandes ou pequenas, como fundos, auréolas e outras do gênero.

Linhas douradas (feitas com ouro líquido) tais como aquelas usadas nas vestes do Salvador e outras – um método chamado de “assiste” – são feitas depois. As áreas são em geral recobertas com folhas de ouro, um processo extremamente complicado e delicado, que requer grande experiência e habilidade.

Depois de dourar, secar cuidadosamente e remover o excesso de ouro, a pintura de fato tem início. Pata tanto, é preciso tomar uma gema de ovo, eliminando-se a clara passando-a da palma de uma mão para a outra (se a clara permanecer na pintura, essa irá craquelar); perfura-se a clara com uma agulha, colocando-a num vidro. Adiciona-se uma quantidade igual de água e, para proteger o líquido contra deterioração, adiciona-se um pouco de vinagre[3]. Então a mistura resultante é mexida e utilizada como substância de ligadura para os pigmentos; ela deve ser mantida numa garrafa bem arrolhada.

As cores fundamentais usadas na iconografia são “terras” (ou seja, pigmentos minerais) e cores orgânicas naturais. Cores artificiais são usadas apenas como suplemento. Assim como na composição e no desenho o artista só está limitado pelo significado da imagem, nas cores ele só estará limitado pelo simbolismo das cores fundamentais das vestes das pessoas representadas e, naturalmente, pelos fatos (por exemplo, cabelos negros ou grisalhos, etc.). Ele é completamente livre tanto no que diz respeito às combinações de cores e matizes, quanto com relação as cores da paisagem, da arquitetura e outras. Dessa forma, a paleta de cada iconógrafo é estritamente pessoal.

Os pigmentos são utilizados na forma de um pó finíssimo, que é dissolvido no preparo de gema de ovo e, no momento da utilização, é diluído em água. A quantidade de ovo introduzido no pigmento varia. Por exemplo, branco, ocre, azul e marrom requerem maior quantidade de ovo do que outras, e a correta proporção de ovo e pigmento depende inteiramente da experiência do iconógrafo. Em qualquer caso, depois de seca a cor deve ser fosca e estável. Se houver excesso de ovo, a cor seca será brilhante e irá rachar. Se houver pouco ovo, ela poderá ser facilmente apagada. Quando corretamente preparadas, essas tintas são um excelente material para se pintar. Elas são adequadas para o trabalho com pincel e para aguadas, e as combinações de ambos os métodos podem variar indefinidamente. Elas secam tão depressa quanto tintas à base de água, o que permite um trabalho rápido, mas não são lavadas com facilidade. Sua durabilidade aumenta com o tempo, e sua resistência à decomposição química e sob a influência da luz solar é muito maior do que as tintas aquarelas ou a óleo.

A pintura de um ícone obedece a uma série de estágios definidos. Em primeiro lugar todo o ícone é recoberto, ou seja, todas as áreas são cobertas com os tons locais fundamentais, sem meios tons ou sombras. Sobre esses tons fundamentais, para preservar a estrutura gráfica da composição, o desenho original do ícone é retraçado, ao longo das principais linhas gravadas e dos contornos, com um tom mais escuro da mesma cor. Dois métodos costumam ser utilizados para trabalhar no dolichnoye[4], nas figuras, na paisagem, etc. o primeiro consiste em aplicar as sombras com cores muito líquidas, deixando as zonas mais claras intocadas; o segundo consiste em utilizar os tons básicos para as sombras e construir as luzes por meio de camadas sucessivas de cores cada vez mais claras, reduzindo a área de luz em cada camada subsequente, e escurecendo-a gradualmente em direção à sombra. Esse trabalho, e muitas vezes o primeiro recobrimento, é feito com cores líquidas, aplicados em camadas translúcidas denominadas aguadas. Esse método é muito variado e sua aplicação, tanto de um modo como de outro, depende da arte e da habilidade de cada artista. Ele requer um grande conhecimento e experiência, pois o artista deve levar em consideração todos os efeitos positivos e negativos daquilo que uma camada mostra sob outra, incluindo o branco fundamental do fundo. Os rostos são feitos da mesma maneira consecutiva, por meio de múltiplas aplicações, e sempre construídos dos tons mais escuros para a luz. Esse princípio fundamental da transição da sombra para a luz recua, passando por Bizâncio, aos retratos Gregos. Camadas de tinta, superpostas umas às outras, criam um relevo apenas perceptível, menor nas sombras e maior nas luzes. Dessa maneira, o ícone não é apenas pintado, mas também modelado, de acordo com os requisitos tradicionais da estrutura do ícone. Quando as luzes estão colocadas, os contornos ocultos pelas aguadas são retraçados, e os detalhes são redesenhados. As áreas em destaque são abrilhantadas, indicando com toques mais claros da luz sobre os objetos tridimensionais representados no ícone; são então feitas as inscrições necessárias, e o ícone pronto é posto a secar por muitos dias.

Depois de seco, o ícone é coberto com olifa. Olifa, um óleo de linhaça fervido, é preparado de acordo com diferentes receitas. Como regra, diversas variedades de resinas são adicionadas ao óleo fervente, em especial âmbar. A operação de cobertura do ícone com olifa requer muita habilidade, porque uma aplicação desajeitada pode facilmente arruinar o ícone. A olifa possui uma dupla função: primeiro, ela protege a pintura da influência destrutiva da umidade, da luz, do ar e outras e, em segundo lugar, ela tem um efeito sobre as cores. Ao permear as tintas, a olifa dá a elas maior transluscência e profundidade, unifica-as e dá ao ícone um matiz geral dourado e quente. Geralmente o pintor leva em conta essa ação unificadora da olifa. Por outro lado, naturalmente, a camada protetora de olifa, colocada sobre a superfície do ícone, absorve facilmente as poeiras e fumos da atmosfera, e como resultado disso as cores perdem seu brilho e com o tempo o ícone se torna mais escuro. Porém, quando a camada de olifa é removida, as cores que ele protegia se revelam em sua riqueza original e na plenitude de seus tons. A olifa é o melhor e mais seguro meio de preservar um ícone, e nenhum verniz pode se comparar com ela. Ao permear a pintura, ela conecta todas as camadas de cor e penetra até a base, fixando-as e, com tempo, transformando-as numa massa sólida e uniforme. Se os antigos ícones preservaram até hoje seu frescor deslumbrante e o brilho de suas cores, isso se deve principalmente à olifa.

Em linhas gerais, esse é o processo de criação de um ícone, um processo queu exige no mínimo um robusto conhecimento dos materiais constituintes e uma habilidade em trabalhar com ele e utilizá-los. Não é preciso falar sobre a durabilidade da técnica da iconografia – o próprio ícone é uma prova dela. Ao contrário do artista contemporâneo, o iconógrafo, tanto hoje como nos tempos antigos, participa da criação do ícone desde o início (no mínimo desde o preparo da base) até o final. Consequentemente, ele conhece todos os materiais que entram no seu trabalho e suas qualidades, e pode sempre ter em conta suas qualidades e seus defeitos. É digno de nota que, apesar das complicações e dificuldades do trabalho com têmpera de ovo, as tintas a óleo, que apareceram depois, nuca foram adotadas pela iconografia, até sua decadência. Na Rússia em especial, as tintas a óleo não foram utilizadas na iconografia até o século XVIII, e mesmo assim, depois, apenas parcialmente. A razão para isso evidentemente reside no fato de que, devido ao seu caráter sensual, as tintas a óleo não são adequadas ao ascetismo, à riqueza espiritual e à alegria típicas do ícone.

Um aspecto significativo da técnica da iconografia é a seleção dos materiais que a compõem. Na sua totalidade, eles representam a completa participação do mundo visível na criação do ícone. Como vimos, estão incluídos aí representantes dos mundos vegetal, mineral e animal. Os materiais mais fundamentais (água, gesso, pigmentos, ovo...) são utilizados em sua forma natural, sendo apenas purificados e preparados, e, pelas mãos do homem, são levados a servir a Deus. Nesse sentido, as palavras do Profeta Davi, ditas por ele na bênção dos materiais que serviram à construção do templo – “Todas as coisas são Tuas, e Te oferecemos apenas o que Te pertence[5]” – são ainda mais aplicáveis ao ícone, no qual a matéria serve para expressar a imagem de Deus. Mas essas palavras adquirem seu mais alto significado na Liturgia, na oferenda dos Santos Dons que serão transformados no verdadeiro Corpo e no Sangue de Cristo: “Os Teus dons, a Ti oferecemos, em tudo e por tudo”. Assim, também a matéria, oferecida no ícone como um dom de Deus pelo homem, enfatiza por sua vez o sentido litúrgico do ícone. 


[1] O fundo de gesso é menos duradouro do que o de alabastro, mas é mais barato e mais fácil de trabalhar. A receita mais simples, e a mais usada modernamente, é a seguinte: 12 gramas de gelatina dissolvidas em 200 ml de água quente (antigamente usava-se cola de peixe e o processo de preparação do fundo era diferente). Essa solução quente é utilizada tanto para o primeiro revestimento do painel como para colar o linho. A mesma proporção de cola e água é usada para o fundo. Deve-se notar que a primeira aplicação é feita com uma mistura mais forte, a saber, três colheres cheias de gesso são aos poucos acrescentadas à mistura de cola e água, e essa mistura é deixada descansar, para depois ser misturada e aplicada sobre a prancha com um pincel. Para aplicações posteriores, a mesma solução é utilizada, mas com a adição de cinco colheres de gesso. Essa solução é usada tantas vezes quantas necessárias, sendo a cada vez aquecida numa caçarola.
[2] Podem ser utilizados manuais antigos ou modernos. Por exemplo, os esboços que reproduzimos foram feitos em Paris como material pessoal de um iconógrafo no século XX.
[3] No inverno pode-se utilizar menos vinagre, no verão mais. Em qualquer caso, menos volume do que o da gema. Na Itália, ao invés de vinagre, utiliza-se o suco da figueira; na Alemanha, cerveja, e na Rússia kvass.
[4] Isso é, a superfície total com exceção dos rostos e das artes descobertas dos corpos.
[5] I Crônicas 29: 14.

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