Tradução de G.E.H. Palmer e E. Kadloubovsky
St. Vladimir’s Seminary Press – Crestwood, New York - 1983
Prefácio
Titus Burckhardt
A arte dos ícones constitui uma arte sacra no verdadeiro sentido da
palavra. Ela se alimenta inteiramente da verdade espiritual à qual ela dá uma
expressão pictórica. Por essa razão ela é julgada de modo falso e inadequado,
quando vista desde fora a partir de uma crítica emprestada da arte puramente
humana e profana. Ninguém pode interpretar essa arte melhor do que alguém cuja
mente esteja enraizada no mesmo espírito. Essas considerações são básicas para
a determinação da composição desse livro.
Muitos trabalhos sobre arte colocam o desenvolvimento histórico como
pano de fundo; eles analisam a interconexão entre as influências étnicas e
geográficas que sustentam a arte em questão, e a partir daí tentam explicar a
arte em si, enquanto que o conteúdo intelectual da representação pictórica
desempenha um papel subordinado. Na arte dos ícones, por outro lado, é o
conteúdo que constitui o critério da forma. O caráter consciente e doutrinal
dessa arte determina não apenas a iconografia, como também a forma artística e
o estilo geral. Isso só é possível porque o sentido e o significado de um ícone
tocam um centro tão próximo da essência do homem, que chegam a reger
virtualmente todos os aspectos da obra de arte, desde seus elementos didáticos
até os imponderáveis da inspiração artística.
É o contrário do que acontece na arte profana, onde o tema de uma
pintura constitui apenas uma oportunidade para que o artista expresse seu
próprio gênio, que pode chegar a ser mais importante do que o tema escolhido, e
cuja riqueza deriva de outro lugar.
Uma arte sacra tem, por seu próprio conteúdo, acesso a uma fonte viva
e verdadeiramente inexaurível. Por isso é de sua própria natureza permanecer
verdadeira em si mesma, ainda que este ou aquele artista não tenha realizado
plenamente a profundidade espiritual de um dado tema, que não tenha alcançado
diretamente a fonte de sua santidade, mas que apenas reflita um pouco mais ou
um pouco menos dessa luz que está contida nas formas sagradas estabelecidas por
meio das regras tradicionais.
Essas coisas precisam ficar claras desde o começo, a fim de justificar
a forma de apresentação desse livro. Em sua introdução, Leonid Ouspensky
delineia o fundo teológico relacionado aos ícones e mostra sua estreita
afinidade com as experiências da vida contemplativa. Mas como em última
instância tudo depende da realidade da Tradição, é essencial para seu
entendimento ter também uma clareza fundamental a respeito dessa última. Por
isso o ensaio introdutório de Vladimir Lossky foi colocado primeiro, até porque
ele responde pelas principais questões dos leitores não costumados com a
teologia. A partir da apresentação das premissas espirituais dos ícones, emerge
quase que espontaneamente uma percepção do desenvolvimento histórico dessa arte.
Fundamentalmente, o ícone permanece sendo sempre o mesmo; as mudanças de estilo
nascem do encontro entre o espírito atemporal da Tradição e as circunstâncias
condicionadas pelo tempo e o espaço que meramente causam o desdobramento de
diferentes potencialidades latentes na própria natureza do ícone. A ênfase
desse livro, com relação aos aspectos históricos, se coloca sobre a iconografia
Russa, que não apenas é a mais explorada, como ainda representa o ápice da
arte; Leonid Ouspensky escreve corretamente que assim como Bizâncio levou a
teologia a uma perfeição em palavras, o mesmo fez a Rússia com as imagens. A
técnica da iconografia, que não pode ser separada de seu sentido espiritual,
será tratada num capítulo à parte.
A segunda parte do livro está dedicada à tipologia dos ícones: as
principais composições tradicionais estão ilustradas por intermédio de exemplos
típicos e baseados em referências da Sagrada Escritura. Esse método concorda
com o modo fundamental de abordagem indicado acima; assim é que as reproduções
dos ícones não foram arrumadas cronologicamente, mas de acordo com a ordem
assinalada a cada tema o Iconostase[1].
A descrição das tipologias iconográficas mais importantes atende, ademais, a
uma necessidade geral e crescente. Em contraste com a interpretação
predominantemente sentimental das imagens, que vemos com frequência atrelada a
um discurso pseudo místico, é à própria sabedoria, contida nos escritos
teológicos e litúrgicos, que esse livro busca dar expressão. É precisamente
pelo fato de que as realidades espirituais – que, em última análise, são o tema
desse livro – não se deixam capturar inteiramente nem por palavras nem por
imagens, que a justaposição de um símbolo visível a uma doutrina escrita pode
constituir o melhor apoio no sentido de realizar por antecipação da fonte da
qual jorra a inspiração de ambas as formas de expressão. Nada poderia ser mais
pretencioso do que pretender substituir a sabedoria tradicional pelo ponto de
vista psicológico moderno, que fica praticamente deslocado aqui. A
possibilidade de captar psicologicamente o conteúdo espiritual é mínima, assim
como explicar psicologicamente a essência da beleza.
Os exemplos de ícones reproduzidos aqui foram escolhidos por sua
verdade tradicional, verdade expressa tanto pelos cânones iconográficos como
pela sua espontaneidade espiritual. Não foi por acaso que na maior parte dos
casos foram escolhidos os ícones Russos de um período comparativamente arcaico.
A rigidez hierática da iconografia não tem nada a ver com uma crua dificuldade,
ainda que às vezes a espiritualidade possa se aproximar de lago quase infantil.
Circunstâncias contingentes influenciaram a escolha dos ícones, na
medida em que algumas dessas obras só estão acessíveis para reprodução na
Europa Ocidental, na Grécia e na América. Não obstante, essa limitação chegou a
ser vantajosa, visto que muitos dos ícones que costumam ser publicados
constituem reproduções de uns poucos exemplos conhecidos, em especial nos
museus da Rússia, enquanto que esse volume reproduz alguns excelentes ícones
pouco ou muito pouco conhecidos. Exemplos como esses não podem ser encontrados
nas composições “clássicas”, assim como tampouco foi possível reproduzir à
perfeição cada ícone escolhido.
Não é preciso dizer que ambos os autores desse livro viveram e
trabalharam dentro das estruturas espirituais que também conformam a arte dos
ícones. Leonid Ouspensky é ainda reconhecido como iconógrafo no atual estado da
arte da iconografia. Vladimir Lossky é bastante conhecido por seus estudos em
teologia mística da Igreja do Oriente.
A Tradição e as tradições
Vladimir Lossky
Tradição (paradosis, traditio) é um desses termos
que, por serem ricos em significados, correm o risco de acabar sem nenhum. Isso
não se deve apenas à secularização, que depreciou tantas palavras do
vocabulário teológico – “espiritualidade”, “mística”, “comunhão” – retirando-as
do seu contexto Cristão para fazer delas moeda comum da linguagem profana. Se a
palavra “tradição” sofreu o mesmo destino, isso aconteceu com mais facilidade
ainda porque mesmo na própria linguagem teológica o termo se tornou às vezes um
pouco vago. Com efeito, se alguém tenta evitar mutilar a ideia de tradição
(mutilação que acontece quando se eliminam alguns dos sentidos que ela
compreende), buscando manter todos os seus significados possíveis, perceberá
que foi reduzido a definições que abarcam coisas demais ao mesmo tempo e que
mão conseguem costurar aquilo que constitui o real sentido da “tradição”.
Na medida em que buscamos a precisão, devemos quebrar a
superabundância de conteúdo, criando um grupo de conceitos estritos, cuja soma
no entanto estará longe de expressar a realidade viva chamada de Tradição da
Igreja. Uma leitura do estudo erudito do Padre A. Deneffe, Der Traditionbegriff[2],
levanta a questão de até que ponto a tradição pode ser expressa em conceitos,
ou mais ainda, como tudo o que envolve “vida”, ela “sobrepassa a inteligência”,
e deve antes ser descrita do que definida. De fato, existem em alguns teólogos
da época romântica, como Möhler na Alemanha ou Khomiakov na Rússia, lindas
páginas de descrições, nas quais a tradição aparece como uma plenitude católica
que não pode ser distinguida da unidade, de tal modo que a catolicidade (a Sobornost de Khomiakov) e a
apostolicidade, ou consciência da Igreja, possuem ambas a certeza imediata da
verdade revelada.
Confrontados com essas descrições, que são em suas linhas gerais fiéis
à imagem da Tradição nos escritos patrísticos dos primeiros séculos, ficamos
ansiosos para reconhecer o caráter de “pleroma” [N.T.: ou essa “plenitude”]
próprio dessa tradição da Igreja, mas ao mesmo tempo não podemos renunciar à
necessidade de estabelecer distinções, que são impostas por toda a teologia
dogmática. Nem sempre “distinguir” é sinônimo de “separar”, e menos ainda de
“opor”. Ao opor a Tradição à Santa Escritura como sendo duas fontes da
Revelação, os polemistas da Contrarreforma se colocaram desde o começo no mesmo
terreno de seus adversários Protestantes, por reconhecerem tacitamente na
Tradição uma realidade diferente da Escritura. Ao invés de ser a própria upoqesis[3]
dos livros sagrados, por receber sua coerência fundamental do sopro que os
perpassa, transformando a letra num “corpo único de verdade”, a Tradição ficou
parecendo algo acrescentado, uma espécie de princípio exterior em relação à
Escritura. Daí por diante, os textos patrísticos que atribuíam o caráter de
“pleroma” à Santa Escritura se tornaram incompreensíveis, ao mesmo tempo em que
a doutrina Protestante da “suficiência da Escritura” recebeu um significado
negativo, pela exclusão de tudo o que implicava “Tradição”. Os defensores da
Tradição viram-se obrigados a provar a necessidade da união entre as duas
realidades justapostas, cada qual insuficiente quando tomada isoladamente. Daí
se originou toda uma série de falsos problemas, tais como o do primado da
Escritura ou da Tradição, ou o de suas respectivas autoridades, ou da total ou
parcial diferença entre seus conteúdos, etc. Como poderá se provar a
necessidade de conhecimento da Escritura para a Tradição, como poderemos
encontrar novamente sua unidade, que foi ignorada quando as separamos? Se ambas
forem “plenas”, não se poderá falar em dois “pleromas” opostos entre si, mas de
duas modalidades de uma só e mesma plenitude da Revelação comunicada pela
Igreja.
Uma distinção que separa ou divide nunca é nem perfeita, nem suficientemente
radical: ela não conduz ao discernimento, em sua pureza, da diferença entre o
termo desconhecido, ao qual opõe outro termo que ela supõe conhecido. Uma
separação é ao mesmo tempo mais e menos do que uma distinção: ela justapõe dois
objetos separados um do outro, mas para fazer isso ela deve primeiro ceder a um
as características do outro. Ao se tentar justapor a Escritura e a Tradição
como duas fontes independentes da Revelação, a Tradição é inevitavelmente
dotada com as qualidades que pertencem à Escritura: ela se torna o conjunto dos
“outros escritos” ou das “outras palavras” não escritas, ou seja, de tudo o que
a Igreja pôde acrescentar à Escritura no plano horizontal de sua história.
Assim, passa a haver, de um lado, a Escritura e o cânone Escriturário, e de
outro a Tradição da Igreja, que por sua vez pode ser dividido em diversas
fontes de Revelação de valor desigual: atos dos Concílios Ecumênicos ou locais,
escritos dos Padres, instituições canônicas, liturgia, iconografia, práticas
devocionais, etc. Mas então poderão essas coisas serem chamadas de “Tradição”,
ou não será mais exato chamá-las, como fizeram os teólogos do Concilio de
Trento, de “as tradições”? Esse plural expressa bem o que acontece quando,
separando-se a Escritura e a Tradição ao invés de apenas distingui-las, essa
última é projetada sobre os testemunhos orais ou escritos que foram
acrescentados à Santa Escritura, acompanhando-a ou seguindo-a. Assim como o
“tempo projetado no espaço” apresenta um obstáculo à intuição da “duração”
Bergsoniana, também essa projeção de uma noção qualitativa de Tradição sobre o
domínio quantitativo das “tradições”, distingue, mais do que revela, seu
caráter real, porque a Tradição deve ser livre de toda e qualquer determinação
que, por limitá-la, ao mesmo tempo a situa historicamente.
Poderemos avançar na direção de uma noção mais pura de Tradição se
esse termo for reservado para designar tão somente a transmissão oral das
verdades da fé. A separação entre Tradição e Escritura ainda subsistirá, mas ao
invés de isolarmos duas fontes da Revelação, estaremos opondo duas maneiras de
transmiti-la: a oral e a escrita. Será então preciso colocar numa dessas
categorias a pregação dos Apóstolos e de seus sucessores, bem como toda
pregação da fé praticada por um ministério vivo; e na outra categoria, a Santa
Escritura e todas as demais expressões da Verdade revelada (sendo que essas
últimas diferem no grau de sua autoridade, conforme reconhecidas pela Igreja).
Essa abordagem afirma o primado da Tradição sobre a Escritura, uma vez que a
transmissão oral da pregação dos Apóstolos precedeu seu registro escrito no
cânone do Novo Testamento. Podemos mesmo dizer: a Igreja pode até dispensar as
Escrituras, mas ela não pode existir sem a Tradição. Mas isso só é certo até
certo ponto: é verdade que a Igreja sempre possuirá a Verdade revelada, que ela
manifesta pela pregação, e que essa poderia muito bem ter permanecido oral e
ser passada de boca em boca, sem jamais ser fixada pela escrita[4].
Mas, por mais que se afirme a separação entre a Escritura e a Tradição, essas
nunca podem ser distinguidas radicalmente: permanecemos na superfície, opondo
livros escritos com tinta a discursos proclamados de viva voz. Em ambos os
casos a questão consiste na palavra que é pregada: a “pregação da fé” serve
como o fundamento comum que qualifica a oposição. Mas não será isso atribuir à
Tradição algo que comparável à Escritura? Não será possível ir mais longe e
buscar uma noção pura de Tradição?
Dentre os vários significados que encontramos nos Padres dos primeiros
séculos, a Tradição às vezes recebe o de um ensinamento mantido secreto, não
divulgado, a fim de que o mistério não seja profanado por não iniciados[5].
Isso é claramente expresso por São Basílio, na distinção que ele faz entre dogma e chrugma[6].
“Dogma”, aqui, tem um sentido contrário ao que é dado a termo hoje em dia:
longe de ser uma definição doutrinal proclamada em alta voz pela Igreja, ele
consiste num “ensinamento” (didaskalia) não público e secreto, que
nossos padres mantinham em silêncio, fora de indiscrições e da curiosidade,
sabedores de que o silêncio salvaguarda o caráter sagrado dos mistérios[7].
Por outro lado, chrugma (que significa
“pregação” na linguagem do Novo Testamento) consiste sempre numa declaração
aberta, seja uma definição doutrinal[8],
a prescrição oficial de uma observância[9],
um ato canônico[10]
ou as orações públicas da Igreja[11].
Embora lembre a “doutrina arcana” dos Gnósticos, que também reivindica para si
uma tradição apostólica oculta[12],
as tradições não escritas e secretas das quais fala São Basílio diferem
notavelmente daquela. Em primeiro lugar, os exemplos que ele dá na passagem
mencionada mostra que as expressões usadas por São Basílio em relação aos
“mistérios” não se referem a um círculo esotérico de homens perfeitos no
interior de uma comunidade Cristã, mas antes ao conjunto dos fiéis que
participam da vida sacramental da Igreja, que são opostos aos “não iniciados”,
aqueles que estão sendo paulatinamente preparados para os sacramentos da
iniciação por meio do catecismo. Em segundo lugar, a tradição secreta (dogma)
pode ser publicamente declarada, tornando-se então uma “pregação” (chrugma), quando alguma necessidade (como,
por exemplo, a luta contra alguma heresia) obriga a Igreja a fazer um
pronunciamento[13].
Assim, se a tradição recebida dos Apóstolos permaneceu não escrita e submetida
à disciplina do segredo, se os fiéis nem sempre conheciam seu significado
misterioso[14],
isso se deveu à sábia economia da Igreja, que entregava seus mistérios apenas
na medida em que uma declaração aberta se tornava indispensável. Deparamo-nos
aqui com uma das antinomias do Evangelho: de um lado, não devemos entregar o
que é santo aos cachorros, nem atirar pérolas aos porcos[15],
mas, por outro lado, “não existe nada encoberto que não será revelado, nada
oculto que não se torne conhecido[16]”.
As “tradições guardadas em segredo e em mistério”, que São Basílio opõe à
pregação oral em público, nos fazem pensar nas palavras que foram ditas “no
escuro”, “ao ouvido”, “entre paredes”, mas que serão ditas “à luz” e “sobre os
telhados[17]”.
Tampouco existe oposição entre agrafa e eggrafa,
a pregação oral e a pregação escrita. Aqui, a distinção entre Tradição e
Escritura penetra mais fundo no coração do seu tema, colocando de um lado
aquilo que deve ser mantido em segredo – e que por esse motivo não pode ser
escrito – e, de outro lado, tudo o que é objeto de pregação – e que, uma vez
declarado publicamente, pode por isso mesmo ser colocado do lado das
“Escrituras” (Grafai). Não foi o
próprio Basílio quem não considerou oportuno revelar por escrito o segredo de
muitas “tradições”, transformando-as assim em chrugmata[18]?
Essa nova distinção coloca a ênfase sobre o caráter secreto da Tradição, opondo
dessa maneira um fundo oculto, presente nos ensinamentos orais recebidos dos
Apóstolos, àquilo que a Igreja oferece como conhecimento a todos; daí que a
Igreja mergulha “pregando” num oceano de tradições apostólicas, que não podem
ser colocadas de lado, nem subestimadas, sob riso de ferir o Evangelho. Mais do
que isso, se alguém fizer isso “transformará o ensinamento que está sendo
pregado (to chrugma) numa simples aparência”, desprovida de significado[19].
Os diversos exemplos oferecidos por São Basílio se referem todos à vida
litúrgica e sacramental da Igreja (o sinal da Cruz, os ritos batismais, a
bênção do óleo, a epiclese eucarística, o costume de se voltar para o leste
durante a oração, e o de permanecer em pé nos Domingos e no período de
Pentecostes, etc.). Se esses “costumes não escritos” (ta agrafa twn eqwn), esses “mistérios da Igreja” (agrafa ths
Ekklhsias musthria), tão
numerosos que não se pode enumerá-los no decurso de todo um dia[20],
são necessários para o entendimento da verdade da Escritura (e, de modo geral,
para o verdadeiro sentido de toda “pregação”), fica claro que as tradições
secretas apontam para o “caráter de mistério” do conhecimento Cristão. Com
efeito, a Verdade revelada não é letra morta, mas Palavra viva: ela só pode ser
alcançada na Igreja, por intermédio da iniciação pelos “mistérios” ou
sacramentos no “mistério que foi escondido desde o começo dos tempos e das
gerações, e que agora se tornou manifesto aos seus santos[21]”.
As tradições não escritas, ou mistérios da Igreja, mencionadas por São
Basílio, constituem assim a fronteira com a Tradição propriamente dita, e
permitem vislumbres de alguns de seus traços. Com efeito, existe uma
participação no mistério revelado por intermédio do fato da iniciação
sacramental. Trata-se de um novo conhecimento, de uma “gnose de Deus” (gnwsis Qeou)
recebida como graça, e esse dom da gnose é conferida numa “tradição” que, para
São Basílio, consiste na confissão da Trindade no momento do Batismo: uma fórmula sagrada que nos conduz à luz[22].
Aqui, a linha horizontal das “tradições” recebidas da boca do Senhor e
transmitidas pelos Apóstolos e seus sucessores cruza com a vertical, com a
Tradição – a comunicação com o Espírito Santo, que abre para os membros da
Igreja uma perspectiva infinita de mistério em cada palavra da Verdade
revelada. Começando pelas tradições tais como São Basílio as apresenta, é
preciso ir adiante e admitir a Tradição, que se distingue delas.
De fato, se nos detivermos na fronteira das tradições não escritas e
secretas, sem fazer essa última distinção, permaneceremos no plano horizontal
da paradoseis, no qual a Tradição
aparece a nós como “projetada no reino das Escrituras”. É verdade que seria
impossível separar essas tradições secretas das Escrituras, ou mais geralmente,
da “pregação”, mas sempre podemos contrapô-las enquanto palavras ditas em
segredo ou guardadas em silêncio, com as palavras ditas publicamente. O fato é
que a distinção final ainda não pode ser feita enquanto permanecer um último
elemento que liga a Tradição com a Escritura – a palavra, que serve como fundamento para opor as tradições ocultas à
pregação aberta. A fim de isolar a pura noção de Tradição, a fim de despi-la de
tudo o que for uma projeção sua sobre a linha horizontal da Igreja, é
necessário ir além da oposição entre as palavras secretas e as palavras da
pregação aberta, colocando juntas as “tradições” e a “pregação”. Essas duas têm
em comum o fato de que, secretas ou não, são ambas expressas pela palavra. Elas
sempre implicam uma expressão verbal, seja pelas palavras propriamente ditas,
pronunciadas ou escritas, seja pela linguagem muda que é dirigida ao
entendimento por meio de manifestações visuais (iconografia, gestos rituais,
etc.). Num sentido geral, a palavra não é unicamente um sinal exterior usado
para designar um conceito, mas acima de tudo um conteúdo definido de modo
inteligível e afirmado ao assumir um corpo, ao se incorporar a um discurso
articulado ou a qualquer outra forma de expressão exterior.
Se essa é a natureza da palavra, nada do que é revelado ou que se
torna conhecido pode permanecer estranho a ela. Sejam as Escrituras, as
pregações ou as tradições “dos apóstolos guardadas em silêncio”, as mesmas
palavras logos ou logia podem ser igualmente aplicadas a tudo o
que constitui expressão da Verdade revelada. Com efeito, essa palavra é
recorrente na literatura patrística para designar tanto a Santa Escritura como
os Símbolos da fé. É assim que São João Cassiano diz a respeito do símbolo de
Antioquia: “É a palavra resumida (breviatum
verbum) que o Senhor deu [...] condensando em poucas palavras a fé no Seu
testamento, de modo a conter abreviadamente o sentido de toda a Escritura[23]”.
Se a seguir refletirmos que as Escrituras não são uma coleção de palavras obre
Deus, mas a Palavra de Deus (logos tou Qeou),
poderemos entender porque, acima de tudo desde Orígenes, houve o desejo de
identificar a presença do Logos Divino nos textos dos dois Testamentos com a
encarnação do Verbo (Palavra), por meio da qual “se cumpriram” as Escrituras.
Bem antes de Orígenes, Santo Inácio de Antioquia se recusava a ver nas
Escrituras algo além do que um documento histórico, um “arquivo”, justificando
o Evangelho pelos textos do Velho Testamento: “Para mim, meus arquivos, eles
são Jesus Cristo; meus arquivos invioláveis são Sua Cruz e Sua Morte e
Ressurreição, e a Fé que dele provém [...] Ele é a Porta do Pai, pela qual
entram Abrahão, Isaac e Jacó, os profetas, os Apóstolos e a Igreja[24]”.
Se, devido à Encarnação do Verbo, as Escrituras não são arquivos da Verdade, mas
seu corpo vivo, elas podem ser tomadas apenas dentro da Igreja, que constitui o
único corpo de Cristo. Assim voltamos à ideia da suficiência das Escrituras.
Mas aqui não há nada de negativo: não se exclui, mas assume-se a Igreja com
seus sacramentos, instituições e ensinamentos transmitidos pelos Apóstolos. Tampouco
essa suficiência, esse “pleroma” das Escrituras, exclui qualquer outra
expressão da mesma Verdade que a Igreja seja capaz de produzir (assim como a
plenitude de Cristo, a Cabeça da Igreja, não exclui a Igreja – o c0mplemento de
Sua gloriosa humanidade). Sabemos que os defensores das imagens sagradas
fundamentaram a possibilidade de uma iconografia Cristã na Encarnação do Verbo:
os ícones, assim como as Escrituras, são expressões do inexprimível, e se
tornaram possíveis graças à revelação de Deus, que se realizou na Encarnação do
Filho. O mesmo vale para as definições dogmáticas, a exegese, a liturgia e tudo
o que, na Igreja de Cristo, participa da mesma plenitude do Verbo conforme
contida nas Escrituras, sem que por isso sejam limitadas ou reduzidas. Nessa
qualidade “total” do Verbo encarnado, tudo o que expressa a verdade revelada
está relacionado com a Escritura, e assim, se tudo se torna de fato
“escriturário”, “o mundo inteiro não seria suficiente para conter os livros que
teriam que ser escritos[25]”.
Mas como a expressão do mistério transcendente se tornou possível graças à
Encarnação do Verbo, desde que tudo o que o expressa se tornou de certo modo
“escritura” ao lado da Santa Escritura, a questão consiste agora em saber: onde
fica a Tradição que buscamos quando separamos sua pura noção de tudo o que
poderia se relacionar com a realidade escriturária?
Como dissemos, ela não deve ser procurada nas linhas horizontais das
“tradições” que, tanto quanto as Escrituras, são determinadas pelo Verbo. Se
ainda quisermos opor isso a tudo quanto pertence à realidade do Verbo, seria
preciso dizer que a Tradição consiste no Silêncio. “Aquele que em verdade
possui a palavra de Jesus pode ouvir mesmo no silêncio”, disse Santo Inácio de
Antioquia[26].
Tanto quanto eu saiba esse texto nunca foi utilizado nos numerosos estudos que
citam abundantemente as passagens patrísticas sobre a Tradição, sempre as
mesmas passagens, conhecidas de todos, mas que nunca advertem que textos nos
quais a palavra “tradição” não é mencionada expressamente podem ser mais
eloquentes do que muitos outros.
A faculdade de ouvir o silêncio de Jesus, atribuída por Santo Inácio
àqueles que em verdade possuem Sua palavras, ecoa o reiterado apelo de Cristo
aos Seus ouvintes: “Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça”. As palavras da
Revelação possuem assim uma margem de silêncio que não pode ser captada pelos
ouvidos dos que estão fora. São Basílio vai na mesma direção quando diz, numa
de suas passagens a respeito das tradições: “Existe também uma forma de
silêncio, em especial a obscuridade utilizada pela Escritura, de modo a
dificultar o entendimento dos ensinamentos e para proveito dos leitores[27]”.
O silêncio das Escrituras não pode ser separado delas: ele é transmitido pela
Igreja com as palavras da Revelação, com a única condição de que seja recebido.
Caso fosse oposto às palavras (sempre no plano horizontal, onde elas expressam
a Verdade revelada), esse silêncio que acompanha as palavras não implicaria
insuficiência alguma, ou falta de plenitude da Revelação, bem como a
necessidade de que lhe fosse acrescentado seja lá o que for. Isso significa que
o mistério revelado, para ser verdadeiramente recebido plenamente, exige uma
conversão para o plano vertical, para que a pessoa possa ser capaz de
“compreender com todos os santos”, não apenas “a largura e o comprimento” da
Revelação, mas sua “profundidade” e “sua altura[28]”.
A essa altura já não podemos opor Escritura e Tradição, nem
justapô-las como duas realidades distintas. Devemos, naturalmente,
distingui-las, a fim de melhor captar sua indivisível unidade, que fornece à
Revelação que foi dada à Igreja seu caráter de plenitude. Se as Escrituras, e
tudo o mais que a Igreja pode produzir em palavras escritas ou pronunciadas, em
imagens ou símbolos litúrgicos ou não, representam os diferentes modos de
expressão da Verdade, a Tradição é o único modo de receber essas coisas.
Dizemos especificamente único modo e
não modo uniforme, porque para a
Tradição em sua noção pura não cabe nada que seja formal. Ela não se impõe à
consciência humana por meio de
garantias formais das verdades da fé, mas permite o acesso à descoberta de sua
evidência interna. Ela não consiste no conteúdo da Revelação, mas na luz que a
revela; ela não é a palavra, mas o sopro vivo que permite à palavra ser ouvida,
assim como ao silêncio de onde ela provém[29];
ela não é a Verdade, mas a comunicação do Espírito da Verdade, fora do qual a
Verdade não pode ser recebida. “Nenhum homem pode dizer que Jesus Cristo é o
Senhor, se não for pelo Espírito Santo[30]”.
A pura noção de Tradição pode ser definida se dissermos que ela é a vida do
Espírito Santo na Igreja, que comunica a cada membro do Corpo de Cristo a
faculdade de escutar, de receber, de conhecer a Verdade na Luz que lhe
pertence, e não de acordo com as luzes da pessoa humana. Essa é a verdadeira
gnose devida a uma ação da Luz Divina[31],
a única Tradição, independente de qualquer “filosofia”, de tudo o que existe
por meio das “tradições dos homens, dos rudimentos do mundo, e não a partir de
Cristo[32]”.
Essa liberdade em relação a toda condição da natureza, de toda contingência da
história, é a primeira característica da linha vertical da Tradição: ela
inerente à gnose Cristã – “Conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará[33]”.
Não podemos conhecer a Verdade, nem entender as palavras da Revelação, sem que
as tenhamos recebido o Espírito Santo: “Pois aonde está o Espírito do Senhor,
ali está a liberdade[34]”.
Essa liberdade dos filhos de Deus, oposta à escravidão dos filhos do mundo, é
expressa pela “franqueza” (pagghsia),
por meio da qual os que conhecem Aquele a quem louvam podem se dirigir a Deus,
pois eles louvam o Pai “em Espírito e Verdade[35]”.
A fim de distinguir a Tradição da Escritura, tentamos retirar da noção
tudo o que pudesse torná-la comparável com a realidade escriturária. Tivemos
que distingui-la das “tradições”, agrupando essas últimas, juntamente com as
Escrituras e com todas as expressões da Verdade, na mesma linha horizontal, na
qual não encontramos outro termo para designar essas coisas senão o Silêncio.
Tendo a Tradição sido assim separada de tudo o que pudesse receber sua projeção
no plano horizontal, é preciso agora entrar com outra dimensão a fim de chegar
ao termo de nossa análise. Contrariamente à análise tal como a filosofia, desde
Platão e Aristóteles, a concebe, e que termina por dissolver o concreto
resolvendo-o por meio de ideias gerais ou concepções, nossa análise nos
conduzirá finalmente à Verdade e ao Espírito, o Verbo e o Espírito Santo, duas
Pessoas distintas mas indissoluvelmente unidas, cuja dupla economia, ao mesmo
tempo em que fundamenta a Igreja, condiciona o caráter distinto e indissolúvel
da Escritura e da Tradição.
***
A culminação de nossa análise – o Verbo encarnado e o Espírito Santo
na Igreja, enquanto a dupla condição da plenitude da Revelação – servirá como
uma plataforma a partir da qual nos colocaremos no caminho de uma síntese e
poderemos assinalar à Tradição o lugar que lhe pertence dentre as realidades
concretas da vida eclesial. Em primeiro lugar, será necessário estabelecer uma
dupla reciprocidade na economia das duas Pessoas Divinas enviadas pelo Pai. De
um lado, foi por intermédio do Espírito Santo que o Verbo se tornou encarnado
na Virgem Maria. De outro, foi pelo Verbo, em seguida à Sua Encarnação e Sua obra
de Redenção, que o Espírito Santo desceu sobre os membros da Igreja no
Pentecostes. Naquele caso, o Espírito Santo veio primeiro, mas em vista da
Encarnação, para que a Virgem pudesse conceber o Filho de Deus, que viria a
tornar-se Homem. O papel do Espírito Santo foi fundamental aqui: Ele constituiu
o poder da Encarnação, a condição virtual para a recepção do Verbo. No segundo
caso foi o Filho que chegou primeiro, pois Ele enviou o Espírito Santo que
procedeu do Pai, mas é o Espírito Santo que desempenha o papel principal: era
Ele o propósito, pois foi Ele que foi comunicado aos membros do Corpo de
Cristo, para deificá-los pela graça. Aqui o papel do Verbo Encarnado é, por sua
vez, funcional em relação ao Espírito: é Ele a forma, por assim dizer, o “cânone”
da santificação, a condição formal para a recepção do Espírito Santo.
A verdadeira e santa Tradição, segundo Filarete de Moscou, “não
consiste unicamente na transmissão visível e verbal dos ensinamentos, das
regras, das instituições e dos ritos: ela é ao mesmo tempo uma comunicação
invisível e atualizada da graça da santificação[36]”.
Se é necessário distinguir aquilo que é transmitido (as tradições orais e
escritas) do modo único de acordo com o qual essa transmissão é recebida no
Espírito Santo (a Tradição como princípio do conhecimento Cristão), será
impossível também, não obstante, separar esses dois pontos; daí provém a
ambivalência da palavra “tradição”, que designa simultaneamente as linhas
horizontal e vertical da Verdade possuída pela Igreja. Toda transmissão de uma
verdade da fé implica assim a comunicação da graça do Espírito Santo. Com
efeito, fora do Espírito, que “falou pelos Profetas”, aquilo que é transmitido
não pode ser reconhecido pela Igreja como sendo palavra da Verdade, análoga aos
livros sagrados inspirados por Deus e que, juntamente com as Santas Escrituras,
são “recapituladas” pelo Verbo Encarnado. Esse vento de fogo Pentecostal,
comunicação do Espírito da Verdade que procede do Pai e é enviado pelo Filho,
atualiza a faculdade suprema da Igreja: a consciência da Verdade revelada, a
possibilidade de julgar e discernir entre o verdadeiro e o falso à Luz do
Espírito Santo: “pareceu bom ao Espírito Santo, e assim a nós[37]”.
Se o Paráclito é o único critério da Verdade revelada pelo Verbo Encarnado, Ele
é também o princípio da Encarnação, pois o mesmo Espírito Santo, por cujo
intermédio a Virgem Maria recebeu a faculdade de se tornar a Mãe de Deus, atua,
enquanto função do Verbo, como um poder para expressar a Verdade em definições
inteligíveis e em imagens e símbolos sensíveis, os documentos da fé, os quais a
Igreja deve julgar em que medida pertencem ou não à sua Tradição.
Essas considerações são necessárias para nos possibilitar reencontrar,
em casos concretos, a relação entre a Tradição e a Verdade revelada, recebida e
expressa pela Igreja. Como vimos, a Tradição, em sua noção básica, não consiste
no conteúdo revelado, mas no modo único de receber a Revelação, uma faculdade
concedida pelo Espírito Santo, que torna a Igreja apta a conhecer o Verbo
Encarnado em sua relação com o Pai (a suprema gnose, que é a Teologia, no
sentido próprio do termo, segundo os Padres dos primeiros séculos), assim como
os mistérios da Economia Divina, desde a criação dos céus e da terra no
Gênesis, até os novos céus e a nova terra do Apocalipse. Recapitulada pela
Encarnação do Verbo, a história da Economia Divina se dá a conhecer pelas
Escrituras, na recapitulação dos dois Testamentos pelo mesmo Verbo. Mas essa
unidade das Escrituras só pode ser reconhecida na Tradição, à Luz do Espírito
Santo comunicada aos membros do corpo único de Cristo. Os livros do Velho
Testamento, compostos durante um período de muitos séculos, escritos por
diferentes autores, que frequentemente juntaram e fundiram diferentes tradições
religiosas, possuem uma unidade que, aos olhos do historiador das religiões, é
apenas acidental e mecânica. Sua unidade com os escritos do Novo Testamento
aparece a ele como falsa e artificial. Mas um filho da Igreja será capaz de
reconhecer a unidade da inspiração e o objeto único da fé nesses textos
heteróclitos, tecidos pelo mesmo Espírito Santo que, depois de ter falado pelos
profetas, precedeu o Verbo tornando a Virgem Maria apta a servir como meio para
a Encarnação de Deus.
Somente dentro da Igreja é possível, com total consciência, reconhecer
a unidade de inspiração dos livros sagrados, porque somente a Igreja possui a
Tradição – o conhecimento no Espírito Santo do Verbo Encarnado. O fato de que o
Cânone dos textos do Novo Testamento tenha se formado relativamente tarde, com
algumas hesitações, nos mostra que a Tradição não é de modo algum automática:
ela é a condição para que a Igreja possua uma consciência infalível, mas ela
não é um mecanismo que infalivelmente permitirá conhecer a Verdade, fora e acima
da consciência dos indivíduos, fora de qualquer deliberação ou julgamento. De
fato, se a Tradição consiste numa faculdade de julgamento à Luz do Espírito
Santo, isso obriga que aqueles que desejam conhecer a Verdade na Tradição façam
um esforço incessante: não é possível permanecer na Tradição por uma espécie de
inércia histórica, mantendo-a como sendo “tradição recebida de nossos pais”
tudo o que, pela força do hábito, recende a algum tipo de sensibilidade devota.
Ao contrário, é substituindo pelas “tradições” desse tipo a Tradição do
Espírito Santo viva na Igreja, que se corre o maior risco de finalmente cair
fora do Corpo de Cristo. Não se deve pensar que uma simples atitude
conservadora seja salutar, nem que os heréticos sejam sempre “inovadores”. Se a
Igreja, depois de haver estabelecido o Cânone da Escritura, conserva-o na
Tradição, essa conservação não é estática nem inerte, mas dinâmica e consciente
– no Espírito Santo, que novamente purifica “os oráculos do Senhor”, “puros
oráculos: como prata [...] provados na fornalha da terra, sete vezes
purificados[38]”.
Se isso vier a faltar, teremos conservado apenas um texto morto, testemunho de
uma época passada, e não uma Palavra viva e vivificadora, expressão perfeita da
Revelação, que possui essa Palavra independentemente da existência de velhos
manuscritos discordantes ou de novas “edições críticas” da Bíblia.
Pode-se dizer que a “Tradição” representa o espírito crítico da
Igreja. Mas, contrariamente ao “espírito crítico” da ciência humana, o
julgamento crítico da Igreja é acurado pelo Espírito Santo. Ele possui assim
uma princípio absolutamente diferente: o da inesgotável plenitude da Revelação.
Assim é que a Igreja, que é obrigada a corrigir as inevitáveis alterações dos
textos sagrados (que alguns “tradicionalistas” pretendem preservar a qualquer
preço, às vezes atribuindo um significado místico aos estúpidos erros de
copistas), deverá ser capaz ao mesmo tempo de reconhecer em algumas
interpolações tardias (como, por exemplo, no caso da vírgula na frase “três que
dão testemunho nos céus[39]”
na primeira Epístola de São João) uma expressão autêntica da Verdade revelada. Naturalmente,
a autenticidade tem aqui um significado inteiramente diverso daquele das
disciplinas históricas[40].
Não apenas as Escrituras, mas ainda as tradições orais recebidas dos Apóstolos
foram conservadas apenas em virtude da Tradição – a Luz que revela seu
verdadeiro sentido e seu significado, essenciais para a Igreja. Aqui, mais do
que em qualquer outra parte, a Tradução exerce sua ação crítica, mostrando
acima de tudo seu aspecto negativo e exclusivo: ela rejeita as “fábulas
profanas e de pessoas caducas[41]”,
piedosamente recebidas por todos aqueles cujo “tradicionalismo” consiste em
aceitar com ilimitada credulidade tudo o que se insinua na vida da Igreja e que
ali permanece por força do hábito[42].
Na época em que as tradições orais vindas dos Apóstolos começaram a ser fixadas
por escrito, as verdadeiras e falsas tradições se cristalizaram juntas em
numerosos apócrifos, muitos dos quais circularam sob os nomes dos Apóstolos e
de outros santos. “Não ignoramos, disse Orígenes, que muitos desses textos
secretos foram escritos por homens ímpios, daqueles que pretendem soar forte
sua iniquidade, e que algumas dessas ficções são usadas pelos ‘Hypithiani’, outras pelos discípulos de
Basilides. Devemos estar atentos, para não receber todos os apócrifos que
circulam com os nomes de santos, pois muitos foram compostos por Judeus, talvez
para destruir a verdade de nossas Escrituras e para estabelecer falsos ensinamentos.
Mas, por outro lado, não devemos rejeitar por completo tudo o que for útil para
lançar luz sobre nossas Escrituras. É uma marca da grandeza de espírito ouvir e
aplicar essas palavras da Escritura: ‘Provai de todas as coisas; guardai o que
é bom’[43].[44]”.
Uma vez que os fatos e as palavras que a memória da Igreja guardou desde os
tempos apostólicos “em silêncio e longe da inquietação e da curiosidade[45]”
foram divulgados em escritos de origem heterodoxa, esse apócrifos, embora
separados do Cânone escriturário, não devem entretanto ser totalmente
rejeitados. A Igreja saberá como extrair daí alguns elementos aptos para
completar ou ilustrar eventos sobre os quais as Escrituras guardam silêncio,
mas que a Tradição reconhece como verdadeiros. Mais ainda, amplificações que
tenham uma fonte apócrifa podem servir para colorir os textos litúrgicos e a
iconografia de determinadas festas. É possível utilizar assim as fontes
apócrifas, com juízo e moderação, considerando que elas podem representar
tradições apostólicas corrompidas. Recriados pela Tradição, esses elementos,
purificados e tornados legítimos, retornam para a Igreja como propriedades
suas. Esse julgamento é necessário a cada vez que a Igreja tem que lidar com
escritos que se proclamam pertencentes à tradição apostólica. Ela os receberá
ou rejeitará, sem necessariamente colocar a questão de sua autenticidade no
plano histórico, mas considerando acima de tudo seu conteúdo à luz da Tradição.
Algumas vezes é preciso um considerável trabalho de esclarecimento e
adaptação, para que uma obra pseudo gráfica venha a ser finalmente utilizada
pela Igreja como testemunho de sua Tradição. Foi assim que São Máximo o
Confessor teve que comentar o Corpus
Dionysiacum, a fim de revelar o sentido ortodoxo desses escritos teológicos,
que circulavam nos meios monofisitas sob o pseudônimo de São Dionísio o
Areopagita, adotado por seu autor ou compilador. Sem pertencer à “tradição
apostólica” propriamente dita, o Corpus
pertence à “tradição patrística”, que continua aquela dos Apóstolos e de seus
discípulos[46].
O mesmo poderia ser dito de outros escritos do gênero. Assim como em relação às
tradições orais que reclamam para si uma autoridade apostólica, acima de tudo
no que concerne a costumes e instituições, o julgamento da Igreja levará em
conta não apenas seu significado, mas ainda a universalidade de sua aplicação.
Notemos que o critério formal da tradição, expresso por São Vicente de
Lerins: “Quod semper, quod ubique, quod
ab omnibus” – só pode ser perfeitamente aplicada às tradições apostólicas
que foram transmitidas oralmente durante dois ou três séculos. As Escrituras do
Novo Testamento escapam a essa regra, pois elas não foram, nem “sempre”, nem
“em toda parte”, nem “recebidas por todos”, antes do estabelecimento definitivo
do Cânone escriturário. Seja lá o que for que digam aqueles que se esquecem do
significado primário da Tradição, pretendendo substituí-la por uma “regra de
fé”, a regra de São Vicente é ainda menos aplicável às definições dogmáticas da
Igreja. Basta lembrar que o omoousious
era pouco mais do que “tradicional”; com poucas exceções[47],
ele nunca foi utilizado por ninguém em parte alguma, exceto pelos gnósticos
valentinianos e pelo herético Paulo de Samosate. A Igreja o transformou em
“puro oráculo: como prata [...] provada na fornalha da terra, sete vezes
purificada” no cadinho do Espírito Santo e das consciências livres que o
julgaram dentro da Tradição, sem se deixar seduzir pela forma habitual, nem por
nenhuma inclinação da carne ou do sangue, que muitas vezes assumem a aparência
de uma devoção obscura e descuidada.
O dinamismo da Tradição não admite inércia nem quanto {as formas
habituais de piedade, nem quanto às expressões dogmáticas que são repetidas
mecanicamente como se fossem mágicos receptáculos da Verdade, garantidos pela
autoridade da Igreja. Preservar a “tradição dogmática” não significa agarrar-se
a fórmulas doutrinais: estar dentro da Tradição consiste em manter a verdade
vida à Luz do Espírito Santo, ou antes: consiste em se manter dentro da Verdade
pelo poder vivificante da Tradição. Mas esse poder preserva por meio de uma
incessante renovação, como aliás tudo o que provém do Espírito.
***
“Renovar” não significa substituir as antigas expressões da Verdade
por novas, mais explícitas e teologicamente mais elaboradas. Se fosse assim,
teríamos que reconhecer que o Cristianismo erudito dos professores de teologia
representa um progresso considerável em relação à fé “primitiva” dos discípulos
dos Apóstolos. Hoje em dia fala-se muito em “desenvolvimento teológico”, muitas
vezes sem considerar até que ponto essa expressão (que se tornou quase um lugar
comum) pode ser ambígua. De fato, ela implica, em certos autores, uma concepção
evolucionista da história do dogma Cristão. Tentou-se interpretar nesse sentido
essa passagem de São Gregório de Nazianze: “O Antigo Testamento manifestou
claramente o Pai, e de modo obscuro o Filho. O Novo Testamento manifestou o
Filho, mas deu apenas indicações sobre a divindade do Espírito Santo. Hoje em
dia, o Espírito está entre nós e se mostra em todo o Seu esplendor. Não teria
sido prudente, antes de reconhecer a divindade do Pai, pregar abertamente a
divindade do Filho, e também, antes de que o Filho fosse aceito, impor o
Espírito Santo, se é que eu posso me expressar assim[48]”.
Mas “o Espírito está entre nós” desde o dia do Pentecostes e, com Ele, a luz da
Tradição; vale dizer, não apenas aquilo que foi transmitido (como se fosse um
“depósito” sagrado e inerte), mas a própria força de transmissão conferida à
Igreja, e que acompanha tudo o que foi transmitido, como único modo de receber
e possuir a Revelação. É claro que o único modo de receber a Revelação no
Espírito Santo é recebê-la em sua plenitude, e é por isso que a Igreja conhece
a Verdade na Tradição. Se houvesse um crescimento no conhecimento dos Divinos
mistérios, uma revelação progressiva, “uma luz chegando aos poucos”, antes da
chegada do Espírito Santo, seria o contrário da Igreja. Se quisermos ainda
falar em desenvolvimento, não será o conhecimento da revelação na Igreja, que
progride ou se desenvolve em cada definição dogmática. Se quiséssemos abarcar a
soma de toda a história doutrinal desde seu começo até os dias de hoje, lendo o
Enchiridion de Denziger ou os
cinquenta volumes de Mansi, o conhecimento que teríamos do mistério da Trindade
não seria mais perfeito do que o de um Padre do século IV que falava em omoousious, nem de um Padre anterior a Nicéia
que ainda não usava essa palavra, e menos ainda de São Paulo, para quem o
próprio termo de “Trindade” era estranho. Em cada momento de sua história a
Igreja dá aos seus membros a faculdade de conhecer a Verdade numa plenitude que
as palavras não são capazes de conter. É esse modo de conhecer a Verdade viva
na Tradição, que a defende da criação de novas definições dogmáticas.
“Conhecer em plenitude” não significa “ter a plenitude do
conhecimento”: isso diz respeito apenas ao século futuro. Se São Paulo diz que
ele agora conhece “em parte[49]”,
esse ec merous não exclui a plenitude na qual ele conhece. Não será um
desenvolvimento dogmático posterior que irá superar o “conhecimento em parte”
de São Paulo, mas a atualização escatológica da plenitude, na qual, confusa mas
seguramente, os Cristãos aqui em baixo conhecem os mistérios da Revelação. O
conhecimento ec merous não será
suprimido por ser falso, mas porque seu papel foi o de nos permitir aderir à
plenitude, que ultrapassa toda faculdade humana de conhecimento. Portanto, é à
luz da plenitude que conhecemos “em parte” e será sempre por meio dessa
plenitude que a Igreja julgará em que medida conhecimentos parciais expressos
nessa ou naquela doutrina pertencem ou não à Tradição. Qualquer doutrina
teológica que pretenda constituir uma explanação perfeita do mistério revelado,
inevitavelmente aparecerá como falsa: pelo simples fato de pretender a
plenitude do conhecimento ela se colocará em oposição à plenitude, na qual a
Verdade é conhecida em parte. Uma doutrina trai a Tradição quando tenta tomar
seu lugar: o gnosticismo oferece o mais contundente exemplo de uma tentativa de
substituição de uma plenitude dinâmica, dada à Igreja como a condição de
verdadeiro conhecimento, por uma espécie de plenitude estática de uma “doutrina
revelada”. Por outro lado, o dogma definido pela Igreja, na forma de
conhecimento parcial, abre a cada instante novos acessos à plenitude, fora da
qual a Verdade revelada não pode ser conhecida ou confessada. Enquanto
expressão da verdade, o dogma de fé pertence à Tradição, sem que por isso
constitua uma de suas “partes”. Trata-se de um meio, de um instrumento
inteligível, que atua por aderência à Tradição da Igreja: ele é uma testemunha
da Tradição, seu limite externo, ou antes a porta estreita que conduz ao
conhecimento da Verdade na Tradição.
Dentro do círculo do dogma, o conhecimento do mistério revelado que um
membro da Igreja pode alcançar, no nível da “gnose” Cristã, irá variar em
proporção à medida espiritual de cada um. Esse conhecimento da Verdade na
Tradição será assim capaz de crescer numa pessoa, na mesma medida de seu
crescimento na santificação[50]:
um Cristão será mais perfeito em conhecimento segundo a idade de seu
amadurecimento espiritual. Mas é possível ousarmos fala, contra toda a
evidência, de um progresso coletivo no conhecimento do mistério Cristão, um
progresso que seria devido ao “desenvolvimento dogmático” da Igreja? Teria esse
conhecimento começado numa “infância evangélica”, para terminar hoje – depois
de uma “juventude patrística” e de uma “maturidade escolástica” – na triste
senilidade dos manuais de teologia? Ou antes, teria essa metáfora (falsa, como
tantas outras) dado lugar a uma visão da Igreja como a que encontramos no Pastor de Hermas, onde ela aparece na
forma de uma mulher simultaneamente jovem e velha, trazendo em si todas as
idades “na medida da estatura da plenitude de Cristo[51]”?
Voltando ao texto de São Gregório de Nazianze, tantas vezes mal
interpretado, veremos que o desenvolvimento dogmático em questão não é
absolutamente determinado por uma necessidade interna, que teria como efeito um
progressivo aumento do conhecimento da Verdade revelada na Igreja. Longe de ser
uma evolução orgânica, a história do dogma depende acima de tudo da atitude
consciente da Igreja em face da realidade histórica, na qual ela opera pela
salvação do homem. Se Gregório fala de uma revelação progressiva da Trindade
antes do Pentecostes, é para insistir no fato de que a Igreja, em sua economia
em relação ao mundo externo, deve seguir o exemplo da divina pedagogia. Ao
formular esses dogmas (cf. os chrugma de São Basílio), ela deve se conformar às
necessidades de um determinado momento: “não revelando todas as coisas sem
demora ou discernimento, mas também sem mantê-las ocultas até o final. Pois a
primeira atitude seria imprudente, e a segundo ímpia. A primeira poderia ferir
os imprudentes, e a segunda nos separar de nossos próprios irmãos[52]”.
Respondendo à falta de entendimento do mundo exterior, que não tinha
condições de receber a Revelação, resistindo às tentativas dos “argumentadores
desse mundo[53]”,
que, no próprio seio da Igreja, tentavam entender a Verdade “segundo as
tradições dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo[54]”,
a Igreja se viu obrigada a expressar sua fé na forma de definições dogmáticas, de
modo a defendê-la da heresias. Impostos pela necessidade da luta, os dogmas que
uma vez haviam sido formulados pela Igreja se tornaram, para os fiéis, “regras
de fé” que deveriam permanecer firmes para sempre, estabelecendo a fronteira
entre a ortodoxia e a heresia, entre o conhecimento dentro da Tradição e o
conhecimento determinado por fatores naturais. Sempre confrontada com novas
dificuldades a superar, com novos obstáculos ao pensamento a serem removidos, a
Igreja precisará sempre defender seus dogmas. Seus teólogos terão sempre a
tarefa de expor e interpretar esses dogmas outra e outra vez, de acordo com as
demandas intelectuais do meio ou da época. Nos momentos críticos da luta pela
integridade da fé, a Igreja terá que proclamar novas definições dogmáticas, que
irão marcar novos estágios nessa luta, que deverá durar até que venha “a
unidade da fé e o conhecimento do Filho de Deus[55]”.
Ao lutar contra novas heresias, a Igreja nunca abandona suas antigas definições
dogmáticas para substituí-las por novas definições. Esses estágios jamais são
ultrapassados por alguma evolução e, longe de serem relegados aos arquivos da
história, eles preservam o caráter de um presente sempre atual à luz viva da
Tradição. Podemos falar assim em desenvolvimento dogmático apenas num sentido
limitado: ao formular um novo dogma a Igreja toma como ponto de partida dogmas
existentes, e que constituem a regra de fé que ela possui em comum com seus
adversários. Assim é que o dogma da Calcedônia utilizou o de Nicéia e falou do
Filho consubstancial ao Pai em Sua Divindade, para a seguir dizer que Ele é
também consubstancial ao Pai em Sua humanidade; contra os monotelitas, que em
princípio admitiam o dogma da Calcedônia, os Padres do IV Concílio retomariam
sua fórmula das duas naturezas, para afirmar as duas vontades e as duas
energias de Cristo; os Concílios Bizantinos do século XIV, ao proclamar o dogma
das Energias Divinas, referiu-se, dentre outras coisas, às definições do VI
Concílio, etc. Em cada caso podemos falar de “desenvolvimento dogmático” na
medida em que a Igreja estende a regra da fé, embora permanecendo, em suas
novas definições, em conformidade com os dogmas já recebidos por todos.
Se a regra da fé se desenvolve na medida em que o ministério de
ensinamento da Igreja acrescenta novos atos com autoridade dogmática, que é
objeto de uma “economia” e pressupõe uma conhecimento da Verdade na Tradição, isso
não constitui um aumento dessa última. Isso fica claro quando se tenta
considerar tudo o que foi dito sobre a noção primordial de Tradição. É o abuso
do termo “tradição” (no singular e sem um adjetivo que o qualifique e
determine) por autores que veem apenas sua projeção no plano horizontal da
Igreja, ou seja, o das “tradições” (no plural e com as qualificações com as
quais esse termo é definido), que é, acima de tudo, um hábito vexatório de
designar pelo termo o ministério de ensinamento ordinário – onde ouvimos
frequentemente falar em “desenvolvimento” ou “enriquecimento” da tradição. Os
teólogos do VII Concílio distinguiram claramente a “Tradição do Espírito Santo”
dos “ensinamentos (didaskalia)
[divinamente inspirados] de nossos Santos Padres[56]”.
Eles puderam definir o novo dogma com “todo rigor e justiça”, porque
consideravam a si próprios dentro da mesma Tradição que permitiu aos Santos
Padres dos séculos passados produzir novas expressões da Verdade sempre que
precisaram responder às necessidades de momento.
Existe uma interdependência entre a “Tradição da Igreja católica” (a
saber, a faculdade de conhecer a Verdade no Espírito Santo) e os “ensinamentos
dos Padres” (a saber, a regra de fé conservada pela Igreja). Não se pode
pertencer à Tradição ao mesmo tempo em que se contradiz os dogmas, assim como
não se pode fazer uso das fórmulas dogmáticas recebidas para contrapor uma
ortodoxia “formal” a cada nova expressão da Verdade que a vida da Igreja possa
produzir. A primeira atitude é a dos inovadores revolucionários, dos falsos
profetas que pecam contra a Verdade expressada, contra o Verbo encarnado, em
nome do Espírito que eles alegam proclamar. A segunda é a dos formalistas
conservadores, os fariseus da Igreja, que, em nome das expressões habituais da
Verdade, correm o risco de pecarem contra o Espírito da Verdade.
Ao distinguirmos a Tradição, na qual a Igreja conhece a Verdade, da
“tradição dogmática” que ela estabelece por seu ministério do ensinamento, e
que ela preserva, encontramos mais uma vez a mesma relação que estabelecemos
entre Tradição e Escritura: elas não podem ser confundidas nem separadas, sem
perder o caráter de plenitude que, juntas, possuem. Assim como a Escritura, os
dogmas vivem na Tradição, com a
diferença que o Cânone escriturário forma um corpo determinado que exclui toda
possibilidade de acréscimos posteriores, enquanto que a “tradição dogmática”,
para manter sua estabilidade enquanto “regra de fé” da qual nada pode ser
cortado, pode ser acrescentada, recebendo, na medida da necessidade, novas
expressões da Verdade revelada, formuladas pela Igreja. O conjunto dos dogmas,
que a Igreja possui e transmite, não consiste num corpo constituído de uma vez
por todas, nem possui o caráter incompleto de uma doutrina “em processo de
formação”. Em cada momento de sua existência histórica, a Igreja formula a
Verdade da fé em seus dogmas, que sempre expressam uma plenitude à qual se
adere intelectualmente à luz da Tradição, ao mesmo tempo em que ela nunca pode
ser tornada definitivamente explícita. Uma verdade que se pretendesse ser
plenamente explícita jamais teria o caráter de uma plenitude viva, coisa que só
pertence à Revelação: “plenitude” e “explicitação racional” excluem-se
mutuamente. Por sua vez, se o mistério revelado por Cristo e conhecido no
Espírito Santo não pode ser tornado explícito, ele nem por isso permanece inexprimível.
Uma vez que “toda a plenitude Divina habita corporalmente” em Cristo[57],
essa plenitude do Divino Verbo encarnado será expresso tanto nas Escrituras
como nas “palavras abreviadas[58]”
dos símbolos da fé ou de outras expressões dogmáticas. Essa plenitude da
Verdade que elas expressam sem torná-la explícita, permite que os dogmas da
Igreja sejam análogos às Santas Escrituras. É por esse motivo q eu o Papa São
Gregório o Grande estabeleceu a mesma veneração para os dogmas dos primeiros
quatro Concílios e para os quatro Evangelhos[59].
Tudo o que dissemos sobre a “tradição dogmática” pode ser aplicado às
demais expressões do mistério Cristão que a Igreja produz na Tradição,
conferindo igualmente a elas a presença da “plenitude Daquele que plenifica
tudo em todas as coisas[60]”.
Da mesma forma como as “didascalia
divinamente inspiradas” da Igreja, a tradição iconográfica recebe também seu
pleno significado e sua coerência íntima com os demais documentos da fé
(Escritura, dogmas, liturgia) na Tradição do Espírito Santo. Mais ainda do que
as definições dogmáticas, foi possível aos ícones de Cristo alinhar-se à Santa
Escritura, recebendo a mesma veneração, uma vez que a iconografia coloca em
cores aquilo que a palavra anuncia em palavras escritas[61].
Os dogmas são endereçados à inteligência, eles são expressões inteligíveis da
realidade que ultrapassa nosso modo de entendimento. Os ícones atingem nossa
consciência através de nossos sentidos exteriores, apresentando-nos a mesma
realidade suprassensível em expressões “estéticas” (no sentido próprio do termo,
daquilo que pode ser percebido pelos sentidos). Mas o elemento inteligível não
permanece estranho à iconografia: ao olharmos para um ícone descobrimos nele
uma estrutura “lógica”, um conteúdo dogmático que determinou sua composição. Isso
não quer dizer que os ícones sejam algum tipo de hieróglifo ou de “charada”
sagrada, traduzindo os dogmas numa linguagem de signos convencionais. Se a
inteligibilidade, que penetra essas imagens sensíveis, é idêntica à dos dogmas
da Igreja, é porque essas duas tradições – a dogmática e a iconográfica – coincidem
naquilo que, cada qual a seu modo, exprimem da mesma realidade revelada. Embora
transcendendo a inteligência e os sentidos, a Revelação Cristã não os exclui:
ao contrário, ela os assume e transforma por meio da luz do Espírito Santo, na
Tradição que constitui o único modo de receber a Verdade revelada e de reconhecê-la
em suas expressões, sejam escriturárias, dogmáticas, iconográficas ou de
qualquer outro tipo capaz de expressá-la uma vez mais.
[1] O
mural decorado com ícones que separa o Santuário da nave nas igrejas Ortodoxas.
[2] Münsterische Beiträge zur Theologie,
vol. 18, 1931.
[3]
Cf. Santo Irineu, Adv. Haer., I, I,
15-20.
[4]
Cf. Santo Irineu, Adv. Haer. III, 4,
1.
[5]
Clemente de Alexandria, Stromata, VI,
61.
[6]
São Basílio, Tratado sobre o Espírito
Santo, XXVII; PG 32, Col. 188A-193A.
[7] Ibid. Col. 188C-189A.
[8]
São Basílio (Carta 51, ibid. Col.
392C) chama omoousios “a grande
declaração de piedade que torna manifesta a doutrina (dogma) da salvação.” (Cf. Carta 125, ibid., Col. 548B).
[9] Homilia sobre o jejum, PG 31, Col. 185C.
[10] Carta 251, PG 32, Col. 933B.
[11] Carta 155, ibid., Col. 612C.
[12]
Ptolomeu, Carta a Flora, VII, 9.
[13]
O exemplo de omoousios é típico nesse
sentido. A economia de São Basílio a respeito da Divindade do Espírito Santo é
explicada não apenas como um cuidado pedagógico, como também por essa concepção
da tradição secreta.
[14]
São Basílio, Tratado sobre o Espírito
Santo, ibid., Col. 189C- 192A.
[15]
Mateus 7: 6.
[16]
Mateus 10: 26; Lucas 12: 2.
[17]
Mateus 10: 27; Lucas 12: 3.
[18]
São Basílio, Ibid. Col., 192ª-193A.
[19] Ibid. Col. 188AB.
[20] Ibid. Col. 188 A; 192C-193A.
[21]
Colossenses 1: 26.
[22]
São Basílio, Ibid. (X), Col. 113B.
[23]
São João Cassiano, De incarn., VI, 3:
PL 50, Col. 149A. a expressão “breviatum
verbum” é uma alusão a Romanos 9: 27, que por sua vez cita Isaías 10: 22.
Cf. Santo Agostinho, De Symbolo, I:
PL 40, Col. 628; São Cirilo de Jerusalém, Catech.
V, 12: PG33, Col. 521AB.
[24] Aos Filadelfos, VIII, 2, e IX, I.
[25]
João 21: 25.
[26] Aos Efésios, XV, 2.
[27] Op. cit., col. 189BC.
[28]
Efésios 3: 18.
[29]
Cf. Santo Inácio de Antioquia, Aos
Magnésios, VIII, 2.
[30] I
Coríntios 12: 3.
[31]
Cf. II Coríntios 4: 6. “Pois o Deus que disse: ‘Do meio das trevas brilhe a
luz!’, foi ele mesmo que reluziu em nossos corações para fazer brilhar o
conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo”.
[32]
Colossenses 2: 8.
[33]
João 8: 32.
[34]
II Coríntios 3: 17. Cf. São Basílio, op.
cit. XX, col. 164C-165C.
[35]
João 4: 23, 24.
[36]
Citado por G. Florovsky, em Caminhos da
Teologia Russa.
[37]
Atos, 15: 28.
[38]
Salmo 12: 6.
[39] I
João 5: 7. Cf. Comma Johanneum.
[40]
Orígenes, nas suas homilias sobre a Epístola aos Hebreus, depois de expressar
sua opinião sobre a fonte dessa Epístola, cujo ensinamento é Paulino, mas cujo
estilo e composição denotam outro autor que não Paulo, acrescenta: “E se por
acaso alguma Igreja considerar essa Epístola como tendo sido escrita por São
Paulo, que seja louvada por isso. Porque não foi por acaso que os antigos no-la
transmitiram sob o nome de Paulo. Mas quem escreveu essa Epístola? Somente Deus sabe a verdade”. (Fragmento
citado por Eusébio, H.E. 1 VI, c. 25: PG. 20, col. 584C.
[41] I
Timóteo 4: 7.
[42]
Também em nossos dias, a literatura do Sinaxarion e do Leimonarion oferece
exemplos similares, para não mencionar as monstruosidades litúrgicas que, para
algumas pessoas, recebem um caráter sagrado e “tradicional”.
[43] I
Tessalonicenses 5: 21.
[44]
Comentário a Mateus, série XXVIII: PG. 13, col. 1637.
[45]
São Basílio, op. cit. col. 188.
[46]
Seria falso negar o caráter tradicional da obra de “Dionísio”, baseando-se na
sua origem não apostólica, bem como atribuí-la à conversão de São Paulo, sob o
pretexto de que esses escritos foram recebidos pela Igreja sob o título de São
Dionísio o Areopagita. Ambas as atitudes revelam a mesma falta de verdadeira
consciência sobre o significado da Tradição.
[47]
Antes de Nicéia, o termo omoousious é
encontrado numa fragmento do comentário de Orígenes à Epístola aos Hebreus,
citado por São Panfílio o Mártir (PG. 14, col. 1308), na Apologia a Orígenes pelo mesmo Panfílio, traduzido por Rufino (PG.
17, col. 580-581), e no diálogo anônimo Na
verdadeira fé em Deus, falsamente atribuído a Orígenes. De acordo com Santo
Atanásio, São Dionísio de Alexandria foi acusado, cerca de 259-261, de não
reconhecer que Cristo é consubstancial a Deus; diz-se que Dionísio respondeu
que ele evitava a palavra omoousious,
que não está nas Escrituras, mas reconhecia o sentido ortodoxo da expressão
(Santo Atanásio, De sententia Dionysii,
No. 18: PG 25, col. 505). O tratado Sobre
a Fé, onde encontramos a expressão omoousious
no sentido Niceno (PG. 10, col. 1128) não pertence a São Gregório de
Neo-Cesareia; trata-se de um texto pós-Nicênico, provavelmente do final do
século IV. Assim, exemplos do termo omoousious
dentre os textos ortodoxos anteriores a Nicéia são, em sua maior parte,
incertos; não se pode confiar na tradução de Rufino. De qualquer modo, o uso
desse termo é muito restrito, e possui um caráter acidental.
[48] Discurso XXXI, c.26: PG. 36, col.101C.
[49] I
Coríntios 13: 12.
[50]
Colossenses 1: 10.
[51]
Efésios 4: 13.
[52]
Op. cit., c. 27: PG. 36, col. 164B. Sabemos que Gregório de Nazianze reprovava
seu amigo São Basílio pelo excesso de prudência no q eu dizia respeito à
proclamação da Divindade do Espírito Santo, uma verdade que possuía o caráter
de uma evidência tradicional para os membros da Igreja, mas que exigia uma economia
moderada devido aos “pneumatômacos” (movimento que negava a divindade do
Espírito Santo), e necessária para manter a unidade da fé.
[53] I
Coríntios 1: 20.
[54]
Colossenses 2: 8.
[55]
Efésios 4: 13.
[56]
“...Caminhando, por assim dizer, pela via real, seguindo os ensinamentos
divinamente inspirados de nossos Santos Padres, bem como a Tradição da Igreja
católica (porque sabemos que ela pertence ao Espírito Santo que habita na
Igreja), definimos com todo rigor e justiça...” (H. Denzinger, Enchiridion Symbolorum, No. 302 (Ed. 26,
pp. 146-147)
[57]
Colossenses 2: 9.
[58]
Ver Nota 23.
[59] Epistolarum lib. I, Ep. XXV: PL. 77,
col. 613.
[60]
Efésios 1: 23.
[61]
“Prescrevemos a adoração do santo ícone de nosso Senhor Jesus Cristo concedendo
a ele a mesma honra que aos livros dos Santos Evangelhos. Pois, assim como
pelas letras desses últimos alcançamos a salvação, pela ação das cores das
imagens, todos – instruídos e ignorantes – podem igualmente se beneficiar
naquilo que estiver ao seu alcance. Com efeito, assim como a palavra é expressa
pelas letras, a pintura expressa as mesmas coisas por meio das cores. Portanto,
se alguém não venerar o ícone Cristo Salvador, será também incapaz de
contemplar Sua Face quando de Seu segundo advento...” (Denzinger, No. 337, pp.
164-165 ed. 26). Se citamos aqui o terceiro cânone do Sínodo contra Fótio
(869-870), cujos atos foram rompidos pela Igreja (no Oriente e no Ocidente,
como demonstrou F. Dvornik em The Photiam
Schism, 1948), é porque ele fornece um ótimo exemplo da aproximação entre
as Santas Escrituras e a iconografia, unidas na mesma Tradição da Igreja. Cf. a
sequência do texto citado, sobre os ícones da Mãe de Deus, dos anjos e dos
santos (Denzinger, loc. cit.)
Deus lhe abençoe por este blog, padre! É uma verdadeira pérola e ajuda para todos os Ortodoxos brasileiros!
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