Tradução para o
francês do Hieromonge Simeão
Mosteiro São João Batista, Tolleshunt Knights, Essex
I
DA PRECE ORAL E VOCAL
Valor da prece oral
Que ninguém que deseje progredir no caminho da prece pense
irrefletidamente que a prece pronunciada pelos lábios e a voz e com a
participação do intelecto seja de pouco valor, e que não mereça nossa
consideração. Se os santos Padres falam da esterilidade da prece oral e vocal
quando essa não está unida à atenção, não devemos concluir daí que eles tenham
rejeitado ou desprezado essa prece enquanto tal. Não se trata disso: eles
insistem apenas em que ela seja dita com atenção. A prece oral e vocal dita com
atenção é o começo e a causa da oração mental; e ela é também uma prece mental.
Habituemo-nos, pois, para começar, a orar por meio dessa prece, e então
aprenderemos facilmente a orar também somente pelo espírito no silêncio de
nossa cela interior.
A santa Escritura a menciona
A prece oral e vocal é mencionada pela santa Escritura. O exemplo
dessa prece e do canto vocal nos foi dado pelo próprio Salvador e pelos
Apóstolos que os receberam Dele. O evangelista Mateus nos conta que “depois de
cantar o hino” ao final da Ceia mística, o Senhor e seis Apóstolos “partiram
para o monte das Oliveiras[1]”.
O Senhor orou de modo a ser ouvido por todos antes da ressurreição de Lázaro,
morto há quatro dias[2].
Quando estavam encerrados numa prisão, o apóstolo Paulo e seu
companheiro de viagem Silas oravam e cantavam louvores a Deus; os outros
prisioneiros podiam ouvi-los. Subitamente, cobrindo o som de sua salmodia,
“houve um grande tremor de terra, de modo que as fundações da prisão foram
sacudidas; no mesmo instante, todas as portas se abriram e as cadeias de todos
os prisioneiros se romperam[3]”.
A prece de santa Ana, mãe do profeta Samuel, muitas vezes apresentada pelos
santos Padres como um modelo de oração, não era apenas mental. Diz a Escritura:
“Ela falava em seu coração: seus lábios se moviam, mas não se podia escutar sua
voz[4]”.
Essa oração não era vocal, mas, ao mesmo tempo em que era uma prece do coração,
era também vocal.
O santo apóstolo Paulo chama a prece vocal de “fruto dos lábios”. Ele
ordena “oferecer sem cessar a Deus um sacrifício de louvor, ou seja, o fruto
dos lábios que confessam seu Nome[5]”;
ele ordena “recitar salmos, hinos e cânticos espirituais”, e, unindo a prece
vocal e oral ao canto, “cantar e celebrar em nossos corações os louvores ao
Senhor[6]”.
Ele reprova a falta de atenção durante a prece oral e vocal. “Se a trombeta
produzir um som confuso (um som desconhecido, incompreensível), quem se
preparará para o combate? Também vós, se com a língua não deres uma palavra
distinta (vale dizer, inteligível) como se poderá saber o que dizeis? Pois estareis falando ao vento[7]”.
Embora, propriamente falando, o Apóstolo tenha dito essas palavras visando
aqueles que oravam e proclamavam as inspirações do Espírito Santo em línguas
estrangeiras, os santos Padres as aplicam com razão também àqueles que oram sem
atenção. Quem reza desse modo e, por conseguinte, não compreende as palavras
que pronuncia, não se torna também um estrangeiro para si mesmo?
A atenção é essencial
Baseado nesse ensinamento, são Nilo de Sora diz que aquele que ora com
os lábios e a voz, mas sem atenção, faz com que sua prece suba pelos ares, mas
não para Deus. “É paradoxal pretender que Deus escute o q eu você próprio não
está ouvindo”, diz são Dimitri de Rostiv, emprestando essas palavras do santo
bispo e mártir Cipriano de Cartago[8].
É exatamente o que acontece com aqueles que rezam oral e vocalmente,
mas sem atenção: eles não escutam a si próprios, se deixam levar por
distrações, seus pensamentos vagueiam longe, perdendo-se em preocupações tão
distantes da prece que às vezes acontece que se detenham bruscamente, sem se
lembrar do que acabaram de ler; ou então, ao invés de pronunciar as palavras da
oração que estão lendo, eles começam a dizer outras orações, embora o livro
esteja aberto debaixo de seus olhos. Como poderiam os santos Padres não
reprovar semelhante prece dita sem atenção, mutilada e destruída pelas
distrações!
Testemunho dos Padres
“A atenção, diz são Simeão o Novo Teólogo, deve estar tão
estreitamente ligada à oração quanto o corpo à alma: esses últimos não podem
ser separados, nem existir um sem o outro. A atenção deve ser como uma
sentinela na vigia para surpreender a aproximação do inimigo. Ela deve ser a
primeira a lutar contra o pecado, a se opor aos maus pensamentos que se
aproximam do coração. Depois, seguindo-se à atenção, intervém a prece para
extirpar e instantaneamente destruir todos os maus pensamentos contra os quais
a atenção dera o primeiro combate, pois esta, sozinha, não é capaz de os
dominar. A vida e a morte da alma dependem dessa batalha sustentada
conjuntamente pela atenção e a prece. Se, por meio da atenção, protegermos a
pureza de nossa prece, progrediremos. Se, ao contrário, não tivermos o cuidado
de guardá-la pura e a deixarmos sem supervisão, os maus pensamentos a mancharão,
nós nos tornaremos homens relaxados e não poderemos fazer progressos”.
A atenção deve absolutamente acompanhar a prece oral e vocal, como, de
resto, toda forma de prece. Quando ela está presente, os frutos da prece são
inumeráveis. O asceta deve começar pela prece oral. É ela que a santa Igreja
ensina em primeiro lugar às suas crianças. “A raiz da vida monástica é a
salmodia”, disse santo Isaac o Sírio[9].
Ensina são Pedro Damasceno: “A Igreja adotou, com um objetivo louvável e
agradável a Deus, cantos e hinos diversos em razão da fraqueza de nosso
intelecto, a fim de que nós, que não temos conhecimento, sejamos atraídos pela
doçura da salmodia e que cantemos, por assim dizer apesar de nós, louvores a
Deus. Os que podem compreender e penetrar o sentido das palavras pronunciadas, entram
num estado de humilde enternecimento do coração. Assim, como que por uma
escada, nós nos elevamos até os pensamentos santos. Na medida em que
progredimos no hábito desses pensamentos divinos, um desejo divino surge em nós
e nos faz descobrir o que significa a adoração do Pai em Espírito e Verdade[10],
segundo a palavra do Senhor[11]”.
Os frutos da prece oral
A boca e a língua que se exercitam frequentemente na prece e na
leitura da Palavra de Deus se santificam; elas já não podem dizer palavras
ociosas ou rir, e se tornam incapazes de pronunciar futilidades, obscenidades
ou conversas podres. Deseja você progredir na oração mental e na prece do
coração? Aprenda, para começar, a estar atento durante a prece oral e vocal: a
prece oral dita com atenção se transformará por si só em prece mental e do
coração. Deseja aprender a repelir rapidamente e com força os pensamentos
semeados em nós pelo Inimigo comum da humanidade? Repila-os, quando estiver só
em sua cela, por meio de uma prece oral atenta, pronunciando as palavras
pausadamente, com um humilde enternecimento do coração. O espaço tintila com
uma prece oral e vocal atenta, e os príncipes do ar são tomados por um tremor,
seus braços se paralisam, suas redes apodrecem e se desmancham. O ar tintila
com a prece oral e vocal atenta, e os santos Anjos se aproximam daqueles que
oram e cantam; eles se juntam ao seu coro e participam de seus cânticos
espirituais, tal como foram considerados dignos de ver certos santos, dentre
eles nosso contemporâneo, o bem-aventurado Starets Serafim de Sarov.
A prática dos Padres
Numerosos Padres ilustres praticaram durante toda sua vida a prece
oral e vocal, e isso não os impediu de serem cumulados com os dons do Espírito.
A causa de seu progresso estava em que neles o intelecto, o coração, a alma e
todo o corpo estavam unidos à voz e aos lábios; eles pronunciavam a prece com
toda sua alma, toda sua força, todo seu ser, em resumo, com sua pessoa inteira.
É assim que são Simeão da Montanha Admirável recitava o Saltério completo
durante a noite[12].
São Isaac o Sírio menciona uma bem-aventurado ancião que tinha como ocupação a
leitura orante dos salmos; a ele foi concedido seguir a leitura por três ou
quatro salmos, depois do que a consolação divina o tomava com tamanha força que
ele permanecia dias inteiros em estado de bem-aventurado êxtase, sem
consciência do tempo ou de si mesmo[13].
Durante a leitura dos Acatistos, são Sérgio de Radonege foi visitado
pela Mãe de Deus, que estava acompanhada dos apóstolos Pedro e João[14].
Conta-se a respeito de santo Hilário de Souzdal que, quando ele lia o Acatisto
na igreja, as palavras saíam de sua boca como se fossem de fogo, com uma força
e eficácia inexplicável sobre os auditores[15].
A prece oral dos santos era vivificada pela atenção e pela graça divina que
restabelecia a unidade das potências do homem divididas pelo pecado; é o que
explica que ela derramasse semelhante força sobrenatural, produzindo tão
prodigiosa impressão sobre os ouvintes. Os santos celebravam a Deus com todo seu
coração[16],
eles cantavam e confessavam a Deus com uma firmeza inquebrantável[17],
ou seja, sem distrações; eles cantavam a Deus com sabedoria.
A salmodia
Devemos notar que os santos monges dos primeiros séculos e todos os
que desejavam progredir na prece não se preocupavam em absoluto, ou se
preocupavam pouco, com o canto propriamente dito. Pelo termo de “salmodia”,
conforme se encontra em suas Vidas e
em seus escritos, devemos entender uma leitura extremamente lenta dos salmos e
de outras orações. Esse tipo de leitura é indispensável se quisermos manter uma
atenção vigilante e evitar as distrações. Por causa de sua lentidão e de seu
parentesco com o canto, essa leitura foi denominada “salmodia”. Ela era feita
de cor; os monges daqueles tempos tinham por regra memorizar o Saltério. A
recitação de cor do Saltério contribui em muito para fixar a atenção.
Semelhante leitura – a bem dizer, não se trata de uma leitura, pois não é feita
por meio de um livro, sendo esse o sentido próprio da salmodia – pode ser executada
numa cela escura, com os olhos fechados, o que protege das distrações, enquanto
que uma cela iluminada – indispensável para a leitura de um livro, ou
simplesmente para ver – dissipa o intelecto ou o desvia do coração para o
exterior. “Eles cantam, diz são Simeão o Novo Teólogo, ou seja, seus lábios
oram[18]”.
“Os que não cantam, diz Gregório o Sinaíta, também fazem bem, caso já tenham
progredido; eles não precisam, com efeito, recitar os salmos, mas necessitam do
silêncio e da prece incessante[19]”.
Leitura e prece
Falando propriamente, os Padres chamavam de “leitura” a leitura da
Santa Escritura e dos escritos dos santos Padres, e de “prece”, antes de tudo,
a Prece de Jesus, assim como a Prece do Publicano e outras orações extremamente
curtas. Que essas preces substituam com vantagens a salmodia é incompreensível
para os iniciantes e não pode ser explicado de maneira satisfatória, pois isso
ultrapassa a sabedoria psíquica e só se explica por uma experiência
bem-aventurada.
Irmãos, estejamos atentos durante as preces orais e vocais que
pronunciamos durante os serviços da igreja e na solidão de nossas celas. Não
deixemos que nossos esforços e nossa vida no mosteiro se tornem estéreis por
causa de nossa falta de atenção e de nossa negligência na obra de Deus. A
negligência na prece é fatal! Diz a Escritura: “Maldito seja aquele que realiza
a obra de Deus com negligência[20]”.
O resultado dessa maldição é evidente: uma esterilidade espiritual total e a
ausência de todo progresso, malgrado os numerosos anos passados na vida
monástica. Coloquemos na base de nossa ascese de oração – é ela o principal e
mais importante dentre todos os trabalhos monásticos, e aquele por cuja causa
todos os demais existem – a prece atenta, oral e vocal. Em resposta a essa
prece, o Senhor misericordioso dará, no devido tempo, ao asceta perseverante,
paciente e humilde, a prece muda do intelecto e do coração, pela graça. Amém.
II
DA MEDITAÇÃO E DA LEMBRANÇA DE DEUS
Pela
expressão “meditação”, ou “lembrança de Deus”, os santos Padres entendiam
qualquer oração curta ou mesmo qualquer pensamento espiritual que eles
“ruminavam”, e que eles se esforçavam por guardar em seu espírito e em sua
memória, à exclusão de todo outro pensamento.
Voltar seu pensamento para Deus
Podemos substituir todos os demais pensamentos por um único e breve
pensamento espiritual sobre Deus? Sim, isso é possível. O santo apóstolo Paulo
disse: “Pois dentre vós ei não quis saber de outra coisa senão de Jesus Cristo,
e Jesus Cristo crucificado[21]”.
Quando um pensamento vão, terrestre, ocupa um homem continuamente, ele
empobrece sua inteligência e o impede de adquirir conhecimentos úteis e
necessários; ao contrário, quando um homem torna seu um pensamento relativo a
Deus, esse lhe comunica um conhecimento espiritual. Quem se lembra
constantemente de Cristo, recebe-O em si mesmo; os mistérios divinos se revelam
a ele, esses mistérios desconhecidos aos homens carnais e psíquicos,
desconhecidos dos sábios desse mundo e inacessíveis a eles; pois “Nele (em
Cristo) estão ocultos os tesouros da sabedoria e da ciência[22]”,
e quem entra na posse desses tesouros recebe em si ao Senhor Jesus Cristo.
Cristo estabeleceu esse mandamento
A meditação, ou a lembrança de Deus, foi instituída pelo próprio Deus.
Ela foi prescrita pelo Verbo encarnado e o Espírito Santo a confirmou pela voz
dos mensageiros do Verbo (os apóstolos). “Vigiem e orem todo o tempo[23]”,
ordenou outrora o Senhor aos seus discípulos que estavam presentes. Ele ordena
também a nós que nos mantenhamos agora diante Dele e que Lhe supliquemos que
nos torne dignos de cumprir Sua vontade, e que nos tornemos Seus discípulos –
que sejamos cristãos não apenas de nome, mas também no nosso modo de vida.
Tendo pronunciado as palavras acima, o Senhor assinalou as calamidades
morais e materiais que envolveriam seus discípulos durante sua peregrinação
terrestre: os sofrimentos e as angústias que precedem, acompanham e se seguem à
morte de cada um de nós, as tentações e atribulações que flagelarão o mundo
antes do advento do Anticristo e durante seu reino, enfim a convulsão e a
transformação do universo aquando do glorioso e temível segundo Advento de
Cristo. “Vigiai portanto e orai todo o tempo, a fim de que tenhais a força para
escapar de todas essas coisas que virão, e para que vos apresenteis de pé
diante do Filho do homem[24]”,
na alegria da salvação – “apresentar-se de pé” em semelhante alegria, tanto
depois do julgamento particular de acontecerá para cada homem em seguida à
separação da alma e do corpo, como no Julgamento final, quando os eleitos serão
colocados à direita do Juiz e os danados à sua esquerda[25].
Também os apóstolos o prescreveram
“Sede sóbrios e sábios para vos dedicar à prece”, disse o santo
apóstolo Pedro, repetindo aos fiéis o mandamento do Senhor. “Sede sóbrios,
vigiai. Vosso adversário, o diabo, ronda como um leão que ruge, buscando
devorar-vos. Resisti a ele com um a firmeza da fé[26]”.
Retomando e confirmando esse mandamento santo e salutar, o apóstolo Paulo diz:
“Orai sem cessar[27].
Não vos inquieteis por nada; em todas as coisas dai a conhecer vossas
necessidades a Deus por meio de preces e súplicas, com ações de graças[28].
Perseverai na prece; mantende-vos vigilantes nas ações de graças[29].
Eu desejo que os homens orem em todo lugar, elevando as mãos puras, sem cólera
nem maus pensamentos[30].
Pois aquele que se liga ao Senhor [por uma prece incessante] se torna um com
Ele em espírito[31]”.
Quando um homem se liga ao Senhor e se une a Ele por meio de uma prece
incessante, o Senhor o liberta da alienação e da servidão ao pecado e ao diabo:
“Não fará Deus justiça aos seus eleitos, que clamam por Ele dia e noite,
tardará Ele em atendê-los? Eu vos digo, Ele lhes fará justiça prontamente[32]”.
Orar sem cessar
O critério da perfeição monástica é a prece incessante. “Aquele que
atingiu o cume de todas as virtudes, diz santo Isaac o Sírio, se torna morada
do Espírito Santo[33]”.
O monge que deseja alcançar a perfeição cristã deve se dedicar e se aplicar à
prece incessante. Isso constitui para todo monge uma obrigação imposta pelo
mandamento divino e pelos votos monásticos[34].
É evidente que os santos Apóstolos, que haviam recebido pessoalmente
do Senhor o mandamento de orar sem cessar, e que o haviam transmitido aos
fiéis, praticavam eles próprios a prece incessante. Antes da descida do
Espírito Santo, eles permaneciam numa casa, perseverando na prece e na oração[35].
Por “prece” entendemos aqui as preces vocais que eles diziam juntos, e por
“oração” a constante orientação de seus espíritos para a prece, a prece
ininterrupta. Quando o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos e fez deles
templos de Deus, Ele os tornou também templos da prece ininterrupta, como foi
dito na Escritura: “Minha casa será chamada de casa de oração[36]”.
“Quando o Espírito estabelece sua morada num homem, este já não interrompe sua
prece, pois o próprio Espírito ora nele[37]”.
Os Apóstolos não tinham senão duas atividades espirituais: a prece e a
proclamação da Palavra de Deus. Eles passavam da prece ao anúncio da Palavra de
Deus aos homens, e depois dessa proclamação eles retornavam à prece. Eles se
encontravam numa incessante conversação espiritual: tanto eles falavam a Deus
em prece, tanto falavam da parte de Deus aos homens. Numa como noutra
conversação, era o mesmo Espírito Santo que operava[38].
Qual ensinamento encontramos no exemplo dado pelos santos Apóstolos? É
esse: assim que cumprimos nossa tarefa por meio de uma diligente obediência à
Palavra divina, devemos concentrar toda nossa atividade sobre a prece
incessante; com efeito, essa conduz o cristão a um estado que favorece a vinda
do Espírito Santo. O Senhor havia encarregado os Apóstolos de diversos
ministérios, mas quando Ele os tornou capazes de receber o Espírito Santo, lhes
ordenou que permanecessem na cidade de Jerusalém – na cidade da paz e da
quietude – afastados de qualquer outro ministério: “Permanecei na cidade, ele
disse, até que sejais revestidos do poder do alto”.
Testemunhos dos antigos monges: Antônio
Nos escritos monásticos, vemos que a lembrança de Deus, ou meditação,
era uma prática corrente entre os monges da Igreja cristã primitiva. Santo
Antônio o Grande recomenda a lembrança incessante do Nome de nosso Senhor Jesus
Cristo: “Não abandonem jamais ao esquecimento, dizia ele, o Nome de nosso
Senhor Jesus Cristo, mas fixem-no no espírito, guardem-no no coração e
glorifiquem-no com os lábios, dizendo: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim.
E Também: Senhor Jesus Cristo, ajuda-me. E ainda: A Ti ei glorifico, meu Senhor
Jesus Cristo[39]”.
João Clímaco
Não eram apenas os hesiquiasta e os anacoretas que praticavam a prece
incessante, mas também os monges cenobitas. Eis o que são João Clímaco diz dos
monges de um mosteiro cenobita que ele visitou em Alexandria: “Mesmo à mesa,
eles não cessavam sua atividade espiritual, e esses bem-aventurados haviam
estabelecido o costume de chamar a atenção uns dos outros, por meio de
determinados gestos e sinais secretos, para lembrá-los da prece interior. E
eles não faziam isso apenas à mesa, mas toda vez que se encontravam e se
reuniam[40]”.
Isaac de Sceta
Santo Isaac, hesiquiasta que viveu em Sceta, no Egito, confiou a são
João Cassiano o Romano que para a prece incessante ele se servia do versículo 2
do Salmo 69: “Ó Deus, apressa-te em me socorrer; Senhor, vem depressa em meu
auxílio[41]”.
Doroteu
São Doroteu, monge do mosteiro cenobita da abadia de Seridos na
Palestina, ensinou a seu discípulo, são Dositeu, a se exercitar sem cessar na
“lembrança de Deus”, e lhe transmitiu o costume de dizer continuamente: “Senhor
Jesus Cristo, tem piedade de mim”, e “Filho de Deus, vem em meu socorro[42]”.
São Dositeu orava utilizando-se de uma e outra forma de prece. Elas lhe foram
ensinadas sob essa forma em razão da falta de treinamento de seu espírito, a
fim de que ele não fosse relapso e derrotado pela monotonia da prece. Quando o
bem-aventurado Dositeu caiu gravemente doente e se aproximava do fim, seu
mestre lhe lembrava a prece incessante: “Dositeu, atenção com a prece; vigie
para não perdê-la”. Quando a enfermidade de Dositeu se agravou ainda mais,
Doroteu lhe falava ainda: “Então, Dositeu, como vai a prece? Você a mantém
ainda?”.
Por aí podemos ver em quão alta estima os santos monges de antanho
tinham a meditação. São Joânico o Grande repetia sem cessar em seu espírito:
“Minha esperança é o Pai; meu refúgio, o Filho; minha proteção, o Espírito
Santo. Trindade santa, glória a Ti[43]”.
Seu discípulo, são Eustrate, adquiriu a prece incessante: “Ele dizia sempre
para si mesmo: ‘Senhor, tem piedade’”, escreveu o autor de sua Vida, que o chamava de “divino”.
Um certo padre do deserto de Raithou estava constantemente sentado em
sua cela, ocupado em trançar cordas; ele dizia, suspirando e balançando a
cabeça: “O que acontecerá?”. Depois de pronunciar essas palavras, ele esperava
um momento em silêncio e depois dizia novamente: “O que acontecerá?”. E assim
ele passou todos os dias de sua vida nessa meditação, lamentando-se sem cessar
sobre o que aconteceria quando ele deixasse seu corpo[44].
Isaac o Sírio
Santo Isaac o Sírio menciona um certo padre que durante quarenta anos
orou utilizando uma única fórmula de prece: “Como homem, eu pequei; como Deus,
perdoa-me”. Outros padres ouviam-no meditando esse versículo, oprimido pela
tristeza, pois ele chorava sem cessar. Para ele, essa oração substituía todas
as outras, dia e noite[45].
A Prece de Jesus
A maioria dos monges sempre utilizou em sua meditação a Prece de
Jesus: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”.
Eventualmente, havendo necessidade, eles a dividiam em duas para os iniciantes,
que deveriam dizer durante algumas horas: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de
mim, pecador”; depois, durante outro lapso de tempo: “Filho de Deus, tem
piedade de mim, pecador”. Não se deve, porém, mudar constantemente a fórmula da
prece, pois, como lembra são Gregório de Nazianze, as árvores que são
transplantadas muitas vezes não criam raízes[46].
A escolha da Prece de Jesus como fórmula de meditação se justifica
plenamente, pois o Nome do Senhor Jesus Cristo encerra uma força divina
particular, e também porque, quando nos dedicamos à Prece de Jesus, a lembrança
da morte, das torturas infligidas pelos espíritos dos ares, do Juízo final
pronunciado por Deus e dos tormentos eternos, começa a vir por si mesma. Essa
lembrança chega de uma maneira tão viva que mergulha o asceta em lágrimas
abundantes e inexauríveis, em amargas lamentações sobre si mesmo como um
cadáver enterrado, que “já cheira mal” e que espera ser reconduzido à vida pelo
onipotente Verbo de Deus[47].
Os frutos da prece incessante
O benefício que retiramos da meditação ou da lembrança de Deus é
imenso: não se pode traduzi-lo em palavras, ele escapa à compreensão humana.
Aqueles que o sentiram não são capazes de explicá-lo completamente. A prece
incessante, enquanto mandamento e dom de Deus, não se deixa explicar, nem pela
inteligência, nem pela palavra.
A prece curta recolhe o espírito que, quando não está ligado à
meditação, não pode se impedir de planar e de vagabundear por toda parte[48].
O asceta pode conservar a prece curta em todos os lugares, em todo
tempo, no decurso de toda ocupação, sobretudo se essa for corporal. Mesmo
quando assistimos aos ofícios litúrgicos, é útil nos entregarmos a ela, não
apenas quando a leitura não é suficientemente audível, mas também quando o é.
Ela ajuda a estar atento à leitura, particularmente se estiver enraizada na
alma e se tiver se tornado, por assim dizer, natural ao homem.
A meditação em geral, e a Prece de Jesus em particular, são uma arma
muito eficaz contra os pensamentos pecaminosos. Números escritores santos
repetiram essas palavras de são João Clímaco: “Flagela teus inimigos com o Nome
de Jesus, pois não existe arma mais potente no céu e sobre a terra[49]”.
Graças à prece incessante, o asceta alcança a pobreza de espírito:
habituando-se a pedir continuamente a ajuda de Deus, ele deixa aos poucos de
esperar de si mesmo; se faz algum progresso, não vê nisso seu próprio sucesso,
mas um efeito da misericórdia divina, que ele implora junto a Deus sem
descontinuidade.
A prece incessante contribui para reforçar a fé; com efeito, aquele
que ora sem cessar começa pouco a pouco a pressentir a presença de Deus. Essa
percepção pode crescer paulatinamente e se consolidar até o ponto em que o olho
do intelecto vê a Deus em Sua Providência, mais distintamente do que o olho
sensível vê os objetos materiais desse mundo; por seu lado, o coração sente a
presença de Deus. Que viu a Deus dessa maneira, e sentiu Sua presença, não pode
deixar de crer Nele com uma fé viva que se traduz em ações.
A prece incessante destrói nossa astuciosa habilidade e a substitui
pela esperança em Deus. Ela nos introduz numa santa simplicidade, desviando
nosso espírito de todas as espécies de pensamentos, e impedindo-o de elaborar
projetos para nós mesmos e para os outros, pois a prece mantém o espírito na
pobreza e na humildade das odeias que constituem sua meditação.
Aquele que ora sem cessar se liberta progressivamente de sua
disposição habitual aos sonhos, às distrações, às preocupações fúteis e aos
cuidados de todo tipo; ele se liberta disso na mesma medida em que a santa e
humilde meditação penetra mais profundamente em sua alma e aí se enraíza mais
fortemente. Por fim, ele pode chegar ao estado de infância ordenado pelo
Evangelho e se tornar um “louco em Cristo”, ou seja, perder a pseudo sabedoria
desse mundo e receber de Deus o conhecimento espiritual.
A prece incessante suprime a curiosidade, a desconfiança, as
suspeitas. Resulta daí que todos os homens começam a parecer bons; isso dá ao
coração uma disposição confiante em relação aos homens, donde nasce o amor por
eles.
Quem ora sem cessar permanece constantemente no Senhor, e conhece o
Senhor como Senhor. Ele adquire o temor do Senhor; por meio desse temor, ele
progride na pureza, e, através da pureza, chega ao amor divino. E o amor divino
preenche seu templo com os dons do Espírito.
O ensinamento dos Padres: Isaías o Anacoreta
O santo abade Isaías o Anacoreta disse a respeito da meditação: “O
homem rico e prudente oculta suas riquezas no interior de sua casa: um tesouro
escondido no exterior se arrisca a ser pilhado por ladrões e a se desintegrar
pelas forças da terra; da mesma forma, o monge humilde e virtuoso oculta suas
virtudes, como o rico suas riquezas, e não realiza os desejos da natureza
decaída. Ele se repreende a toda hora e se exercita na meditação secreta,
conforme está dito na Escritura: “Meu coração se tornou ardente dentro de mim,
e em minha meditação um fogo me abrasou[50]”.
De que fogo a Escritura está falando? Trata-se de Deus, pois “nosso Deus é um
fogo devorador[51]”.
É pelo fogo que a cera se liquefaz, e por ele são consumidas as impurezas ruins
da argila; da mesma forma, é pela meditação secreta que são consumidos os maus
pensamentos e que as paixões são afastadas da alma; o intelecto é iluminado, o
pensamento se aclara e se refina, a alegria inunda o coração. A meditação
secreta fere os demônios e expulsa os maus pensamentos; graças a ela, o homem
interior volta à vida. Deus dá firmeza àquele que se arma com a meditação
secreta, os Anjos lhe dão sua força, os homens o louvam. A meditação secreta e
a leitura fazem da alma uma morada trancada e protegida de todos os lados, uma
coluna inquebrantável, um porto calmo e abrigado. Ela salva a alma,
protegendo-a da indecisão. Os demônios se agitam e fervem quando um monge se
arma com a meditação secreta sob a forma da Prece de Jesus: ‘Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador’, e quando ele busca na
leitura feita num local retirado um estimulante para se exercitar na meditação.
A meditação secreta é um espelho para o intelecto, uma lâmpada para a consciência.
Ela consome a luxúria, adoça o furor, expulsa a cólera, desvanece a tristeza,
afasta a insolência, suprime a acídia. Ela ilumina o intelecto e expulsa a
preguiça. Graças a ela, produz-se um enternecimento do coração, e se estabelece
o temor a Deus: então, a meditação traz as lágrimas. Por meio dela, o monge
recebe uma humildade verdadeira, uma vigilância plena de ternura, uma prece sem
perturbações. A meditação secreta é um tesouro da prece: ela expulsa os
pensamentos, fere os demônios e purifica o corpo. Ela ensina a paciência e a
abstinência; a quem a pratica, ela permite conhecer a geena. Ela mantém o
intelecto ao abrigo dos devaneios e o faz refletir sobre a morte. Ela é plena
de boas obras, ornada com todas as virtudes, e estranha a toda má obra[52]”.
O ensinamento dos Padres: Isaac o Sírio
Santo Isaac o Sírio disse: “Aquele cuja meditação está sem cessar
orientada para Deus, afasta os demônios e arranca a semente de sua malícia. Revelações
alegram o coração de quem vigia sem cessar sua alma. Aquele que volta o olhar
de seu intelecto sobre si mesmo, nele vê a aurora do Espírito. Aquele que
repele com desgosto toda forma de vagabundagem mental (de distrações) vê o
Mestre na cela interior de seu coração [...]. Se você é puro, o céu estará
dentro de você, e você poderá ver em si mesmo os Anjos e sua luz, e com eles, e
neles, seu Mestre [...]. O tesouro do homem humilde está dentro dele, e é o
Senhor [...]. As paixões são repelidas e desenraizadas por uma incessante
meditação em Deus; ela é a espada que as extermina. Quem deseja ver a Deus
dentro de si mesmo, deve se esforçar por purificar seu coração lembrando-se
sempre e sempre de Deus; dessa maneira, com a claridade dos olhos de seu
intelecto, ele verá o Senhor a toda hora. O que acontece com o peixe fora
d’água acontece ao intelecto quando esse abandona a lembrança de Deus e erra
pelas lembranças do mundo [...]. Temível aos demônios e agradável a Deus e aos
Seus Anjos, é o homem que dia a dia, e com zelo ardente, busca a Deus em seu
coração e desenraiza as sugestões do inimigo[53]”.
“Sem a prece incessante, não é possível se aproximar de Deus[54]”.
O ensinamento dos Padres: João Cassiano
São João Cassiano o Romano escreveu: “A oração praticada por meio
desse pequeno versículo[55]
deve ser constante, a fim de que as tentações não nos derrubem, e que na
prosperidade estejamos protegidos da presunção. Que a meditação desse curto
versículo, repito, gire em seu peito sem cessar. Não deixe de repeti-lo,
qualquer que seja a atividade ou a obediência com que você se ocupe, ou ainda
se estiver em viagem. Não a interrompa quando for se deitar, quando se
alimentar ou quando estiver satisfazendo suas necessidades corporais. Esse
exercício do coração se tornará para você uma regra salutar; não apenas ele o
protegerá contra todos os ataques dos demônios, como ainda, depois de haver
purificado todas as paixões do corpo, ele lhe permitirá ter invisivelmente
visões celestiais e o conduzirá a uma prece mais elevada da qual é impossível
falar e da qual poucos têm um conhecimento fundamentado na experiência. Esse
pequeno versículo afastará de você o sono e, depois que você tiver assimilado
esse exercício que não se deixa explicar pela palavra, você se habituará a
praticá-lo mesmo dormindo. Quando você acordar, esse versículo será a primeira coisa
que virá ao seu espírito; acordado, ele precederá todo pensamento; ao se
levantar do leito, ele o manterá ocupado até que você comece suas genuflexões;
ele o acompanhará em seu trabalho ou ocupação; ele o seguirá todo o tempo.
Medite esse versículo segundo as prescrições do legislador (ou seja, Moisés, o
legislador dos judeus), quando você estiver sentado em casa ou quando estiver
na estrada, quando for se deitar e quando se levantar. Escreva-o nos batentes e
nas portas de sua boca; escreva-o sobre as paredes de sua casa e no santuário
interior do seu peito, de tal modo que, quando você se prosternar para a
oração, ele seja para você uma palavra pronta, e que, quando você se erguer
para fazer tudo o que é necessário à vida, ele seja para você uma prece fácil e
incessante[56]”.
O ensinamento dos Padres: João Crisóstomo
São João Crisóstomo disse: “Irmãos, eu lhes suplico, não permitam
jamais que se interrompa a realização dessa regra de oração, ou que ela seja
negligenciada [...]. Comendo ou bebendo, sentados ou trabalhando, quer
viajando, quer em outra qualquer atividade, o monge deve dizer sem cessar:
‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim’. Dessa maneira, o Nome
do Senhor Jesus, descendo às profundezas do coração, domará a serpente que
ocupa esses pastos, salvará a alma e a fará reviver. Permaneça sem cessar no
Nome do Senhor Jesus a fim de que seu coração absorva o Senhor e que o Senhor
absorva seu coração, e que os dois se tornem um[57]”.
O ensinamento dos Padres: Abade Filemon
Um irmão perguntou a santo Filemon: “Pai, o que significa a ‘meditação
secreta’?”. O ancião respondeu: “Vá, seja vigilante em seu coração e diga
sobriamente em pensamento, com temor e tremor: ‘Senhor Jesus Cristo, tem
piedade de mim’[58]”.
Por que a prece incessante ou a lembrança incessante de Deus são
chamadas de “meditação”? Porque os ascetas, sobre cuja atividade desceu o
orvalho da graça divina, encontraram na repetição de uma prece breve um
profundo e inesgotável sentido espiritual que atrai e aumenta sem cessar sua
atenção por causa de sua novidade espiritual. Assim, para eles, um verso curto
se tornou a fonte de uma vasta ciência, a “ciência das ciências”, e essa
repetição se tornou, no sentido próprio, uma instrução e uma meditação.
Unir vida e oração
Os ensinamentos dos santos Padres estavam de acordo com suas vidas. Não
apenas todos os seus atos e suas palavras, mas ainda todos os seus pensamentos
estavam consagrados a Deus. Daí provém essa abundância de dons do Espírito que
observamos neles. Nós, ao contrário, não tomamos cuidado com os nossos atos:
não agimos em conformidade com os mandamentos de Deus, mas seguimos
impensadamente o primeiro impulso dos sentidos, o primeiro pensamento que se
apresenta. Em nossas palavras, somos ainda mais negligentes do que nas ações.
Quanto aos pensamentos, não lhes prestamos a menor atenção: eles se dispersam
em todas as direções. Nós nos oferecemos por inteiro em sacrifício à vaidade.
Nosso intelecto se encontra numa disposição contrária à de um intelecto protegido
pela meditação[59].
Ele se assemelha a um quarto em que as portas estão plenamente abertas, sem
nenhuma supervisão e onde qualquer um que queira pode entrar e sair trazendo ou
levando o que bem entender.
Irmãos, ponhamos fim a essa maneira de viver desatente e estéril.
Imitemos as obras dos santos Padres, dentre outras a lembrança de Deus, que
eles conservavam sem cessar no espírito. Jovem, semeie em si com cuidado as
sementes das virtudes; habitue-se com paciência e perseverança a todos os
exercícios e esforços ascéticos agradáveis a Deus; habitue-se também à
lembrança de Deus e encerre seu intelecto na santa meditação. Se você perceber
que ele se volta com frequência para pensamentos diferentes e vãos, não ceda ao
desencorajamento. Persiga com constância sua ascese: “Esforce-se por elevar seu
pensamento, disse são João Clímaco, ou, mais exatamente, a encerrá-lo dentro
das palavras da oração. Se, por causa do seu estado de infância, ele escapar
(de seu aprisionamento nas palavras da prece), conduza-o de novo até lá. A
instabilidade (uma mobilidade perpétua) é própria do intelecto; mas Aquele que
a tudo estabeleceu pode lhe dar a estabilidade. Se você perseverar
incansavelmente nesse combate, Aquele que colocou limites ao mar do seu
intelecto virá também a você e lhe dirá durante a oração: ‘Até aqui virás, mas
não mais longe’[60]”.
Vista do exterior, a meditação parece ser uma atividade estranha, seca
e enjoativa; mas, na realidade, ela é uma obra muito frutífera, uma tradição
eclesial preciosa, uma instituição divina, um tesouro espiritual, a riqueza dos
Apóstolos e dos santos Padres que a receberam e a transmitiram por ordem do
Espírito Santo. Você não é capaz de imaginar as riquezas que herdará no momento
em que tiver adquirido o costume de se lembrar constantemente de Deus. “As
coisas que Deus preparou para os que o amam não subiram [ao intelecto e] ao
coração [do iniciante][61]”,
não apenas no mundo futuro como desde já nesse século[62],
no qual eles podem saborear previamente a felicidade do século por vir. “Prepare-se,
disse são João Clímaco, por meio de uma prece incessante realizada no secreto
da alma, para se manter orando, e você fará então rápidos progressos[63]”.
Quando a prece invade a tudo
A seu tempo, a meditação invadirá toda a sua existência; ela o tornará,
por assim dizer, embriagado, como se você pertencesse a esse mundo mas ao mesmo
tempo não pertencesse a ele, como um estrangeiro; pertencendo a ele pelo seu
corpo, mas não lhe pertencendo por seu espírito e seu coração. Quem está
embriagado pelo vinho sensível não se lembra de si mesmo, ele esquece suas
aflições, sua classe, sua nobreza e seus bens; quem está inebriado pela
meditação divina se torna reservado, insensível à concupiscência terrestre, à
glória terrestre, a todas as vantagens e privilégios terrestres. Seu pensamento
está constantemente junto a Cristo, que age por meio da meditação como por um
perfume secreto: “para uns [como] um odor de morte, que traz a morte, mas para
outros [como] um odor de vida, que dá a vida[64]”.
A meditação destrói no homem o interesse pelo mundo e pelas paixões, aviva nele
seu interesse por Deus, por tudo o que é espiritual e santo, pela
bem-aventurada eternidade. “O que existe para mim no céu?”, exclama aquele que
está embriagado pela meditação. “Terei eu desejado outra coisa, senão a Ti,
sobre a terra? Tudo o que quero é poder me unir a Ti sem cessar, por uma prece
sem distração. Alguns desejam a riqueza, outros a glória, mas, para mim, minha
alegria consiste em unir-me a Deus e em colocar somente Nele a esperança de minha
impassibilidade[65]”.
Como orar
De início, é preciso articular as palavras da meditação com os lábios
e a língua, pronunciando-as com a voz baixa, pausadamente, com toda a atenção
possível, encerrando, segundo o conselho de são João Clímaco mais acima, o
intelecto nas palavras da fórmula de meditação. Pouco a pouco, a prece oral se
transformará em prece do intelecto, e depois em prece do coração. Mas para que
se opere essa transformação, muitos anos serão necessários. Não devemos
procurar a prece prematuramente, mas que ela se realize por si mesma, ou, mais
exatamente, que Deus a conceda no tempo que só Ele conhece, segundo a idade
espiritual do asceta e as circunstâncias de sua vida. A ascese humilde
contenta-se em ser considerada digna de se lembrar de Deus, vendo isso como uma
grande benesse do Criador para com sua pobre e fraca criatura – o homem. Este
se considera indigno da graça; ele não procura descobrir de que modo ela opera
nele, pois sabe que, segundo o ensinamento dos santos Padres, tal curiosidade
se origina da vanglória, da qual provêm a ilusão e as quedas; ele sabe que essa
busca é em si mesma uma sedução, porque, apesar de todos os esforços mais
intensos, a recepção da graça depende unicamente de Deus[66].
Ele está ávido em descobrir em si seu estado de pecado, e de se tornar capaz de
chorar sobre si mesmo. Ele se abandona à vontade do Deus bondoso e
misericordioso que sabe a quem é útil conceder Sua graça, e a quem é mais
benéfico adiar sua chegada. Muitos, depois de receber a graça, caíram na negligência,
no orgulho e na autossuficiência; por causa de sua falta de razão, a graça
concedida a esses não serviu senão para agravar sua condenação. Bem-aventurada
a disposição do monge que, dedicando-se a qualquer ascese que seja, o faz com
completo desinteresse, tendo fome e sede apenas de cumprir com a vontade de
Deus, e que se entrega com toda confiança e simplicidade, rejeitando suas
próprias concepções, seu poder e sua vontade, à decisão de nosso Senhor e de
nosso Deus misericordioso, que deseja que todos os homens sejam salvos e
alcancem o conhecimento da verdade. A Ele a glória, pelos séculos, dos séculos.
Amém.
III
DA PRECE DO INTELECTO, DO CORAÇÃO E
DA ALMA
Àquele que se dedica com perseverança e piedade a uma prece atenta,
pronunciando as palavras em voz alta ou sussurrando-as, segundo as
circunstâncias, e encerrando seu intelecto nas palavras, àquele que, no momento
da prece, afasta todos os pensamentos e todas as imaginações, não apenas os que
são manifestamente maus e vãos, como também os que parecem ser bons, a esse
homem o Senhor misericordioso concederá, a seu tempo, a prece do intelecto, do
coração e da alma.
Saber esperar
Irmão, não será útil a você receber prematuramente a prece do coração
movida pela graça. Não será útil sentir prematuramente a doçura espiritual. Se
você as receber antes da hora, sem ter antes aprendido com quanta reverência e
prudência é preciso manter o dom da graça divina, você poderá utilizá-la para o
mal, para se prejudicar e até para perder sua alma[67].
Por outro lado, é impossível experimentar, por seus próprios esforços, a oração
do intelecto e do coração dadas pela graça, pois somente a Deus cabe unir o
intelecto ao coração e à alma, dissociados que foram pela queda. Mas, se
tentarmos imprudentemente descobrir por nossos próprios esforços aquilo que só
pode ser concedido por Deus, penaremos em vão. E seremos felizes se o prejuízo
se limitar a uma perda de tempo e penas!
A ilusão
Frequentemente, aqueles que perseguem com orgulho os estados próprios
à natureza renovada do homem sofrem um grande desastre da alma, que os santos
Padres chamam de “ilusão”. E é lógico: pois o ponto de partida de onde eles
começam sua atividade é falso em si. Como, então, não serão más as
consequências de um mau começo? Essas consequências, chamadas de ilusão,
possuem diversos aspectos e graus. A ilusão costuma se ocultar, mas às vezes
ela se manifesta. Muitas vezes ela coloca o homem num estado de desequilíbrio
risível e lamentável. E não é raro que ela conduza ao suicídio e à ruína
definitiva da alma[68].
Compreensível para muitos em suas consequências evidentes, a ilusão
deve ser estudada, aprendida desde sua origem, a partir do pensamento errôneo e
de todos os desregramentos da alma. No pensamento errôneo se encontra já todo o
edifício da ilusão, assim como na semente está em potência a planta que irá
brotar assim que ela for semeada na terra.
Santo Isaac o Sírio escreveu: “Diz a Escritura: ‘O Reino de Deus não
virá ostensivamente[69]’.
Aqueles que fazem esforços ascéticos com tal disposição estão expostos ao
orgulho e à queda. Quanto a nós, fixaremos nosso coração nas obras do
arrependimento e numa vida agradável a Deus. Os dons do Senhor virão por si
sós, desde que o templo do coração seja puro e não profanado. Assim portanto,
eu digo que a Igreja não admite que busquemos os dons elevados de Deus
avidamente. Aqueles que o fizeram caíram no orgulho. Não é um sinal de amor a
Deus, mas uma enfermidade da alma. E como poderíamos nós solicitar os sublimes
dons de Deus, quando o divino Paulo se glorifica de seus sofrimentos e
reconhece como dom mais elevado de Deus o ter participado dos sofrimentos de
Cristo?[70]”.
Confiar-se a Deus
Em sua ascese de oração, confie-se inteiramente a Deus: sem Ele, não
podemos realizar o menor progresso. Cada passo que nos faz avançar nessa ascese
é um dom de Deus. Renuncie a si mesmo e abandone-se a Deus para que ele faça
com você o que quiser. Pois Ele, que á a própria Bondade, deseja lhe dar “o que
não subiu[71]”
ano nosso espírito e ao nosso coração; Ele quer lhe dar bens tão grandes, que
nem nosso intelecto, nem nosso coração podem, em seu estado atual de queda,
conceber. Não é possível, de modo algum, a quem não é puro, fazer a menor ideia
dos dons espirituais de Deus, nem pela imaginação, nem por uma comparação com
os estados de alma mais agradáveis que um homem possa conhecer. Com
simplicidade e fé, deposite em Deus todos os seus cuidados. Não obedeça às
insinuações do Maligno, que já no Paraíso dizia aos nossos ancestrais: “Sereis
como deuses[72]”.
Agora, ele lhe sugere que você se esforce de uma maneira inoportuna e orgulhosa
para adquirir os dons espirituais da prece do coração; esses dons, repito, não
são concedidos por Deus em um tempo e um lugar determinados. Esse lugar é o
receptáculo inteiro – corpo e alma – purificados das paixões.
Rejeitar os ídolos
Tenhamos o cuidado de libertar o templo – a alma e o corpo – dos
ídolos, dos sacrifícios oferecidos aos ídolos, daquilo que é sacrificado aos
ídolos e de tudo o que pertence à idolatria. Assim como o santo profeta Elias
conduziu todos os sacerdotes e profetas de Baal até a torrente do Quichon e os
deixou para morrer[73],
também nós devemos mergulhar no pranto do arrependimento e, nessa
bem-aventurada torrente, levarmos à morte os príncipes que constrangem nosso
coração a oferecer sacrifícios ao pecado, bem como a todas as desculpas por
meio das quais justificamos e perdoamos tais sacrifícios. Assim lavaremos o
altar e tudo o que o cerca com nossas lágrimas; dobraremos e triplicaremos as
abluções; com efeito, a impureza da alma exige, para ser lavada, lágrimas
abundantes. Que o altar seja erigido com pedras em nome do Senhor – com
sentimentos trazidos unicamente do Evangelho; que aqui não haja espaço para os
sentimentos do homem velho, por inocentes e nobres que possam parecer. Então o
Altíssimo fará descer seu fogo sobre nossos corações, e deles fará templos de
oração movidos pela graça. Conforme foi dito por Seus lábios divinos: “Minha
casa será chamada de casa de oração[74]”.
Jejum e vigília
Para começar, devemos vigiar as paixões do corpo, o uso dos alimentos
e nossas tendências à impureza, as quais, em larga medida, resultam dos
excessos na alimentação. Esforcemo-nos com sabedoria para regrar nossa condição
física, dando ao nosso corpo alimento e sono suficientes para que ele não se
enfraqueça e se mantenha capaz de esforços ascéticos, mas também dando-lhe
suficientemente pouco para que ele traga constantemente a morte em si e não
renasça para os movimentos pecaminosos. Segundo a observação dos Padres, no que
diz respeito ao uso dos alimentos e ao sono, o hábito adquirido desempenha um
papel considerável; por isso é muito importante se acostumar desde logo a usar
dessas coisas com moderação e, se possível, pouco.
Isaac o Sírio
A respeito do jejum e da vigília, santo Isaac o Sírio se expressou da
seguinte maneira: “Aquele que, durante toda sua vida, amou se dedicar a essas
duas virtudes, se tornará amigo íntimo da castidade. Assim como a origem de
todos os males consiste em encher o ventre e amolecer no sono, pois essas
coisas inflamam a paixão carnal, do mesmo modo o caminho divino e o fundamento
de todas as virtudes se encontra no jejum, na vigília e na vigilância durante o
serviço divino, enquanto que o corpo deve ser crucificado por toda a noite e
privado da doçura do sono. O jejum é a proteção de todas as virtudes, o começo
da ascese, a coroa dos que vivem em continência, a beleza da virgindade e do
sacrifício, a luz da castidade, o começo da vida cristã, a mãe da prece, a
fonte da castidade e da sabedoria, o mestre da hesíquia. Assim como o desejo da
luz se segue à cura dos olhos, o desejo pela prece se segue ao jejum feito com
discernimento. Quando alguém começa a jejuar, seu espírito deseja conversar com
Deus. O corpo de quem jejua já não suporta passar toda a noite no leito. Quando
o selo do jejum é colocado sobre os lábios de um homem, seu espírito medita
pensamentos cheios de compunção, seu coração se torna uma fonte de oração, seu
rosto traz a marca das lamentações, os pensamentos vergonhosos se afastam. Não
vemos mofa em seus olhos: ele é inimigo das frivolidades e das conversas vãs.
Jamais se viu um homem que jejua com discrição ser subjugado por um mau desejo.
O jejum praticado com discrição é o grande templo de todas as virtudes. Quem o
negligencia, verá todas as virtudes abaladas. O jejum é o mandamento dado desde
o começo à nossa natureza para que ela seja protegida quando do consumo de
alimentos; por ter violado o mandamento do jejum, o primeiro homem criado caiu.
Daí se originou a catástrofe, e daí ao contrário os ascetas iniciam sua marcha
com temor a Deus, a partir do momento em que começam a observar a lei divina”.
Quem se entrega a um sono excessivo e à satisfação de seu ventre não
pode deixar de se macular com pensamentos passionais. Enquanto o corpo e a alma
são agitados por esses movimentos, enquanto o intelecto se deleita com coisas
carnais, o homem permanecerá inapto para os movimentos novos e desconhecidos
que o Espírito Santo, com sua sombra, desperta nele.
Silêncio e solidão
Na mesma medida em que o jejum é necessário para quem deseja praticar
a oração mental e nela progredir, também lhe será necessário a hesíquia
(silêncio) e uma grande solidão; de modo geral, ele deverá evitar o mais
possível as idas e vindas. Se você vive num mosteiro, saia o menos possível;
quando se ausentar, retorne o mais depressa que puder; quando estiver numa vila
ou cidade, vigie com cuidado seus sentidos para não ver nem ouvir algo que
possa ser nocivo à alma, a fim de não receber de improviso uma ferida mortal.
Uma vez no mosteiro, conheça apenas a igreja, o refeitório e sua cela; não vá
às celas dos outros irmãos senão por razões imperiosas e, se for possível, não
vá nunca; frequente a cela de seu mestre e pai espiritual, se tiver a
felicidade de encontrar um em nossa época. E então, faça-o oportunamente e
quando necessário, e não por ócio ou vontade de tagarelar. Habitue-se a ficar
em silêncio e se calar, para que possa guardar a hesíquia mesmo quando estiver
entre as pessoas. Fale o menos possível, e só em caso de extrema necessidade.
Para quem é habitualmente disperso, guardar a hesíquia é uma prova difícil de
suportar; mas todo homem que deseja se salvar e progredir na vida espiritual
deve, sem falta, suportar esse sofrimento e se habituar à solidão e à hesíquia.
Depois de um esforço de curta duração, a hesíquia e a solidão serão
ardentemente buscadas por causa dos frutos espirituais que logo provará a alma
do hesiquiasta prudente.
No tempo em que santo Arsênio o Grande ainda se encontrava no mundo,
ele orava para que Deus lhe ensinasse como se salvar. Então, ele ouviu uma voz
que lhe dizia: “Arsênio, fuja do comércio dos homens, e serás salvo”. Ele se
dirigiu a Sceta, no Egito, onde monges de grande santidade levavam a vida
ascética, e novamente orou a Deus: “Ensina-me a me salvar”. Outra vez ele ouviu
a voz: “Arsênio, foge, cala-te e vive na hesíquia; essas são as raízes da
vitória sobre o pecado”.
Santo Isaac o Sírio disse a respeito de santo Arsênio o Grande:
“Calar-se ajuda a hesíquia, de que modo? Quando vivemos num mosteiro com muitas
pessoas, não podemos evitar os encontros com os outros. Arsênio, esse homem
igual aos anjos, tampouco podia evitar isso, e, no entanto, ele amava a
hesíquia mais do que tudo. Não é possível não nos encontrarmos com os padres e
irmãos que vivem conosco: esses encontros acontecem inesperadamente, mesmo
quando estamos na igreja ou em outro lugar. Quando Arsênio, esse homem digno de
todos os louvores, viu isso e compreendeu que enquanto ele vivesse perto de
habitações humanas (ainda que em Sceta, no Egito, um lugar habitado por monges
perfeitos), seria impossível evitar, na maior parte dos casos, os contatos de
pessoas que viviam no mundo e com os monges que habitavam a região, ele
aprendeu com a graça esse meio: guardar constantemente o silêncio. Se, por
necessidade, ele abria a porta de sua cela a determinadas pessoas, esses se
consolavam apenas com a visão de seu rosto, pois a necessidade de uma
conversação com ele não se fazia sentir”.
O mesmo santo Isaac diz: “Mais do que tudo, devemos amar guardar
silêncio: isso nos aproxima do fruto. A língua não é capaz de descrever os bens
que nascem do fato de não falar. Para começar, forcemo-nos a manter essa
atitude; depois, desse silêncio nascerá alguma coisa que nos conduzirá ao silêncio
propriamente dito. Possa Deus lhe conceder sentir essa coisa que é gerada pelo
silêncio. Se você adotar essa maneira de viver, eu já não posso descrever quão
grande luz o iluminará. Não imagine, caro irmãos, que o admirável Arsênio – de
quem se conta que quando os padres e irmãos vinham vê-lo, ele os recebia em
silêncio e os deixava ir sem lhes ter dirigido sequer uma palavra – agia assim
só porque lhe convinha; ele o fazia porque desde o começo ele se impôs à força
esse comportamento. Com o tempo, uma certa doçura nasce no coração daquele que
o pratica, mas é pela força que se ensina o corpo a permanecer na hesíquia.
Essa maneira de viver suscita em nós abundantes lágrimas e uma contemplação
maravilhosa”.
Jejum e estabilidade
Em outro discurso, santo Isaac diz: “Depois de longo tempo sendo
testado à direita e à esquerda, e de ter examinado a mim mesmo muitas vezes nos
dois modos de vida descritos mais abaixo, depois de ter recebido do adversário
(o diabo) inumeráveis ferimentos, e de ter sido gratificado com grandes e
misteriosas proteções, fui instruído pela graça de Deus e adquiri, ao cabo de
anos de experiência, o seguinte conhecimento. O fundamento de todas as
virtudes, a libertação da alma do cativeiro do Inimigo e a via que conduz à luz
e à vida divinas estão reunidos nas duas práticas seguintes: o recolhimento
sobre si mesmo num dado lugar, e o jejum constante. Isso significa: fixar para
si mesmo, com sabedoria e discrição, uma regra de abstinência para o ventre, e
permanecer constantemente num dado lugar sem abandoná-lo, consagrando-se a uma
incessante meditação de Deus. Daí provêm a submissão dos sentidos, a vigilância
do intelecto, o domínio das paixões violentas que se desencadeiam no corpo, a
doçura dos pensamentos, a vinda de ideias luminosas, o zelo pelo cumprimento
das virtudes, das altas e sutis concepções, as lágrimas incontidas em todas as
ocasiões e a lembrança da morte; daí, essa castidade pura que se mantém
afastada de todo fantasma que tenta seduzir o intelecto; daí, uma perspicácia e
uma precisão no discernimento das coisas que estão distantes (ou seja, do bem e
do mal, que podem estar muito longe das consequências de uma ação qualquer);
daí, as profundas concepções místicas que o intelecto apreende pela força da
Palavra de Deus, daí os movimentos interiores que se produzem na alma, a
capacidade de discernir entre os espíritos decaídos e os poderes santos, entre
as visões autênticas e os devaneios enganadores; daí, o temor de se perder
pelos caminhos do imenso oceano do pensamento, temor esse que expulsa a
negligência e a inconsequência; daí, o zelo inflamado que pisoteia todo perigo,
que se eleva acima de todo medo, esse ardor que despreza todos os desejos e os
arranca do espírito, que apaga a lembrança de tudo o que é transitório, de tudo
o quer pertence a esse mundo e a esse século. Em resumo, daí provém a liberdade
do homem verdadeiro, a alegria e a ressurreição da alma, seu repouso
bem-aventurado com Cristo no Reino dos céus”.
“Assim, se alguém negligencia essas duas práticas, saiba que não
apenas está se privando de tudo o que foi dito, mas que ele ainda abala, ao
desprezar essas duas virtudes, os fundamentos de todas as demais virtudes. Da
mesma forma como essas duas virtudes são o princípio e a cabeça da ação divina
na alma, a porta e a via para Cristo, quando as observamos e perseveramos
nelas, assim, inversamente, quem as abandona e se afasta delas desemboca em
dois comportamentos que lhes são opostos, a saber, a contínua vagabundagem do
corpo e a uma gulodice desavergonhada. Esses dois comportamentos são as causas
daquilo que é oposto ao que foi enumerado mais acima, e eles preparam na alma
um terreno propício paras as paixões”.
Malefícios da falta de estabilidade
“A primeira dessas causas tem sobretudo como efeito liberar os
sentidos, que haviam sido submetidos, dos laços que os mantinham retidos. O que
acontece então? Daí provêm os encontros inesperados e inconvenientes, próximos
de quedas; o levantamento de fortes ondas; uma violenta excitação provocada
pela visão que inflama o corpo e o domina; situações nas quais se cai
facilmente em pensamentos; pensamentos passionais que não se pode dominar e que
atraem as quedas; o esfriamento do fervor pela obra de Deus, um progressivo
enfraquecimento do amor pela hesíquia e, por fim, o abandono completo do modo
de vida antes escolhido; a renovação das más ações esquecidas e o aprendizado
de novas e desconhecidas até então, em razão das incessantes ocasiões que se
apresentam aos nossos olhos sem que o queiramos, e de mil maneiras, enquanto
peregrinamos de país em país e de uma terra a outra. As paixões que a graça de
Deus havia mortificado na alma e apagado de nosso espírito pelo esquecimento,
recomeçam a se animar e a submeter a alma com sua atividade. Eis aí – e eu não
enumero todo o resto em detalhe – o que se produz no monge a primeira das
causas, ou seja, a vagabundagem do corpo, consequência da recusa em suportar
pacientemente a opressão da hesíquia”.
Malefícios da gulodice
“Quais consequências arrasta
consigo a segunda causa, ou seja, quando começa a atividade dos porcos? No que
consiste ela, essa atividade de porcos, senão em deixar sem regra o ventre,
senão em se locupletar constantemente e sem horas fixas, ao inverso do que se
passa entre os seres racionais? O que resulta daí? Um peso na cabeça, um
considerável sobrecarga do corpo e um enfraquecimento das espáduas. Isso produz
inevitáveis ausências do ofício divino; então vêm a preguiça, que impede de
fazer as prosternações durante o cumprimento da regra de oração; a indiferença
em relação às genuflexões habituais; o obscurecimento e a dormência do
espírito; a opacidade do intelecto, a perda de sua capacidade de julgamento em
razão de sua confusão e de um obscurecimento inabitual dos pensamentos; uma
pesada e espessa escuridão que se estende sobre toda a alma; uma grande acídia
durante as obras de Deus, durante a leitura, em razão da incapacidade de
saborear a doçura da Palavra de Deus; o abandono dos exercícios mais
necessários; um intelecto que não se pode deter e que plana por sobre toda a
terra; a acumulação de abundantes humores em todos os membros; os sonhos
impuros durante a noite, que apresentam à alma imagens inconvenientes e cheias
de concupiscência, realizando na própria alma seus desejos impuros. O leito
desse maldito, suas vestes e seu corpo ficam manchados pela abundância de um
corrimento vergonhoso que se derrama dele como de uma fonte. E isso não
acontece apenas de noite, mas também de dia: seu corpo secreta impurezas
constantemente e com isso mancha seu pensamento. Assim, em razão dessas
circunstâncias, o homem perde a esperança de guardar sua castidade: com efeito,
a doçura desse comichão produz por todo seu corpo um aquecimento insuportável;
diante de si se desenham sedutoras imagens mentais que representam alguma
beleza, excitando-o a todo instante e empurrando seu intelecto a se unir a elas
(às imagens mentais dessa beleza). Ninguém duvida de que ele se unirá a elas,
pensado nelas e as desejando, em decorrência da ofuscamento de sua capacidade
de julgamento. É disso que falava o Profeta: “Tal foi a recompensa de tua irmão
Sodoma que se deleitava comendo pão até a saciedade, etc.[75]”.
“O que segue foi dito por um grande sábio: ‘quando um homem se nutre
buscando o deleite do corpo, ele mergulha sua alma numa grande luta. Mesmo que
ele volte a si um dia e deseje se conter e se moderar, ele não o conseguirá,
por causa do excessivo ardor dos movimentos de seu corpo, devido à violência e
à potência das excitações e das seduções produzidas por aqueles que mantiveram
cativa sua alma por meio de seus desejos’. Vê você a sutileza das forças
opostas a Deus? O mesmo sábio diz ainda: ‘o deleite do corpo na época da
malemolência e do verdor da juventude faz com que a alma se torne rapidamente
vítima das paixões; a morte a estrangula, e assim ela cai sob o julgamento de
Deus’. Ao contrário, a alma que se recorda constantemente de suas obrigações,
repousa em sua liberdade; suas preocupações diminuem; ela não se preocupa com
nada temporal, mas se ocupa das virtude, dominando as paixões e guardando as
virtudes; aos pouco ela faz progressos e se encontra numa alegria livre de
preocupações, numa vida boa, num porto sem perturbações. O desfrute corporal
não apenas reforça as paixões e lhes permite dominar a alma, como ainda destrói
seu fundamento. Além disso, ela excita o ventre à glutoneria e às sensações
indecentes e sensuais. Essas incitam a tomar alimento prematuramente. Quem é
vencido por elas não é capaz de suportar a mais leve fome (e assim manter o
controle sobre si), pois se tornou prisioneiro das paixões”. Todos os santos
Padres são da mesma opinião, mas não os citaremos aqui, para não estendermos
demasiado nosso discurso.
A luta contra a cólera
Tendo protegido do exterior nossa vida, abstendo-nos de todo excesso e
deleite no comer e no beber, tendo-a protegido também pela solidão que depende
de nós, ou seja, permanecendo, sem se ausentar, no mosteiro, e evitando ter
contatos tanto dentro como fora dele, cuidemos agora das paixões da alma.
Segundo o mandamento do Senhor[76],
antes de tudo prestemos atenção à cólera que se origina do orgulho. Perdoemos a
nossos pais e nossos irmãos, próximos ou distantes, vivos ou mortos, todas as
ofensas e todas as injúrias que nos tenham feito, como se ela não fossem
difíceis de suportar. O Senhor nos ordenou: “Quando estiverdes rezando, perdoai
tudo o que tiverdes contra alguém, para que o Pai de vocês que está no céu
também vos perdoe os pecados. Mas, se vós não perdoardes, o vosso Pai que está
no céu não perdoará os vossos pecados[77].
O amor aos inimigos
Antes de tudo, ore por seus inimigos e bendiga-os[78],
como sendo instrumentos da Providência divina: eles lhe foram dados em castigo
por seus pecados durante sua breve vida sobre a terra, a fim de libertá-lo do
castigo merecido nos tormentos eternos do inferno. Quando você agir assim,
quando for capaz de amar a seus inimigos e de orar por eles para que lhes sejam
concedidos todos os bens, os temporais e os eternos, somente então Deus virá em
seu auxílio, e você vencerá pela prece todos os seus adversários, seu intelecto
penetrará no templo do seu coração para aí adorar o Pai em Espírito e Verdade[79].
Mas se você deixar seu coração endurecer pela amargura, e se, em seu orgulho,
justificar sua cólera, então o Senhor seu Deus se afastará de você e Satanás virá
pisoteá-lo. Ele o manchará com todos os pensamentos e sentimentos impuros, e
você não terá forças para resistir-lhe[80].
Mas se o Senhor conceder colocar como fundamento de sua ascese de oração a
bondade, o amor, a ausência de julgamento dos outros e um perdão cheio de
misericórdia por eles, você vencerá seus adversários com facilidade e rapidez,
e então poderá alcançar a prece pura.
A cadeia das paixões
Saiba que as paixões e todos os espíritos decaídos estão ligados entre
si por uma afinidade e uma união muito estreitas. Essa afinidade, essa união –
é o pecado. Se você se submeter a uma paixão, pela sujeição a essa única paixão
você será igualmente dominado por todas as outras. Se você permitir que um
único espírito do mal o faça prisioneiro por uma conversa com os pensamentos
que ele lhe sugere e pela sedução desses pensamentos ou desses devaneios, você
se tornará escravo de todos os espíritos. Depois de tê-lo vencido, eles o
entregarão de um para outro como um prisioneiro[81].
Isso é o que ensinam os santos Padres, e também a experiência o ensina. Observe
a si mesmo, e você verá que se se deixar vencer voluntariamente em qualquer
matéria, logo, em outros domínios onde você não pensou ser derrotado, você será
vencido contra sua vontade; e isso durará enquanto você não recuperar sua
liberdade por meio de um profundo arrependimento.
Recusa do diálogo com os pensamentos
Tendo colocado como fundamento de sua ascese na oração a ausência de
cólera e o amor e a bondade para com o próximo conforme o Evangelho, afaste com
resolução todo diálogo com os pensamentos passionais e todo delírio sonhador.
Quando os encontrar, não importa quais sejam, diga: “Eu me abandonei
inteiramente à vontade de Deus; por isso, não tenho nenhuma necessidade de
discutir, de fazer suposições, de adivinhar previamente, pois o Senhor está
próximo. Não se inquiete com nada, me ordena o Espírito Santo junto com todos
os que creem verdadeiramente em Cristo, mas em todas as coisas dê a conhecer a
Deus as suas necessidades por meio de orações, de súplicas e de ações de graças[82]”.
‘Sejam sábios e sóbrios’, vale dizer, afastem a saciedade e o deleite,
afastem os pensamentos e os devaneios enganosos, ‘e dediquem-se à prece, e
entreguem a Ele (a Deus) todos os cuidados, pois é ele quem cuida de vocês[83]’.
‘Eu desejo que os homens’, vale dizer os cristãos que se aperfeiçoam na ascese
e na oração, ‘orem em todo lugar, elevando as mãos puras’, com o intelecto e o
coração purificados das paixões, cheios de humildade e de amor, ‘sem cólera nem
conflitos’, vale dizer, isentos de toda malícia contra o próximo, estranhos a
todo comércio com os pensamentos passionais e ao deleite dos devaneios[84].
Deteste ‘todo caminho de injustiça’, e se oriente ‘por todos os mandamentos do
Senhor[85]’.
O “caminho de injustiça” consiste no diálogo com os pensamentos e os devaneios.
Quem afasta esse diálogo e esse devaneio consegue seguir todos os mandamentos
de Deus, pode realizar Sua vontade no seio de seu coração[86],
ligando-se constantemente ao Senhor pela prece, dando asas à sua prece, pela
humildade e pelo amor. ‘Vós que amais o Senhor, detestais o mal[87]’,
nos exorta o Espírito Santo.
Influência do sangue sobre a alma
Quem pratica a oração deve absolutamente aprender a conhecer o efeito
das paixões e dos espíritos decaídos sobre seu sangue. Não é sem razão que a
Escritura diz que não apenas ‘a carne’, mas ainda ‘o sangue, não podem herdar o
reino de Deus[88]’.
Deus reprova não apenas as sensações carnais grosseiras do homem velho, como
também as sensações mais sutis, às vezes extremamente sutis, que provêm dos
movimentos do sangue. Essa questão necessita de parte do asceta uma atenção
tanto maior na medida em que a sutil influência das paixões e dos espíritos
sobre o sangue não se tornam discerníveis senão quando o coração sente em si a
ação do Espírito Santo.
A sensação se explica pela sensação: tendo adquirido uma sensação
espiritual, o asceta descobre subitamente e com toda clareza a ação do sangue
sobre sua alma. Ele descobre o modo como as paixões e os espíritos, agindo
sobre a alma por meio do sangue da maneira mais sutil, a retém escrava. Ele
capta isso e se convence que toda influência do sangue sobre a alma (seja
grosseira ou sutil) é abominável diante de Deus; com efeito, essa influência
constitui um sacrifício maculado pelo pecado e que não é digno de penetrar no
domínio espiritual e de ser contado no número das influências e das sensações
espirituais.
Até a aparição das energias do Espírito no coração, a fina influência
do sangue permanece, ou bem totalmente incompreensível, ou no mínimo pouco
compreensível, e pode mesmo ser tomada pela ação da graça, se não for acolhida
com a prudência que convém. Enquanto não formos purificados e renovados pelo
Espírito, essa prudência consiste em não reconhecer como correta nenhuma
sensação, nenhum sentimento do coração, exceto o de arrependimento, a salutar
aflição pelo pecado misturada com a esperança na misericórdia de Deus. Da
natureza decaída, Deus não aceita senão uma oferenda do coração, um de seus
sentimentos e de seus estados: “O sacrifício agradável a Deus é o espírito
quebrantado; ao coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus[89]”.
As paixões agem sobre o sangue
A ação do sangue sobre a alma é bastante evidente quando a paixão da
cólera e os pensamentos ligados a ela agem sobre o sangue, em especial nas
pessoas irascíveis. Em que estado de frenesi chega o homem que é presa da
cólera! Ele perde todo o controle de si mesmo; ele cai sob o domínio da paixão,
sob o império dos espíritos sedentos de sua ruína e que desejam sua perda,
servindo-se dele como de uma arma para cumprir seus malefícios; ele fala e age
como se estivesse privado de razão. A influência do sangue sobre a alma é
igualmente evidente quando o sangue se inflama sob o efeito da luxúria. A
influência das outras paixões sobre o sangue não é tão aparente, mas nem por
isso deixa de ser real. O que é a tristeza, a acídia, a preguiça? São as
diversas influências dos pensamentos pecaminosos sobre o sangue. A avareza e a
cupidez possuem incontestavelmente uma influência sobre o sangue; o deleite
produzido pelos fantasmas das riquezas, o que são, senão o jogo sedutor,
enganador e pecador do sangue?
Insaciavelmente sedentos pela perda do homem, os maus espíritos agem
sobre nós não apenas por pensamentos e imagens mentais, mas ainda por diversos
molestamentos. Eles entram em contato com nossa carne, nosso sangue, nosso
coração e nosso intelecto, tentando por todos os meios possíveis derramar ali
seu veneno[90].
Devemos dar provas de prudência e de vigilância, mas também é preciso um
conhecimento claro e detalhado do caminho espiritual que conduz a Deus. Sobre
essa via, existe um grande número de ladrões, assaltantes e assassinos. À vista
desses inumeráveis perigos, chamemos por nosso Senhor e supliquemos-Lhe com
incessantes lágrimas para que Ele próprio nos conduza pelo caminho estreito e
doloroso que conduz à Vida. As diversas ebulições do sangue que se produzem sob
a ação dos diferentes pensamentos e imagens mentais demoníacos, são produzidos
pela espada inflamada que, no momento de nossa queda, foi dado ao Querubim
decaído, e que ele faz girar dentro de nós, interditando-nos a entrada do
paraíso místico dos pensamentos e dos sentimentos espirituais[91].
Perigos da vaidade
Devemos prestar uma atenção toda especial à energia da vaidade, cuja
influência sobre o sangue é muito difícil de detectar e de compreender. A
vaidade é quase sempre acompanhada de uma fina volúpia, e traz ao homem um
sutil gozo pecaminoso. O veneno desse deleite é de tal finura que muitos tomam
o gozo provocado pela vaidade e pela volúpia por uma consolação da consciência,
e mesmo por um efeito da graça divina. Seduzido por essa gozo, o asceta entra
pouco a pouco num estado de ofuscamento; tomando esse ofuscamento por um estado
produzido pela graça, ele cai progressivamente sob o império total do Anjo
decaído, que se reveste constantemente do aspecto de um Anjo de luz; então o
asceta se torna um instrumento, um apóstolo dos espíritos reprovados. Nesse
estado livros inteiros foram escritos, louvados por um mundo ofuscado e lidos
com interesse e entusiasmo por aqueles que não estavam purificados de suas
paixões[92].
Esse gozo pseudo-espiritual não é outra coisa do que o deleite
produzido por uma mistura sutil de vaidade, orgulho e volúpia. Ora, não é esse
gozo a parte que cabe ao pecador: o que lhe cabe são o pranto e o
arrependimento. A vaidade corrompe a alma exatamente da mesma maneira como a
paixão carnal corrompe a alma e o corpo. A vaidade torna a alma inapta para os
movimentos espirituais; esses só começam quando os movimentos passionais da
alma, detidos pela humildade, se acalmam. É por isso que os santos Padres
recomendam como atividade geral a todos os monges, e em especial aos que se
dedicam à prece e que desejam progredir nela, o santo arrependimento, pois ele
se opõe diretamente à vaidade e traz para a alma a pobreza de espírito.
A partir do momento em que nos dedicamos seriamente ao arrependimento,
observamos a influência da vaidade sobre a alma, muito semelhante à da paixão
carnal. A paixão faz com que desejemos uma união ilícita com o corpo de outra
pessoa; naqueles que estão submetidos a essa paixão, mesmo q eu não seja pelo
deleite dos pensamentos e dos devaneios impuros, ela altera todos os
sentimentos do coração, ela muda as disposições da alma e do corpo. Por sua
vez, a vaidade incita a se apoderar de maneira fraudulenta da glória humana.
Tocando o coração, ela comunica ao sangue um movimento desordenado e agradável;
por meio desse movimento ela modifica toda a disposição do homem e, provocando
nele uma união com o Espírito grosseiro e tenebroso do mundo, ela o separa do
Espírito de Deus. Em relação à verdadeira glória, a vaidade é como a
fornicação. Diz santo Isaac o Sírio: “Ela atira um olhar fornicador sobre a
natureza das coisas[93]”.
A que ponto a vaidade mergulha o homem nas trevas, e o quanto ela
torna difíceis sua aproximação com Deus e sua união com Ele, atesta-o o Senhor:
“Como podem vós crer”, disse ele aos fariseus vaidosos que buscavam os elogios
e os aplausos uns dos outros e da cega sociedade humana, “vós que tirais vossa
glória uns dos outros e que não buscais a glória que somente de Deus provém?[94]”.
A orgulhosa avidez em buscar prematuramente aquilo que acontecerá a
seu tempo, de que falam são João Clímaco e são Nilo de Sora, permite caracterizar
exatamente a paixão da vaidade que é inevitavelmente acompanhada de um
movimento específico do sangue. Os pensamentos vaidosos aquecem o sangue e o
colocam em movimento; a vaidade, por seu lado, reforça e multiplica os
devaneios sedutores e a alta opinião que a pessoa tem de si mesma, aquilo que o
Apóstolo chama de “estar inchado com um orgulho vão pelo pensamento carnal[95]”.
A maturidade é necessária
De tudo o que foi dito, podemos facilmente reconhecer qual a idade que
melhor convém para praticar a prece do intelecto e do coração. Para isso, é a
idade madura a mais favorável, quando já se apaziguaram naturalmente os
excessos da juventude. Os jovens não estão descartados, desde que possuam as
qualidades da maturidade, e sobretudo se possuírem um guia. Mas para atingir a
maturidade não basta somente o número de anos transcorridos desde o nascimento
ou desde a entrada para o mosteiro; a maturidade deve decorrer sobretudo de um
prolongado exame de si mesmo, exame que não deve ser feito arbitrariamente, mas
no Senhor Jesus Cristo, graças à luz do Evangelho onde estão descritos o homem
novo e todas as diversas enfermidades do homem velho, e graças também ao estudo
dos escritos dos santos Padres da Igreja ortodoxa do Oriente que nos ensonam a
nos servir das luzes do Evangelho, sem nos enganarmos.
Examinar a si mesmo
Quando um homem penetra em si mesmo, ele conhece a si mesmo, reconhece
suas paixões, sua ação multiforme, os meios de lutar contra elas e sua própria
impotência, então quanto mais ele se esforça para se desembaraçar de suas
particularidades pecaminosas implantadas pela queda e adquirir aquelas
indicadas pelo Evangelho, mais sólidas se tornam as fundações sobre as quais
ele ergue o edifício de sua prece. Ele não deve se apressar quando começa sua
escavação; ao contrário, deve cuidar para que sejam bem profundas e sólidas. É
pouco, aprender a conhecer as paixões e suas numerosas ramificações pela
leitura dos santos Padres: é preciso saber ler no livro vivo da alma e adquirir
a respeito um conhecimento espiritual.
Isso leva tempo
É evidente que são necessários muitos anos para que esse exercício dê
frutos, sobretudo em nossa época, quando é raro e difícil receber qualquer
conhecimento espiritual de um homem, quando é preciso, ao contrário, folhear os
livros para adquirir todos os conhecimentos nesse domínio para em seguida
descobrir, ainda nos livros, a ordem e a gradação dos conhecimentos, das
práticas e dos estados espirituais. Aqueles que não vigiaram suficientemente a
solidez das fundações constatarão a seguir diversos defeitos na sua construção,
rachaduras e outras deteriorações, e muitas vezes acabarão por assistir o
lamentável desabamento de todo o edifício. Irmãos, não nos apressemos: seguindo
o conselho do Evangelho, escavemos, aprofundemos, coloquemos como fundação
pedras duras e pesadas. A escavação e o aprofundamento são a exploração
minuciosa do coração; quanto às pedras, endurecidas pelo tempo e pela prática,
elas representam o exercício dos mandamentos evangélicos.
Vitória sobre as distrações
Quando o asceta cristão domina, na medida de suas forças, os
movimentos do sangue, e restringe sua influência sobre a alma, movimentos
espirituais começam pouco a pouco a surgir nela. Sutis intuições dos mistérios
divinos começam a se manifestar ao intelecto e o incitam a examinar
atentamente; ele se afasta de sua vagabundagem em todas as direções e se
concentra em si mesmo[96];
o coração começa a entrar em “simpatia” com o intelecto num sentimento de
grande enternecimento. Graças às influências espirituais, as influências do
sangue sobre a alma são definitivamente superadas; o sangue volta ao
cumprimento de sua função normal no seio do composto corporal, deixando de
servir (por encontrar sua destinação original) de instrumento do pecado e dos
demônios. O Espírito Santo aquece o homem espiritualmente, cobrindo de orvalho
e de frescor sua alma até então familiarizada apenas com as diversas ebulições
do sangue[97].
Quando se ergue o Sol de Justiça, as feras espirituais se retiram aos seus
covis, e o asceta sai das trevas e do cativeiro nos quais o retinham o pecado e
os espíritos decaídos para cumprir seu trabalho espiritual e progredir até o
ocaso de sua vida terrestre, até sua passagem para a vida eterna que não
conhece crepúsculo[98].
A oração mental
Graças à ação bem-aventurada do Espírito Santo no homem, um silêncio
inabitual começa a reinar sobre ele; ele morre para o mundo, para suas alegrias
vãs e pecaminosas, e deixa de estar a seu serviço. O cristão se reconcilia com
tudo e com todos por meio de um estranho raciocínio espiritual, humilde e ao
mesmo tempo elevado, desconhecido e inacessível ao homem carnal e psíquico. Ele
começa a sentir uma compaixão por toda a humanidade e por cada homem em
particular. Depois a compaixão amadurece em amor. A seguir, quando ele ora, sua
atenção se reforça; as palavras da prece começam a produzir uma impressão forte
e inabitual sobre sua alma, a comovê-lo profundamente. enfim, pouco a pouco, o
coração e a alma por inteiro entram em união com o intelecto e, seguindo-se à alma,
o próprio corpo é arrastado. Essa prece é chamada:
- mental
(ou espiritual), quando é pronunciada
pelo intelecto com uma profunda atenção e com a “simpatia” do coração;
- do coração,
quando é pronunciada pelo intelecto e o coração unidos, quando o intelecto de
certo modo desce até o coração e, de suas profundezas, eleva sua prece;
- da alma,
quando ela acontece com toda a alma, com a participação do próprio corpo;
quando rezamos com todo nosso ser, ou seja, quando todo o nosso ser se torna
uma só boca que pronuncia a prece.
Em seus escritos, os santos Padres muitas vezes reúnem sob uma mesma
denominação a prece mental, a do coração e a da alma; outras vezes, eles as
distinguem. Assim, são Gregório o Sinaíta diz: “Ore sem cessar, com seu
intelecto ou com sua alma”. Mas hoje, quando o ensinamento ministrado a esse
respeito por mestres vivos se tornou muito raro, é útil conhecer essa
distinção. Em alguns, age primeiramente a oração mental, em outros a do
coração, em outros, enfim, a da alma, conforme o dom recebido por cada um do
Doador de todos os bens, tanto dos bens naturais como daqueles da graça. Às
vezes, no mesmo asceta, age tanto uma como outra forma de oração. Esse tipo de
oração costuma ser acompanhada por lágrimas. Então o homem conhece em parte no
que consiste a bem-aventurada impassibilidade. Ele começa a experimentar um
sentimento de pureza e, a partir dessa pureza, a sentir um vivo respeito por
Deus. Esse respeito fará com que desapareça a pesandez da carne com a vinda de
um estranho temor, até então desconhecido pelo homem, provocado por uma clara
sensação de se encontrar na presença de Deus, como diante Dele próprio.
O lugar do arrependimento
O cristão entra agora numa vida nova e numa nova ascese que
corresponde ao estado renovado de sua alma: o leite que tomava até então já não
lhe serve como alimento. Todas as suas atividades convergem daqui por diante
para uma só: o bem-aventurado e constante arrependimento. Que compreender,
compreenda: ele acaba de receber o ensinamento mais necessário, o mais salutar
e importante, ainda que, por si sós, essas palavras que o expressam sejam tão
simples. Poêmio o Grande descreveu esse estado em sua resposta à questão: “Como
deve se comportar o hesiquiasta atento?”. Ele disse: “Como um homem afundado na
lama até o pescoço, com um pesado fardo sobre a nuca, e que clama por Deus:
‘Tem piedade de mim’[99]”.
Uma profunda aflição – a do espírito humano quando é levado às
lágrimas pelo Espírito Santo – é a companheira inseparável no caminho da prece
do coração; um sentimento espiritual de respeito por Deus, de piedade e de
humilde enternecimento do coração acompanha a prece da alma. Entre os cristãos
perfeitos, esses dois sentimentos se transformam em amor. Mas também esses
pertencem à categoria dos sentimentos produzidos pela graça. Eles são dons de
Deus, concedidos a seu tempo, estranhos a seu tempo, estranhos mesmo para a
compreensão de quem luta espiritualmente em seu domínio, mesmo quando luta
corretamente. A prece do coração age sobretudo quando invocamos o Nome do
Senhor Jesus; os que possuem o dom da prece do coração oram pela prece da alma
quando leem as preces escritas ou os salmos.
O homem unificado
Deus prescreveu a prece mental, do coração e da alma no Antigo e no
Novo Testamentos. “Amarás ao Senhor teu Deus”, ordena Deus, “com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todo o teu espírito e com toda a tua força.
Esse é o primeiro mandamento[100]”.
É evidente que não podemos cumprir o mais elevado de todos os mandamentos senão
pela prece do intelecto, do coração e da alma. Graças a ela, o homem que ora se
liberta de toda criatura e, por inteiro, de todo seu ser, se dirige para Deus.
Ao se encontrar nesse impulso em direção a Ele, e se reúne subitamente consigo
mesmo e se vê curado pelo toque do dedo de Deus. O intelecto, o coração, a alma
e o corpo, até então divididos pelo pecado, se unificam subitamente no Senhor.
De fato, a união acontece Nele e é realizada por Ele; ela consiste
simultaneamente na união do homem consigo mesmo e com seu Senhor.
Os dons do Espírito
Depois da união, ou concomitantemente a ela, aparecem os dons
espirituais. Ou, mais exatamente: a própria união é um dom de Deus. O primeiro
dos dons espirituais por meio dos quais se produz essa maravilhosa união, é a paz
de Cristo[101].
Seguindo-se a essa paz, vem todo o coro dos dons de Cristo, e dos frutos do
Espírito Santo, que o Apóstolos enumerou assim: caridade, alegria,
longanimidade, bondade, misericórdia, fidelidade, doçura, temperança[102].
A prece do homem curado, unificado, interiormente pacificado, é livre de
pensamentos passionais e de fantasmas demoníacos. A espada inflamada do
Querubim decaído cessa de agir; o sangue, reprimido pela força do Alto, cessa
de ferver e se agitar. Esse mar se torna imóvel; o sopro dos ventos – os
pensamentos e os fantasmas demoníacos – já não tem poder sobre ele. A prece
livre de pensamentos e de fantasmas é chamada de ‘pura[103]’,
sem distrações. O asceta que atingiu essa prece pura começa a consagrar a ela
cada vez mais tempo, às vezes sem se dar conta disso. Toda sua vida, toda sua
atividade se transforma em oração. A qualidade dessa prece, nos dizem os
Padres, conduzirá inevitavelmente à quantidade. Quando se apodera do homem, a
prece o transforma progressivamente e o torna espiritual por causa de sua união
com o Espírito Santo, como diz o Apóstolo: “Quem se une ao Senhor se torna um
só espírito com o Senhor[104]”.
Ao amigo íntimo do Espírito são revelados os mistérios do Cristianismo.
A paz de Cristo
Cheia de graça, a paz de Cristo que introduz o asceta na prece pura é
completamente diferente da disposição psicológica habitualmente calma e
pacífica dos homens; quando ela se estabelece no coração, ela amarra os
movimentos tempestuosos das paixões, ela suprime o temor, não por afastar o que
é temível, mas por nos colocar num estado de felicidade e de coragem em Cristo,
graças ao qual aquilo que é terrível deixa de sê-lo, como disse o Senhor: “Eu
vos deixo minha paz, eu vos dou a minha paz; não como o mundo a dá, eu a dou a
vós. Que vosso coração não se perturbe, nem se alarme[105]”.
A paz de Cristo traz consigo uma grande força espiritual, e atira aos seus pés
todo sofrimento e toda tribulação terrestres. Essa força provém do próprio
Cristo: “Tereis essa paz em mim. No mundo havereis de sofrer. Mas tende
coragem! Eu venci o mundo[106]”.
Invocado pela prece do coração, Cristo faz descer ao coração uma força
espiritual chamada de “paz de Cristo”; ela não pode ser captada pela
inteligência, nem expressa em palavras, mas apenas pela experiência
bem-aventurada. “Que a paz de Deus”, diz o Apóstolo aos cristãos, “que
ultrapassa toda inteligência, guarde vossos corações e vossos pensamentos em
Jesus Cristo[107]”.
Tal é a força da paz de Cristo: ela ultrapassa toda inteligência. Isso
significa que ela está acima de toda inteligência criada: da inteligência do
homem, da dos Anjos de luz e da dos anjos decaídos. Enquanto operação divina,
ela reina soberanamente, divinamente, sobre os pensamentos e os sentimentos do
coração. Quando ela aparece, todos os pensamentos demoníacos e todos os sentimentos
provocados por eles fogem, mas os pensamentos humanos e o coração se colocam
sob sua santa proteção. A partir daí, ela se torna seu rei e os protege, ou
seja, ela os guarda fora do alcance do pecado, em Cristo Jesus. Em outros
termos, ela mantém os pensamentos na esfera do ensinamento evangélico e ilumina
a inteligência dando a ela uma explicação mística desse ensinamento; quanto ao
coração, ele se alimenta do “pão supra substancial” que desce do céu e dá a
vida aos que dele comungam[108].
A paz de Cristo unifica o homem
Quando age com força, a santa paz faz descer o silêncio sobre a
inteligência e atrai para si o corpo e a alma, para que também eles possam aí
experimentá-la. Então cessa todo movimento do sangue e toda influência que ele
possa ter sobre a alma, e uma grande paz se instala. Por todo o homem sopra uma
brisa leve[109],
e um misterioso ensinamento se faz ouvir. Protegido e guardado pela santa paz,
o cristão se torna inacessível aos inimigos espirituais: ele está unido à paz
de Cristo e se deleita com ela; assim embriagado, ele esquece não somente os
gozos pecaminosos, como ainda os gozos terrestres em geral, tanto do corpo como
da alma. Ó bebida salutar! Que divina medicina! Que bem-aventurada embriaguez!
E é bem assim: por qual outra maneira, com efeito, poderia começar a renovação
do homem, senão pela percepção, dada pela graça, da paz que reúne novamente na
unidade as partes integrantes do homem, divididas pelo pecado? Sem esse dom
prévio, sem essa reunificação consigo mesmo, poderia o homem se tornar apto
para qualquer estado espiritual, divino, produzido pelo Espírito Santo? Poderia
um vaso quebrado conter alguma coisa sem antes haver sido reparado?
A paz de Cristo, como de resto todos os dons da graça, começa a se
fazer sentir sobretudo durante a operação, pois durante essa atividade o asceta
se torna preparado pela piedade e pela atenção para receber as impressões
divinas. Por conseguinte, tendo se tornado por assim dizer o bem próprio do
cristão, a paz o acompanha constantemente, o incita a todo tempo e em todo
lugar à prece realizada em sua cela interior, revelando de longe os inimigos e
os caluniadores espirituais, afastando-os e derrubando-os com seu braço
poderoso.
O profeta Isaías anunciou a grandeza desse dom espiritual – a paz de
Cristo –, sua manifestação no povo de Deus, no novo Israel – ou seja, dentre os
cristãos –, seu poder para curar as almas e para mantê-las com saúde, e sua
origem no Deus-Homem que a concede como uma esmola. “Deus poderoso”, diz o
Profeta a respeito do Senhor encarnado, “Mestre poderoso, Príncipe da Paz, Pai
do século futuro: pois eu farei vir a paz sobre os príncipes”, sobre os
cristãos que progrediram, que venceram as paixões e que por isso merecem ser
chamados de príncipes, “a Ele a paz. Vasto será o império, e haverá uma paz sem
fim para o trono de Davi e seu reino; Ele o estabelecerá e o sustentará pelo
direito e pela justiça, desde agora e para sempre; o amor cioso do Senhor de
Sabaó fará isso[110]”.
“Em seus dias se levantará a justiça e a paz em abundância[111]”;
“o Senhor abençoará seu povo (os cristãos) dando-lhe a paz[112]”,
“os mansos herdarão a terra, e experimentarão as delícias de uma imensa paz[113]”.
A paz é um critério
Assim como o Espírito Santo anunciou o Filho[114],
do mesmo modo a atividade do Espírito Santo no homem – a paz de Cristo –
anuncia que os pensamentos do homem penetraram no domínio sagrado da Justiça e
da Verdade divinas, e que seu coração recebeu o Evangelho: “A misericórdia e a
verdade se reencontraram, a justiça e a paz se abraçaram[115]”.
A paz de Cristo no homem é o sinal de que ele permanece nos mandamentos de
Cristo, longe da desorientação e da cegueira espirituais; ao contrário, uma
perturbação, ainda que ligeira, quaisquer que sejam as justificativas, é o
sinal seguro de que houve um desvio do estreito caminho de Cristo, e de que
estamos sobre o caminho largo que conduz à perdição[116].
Não julgar
Não condene o ímpio, nem aquele que é manifestamente um malfeitor:
“Que ele esteja em pé ou caia, isso cabe ao seu mestre[117]”.
Não odeie a quem o calunia, nem a quem o injuria, nem o assaltante, nem o
assassino: eles o crucificam à direita do Senhor, segundo uma misteriosa
disposição dos julgamentos de Deus; assim, com toda consciência e convicção,
você poderá dizer ao Senhor durante sua prece: “Eu recebi o que mereço.
Lembre-se de mim, Senhor, em seu reino”. Compreenda, depois das aflições que o
afligiram, sua inexprimível alegria, sua eleição por Deus, e ore com uma prece
ardente por esses benfeitores graças aos quais lhe foi concedida essa graça,
por cuja mãos você foi arrancado do mundo e levado à morte por Ele, por cujas
mãos você foi elevado até Deus. Sinta por eles uma compaixão semelhante à que
Deus sente em relação à humanidade afundada no pecado, Ele que entregou Seu
Filho em sacrifício redentor por sua criatura hostil, mesmo sabendo que na sua
grande maioria, os homens escarneceriam dessa Vítima e a desprezariam.
Essa misericórdia, que vai até o amor pelos inimigos, que se expressa
através de orações por eles acompanhadas de lágrimas, conduz a um conhecimento
vívido da Verdade. A Verdade é a Palavra de Deus, o Evangelho; a Verdade é
Cristo. o conhecimento da Verdade introduz na alma a justiça divina, depois de
ter expulsado daí a justiça humana decaída e corrompida pelo pecado; a justiça
divina dá testemunho de sua entrada na alma pela paz de Cristo. Essa paz torna
o homem ao mesmo tempo templo e sacerdote do Deus Vivo: “O lugar onde Ele
reside é a paz, e sua morada está em Sião. Ali Ele partiu a força do arco, do
escudo, da espada e da guerra[118]”.
O testemunho dos Padres
Os maiores dentre os mestres do monarquismo trataram da bem-aventurada
unificação do homem consigo mesmo sob o efeito da paz de Cristo. São João
Clímaco disse: “Eu clamei de todo meu coração, vale dizer, com meu corpo, minha
alma e meu espírito: pois onde esses dois últimos estiverem reunidos, Deus
estará no meio deles[119]”.
Santo Isaac de Sceta escreveu: “Se, a exemplo das virgens sábias, você sabe que
sua lâmpada está cheia de azeite, você poderá também penetrar na câmara nupcial
sem ser obrigado a permanecer fora. Se você sente que seu espírito, sua alma e
seu corpo estão perfeitamente unificados e que ressuscitarão imaculados no dia
de nosso Senhor Jesus Cristo, se sua consciência não o acusa nem o condena, se
você se tornou uma criança conforme a palavra do Senhor, que disse: “Deixai as
crianças, e não a impeçais de vir a mim, pois o Reino dos céus pertence aos que
a elas se assemelham[120]”,
então, em verdade, você se tornou a esposa [de Cristo] e o Espírito Santo
repousa em você, mesmo que você ainda habite esse corpo[121]”.
Por sua vez, santo Isaac o Sírio escreve: “Não compare os que realizam sinais,
milagres e grandes prodígios no mundo com os que vivem o hesiquiasmo com
conhecimento. Ame a inatividade da hesíquia mais do que saciar os famintos do
mundo e mais do que conduzir os numerosos povos pagãos a adorar a Deus. Mais
vale para você se livrar das cadeias do pecado do que libertar escravos de sua
servidão. Mais vale para você estabelecer a paz com sua alma a fim de criar a
harmonia na tríade que existe dentro de você – falo do corpo, da alma e do
espírito – do que pacificar com seu ensinamentos aqueles que divergem em suas
opiniões[122]”.
A santa paz consiste na imobilidade do intelecto que provém da
realização dos mandamentos do Evangelho, de que fala santo Isaac o Sírio nos
seu 56º Discurso ascético. São
Gregório o Teólogo e são Basílio o Grande a sentiram, e depois disso se
retiraram para o deserto. Ali eles se ocuparam de seu homem interior; tendo-o
conformado por inteiro ao Evangelho, eles foram admitidos à contemplação dos
mistérios do Espírito. É evidente que o intelecto adquire essa imobilidade ou
ausência de vagabundagem dos pensamentos (a supressão das distrações) depois de
sua união com a alma. Sem isso ele não pode se impedir de planar e se dispersar
em todas as direções. Quando, sob a ação da graça divina, o intelecto se une ao
coração, ele recebe o poder da prece de que fala são Gregório o Sinaíta: “Se
Moisés não tivesse recebido de Deus o bastão do poder, ele não teria ferido o
faraó do Egito; da mesma forma, o intelecto, se não tiver em mãos o poder da
prece, não poderá derrotar o pecado e as forças adversas[123]”.
Testemunho de são Serafim de Sarov
Em seu Instruções Espirituais,
o hieromonge Serafim de Sarov expõe o ensinamento relativo à paz de Cristo com
notável clareza e grande simplicidade; ali ele sublinha a excelência e a
importância desse dom. tudo provém diretamente da santa experiência do coração:
“Quando o intelecto e o coração estão unidos na prece, e os pensamentos da alma
não estão mais dispersos, o coração se enche de calor espiritual no qual a luz
de Cristo começa a brilhar, enchendo de paz e de alegria o homem interior por
inteiro[124]”.
“Nada é melhor do que possuir a paz de Cristo; contra ela se destroem
todos os ataques dos espíritos que estão nos ares e sobre a terra. Sinais de um
homem sábio: ele mergulha seu intelecto no interior e concentra sua atividade
em seu coração. Então a graça divina o cobre com sua sombra e ele permanece
numa disposição interior pacífica e mais do que pacífica; numa disposição
pacífica, ou seja, com boa consciência; numa disposição mais do que pacífica,
pois seu espírito contempla a graça do Espírito Santo, segundo a palavra de
Deus: “O lugar onde Ele reside, aí é a paz[125]”.
Quando um homem se encontra numa disposição pacífica, ele colhe como com uma
colher[126]
os dons espirituais. Quando o homem entra num estado de paz, ele pode derramar
sobre outros a luz do conhecimento”.
“Essa paz, nosso Senhor Jesus Cristo a deixou aos seus discípulos antes
de Sua morte como um tesouro precioso, ao dizer: “Eu vos deixo a paz, eu vos
dou a minha paz[127]”.
Devemos concentrar todos os nossos esforços, nossos desejos e nossas ações na
aquisição da paz divina, e clamar sempre com a Igreja: “Senhor nosso Deus, dai-nos
a paz.”[128]”.
“Por todos os meios possíveis, é preciso tentar conservar a paz da
alma e não se deixar perturbar por ofensas; para tanto, devemos a todo custo
nos esforçar por conter a cólera e para proteger, por meio da atenção, nosso
intelecto e nosso coração de todo movimento inconsiderado. É preciso suportar
as ofensas com equidade de alma, e se acostumar a vê-las como se não fossem
conosco, mas com outra pessoa. Essa prática pode trazer o silêncio ao coração
do homem e fazer daí a própria morada de Deus”.
“Vemos na Vida de Païssios o
Grande como podemos vencer a cólera. Ele pediu ao Senhor Jesus Cristo, que lhe
aparecera, para que o libertasse da cólera. Cristo lhe respondeu: “Se você
quiser vencer a cólera e o enfurecimento, não deseje nada, não odeie nem
despreze ninguém[129]”.
Para conservar a paz da alma, é preciso afastar de si a acídia e se esforçar
por ter um espírito alegre e não triste, segundo as palavras do Eclesiástico:
“A tristeza destruiu a muitos, e não existe utilidade nela[130]”.
Para conservar a paz da alma, é preciso a todo custo evitar julgar os outros. É
pela ausência de julgamento e pelo silêncio que se conserva a paz da alma:
quando o homem se encontra em semelhante disposição, ele recebe revelações
divinas[131]”.
“O Reino de Deus [...] é a justiça, a paz e a alegria no Espírito Santo. Aquele
que serve a Cristo dessa maneira á agradável a Deus[132]”.
Paz e humildade
A paz de Cristo é a fonte da prece incessante, da prece cumprida no
intelecto, no coração, na alma e no espírito, da prece movida pela graça – da
prece que jorra de todo o ser humano sob a ação do Espírito Santo. A paz de
Cristo é a fonte de onde provém constantemente a bendita humildade de Cristo,
essa humildade que ultrapassa a inteligência humana. Não estaremos enganados se
afirmarmos que a prece movida pela graça consiste na humildade inspirada pela
graça, e que a humildade inspirada pela graça é a prece incessante.
Os Padres falam da humildade
Achamos indispensável expor aqui a estreita ligação que une a prece à
humildade. O que é a humildade: “A humildade, dizem os Padres, é divina e
insondável[133]”.
É a mesma coisa que disse o Apóstolo: “A paz de Deus que ultrapassa toda
inteligência[134]”.
Podemos, portanto, definir corretamente a humildade assim: a humildade é a
misteriosa atividade da insondável paz de Deus, captada além de todo conceito
apenas por uma experiência bem-aventurada. Para formular essa definição de
humildade, guiamo-nos pelo Senhor, que disse: “Vinde a mim, vós que estais
fatigados e carregados, e eu vos darei meu repouso. Tomem sobre vós meu jugo e
aprendei comigo, que sou manso e humilde de coração; então encontrareis o
repouso para vossas almas[135]”.
João Clímaco
Comentando essas palavras, são João Clímaco diz: “Aprendam, não de um Anjo, nem de um homem, nem de um livro, mas de mim, ou seja, de minha presença em
vocês, de minha iluminação e de minha operação em vocês, que sou manso e humilde de coração, de pensamento e de espírito, e encontrarão repouso para suas almas,
pois se libertarão das lutas e dos pensamentos passionais[136]”.
Essa instrução é eficaz, pois ela procede da experiência e é inspirada pela
graça!
Mais adiante, ainda no mesmo Degrau da humildade, são João Clímaco
enumera diversas características da humildade que podem ser conhecidas e
apreendidas não apenas pelo possuidor desse tesouro espiritual mas também por
seus amigos sinceros no Senhor, pois ele acrescenta: “O possuidor dessa grande
riqueza (a humildade) possui em sua alma sinais característicos (graças aos
quais ele pode saber que se tornou possuidor da humildade), muito superiores
aos que foram mencionados mais acima. Pois todos aqueles, com exceção desse,
podem ser percebidos por observadores externos. Você reconhecerá sem risco de
erro que essa santa realidade (a humildade) está presente, se constatar em si
mesmo uma abundância de luz inefável e um indizível desejo de orar[137]”.
O homem humilde visto por santo Isaac o Sírio
À questão: “Quais são os sinais distintivos da humildade?”, santo
Isaac o Sírio respondeu: “A elevação da alma provoca sua dissipação,
obrigando-a a planar (por causa dos fantasmas que ela provoca), pois então ela
se deixa transportar sobre as nuvens de seus pensamentos e assim ela percorre
toda a criação. Ao contrário (ao inverso da elevação) a humildade reúne a alma
na hesíquia; graças à humildade, a alma se concentra sobre si mesma. Assim como
a alma é desconhecida e invisível para os olhos do corpo, também o homem
humilde passa desapercebido, embora se encontre no meio dos homens. Assim como
a alma está escondida no interior do corpo, subtraída aos olhos dos homens e
aos contatos com eles, também o homem verdadeiramente humilde não apenas não
deseja ser visto nem reconhecido pelos homens em razão de seu isolamento de
todos e de sua pobreza em todos os domínios, como ainda ele desejaria
desaparecer até aos seus próprios olhos e mergulhar no interior de si mesmo,
vivendo e permanecendo na hesíquia, tendo esquecido completamente seus
pensamentos e seus sentimentos de antes, e se tornando, por assim dizer, como
alguém que não está na criação e que não chegou ainda a existir[138],
desconhecido até para sua própria alma. Esse homem está oculto e separado do
mundo na medida em que ele permanece inteiramente em seu Mestre[139]”.
Que estado é esse, senão aquele produzido pela prece movida pela graça,
pela prece do intelecto, do coração e da alma? Podemos permanecer no Senhor de
outra forma que não nos unindo a Ele pela prece pura? No mesmo Discurso se encontra a resposta de santo
Isaac à questão: “O que é a prece?”, quando ele responde: “A prece é a abolição
do pensamento e sua separação de tudo o que é daqui de baixo, enquanto o
coração volta inteiramente o seu olhar para o futuro esperado”.
Humildade e prece
Assim, portanto, a verdadeira prece e a verdadeira humildade não são
elas a mesma coisa no que se refere às suas operações a aos seus efeitos? A
prece é a mãe das virtudes e a porta que conduz a todos os dons espirituais.
Por meio da prece atenta, cuidadosamente cumprida com paciência e perseverança,
adquirimos tanto a prece movida pela graça como a humildade inspirada pela
graça. Seu doador é o Espírito Santo, seu doador é Cristo; como não seriam elas
nesse ponto semelhantes, sendo sua origem única? Como, provindo dessa origem,
não seriam todas as virtudes unidas entre si por uma concórdia e uma harmonia
notáveis? Elas aparecem de súbito no cristão quando Cristo penetra em sua
câmara interior para prestar atenção às lamentações daquele que se encontra
fechado aí e para retirar a causa desse lamento.
“A prece é a mãe das virtudes, disse são Marcos o Asceta, ela as
coloca no mundo por sua união com Cristo”. São João Clímaco chamou a prece de
“mãe das virtudes[140]”,
e a humildade de “destruidora das paixões[141]”.
A unificação do homem
Precisamos explicar e tornar mais compreensível a união entre o
intelecto, a alma e o corpo, para aqueles que não tiveram ainda a experiência,
a fim de que a possam reconhecer quando, pela misericórdia de Deus, ela começar
a se realizar neles. Essa união é totalmente real e perceptível: ela não é
absolutamente produto da imaginação ou qualquer coisa que não se fundamenta em
mais do que uma impressão enganosa. Podemos, numa certa medida, explicá-la a
partir do estado oposto no qual nos encontramos habitualmente, todos nós. O
estado inverso – a divisão do intelecto, da alma e do corpo, e sua atividade
não concordante que se transforma frequentemente em antagonismo recíproco – é a
consequência amarga da queda de nossos ancestrais[142].
O estado de queda
Quem não constata em si essa atividade discordante? Quem não percebe
uma luta interior e o tormento que ela provoca? Quem não reconhece nessa luta,
nesse tormento – muitas vezes insuportáveis – nossa enfermidade, o indício, a
prova convincente de nossa queda? Nosso intelecto ora ou se encontra em
meditação numa disposição piedosa, mas em nosso coração e em nosso corpo se
agitam diversos desejos impuros, diversas pulsões passionais; elas atraem com
força o intelecto para que ele se desvie de seu exercício, e, na maior parte
das vezes, o fazem com sucesso. Os próprios sentidos corporais, em especial a
vista e o ouvido, agem contra o intelecto: fornecendo a ele continuamente
impressões do mundo material, o empurram para a distração e a dispersão.
Mesmo o corpo ora
Mas quando, durante a prece, graças à inefável misericórdia de Deus, o
intelecto entra em união com o coração e com a alma, então a alma começa,
primeiro aos pouco e depois por inteiro, a se voltar, junto com o intelecto,
para a prece. Para terminar, nosso próprio corpo corruptível se voltará, ele
também, para aprece, ele que foi criado com o desejo de Deus, mas que, em
consequência da queda, foi contaminado com o desejo próprio dos animais. Então
os sentidos corporais se mantêm inativos: os olhos olhas mas não veem; ou
ouvidos ouvem, mas ao mesmo tempo não escutam[143].
Então o homem é tomado por inteiro pela prece: mesmo suas mãos e seus pés, seus
dedos, tudo participa, de uma maneira inefável mas completamente real e
perceptível, da prece, e tudo se enche de uma força que a palavra humana não
pode explicar.
Quando a prece expulsa os pensamentos
Quando o homem se encontra num estado de paz em Cristo e de prece, ele
se torna inacessível a todo e qualquer pensamento pecaminoso – esse homem para
quem, antes, cada encontro com o pecado representava uma derrota certa. A alma
sente que um inimigo se aproxima dela; mas a força da oração que a preenche não
permite que o inimigo se aproxime mais e que profane o templo de Deus. Aquele
que ora sabe que o inimigo veio, mas não sabe com qual pensamento (passional),
nem com que forma de pecado. São João Clímaco diz: “Quando o maligno se afasta
de mim, eu já não percebo[144],
e nem sei como ele veio, nem porque veio, nem como partiu; eu permaneço sem
nenhuma impressão, pois agora estou unido a Deus, e com Ele permanecerei para
sempre[145]”.
Quando o intelecto está unido à alma, é útil se dedicar à lembrança de
Deus, em particular à Prece de Jesus: os sentidos corporais podem então
permanecer inativos, e isso contribui de modo considerável para atingir uma
profunda concentração e para obter os frutos que daí resultam. Não apenas
podemos, como devemos fazer uma leitura orante dos Salmos e de outras orações
quando o intelecto e a alma estão unidos, pois essa união reforça
consideravelmente a atenção. Mas como, durante a Salmodia, todo tipo de
pensamento se apresenta ao intelecto, ele não consegue ficar ao abrigo da
dispersão, senão durante uma prece curta e uniforme. É preciso também unir o intelecto
com a alma quando lemos a santa Escritura e as obras dos santos Padres: a
leitura se tornará bem mais frutífera. “Pedimos ao intelecto, diz são João Clímaco,
a cada vez que ele ora (e também quando se aplica à leitura, pois essa alimenta
a oração e constitui um ramo da prece e da atividade espiritual) que ele
manifeste a força que lhe foi dada por Deus: estejamos atentos[146]”.
É preciso perseverar
Irmão, se você ainda não sentiu a união entre o intelecto, a alma e o
corpo, então aplique-se à prece dita com atenção, unindo seu intelecto à prece oral
e, em determinados momentos também à prece vocal. Persevere nos mandamentos do
Evangelho; lute contra as paixões com paciência e longanimidade; não caia na
acídia e não perca a coragem quando for vencido por pensamentos e sentimentos
pecaminosos; mas, por outro lado, tampouco se deixe vencer voluntariamente. Se você
cair, levante-se; se cair de novo, levante-se outra vez – até que você aprenda
a andar sem tropeçar. O cálice da impotência tem sua utilidade; até um certo
ponto a Providência divina permite que ele seja apresentado ao asceta para purificá-lo
do orgulho, da cólera, do azedume, da condenação dos, da soberba e da
vanglória. É particularmente importante despistar em si a atividade da
vanglória, e domá-la. Enquanto ela agir, o homem não estará apto para entrar no
domínio da vida espiritual aonde se chega pela vitória sobre as paixões, a apatheia dada pela vinda da paz de
Cristo.
Quando reina a paz
Se, ao contrário, você sentir que seu intelecto se uniu à sua alma e
ao seu corpo, que você não está dividido pelo pecado, mas que forma um todo bem
unificado, e que a santa paz de Cristo reina em você, guarde então esse dom de
Deus com o maior cuidado possível. Que a prece e a leitura dos livros santos se
torne sua principal ocupação; deixe para os demais afazeres uma importância
secundária; quanto aos negócios mundanos, mantenha-se indiferente em relação a eles
e, se puder, não se misture com eles em absoluto.
A paz, enquanto sopor do Espírito Santo, é delicada – ela abandona
imediatamente a alma que se conduz inconsideradamente na sua presença, que se
afasta da piedade, que trai sua lealdade por indulgência para com o pecado e
que se deixa cair no relaxamento. Ao mesmo tempo a paz de Cristo, a prece
movida pela graça se afasta da alma indigna e então, como feras famintas, as
paixões irrompem nela e começam a despedaçar a vítima que se ofereceu espontaneamente,
entregue a si mesma por Deus, que se retirou dela[147].
O que provoca a perda da paz
Se você come até a saciedade, em especial se você se embriaga, a santa
paz deixará de operar em você. Se você se encolerizar, sua ação se interromperá
por um longo tempo. Se você se permitir ser insolente, ela cessará de agir. Se você
se ligar a qualquer coisa terrestre, se tiver uma paixão por um objeto, por
qualquer trabalho manual, ou uma ligação particular com uma pessoa,
infalivelmente a santa paz se retirará de você. Se você se permitir deleitar-se
com pensamentos voluptuosos, ela o abandonará por um longo tempo, por muito
tempo, pois ela não suporta o mau odor do pecado, em especial o da fornicação e
o da vanglória. Você a buscará, mas não a encontrará. Você irá chorar sua
perda; mas ela não dará atenção ao seu pranto, para que você aprenda a apreciar
o justo valor do dom de Deus e a guardá-lo com o cuidado e a piedade que lhe é
devido.
Como lutar
Odeie tudo o que o puxa para baixo, para as distrações, para o pecado.
Crucifique-se na crua dos mandamentos evangélicos; permaneça sempre pregado
nela. Recuse com coragem e vigor todos os pensamentos e todos os desejos
pecaminosos; corte as preocupações mundanas; cuide para viver em si o Evangelho
cumprindo prontamente todos os mandamentos. Na hora da prece, crucifique-se
novamente, crucifique-se sobre a cruz da prece. Afaste de si todas as
lembranças, mesmo as mais importantes, que surgem em você durante a oração –
ignore-as. Não “teologize”, nem se deixe arrastar no exame de pensamentos
brilhantes, novos e fortes, se eles começarem a proliferar subitamente em você.
O silêncio sagrado que a percepção da grandeza de Deus faz vir sobre o
intelecto no momento da prece, dá testemunho de Deus com mais força e elevação
do que qualquer palavra. “Se você orar verdadeiramente, você é teólogo[148]”,
dizem os Padres.
Você possui um tesouro! Os ladrões invisíveis o sabem: eles se dão
conta quando perdem sua influência sobre você[149].
Eles ficam ávidos por roubar-lhe o dom de Deus. Eles são hábeis; eles possuem
uma rica experiência e são engenhosos em fazer o mal. Seja atento e prudente. Guarde
e desenvolva em você o sentimento do arrependimento; jamais se satisfaça com
seu estado, mas veja-o como um meio para adquirir o verdadeiro arrependimento. A
pobreza espiritual conservará em você o dom da graça, o protegerá contra todas
as armadilhar e todas as seduções do Inimigo: “ao coração contrito e humilhado
Deus não desprezará”, nem o entregará ao Inimigo, privando-o da salvação e da
graça. Amém.
[1]
Mateus 26: 30.
[2]
Cf. João 11: 41-42.
[3]
Atos 16: 26.
[4] I
Samuel 1: 13.
[5]
Hebreus 13: 15.
[6]
CF. Efésios 5: 19.
[7] I
Coríntios 14: 8-9.
[8] Do homem interior.
[9] Discursos ascéticos, 40.
[10]
Cf. João 4: 24.
[11]
Pedro Damasceno, Da terceira contemplação,
in Filocalia, Tomo III, Vol. 2.
[12]
Cf. Vida, in Menologion, 24 de Maio. A Montanha Admirável é o monte Samandag, na
Turquia;
[13]
Cf. Discursos ascéticos, 31.
[14]
Cf. a Vida desse santo.
[15]
Cf. a Vida manuscrita de santo
Hilário de Souzdal.
[16]
Cf. Livro de Orações, primeira oração
matinal: “Ao despertar eu te dou graças, ó santa Trindade...”.
[17]
Cf. ibid., sexta prece matinal: “Nós
Te bendizemos, ó Deus Altíssimo...”.
[18]
Simeão o Novo Teólogo, Método para a
santa prece e a atenção, A terceira
prece, in Filocalia, Tomo V.
[19]
São Gregório o Sinaíta, Da hesíquia e de
duas maneiras de orar, 8, in Filocalia,
Tomo IV.
[20]
Jeremias 48: 20.
[21] I
Coríntios 2: 2.
[22]
Colossenses 2: 3.
[23]
Lucas 21: 36.
[24]
Lucas 21: 36.
[25]
Cf. Mateus 25: 32.
[26] I
Pedro 4: 7; 5: 8-9.
[27] I
Tessalonicenses 5: 17.
[28]
Filipenses 4: 6.
[29]
Colossenses 4: 2.
[30] I
Timóteo 2: 8.
[31] I
Coríntios 6: 17.
[32]
Lucas 18: 7-8.
[33] Discursos ascéticos, 21.
[34]
Cf. o Euchologion, o livro que contém
o ritual da profissão monástica do “pequeno hábito”. Ao entregar o terço ao
noviço, o superior lhe ordena dizer sem cessar a Prece de Jesus; ao receber o
terço, o noviço se compromete a cumprir essa ordem.
[35]
CF. Atos 1: 14.
[36]
Isaías 56: 7.
[37]
Isaac o Sírio, op. cit., 21.
[38]
Cf. Atos 6: 2-4.
[39]
Santo Antônio o Grande, Obras, PG 60,
1080.
[40] A Escada Santa, IV, 19.
[41]
Cf. João Cassiano, Conferências, X,
10.
[42]
Cf. Vida de são Dositeu, in Doroteu
de Gaza, Obras espirituais. Tb. Menologion, 19 de Fevereiro.
[43]
Cf. A oração das Horas, ofício das Completas.
[44]
Cf. Apophtegmas, a partir de um
manuscrito do bispo Inácio.
[45]
Cf. Discurso ascético, 52.
[46]
Cf. Da hesíquia e das duas maneiras de
orar, 2, in Filocalia, tomo IV.
[47]
Cf. João 11: 39, 43-44.
[48]
Cf. Isaac o Sírio, op. cit., 72.
[49] A Escada Santa, XX, 7.
[50]
Salmo 38: 4.
[51]
Hebreus 12: 29.
[52] Apophtegmas, série alfabética, letra I.
[53] Discursos ascéticos, 8.
[54] Ibid., 69.
[55] Salmo 69: 2 (mencionado mais acima).
[56] Conferências, X, 10.
[57]
São João Crisóstomo, cit. Calixto e Inácio Xantopouloi, Centúria Espiritual, 21, in Filocalia,,
Tomo IV.
[58]
Abade Filemon, Discurso muito útil,
in Filocalia, Tomo II.
[59]
Cf. o ensinamento de santo Isaías o Anacoreta, que compara a alma guardada pela
meditação a uma casa trancada e protegida de todos os lados.
[60]
Jó 38: 11.
[61] I
Coríntios 2: 9.
[62]
Cf. Marcos 10: 30.
[63] Op. cit., XXVIII, 34.
[64]
II Coríntios 2: 16.
[65] A escada santa, XXVIII, 27; cf. Salmo
72: 25, 28.
[66]
Cf. santo Isaac o Sírio, Discursos
ascéticos, 55.
[67]
Santo Isaac o Sírio, Discursos ascéticos,
5: “Não devemos buscar prematuramente aquilo que nos ultrapassa, a fim de que o
dom de Deus não seja dissipado em razão da rapidez com a qual o obtivemos. Tudo
o que é adquirido facilmente também se perde facilmente; mas o que se adquire
com dor no coração é a seguir guardado com cuidado”.
[68]
Cf. Simeão o Novo Teólogo, Método para a
santa prece e a atenção, in Filocalia,
tomo V.
[69]
Lucas 17: 20.
[70] Op. cit., 55.
[71] I
Coríntios 2: 9.
[72]
Gênesis 3: 5.
[73]
Cf. I Reis, 18.
[74]
Mateus 21: 13; cf. Isaías 56: 7.
[75]
Ezequiel 16: 49.
[76]
Cf. Mateus 5: 22.
[77]
Marcos 11: 25-26.
[78]
Cf. Mateus 5: 44.
[79]
Cf. João 4: 24.
[80]
Cf. Marcos o Asceta, Discurso, VII, Sobre o jejum e a humildade.
[81]
Cf. Isaías o Anacoreta, Coletânea
ascética, Logos 8, 1. Esse monge, que era profundamente interiorizado,
dizia: “Às vezes eu me vejo como um cavalo que erra sem cavaleiro; quem o
encontra, monta; quando um o deixa, outro o pega e, da mesma maneira, se apossa
dele”.
[82]
Filipenses 4: 5-6.
[83]
Cf. I Pedro 4: 7; 5: 7.
[84]
Cf. I Timóteo 2: 8.
[85]
Cf. Salmo 118: 128.
[86]
Cf. Salmo 39: 9.
[87]
Salmo 96: 10.
[88] I
Coríntios 15: 50.
[89] Salmo
50: 19.
[90]
Cf. São João de Carpathos, Capítulos de
Exortações, 87, in Filocalia,
tomo I.
[91]
Segundo a explicação dada por São Macário o Grande, Homilias espirituais XXXVII, 5, e por São Marcos o Asceta, Discurso, VI.
[92]
Essa passagem coloca em evidência a ilusão ante a qual sucumbem os
representantes dos numerosos movimentos “espiritualistas” que se desenvolvem
hoje em dia à margem e fora da Tradição da Igreja.
[93] Discursos ascéticos, 56.
[94]
João 5: 44.
[95]
Colossenses 2: 18.
[96]
“Antes de tudo [de todos os bens espirituais] o Senhor liberta o intelecto das
distrações”. Calixto e Inácio Xanthopoulos, op.
cit., 24.
[97]
Cf. Diálogo entre São Máximo o
Capsocalyvita e São Gregório o Sinaíta, in Filocalia, Tomo V.
[98]
Cf. Salmo 103: 22-23.
[99] Apoftegmas, Poêmio.
[100]
Marcos 12: 30; Deuteronômio 6: 5.
[101]
Cf. Barsanulfo e João de Gaza, Correspondência,
Resp. 93; são Gregório Palamas, Carta à
monja Xênia.
[102]
Gálatas 5: 22-23.
[103]
Cf. Santo Isaac o Sírio, op. cit.,
15.
[104]
I Coríntios 6: 17.
[105]
João 14: 27.
[106]
João 16: 33.
[107]
Filipenses 4: 7.
[108]
CF. João 6: 33.
[109]
Cf. I Reis 19: 12.
[110]
Isaías 9: 6-7, texto eslavônico.
[111]
Salmo 71: 7.
[112]
Salmo 28: 11.
[113]
Salmo 36: 11.
[114]
Cf. João 16: 14.
[115]
Salmo 84: 11.
[116]
Cf. Mateus 7: 13. Barsanulfo e João de Gaza, Correspondência, Resposta 24.
[117]
Romanos 14: 4.
[118]
Salmo 75: 3-4.
[119]
Escada Santa, XXVIII, 64; Salmo 118:
145; Mateus 18: 20.
[120]
Mateus 19: 14.
[121]
Abade Isaías, Coletânea ascética,
Logos 19.
[122]
Discursos ascéticos, 56.
[123]
Filocalia, Tomo IV, capítulo 114.
[124]
Instruções, 11, Sobre a prece.
[125]
Salmo 75, 3.
[126]
Refere-se à colher utilizada na comunhão durante a Divina Liturgia.
[127]
João 14: 27.
[128]
Isaías 26: 12.
[129]
Vida de Païsios o Grande, Menologion, 19 de Junho.
[130]
Eclesiástico 30: 25.
[131]
Instruções, 3 e 4.
[132]
Romanos 14: 17-18.
[133]
Doroteu de Gaza, Obras Espirituais,
Instruções, II, Sobre a humildade.
[134]
Filipenses 4: 7.
[135]
Mateus 11: 28-29.
[136]
Escada Santa, XXV, 3.
[137]
Ibid. XXV, 27.
[138]
Quando, no impulso da oração, o homem sai do mundo criado sem ainda alcançar o
Ser divino, ele se encontra num estado intermediário – entre a existência
criada e o Ser incriado – própria dos que se arrependem. (N.T.)
[139]
Discursos Ascéticos, 48.
[140]
Daqueles que pensam que a justificação
provém das obras, cap. 35, in I, Tomo I.
[141]
Cf. Escada Santa, XXVIII e XXV.
[142]
São Simeão o Novo Teólogo define esse estado de nossa natureza como “seu
despedaçamento”. Cf. Catequeses, 3.
[143]
Cf. São Simeão o Novo Teólogo, Catequeses,
10.
[144]
Salmo 100: 4.
[145]
A Escada Santa, XXIX, 9.
[146]
Ibid., XXVIII, 41.
[147]
CF. Salmos 103, 29 e 21,
[148]
São Nilo o Sinaíta, Capítulos sobre a
prece, 60.
[149]
“Quando o Senhor libertou os cativos de Sião, parecíamos sonhar: a nossa boca
se encheu de riso, e a nossa língua de exultação. Até entre as nações se dirá: “O
Senhor fez maravilhas com eles!” (Salmo 125: 1-2). Nos Salmos, o termo “Nação”
designa, em seu sentido místico, os demônios. O asceta reconhece que está
liberto da escravidão dos demônios quando seu intelecto não mais se deixa arrastar
pelos pensamentos e imagens que eles lhe sugerem, quando ele começa a orar uma
prece pura, sempre unida a uma consolação espiritual. Também os demônios
reconhecem essa libertação: “Até entre as nações se dirá: “O Senhor fez maravilhas
com eles!”.
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