quarta-feira, 2 de março de 2016

Leonid Ouspensky - O sentido e o conteúdo do Ícone - Parte 1

O sentido e o conteúdo do Ícone derivam dos ensinamentos que a Igreja Ortodoxa formulou em resposta ao movimento iconoclasta dos séculos VIII e IX.

O fundamento dogmático da veneração dos ícones e o sentido da imagem litúrgica acham-se revelados sobretudo pela liturgia de duas festas: a da Santa Face e a do Triunfo da Ortodoxia, festa da vitória do ícone e do triunfo definitivo do dogma da encarnação divina.

Tomaremos como base de nosso estudo o kontakion do Triunfo da Ortodoxia, que é um verdadeiro ícone verbal da festa. De uma riqueza e profundidade extraordinárias, esse texto exprime todo o ensinamento da Igreja sobre a imagem. Estima-se que ele não seja posterior ao século X; mas é possível que ele seja contemporâneo ao cânon da festa. Neste caso, ele remontaria ao século IX, ou seja, ao momento mesmo do Triunfo da Ortodoxia. Com efeito, o cânon da festa foi escrito por são Teófano o Marcado[1], confessor da ortodoxia durante o segundo período iconoclasta. São Teófano foi metropolita de Nicéia e faleceu em 847. Esse cânon, portanto, terá sido escrito por um homem  que participou pessoalmente da luta pelo ícone. Ele representa a soma de toda a experiência da Igreja, uma experiência concreta, vivida, da revelação divina, uma experiência que foi defendida ao preço do sangue. Sob uma forma concisa e exata, ela exprime em três frases, por ocasião do triunfo do ícone, toda a economia da salvação e, por meio dessa, o ensinamento sobre a imagem e seu conteúdo:

O Verbo indescritível do Pai se fez descritível, ao se encarnar em ti, ó Mãe de Deus,
E, tendo restabelecido em sua dignidade original a imagem manchada, ele a uniu à beleza divina.
Confessando a salvação, nós expressamos[2] isto pela ação e pela palavra.

A primeira parte desse kontakion exprime o rebaixamento da segunda Pessoa da Santíssima Trindade e, com isso, a base cristológica do ícone. As palavras seguintes revelam o sentido da encarnação, a realização do plano divino em relação ao homem e, por conseguinte, ao universo. Podemos dizer que essas duas primeiras frases explicitam a fórmula patrística: “Deus se fez homem para que o homem pudesse se tornar deus”. O fim do kontakion expressa a resposta do homem a Deus, nossa confissão da verdade salutar da encarnação, a aceitação pelo homem da economia divina e sua participação na obra de Deus, e, por consequência, a realização de nossa própria salvação: “Confessando a salvação, nós expressamos isto pela ação e pela palavra”.

O conteúdo da primeira parte do kontakion (“O Verbo indescritível do Pai se fez descritível, ao se encarnar em ti, ó Mãe de Deus”) pode ser resumido da seguinte maneira: a segunda Pessoa da Santíssima Trindade se tornou Homem, enquanto permanecia sendo aquilo que era, ou seja, plenamente Deus, possuindo a plenitude da natureza divina e, em Sua Divindade, “Verbo indescritível do Pai”. Deus assume a natureza humana que ele próprio criou: Ele empresta da Mãe de Deus essa natureza humana na sua totalidade e, sem modificar Sua Divindade, sem misturá-la com a humanidade, se torna simultaneamente Deus e Homem: “O Verbo se fez carne, a fim de que a carne pudesse se tornar verbo”, segundo a expressão de são Marcos o Asceta[3]. Este rebaixamento é a kenosis de Deus: Aquele que é absolutamente inacessível à criatura, que não é nem descritível nem representável de modo algum, se torna descritível e representável ao assumir a carne do homem. O ícone de Jesus Cristo, do Deus Homem, é uma expressão pela imagem do dogma da Calcedônia: com efeito, ela representa a Pessoa do Filho de Deus que se tornou homem, que por Sua natureza divina é consubstancial ao Pai, e por Sua natureza humana consubstancial a nós, “semelhante a nós em tudo, salvo o pecado”, segundo os termos desse dogma. Cristo reuniu em Si, durante Sua vida terrestre, a imagem de Deus e a do escravo de que fala são Paulo[4]. Os homemns que cercavam Cristo não viram Nele mais do que um homem, quase sempre um profeta. Para os descrentes, Sua Divindade estava oculta sob a forma do escravo. Para eles o Salvador do mundo não passou de um personagem histórico, o homem Jesus. Mesmo os discípulos mais amados não viram mais do que uma vez, antes da Paixão, a Cristo não em sua forma de escravo, mas em Sua humanidade glorificada, deificada: isso se deu no momento de Sua Transfiguração sobre o monte Tabor. Mas a Igreja tem “dois olhos para ver”, assim como “dois ouvidos para escutar”. É por isso que num evangelho escrito com palavras humanas, ela escuta a palavra de Deus. Da mesma forma, ela considera a Cristo sempre com os olhos de sua fé inquebrantável na Sua Divindade. É por isso que nos ícones ela o mostra não como um homem comum, mas como o Deus Homem em Sua glória, inclusive no próprio momento de Sua humilhação suprema. Veremos os meios de que ela se utiliza para tanto; por ora, basta notar que é justamente por isso que a Igreja ortodoxa jamais representa em seus ícones a Cristo simplesmente como um homem que sofre física e psiquicamente, como o faz a arte ocidental.

A imagem do Deus Homem é exatamente aquilo que os iconoclastas não puderam entender, como vimos. Eles perguntavam como era possível representar as duas naturezas de Cristo. Ora, os ortodoxos não sonhavam representar como tais nem a natureza divina, nem a natureza humana de Cristo: o que eles representavam, como dissemos, era Sua Pessoa, a Pessoa do Deus Homem, unindo em Si essas duas naturezas sem mistura nem divisão.

É típico que o kontakion do Triunfo da Ortodoxia se dirija não a uma das Pessoas da Santíssima Trindade, mas à Mãe de Deus. Estamos aqui diante de uma expressão da unidade do ensinamento sobre Cristo e sobre a Mãe de Deus. A encarnação da Segunda Pessoa da Trindade é o dogma fundamental do cristianismo. Mas a confissão desse dogma não é possível senão confessando a Virgem Maria como sendo verdadeiramente a Mãe de Deus. Com efeito, se a negação da imagem humana de Deus conduz logicamente à negação da maternidade divina, e por isso mesmo à negação do próprio sentido de nossa salvação, o contrário é igualmente verdadeiro: a existência e a veneração do ícone de Cristo supõe o papel da Mãe de Deus, cujo consentimento “faça-se em mim segundo sua palavra[5]” foi a condição indispensável da encarnação e também única em permitir que Deus se tornasse visível e representável. Segundo os Padres, a representação do Deus Homem se funda precisamente sobre a humanidade representável de Sua Mãe. “Por ter Cristo nascido do Pai indescritível, explica são Teodoro Estudita, ele não poderia ter uma imagem. Com efeito, que imagem poderia corresponder à Divindade cuja representação é absolutamente proibida pela Escritura? Mas a partir do momento em que Cristo nasceu de uma Mãe descritível, Ele passou naturalmente a ter uma imagem que correspondia à de Sua Mãe. Se ele não pudesse ser representado pela arte, isso significaria que ele nascera apenas do Pai e que não teria se encarnado. Mas isso é contrário a toda a economia divina de nossa salvação[6]”. Essa possibilidade de representar o Deus Homem segundo a carne que ele emprestou de Sua Mãe se opõe pelo Sétimo Concílio Ecumênico à ausência de representação de Deus Pai. Os Padres do Concílio repetiram o argumento magistral do papa são Gregório, contido em sua carta ao imperador Leão o Isauriano: “Por que não descrevemos nós, nem representamos, o Pai do Senhor Jesus Cristo? Porque não sabemos o que Ele é (...) Se nós O tivéssemos visto como vimos e conhecemos Seu Filho, poderíamos tentar descrevê-Lo e representá-Lo por meio da arte[7]”.

Esse raciocínio do Concílio, assim como as palavras de santo Teodoro Estudita tocam num assunto de grande atualidade para nós e de grande importância dogmática, a saber, a representação de Deus Pai que existe na prática eclesiástica. O pensamento humano, sabemos nós, nem sempre está à altura da iconografia autêntica. Dentre outros erros, encontramos a imagem de Deus Pai que se espalhou pela Igreja ortodoxa especialmente depois do século XVII. Voltaremos a essa questão quando analisarmos em mais detalhes a interdição da imagem de Deus Pai pelo Grande Concílio de Moscou em 1666-1667. Aqui nos limitaremos a algumas considerações de princípio referentes aos textos que citamos.

Como vimos, o Sétimo Concílio fala da ausência de imagens de Deus Pai, não encarnado, invisível e por conseguinte não representável; ele sublinha a diferença entre a representabilidade do Filho por ter Este se encarnado, e a impossibilidade de representar o Pai. Podemos concluir daí que o Concílio confirmou essa impossibilidade de figurar a Deus Pai do ponto de vista doutrinal da Igreja. Voltamos com isso ao realismo evangélico, base de toda a iconografia ortodoxa. Evidentemente, podemos representar não importa quem, pois a fantasia humana não tem limites. Mas o fato é que nem tudo é representável. Muitas coisas referentes a Deus, não apenas não são representáveis pela imagem, nem podem ser descritas pela palavra, mas são mesmo absolutamente inconcebíveis para o homem. É precisamente sobre esse caráter inconcebível, incognoscível de Deus Pai, que o Concílio se baseia ao falar da impossibilidade de termos Sua imagem. Não temos senão uma chave para o conhecimento da Santíssima Trindade: conhecemos o Pai por intermédio do Filho, pois “quem Me vê, vê Aquele que Me enviou[8]”, e “quem Me viu, viu o Pai[9]”; e o Filho pelo Espírito Santo, pois “ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’ se não for pelo Espírito Santo[10]”. Assim, nós só representamos aquilo que nos foi revelado: a Pessoa encarnada do Filho de Deus, Jesus Cristo. O Espírito Santo é representado tal qual se manifestou: sob a forma de uma pomba na Teofania, sob a forma de línguas de fogo no Pentecostes, etc.

Se a primeira parte do kontakion fala da encarnação divina enquanto fundamento do ícone, a segunda parte exprime, como dissemos, o sentido da encarnação e, por isso mesmo, o sentido e o conteúdo da imagem neotestamentária: “Tendo restabelecido em sua dignidade original a imagem manchada, ele a uniu à beleza divina”.

Isso significa quem em Sua encarnação, o Verbo de Deus recriou e renovou no homem a imagem divina manchada pela queda de Adão[11]. Cristo, o novo Adão, primícias da nova criatura, do homem celeste, conduz o homem ao objetivo para o qual o primeiro Adão foi criado. Para atingir esse objetivo era preciso retornar à origem, ao ponto de partida de Adão. Na Bíblia lemos: “Deus disse: façamos o homem à Nossa imagem, segundo Nossa semelhança[12]”. Portanto, segundo o plano da Santa Trindade, o homem deve ser não apenas a imagem de seu Criador, mas ainda uma imagem semelhante, ele deve assemelhar-se a Deus. Mas a descrição no Gênese do ato criador realizado não menciona mais a semelhança: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou[13]”. Ou ainda: “Quando Deus criou Adão, Ele o criou à imagem de Deus”, kat’eikona Theou[14]. Podemos dizer que o texto insiste sobre o termo “imagem”, repetindo-o, enquanto que a ausência da palavra “semelhança” fica bastante evidente[15].

O significado do relato bíblico sobre o projeto da Santíssima Trindade, de criar o homem “à imagem e semelhança” de Deus, e sobre a criação “à imagem de Deus”, é comentado pelos Padres no sentido de que o homem, criado à imagem de Deus, está, por conseguinte, chamado a realizar a semelhança divina. Ser feito à imagem de Deus implica ter a possibilidade de adquirir esta semelhança. Dito de outro modo, ser à semelhança de Deus é algo assinalado ao homem como uma tarefa dinâmica a ser cumprida.

É por meio do batismo que a graça restaura a imagem de Deus no homem decaído; quanto à semelhança divina, a graça a desenha mais tarde, junto com os esforços do homem para adquirir as virtudes cujo ápice é o amor, traço supremo da semelhança com Deus. “Assim como os pintores traçam primeiro com uma só cor o esboço do retrato, e depois, fazendo florescer uma cor depois da outra, aumentam a semelhança do retrato com seu modelo (...) também a graça de Deus começa a refazer no batismo a imagem tal como era quando o homem chegou à existência. Depois, quando ela nos vê aspirar com toda nossa vontade à beleza da semelhança (...) então, fazendo florescer virtude sobre virtude, elevando a beleza da alma de glória em glória, ela a faz adquirir a marca da semelhança[16]”.

Ora, o homem é um “pequeno mundo”, um microcosmo. Ele é o centro da vida criada e, por conseguinte, sendo a imagem de Deus, ele é a via através da qual Deus age sobre a criatura. É precisamente nessa imagem divina que se revela o sentido cósmico do homem. É pelo homem, através do homem, que a criatura participa da vida espiritual. Colocado por Deus à frente de todas as criaturas visíveis, o homem deveria realizar em si mesmo a união e a harmonia de tudo e unir todo o universo a Deus, fazendo dele um organismo homogêneo no qual Deus venha a ser “tudo em todas as coisas”, pois o objetivo final da criação é a sua transfiguração.

Mas o homem não cumpriu sua vocação. Ele se desviou de Deus; então a tensão de sua vontade enfraquecida e a inércia de sua natureza encobriu seu impulso para Deus. Isso provocou uma desagregação dessa microcosmo que é o homem, arrastando consigo necessariamente em seguida a desagregação cósmica, acarretando uma catástrofe em toda a criação. Todo o mundo visível foi mergulhado na desordem, na luta, no sofrimento, na morte, na corrupção. Esse mundo deixou de refletir fielmente a beleza divina, porque a imagem divina – o homem – inscrita no seu centro se obscureceu. Aconteceu assim exatamente o contrário da vocação do homem. No entanto, o desígnio de Deus não se alterou, e a tarefa que o homem decaído, incapaz de restabelecer com suas próprias forças a natureza em sua pureza primitiva, não mais pôde cumprir, foi realizada afinal pelo novo Adão, Cristo. “O homem, tal como Deus criara, deixou de existir no mundo; já não era possível que alguém se tornasse como Adão era antes da queda. Mas era preciso que tal homem existisse. Assim é que Deus, desejando ter um homem tal como havia criado Adão no princípio, enviou (...) sobre a terra Seu Filho único que, tendo vindo, se encarnou e assumiu a humanidade perfeita a fim de ser um Deus perfeito e um Homem perfeito, e a fim de que a Divindade pudesse encontrar assim um homem digno dela. Eis o Homem – ecce homo: jamais houve outro parecido, não há, nem haverá. Mas por que Cristo se tornou assim? Para guardar a lei de Deus e Seus mandamentos, e para lutar e vencer o demônio[17]”. Para salvar o homem do império do pecado original, era preciso um homem tal como Deus criara no princípio, ou seja, sem pecado, pois o pecado é uma coisa exterior, sobreposta à natureza humana, uma invenção da vontade criada, segundo são Gregório de Nisse, uma renúncia voluntária da criatura à plenitude da vida.

A encarnação do Filho de Deus não constitui apenas a recriação do homem em sua pureza primitiva, mas também a realização daquilo que o primeiro Adão não pôde cumprir. Os Padres do Sétimo Concílio Ecumênico disseram: “Deus recriou o homem na imortalidade, concedendo assim a ele um dom que já não pode ser-lhe retirado. Essa recriação foi mais semelhante a Deus e melhor do que a primeira criação, porque se trata de um dom eterno”. Esse dom de imortalidade consiste na possibilidade de aceder à beleza, à glória divina. “Ele o uniu à beleza divina”, diz o kontakion. Ao assumir a natureza humana, Cristo a impregnou com sua graça, fazendo-a participar da vida divina, e franqueou ao homem o caminho para o Reino de Deus, a via da deificação, da transfiguração. Pela vida perfeita de Cristo a imagem divina no homem foi restituída. Pela paixão livremente aceita, ele destruiu o poder do pecado original e conduziu o homem a realizar a tarefa para a qual este havia sido criado: a semelhança divina. Em Cristo essa semelhança se acha realizada num grau total, perfeito, pela deificação da natureza humana. Com efeito, a deificação significa uma concórdia perfeita, uma união total da humanidade com a Divindade, da vontade humana com a Vontade divina – sua sinergia. É por isso que a semelhança divina só é possível para um homem renovado, no qual a imagem de Deus se encontra purificada e reconstituída. Essa possibilidade se realiza em certas faculdades da natureza humana, e acima de tudo na liberdade. A aquisição da natureza divina não é possível sem a liberdade, pois ela se realiza num contato vivo entre Deus e o homem. O homem penetra consciente e livremente no desígnio da Santíssima Trindade e cria em si próprio sua semelhança a Deus, na medida das suas possibilidades e com a ajuda do Espírito Santo. Daí vem o termo eslavo prepodobny, que significa literalmente “muito semelhante”, e que se aplica ao tipo monástico de santidade[18]. O renascimento do homem consiste em mudar o “estado humilhado atual” de sua natureza, fazendo-a participar da vida divina, pois, segundo a expressão clássica de são Gregório o Teólogo (que repete são Basílio o Grande) “o homem é uma criatura, mas ele recebeu ordens para se tornar deus”. Daí por diante, ao seguir a Cristo, integrando-se em Seu Corpo, o homem pode restabelecer em si a semelhança divina e fazê-la irradiar sobre o universo. Segundo as palavras de são Paulo, nós, que “contemplamos como em um espelho a glória do Senhor, nos transformamos nessa mesma imagem, de glória em glória[19]”. Quando a pessoa humana atinge esse ponto, ela participa da vida divina e transforma sua própria natureza. O homem se torna filho de Deus, templo do Espírito Santo[20]; aumentando os dons da graça, ele ultrapassa a si mesmo e se torna mais elevado do que foi Adão antes da queda, pois não apenas ele retorna à pureza do homem primitivo, como ainda ele se deifica, se transfigura, “se une à beleza divina”: ele se torna deus segundo a graça.

Essa ascensão do homem inverte o processo da queda e começa a libertar o universo da desordem e da corrupção: pois a deificação adquirida por um santo constitui as primícias da transfiguração cósmica por vir.

A imagem de Deus no homem é inapagável e o batismo não faz mais do que restabelecê-la e purificá-la. Mas a semelhança com Deus pode aumentar ou diminuir, pois, sendo livre, o homem pode se afirmar em Deus ou contra Deus; ele pode, se quiser, se tornar “filho da perdição”. Então a imagem de Deus se obscurece nele, e ele pode realizar em sua natureza uma dissemelhança abjeta, uma “caricatura” de Deus.

A transfiguração por vir da totalidade da natureza humana, incluindo-se aí a do corpo, nos foi revelada por aquela do Senhor no monte Tabor: “Ele se transfigurou diante deles: Seu rosto resplandeceu como o sol e Suas vestes se tornaram brancas como a luz[21]”. O Senhor apareceu a seus discípulos não mais sob Sua “forma de escravo”, mas como Deus. Todo o corpo de Cristo se transfigurou, tornando-se, por assim dizer, a veste luminosa de Sua Divindade. Na transfiguração sobre o monte Tabor “não apenas a Divindade apareceu aos homemns, mas também a humanidade apareceu na glória divina[22]”. E os Padres do Sétimo Concílio Ecumênico explicam: “No que diz respeito ao caráter da Transfiguração, ela aconteceu não de modo a que o Verbo tenha deixado a natureza humana, mas sim pela iluminação dessa imagem humana por Sua glória[23]”. Ou ainda, segundo as palavras de são Gregório Palamas, “Cristo não assumiu nada de estranho na ocasião, nem tomou um novo estado, mas simplesmente revelou aos seus discípulos aquilo que Ele é[24]”. A transfiguração consistiu numa manifestação perceptível para o ser humano em sua totalidade, da glória divina da segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que, em Sua encarnação, permaneceu inseparável de Sua natureza divina, comum ao Pai e ao Espírito Santo. Unidas hipostaticamente, as duas naturezas de Cristo permanecem distintas uma da outra – elas permanecem “sem mistura nem confusão”, segundo os termos da definição dogmática de Calcedônia – mas as energias divinas penetram a humanidade de Cristo e são elas que fazem resplender Sua natureza humana, transfigurando-a pelo brilho da luz incriada. É o “Reino de Deus surgindo que sua força[25]”. Segundo os Padres, Cristo mostrou aos discípulos o estado deiforme para o qual são chamados todos os homemns. Assim como o corpo de nosso Senhor foi glorificado e transfigurado, resplandecendo de glória divina e de luz indizível, também os corpos dos santos são glorificados e se tornam luminosos ao se transfigurar pela força da graça divina. É essa semelhança do homem para com Deus que são Serafim de Sarov não apenas explicou, como a revelou diretamente, visivelmente, a Motovilov, ao se transfigurar diante de seus olhos[26]. Outro santo, Simeão o Novo Teólogo, descreveu sua própria experiência dessa iluminação nos seguintes termos: “Neste estado, ele se inflamou pelo Espírito e se tornou inteiramente de fogo em sua alma; assim ele comunicou ao seu corpo seu próprio brilho, do mesmo moo como o fogo material comunica ao ferro sua própria natureza[27]”.

Ora, assim como o ferro, ao se tornar fogo, permanece ferro, mas purificado, também a natureza humana, em contato com a graça, permanece inteira, sendo o que ela é: nada nela se perde. Ao contrário, ela se purifica como o ferro em contato com o fogo. A graça penetra essa natureza, se une a ela, e o homem começa desde aqui de baixo a vida do século futuro. É por isso que podemos dizer que um santo é mais plenamente homem do que um pecador: ele está livre do pecado que, essencialmente, é estranho à natureza humana; ele realiza o sentido primordial de sua existência: ele se veste da beleza incorruptível do Reino de Deus, de cuja construção ele participa por meio de sua própria vida. É por isso que a beleza, tal como é concebida pela Igreja Ortodoxa, não é a beleza própria da criatura em seu estado atual; ela é um atributo do século futuro, quando Deus será tudo em todas as coisas. “O Senhor entrou em Seu reino, ele se revestiu se esplendor (beleza)”, diz o prokimenon das matinas[28] do domingo, dia que é uma imagem da vida eterna por vir. São Denis o Areopagita chama Deus de “beleza”, porque, por um lado, Deus confere a toda criatura uma beleza que lhe é própria, e, de outro lado, Ele a reveste de outra beleza ainda, da própria “beleza divina”. Cada criatura traz sobre si o selo de seu Criador. Mas esse selo ainda não consiste na semelhança divina, mas apenas na beleza própria a cada criatura[29]. Para o homem, ela pode ser um meio, um caminho para se aproximar de Deus. Com efeito, segundo são Paulo, “as perfeições invisíveis de Deus, Seu poder eterno e Sua Divindade, são vistas pelo olho desde a criação do mundo, quando as consideramos em Suas obras[30]”. Para a Igreja, porém, o valor e a beleza do mundo visível não estão no esplendor passageiro de seu estado atual, mas na sua transfiguração potencial, realizada pelo homem. Dito de outro modo, a verdadeira beleza é a irradiação do Espírito Santo, a santidade, a participação no século por vir.

É assim que a segunda parte do kontakion nos conduz à compreensão patrística do ícone e nos permite captar o sentido profundo do cânon 82 do Concílio Quinisexto. “Sobre os ícones, diz o patriarca são Germano, representamos a carne santa do Senhor[31]”. Os Padres do Sétimo Concílio Ecumênico explicam isso nos seguintes termos: “Ainda que a Igreja católica represente a Cristo em Sua forma humana (morphè) por meio de uma pintura, ela não separa Sua carne da Divindade à qual esta está unida (...) Quando realizamos o ícone do Senhor, confessamos Sua carne deificada e não reconhecemos no ícone nada senão uma imagem que representa uma semelhança com o protótipo. É por isso que o ícone recebe seu nome; é unicamente nisso que ele aí participa e por isso ele é venerado e santo[32]”.

São Teodoro o Estudita explica isso com mais clareza ainda: “A representação de Cristo, diz ele, não está na semelhança de um homem corruptível, coisa que é condenada pelo apóstolo, mas na semelhança do homem não corruptível, como Ele próprio já o dissera, precisamente incorruptível (...) pois Ele não é simplesmente um homem, mas Deus feito Homem[33]”.

Essas palavras de são Teodoro o Estudita e dos Padres do Sétimo Concílio, explicando o conteúdo do ícone, são como uma réplica às palavras de são Gregório o Teólogo sobre a confissão do Deus Homem: “Assim como não nos invejam em nossa salvação integral e que não entregamos ao Salvador apenas os ossos, as veias e o aspecto humano exterior (...). Conserve o homem inteiro, e acrescente a Divindade[34]”.

Comparando os textos citados, vemos que a tarefa da imagem neotestamentária, tal como a compreendem os Padres, consiste precisamente em manifestar o mais fiel e completamente possível a verdade da encarnação divina, na medida em que isso pode ser feito por intermédio dos meios da arte. A imagem do Homem Jesus é a imagem de Deus; é por isso que os Padres do Sétimo Concílio disseram, tendo em vista Seu ícone: “No mesmo Cristo, contemplamos simultaneamente o indizível e o representado[35]”.

Como vemos, o ícone representa não a carne corruptível destinada à decomposição, mas a carne transfigurada, iluminada pela graça, a carne do século futuro[36]. Ele transmite por meios materiais, visíveis aos olhos carnais, a beleza e a glória divinas. É por isso que os Padres dizem que o ícone é venerável e santo, precisamente porque ele transmite o estado deificado de seu protótipo e traz seu nome, e é por isso que a graça, própria ao seu protótipo, se encontra aí presente. Dito de outra maneira, é a graça do Espírito Santo que suscita a santidade, tanto da pessoa representada como de seu ícone, e é neste que se opera a relação entre o fiel e o santo, por intermédio do ícone deste último. O ícone participa, por assim dizer, da santidade de seu protótipo e, por meio do ícone, nós participamos dessa santidade em nossa prece.

Os Padres do Sétimo Concílio distinguiam cuidadosamente o ícone do retrato: este representa um ser humano qualquer; aquele, um homem unido a Deus. Ele se distingue assim do retrato por seu próprio conteúdo, e esse conteúdo cria formas de expressão específicas, próprias apenas ao ícone e que o distinguem de qualquer outra imagem. O ícone indica a santidade de tal maneira a que ela não seja nem subentendida, nem sobreposta por nosso pensamento, mas que seja visível aos nossos olhos carnais. Imagem da santificação do homem, ele representa a realidade que se revelou na transfiguração sobre o Monte Tabor. É por isso que os textos litúrgicos, sobretudo para a festa da Santa Face em 16 de Agosto estabelecem um paralelo entre o conteúdo do ícone e a transfiguração: “Caindo por terra sobre a montanha, os maiores dentre os apóstolos se prosternaram vendo o Senhor revelar a aurora da claridade divina; e hoje somos nós que nos prosternamos diante da Santa Face que resplandece mais do que o sol...”; ou ainda: “Tendo iluminado a imagem humana entenebrecida, ó Criador, Tu a mostrou sobre o Monte Tabor a Pedro e aos filhos do Trovão (...). E hoje, abençoa-nos e santifica-nos, Tu que amas aos homemns, pela claridade, Senhor, de Tua imagem puríssima[37]”. Esse paralelo, que poderia ser ilustrado por outros textos litúrgicos, certamente não é fruto de uma simples imaginação poética; isso seria incompatível com a inspiração divina dos textos litúrgicos. Trata-se precisamente de uma indicação do conteúdo espiritual do ícone. O ícone do Senhor nos manifesta o que foi revelado aos apóstolos sobre o Monte Tabor; não contemplamos apenas a face de Jesus Cristo, mas também Sua glória, a luz da divina Verdade tornada visível ais nossos olhos pela linguagem simbólica do ícone, “a realização marcada aos olhos de todos pelas pinturas”, segundo os termos do Concílio Quinisexto.

Essa realidade espiritual do ícone adquire todo seu valor no ensinamento prático da última frase do kontakion do Triunfo da Ortodoxia: “Confessando a salvação, exprimimos isso (vale dizer, a economia divina expressa nas duas primeiras frases) pela ação e pela palavra”. Assim, o kontakion termina com a resposta do homem a Deus, pela aceitação e a confissão da economia divina da salvação.

É fácil compreender como confessar a salvação pela palavra. E a compreensão pela ação pode ser compreendida como o cumprimento dos mandamentos de Cristo. Mas aqui não se trata apenas disso. É no synodikon do Triunfo da Ortodoxia que encontramos a explicação mais clara dessas palavras. Esse synodikon contém uma série de anátemas em relação aos hereges iconoclastas e uma série de proclamações de eterna memória aos defensores da ortodoxia. Entre outros, o parágrafo 3 proclama “a memória eterna aos que creram e provaram suas palavras com escritos e suas ações por meio de representações, para a difusão e a afirmação da verdade, pelas palavras e pelos ícones”. As representações implicam assim justamente ações que devem ser representadas; mas a criação de imagens constitui também uma ação; e esta última palavra, no kontakion, se reveste de um duplo sentido: as ações são tanto interiores como exteriores. Dito de outra maneira, ele resume a experiência vivida pela Igreja, experiência expressa em palavras ou em imagens pelos homemns que a adquiriram – os santos. De um lado, o homem pode restabelecer, na graça e pela graça do Espírito Santo, sua semelhança para com Deus, transformar a si mesmo por meio de um trabalho interior (a praxis espiritual), fazer de si mesmo um ícone vivo de Cristo. É o que os Padres denominam “vida ativa”. Por outro lado, o homem também pode, pelo bem dos outros, traduzir seu estado santificado em imagens, tanto visíveis como verbais: “Nós expressamos isto pela ação e pela palavra”. Portanto, o homem pode criar também um ícone exterior, servindo-se da matéria que o cerca e que foi santificada pela vinda de Deus sobre a terra. Certamente é possível expressar o estado interior apenas por palavras, mas pela representação esse estado é manifestado e visivelmente confirmado, ele é mostrado: a palavra e a imagem “indicam uma à outra”, segundo o oros do Sétimo Concílio.

Tudo o que dissemos sobre o conteúdo do ícone pode ser comparado a um texto da Primeira Epístola de são Paulo aos Coríntios[38]. Ele compara nosso corpo mortal com uma semente lançada sobre a terra. No decurso da vida presente essa semente deve germinar, ou seja, entrar numa certa medida na vida por vir; nós devemos entrar na vida do século futuro, a fim de desabrocharmos na ressurreição geral na forma que Deus quiser nos conceder. “O corpo é semeado corruptível; ele ressuscita incorruptível. Ele é semeado desprezível, e ressuscita glorioso; ele é semeado enfermo, e ressuscita cheio de força; ele é semeado animal, e ressuscita como corpo espiritual[39]”. Cristo, o novo Adão, renovou, recriou na imortalidade nossa natureza humana: “O primeiro Adão se tornou uma alma viva, e o último Adão, um espírito vivificante. Mas o que é espiritual não é o primeiro, que é animal; o espiritual veio depois. O primeiro homem extraído da terra é terrestre; o segundo homem é o Senhor do céu. Assim o terrestre, assim também os terrestres; e assim o celeste, assim também os celestes. E, assim como trazemos a imagem do terrestre, traremos também a imagem do celeste. O que eu digo, irmãos, é que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção pode herdar a incorruptibilidade[40]”. E um pouco adiante o apóstolo diz: “Pois é preciso que este corpo corruptível se revista de incorruptibilidade, e que este corpo mortal se revista de imortalidade[41]”. A luz da transfiguração sobre o Monte Tabor é desde já a glória do século futuro; pois a força que ressuscita os santos depois de sua morte é o Espírito Santo que, no decurso de suas vidas terrestres, vivificou não apenas suas almas, mas também seus corpos. É por isso que dizemos que o ícone transmite não o rosto banal e cotidiano do homem, mas seu rosto glorioso e eterno. Pois o sentido mesmo e a razão de ser do ícone consistem precisamente em mostrar os herdeiros da incorruptibilidade, os herdeiros do Reino de Deus, do qual eles são as primícias desde suas vidas terrestres aqui em baixo. O ícone é a imagem de um homem no qual a graça está realmente presente, consumindo as paixões e santificando tudo. É por isso que sua carne é representada essencialmente diferente da carne comum e corruptível. O ícone é uma transmissão sóbria, absolutamente desprovida de qualquer exaltação, de uma dada realidade espiritual. Se a graça ilumina o homem por inteiro, se modo a que todo seu ser espiritual e físico é tomado pela prece e permanece na luz divina, o ícone fixa de modo visível este homem que se tornou um ícone vivo, uma semelhança verdadeira de Deus. O ícone não representa a Divindade: ele indica a participação do homem na vida divina[42].

Existe assim uma ligação orgânica entre a veneração dos santos e a dos ícones. É por isso que nas religiões que renunciaram ao culto dos santos, a imagem sacra também não existe, como vemos no caso do protestantismo, e onde a concepção de santidade difere daquela da ortodoxia, a imagem se afasta da Tradição.

A análise do kontakion do triunfo da Ortodoxia nos leva a uma compreensão mais clara do duplo realismo da imagem sagrada neotestamentária. Do mesmo modo como no Deus Homem, Jesus Cristo, “toda a plenitude da Igreja habita corporalmente[43]”, também a Igreja, Corpo de Cristo, constitui um organismo que é ao mesmo tempo divino e humano. Ela reúne em si duas realidade: a realidade histórica, terrestre, e a graça do Espírito Santo, a realidade de Deus e a realidade do mundo. A razão de ser da arte sacra é justamente de fornecer um testemunho visível dessas duas realidades: ela é realista nos dois sentidos, e é nisso que o ícone se distingue de qualquer outra imagem, assim como um texto sagrado se distingue de qualquer outra obra literária.

Em relação à representação de Cristo, dos santos e dos acontecimentos da História Sagrada, a Igreja preserva piedosamente a realidade histórica. Somente a submissão à história mais concreta pode fazer do ícone, para nós, a possibilidade de um encontro na graça do Espírito Santo com aquele a quem ele representa. “Convém, escrevia o santo patriarca Tarásio ao imperador e à imperatriz, aceitar os preciosos ícones de nosso Senhor Jesus Cristo, pois Ele se tornou um homem perfeito, desde que esses ícones tenham sido pintados com exatidão histórica, conforme o relato do Evangelho[44]”. Os traços característicos dos santos serão assim preciosamente conservados e somente essa fidelidade à verdade histórica permite à iconografia dos santos ser tão estável. Com efeito, não se trata apenas de transmitir uma imagem consagrada pela Tradição, mas, acima de tudo, de preservar uma ligação direta e viva com a pessoa representada no ícone. Por isso é essencial se manter, na medida do possível, dentro dos traços que a caracterizam. Claro, nem sempre isso é possível: assim como as vidas dos santos, seus traços costumam ser mais ou menos esquecidos e é difícil reconstituí-los. A semelhança corre o risco de não ser perfeita; e a inabilidade do artista pode piorar ainda mais as coisas. Mas ela jamais desaparece por completo: um mínimo irredutível sempre subsiste, permitindo manter a ligação com o protótipo do ícone. Como escreveu são Teodoro Estudita, “mesmo quando não podemos ver no ícone uma imagem perfeitamente conforme ao original por causa da imperfeição do trabalho, nossas palavras não conterão nenhum contrassenso; pois a veneração ao ícone é testemunhada não na medida em que lhe falta a semelhança com seu protótipo, mas na medida em que ele se lhe assemelha[45]”. Dito de outra maneira, neste caso, o que é essencial, não é a falta de semelhança do ícone ao seu protótipo, mas aquilo que ele guarda ainda em comum com ele. O iconógrafo pode, em alguns casos de necessidade, se limitar a alguns traços típicos. Porém, na maioria dos casos a fidelidade ao original é tal que um fiel ortodoxo reconhece facilmente nos ícones os santos mais venerados, sem falar de Cristo e da Virgem. E mesmo se um dado santo lhe for desconhecido, ele sempre poderá dizer a qual ordem de santidade ele pertence, se mártir, hierarca, monge, etc.

A Igreja ortodoxa jamais tolerou a pintura de ícones segundo a imaginação do pintor ou a partir de um modelo vivo, pois isso significa uma ruptura consciente e total com o protótipo; desse modo, o nome que o ícone recebe já não corresponderia mais à pessoa representada e isso constituiria uma mentira flagrante que a Igreja não pode tolerar (embora as violações dessa regra, ou antes, o abuso, têm sido infelizmente frequentes no decurso dos últimos séculos). A fim de evitar a ficção e a ruptura da imagem e seu protótipo, os iconógrafos se servem de ícones antigos e de manuais como modelos. Os antigos iconógrafos conheciam o rosto dos santos tão bem como os dos seus próximos. Eles os pintavam, seja de cor, seja servindo-se de esboços ou retratos. Com efeito, desde que uma pessoa adquiria uma reputação de santidade, logo após sua morte e às vezes bem antes de sua canonização oficial e do inventário de suas relíquias, era feita sua imagem para distribuir entre o povo crente[46]. Essas imagens conservavam todos os ensinamentos e, principalmente, os croquis e os testemunhos dos contemporâneos[47].

Mas, como sabemos, a mera realidade histórica, mesmo a mais exata, não constitui um ícone. A partir do momento em que a pessoa representada é portadora da graça divina, o ícone deve nos indicar sua santidade. De outro modo, ele não teria sentido. Se ao representar o aspecto humano de Deus encarnado o ícone só nos mostrasse a realidade história, como se fosse uma fotografia, isso significaria que a Igreja vê a Cristo pelos mesmos olhos da multidão descrente que a cerca. Mas, segundo o comentário de são Simeão o Novo Teólogo, as palavras de Cristo: “Quem me viu, viu o Pai[48]”, não se endereçavam senão àqueles que, olhando o homem Jesus, ao mesmo tempo contemplavam Sua Divindade. “Com efeito, se concebêssemos essa visão em relação ao aspecto do corpo, então aqueles que o crucificaram e cuspiram Nele também teriam visto o Pai; assim, não haveria nenhuma diferença ou preferência entre incréus e crentes, pois todos teriam atingido, e evidentemente atingirão, essa beatitude desejada[49]”.

“O Cristo “histórico”, “Jesus de Nazaré”, tal como apareceu aos olhos das testemunhas estrangeiras, o Cristo exterior à Igreja é sempre ultrapassado na plenitude da revelação concedida aos verdadeiros testemunhos, aos filhos da Igreja iluminados pelo Espírito Santo. O culto da humanidade de Cristo é estranho à tradição oriental, ou antes, essa humanidade deificada se reveste aqui da forma gloriosa na qual os discípulos o viram sobre o Monte Tabor – a humanidade de Cristo que tornou visível a Divindade comum ao Pai e ao Espírito Santo[50]”. A contemplação da Igreja se distingue da visão profana precisamente pelo de que no visível ela contempla o invisível, e no temporal o eterno, que ela nos revela em seu culto, do qual o ícone faz parte. Assim como o próprio culto, o ícone é uma revelação da eternidade dentro do tempo. É por isso que na arte sacra o retrato naturalista de um homem não pode ser mais do que um documento histórico; ele de modo algum pode substituir a imagem litúrgica, o ícone.

O ícone, como dissemos, exprime a experiência espiritual da santidade, e nele vemos a mesma autenticidade que existe na transmissão da realidade histórica; estamos “rodeados por uma nuvem de testemunhos”, segundo a expressão de são Paulo[51], testemunhos que nos comunicam sua experiência de santificação: “Seria melhor, diz são Simeão, designar essas palavras como um relato das coisas vistas, enquanto que o  termo conceito (noema) deve ser aplicado a um pensamento que o intelecto faz nascer[52]”. E, com efeito, somente uma experiência pessoal vivida pode fazer nascer as palavras, as formas, as cores ou as linhas que correspondem realmente àquilo que elas exprimem. “Todo homem, continua são Simeão, ao fazer uma exposição sobre algo, como por exemplo uma casa, uma cidade, algum palácio (...) ou ainda um teatro (...) deve antes ter visto e apreendido a fundo seu conteúdo; somente então ele poderá falar com verossimilhança. Pois, se ele nada viu antes, que poderá ele dizer de sua própria criação? (...) Portanto, se ninguém pode dizer ou descrever coisa alguma a propósito de coisas visíveis e terrestres, sem ter sido sua testemunha ocular, como poderia alguém ter poder para falar (...) sobre Deus, sobre as coisas divinas e mesmo sobre os santos e servidores de Deus, e sobre a visão de Deus que vem a eles indizivelmente? É esta que produz inteligivelmente no coração um poder inexprimível, embora a palavra humana não nos permita dizer nada de antemão, a menos que tenhamos sido primeiro iluminados pela luz do conhecimento[53]”.

***


 


[1] Teófano e seu irmão Teodoro, os Marcados, foram embaixadores da Ortodoxia perante o Imperador iconoclasta Teófilo, no ano de 836, que os torturou e mandou escrever com ferro em brasa sobre seus rostos versos de louvor ao iconoclasmo, de onde derivou sua alcunha de Γραπτοί, “marcados”.
[2] Mais precisamente, nós “figuramos”, “colocamos em imagem” isso, pela ação e a palavra.
[3] Carta ao monge Nicolas, Filocalia, tomo I.
[4] Filipenses 2: 6-7.
[5] Lucas 1: 8.
[6] Terceira refutação, cap. II, PG 99, 417C.
[7] Mansi XII, 963E.
[8] João 12: 45.
[9] João 14: 9.
[10] I Coríntios 12: 3.
[11] Ver a respeito, por exemplo, santo Atanásio o Grande, Sobre a Encarnação, PG 25, 120CD.
[12] Gênese, 1: 26.
[13] Gênese 1: 27.
[14] Gênese 5: 1. Os textos bíblicos citados correspondem à Septuaginta.
[15] Ver a respeito Vladimir Lossky, Théologie mystique de l’Eglise de’Orient, cap. VI, “Image et ressemblance”, Paris, 1944.
[16] Diádoco de Foticéia, Obras espirituais, LXXXIX, Paris, 1955.
[17] Catequese atribuída a são Simão o Novo Teólogo, Oração I, parágrafo 3, Moscou, 1892.
[18] Essa palavra, criada na época dos santos Cirilo e Metódio para traduzir o termo grego osios, indica a aquisição pelo homem da semelhança divina. Não existem expressões correspondentes em outras línguas. Entretanto, o termo e a noção contrária – “dissemelhança” – podem ser encontrados até uma época muito recuada. Platão emprega esse termo num sentido filosófico (anomoietetos ponton ou topon) em sua Política, para exprimir a não correspondência do mundo à sua ideia. Santo Atanásio o Grande a empregava já num sentido cristão: “Aquele que criou o mundo, vendo-o sucumbir à tempestade em perigo de ser tragado no lugar da dissemelhança, tomou o governo da alma e veio em seu socorro corrigindo todas as suas transgressões”. Santo Agostinho, em suas Confissões, disse: “Eu me vi longe de Ti, num lugar de dissemelhança”.
[19] II Coríntios 3: 18.
[20] I Coríntios 6: 19.
[21]  Mateus 17: 2; Marcos 9: 1-8; Lucas 9: 27-36.
[22]  Metropolita Philarete, Oeuvres completes, Homilia 12, Moscou, 1873. 
[23]  6ª. Sessão, Mansi XIII, 321 CD.
[24]  PG 150, 1232C.
[25] Marcos 9: 1.
[26] I. Gorainoff, Séraphin de Sarov, Bellefontaine, 1973.
[27] Tratado Teológico e Ético II.
[28] Salmo 92.
[29] São Denis o Areopagita, Dos Nomes Divinos, cap. IV, 7, PG 3, 701C.
[30] Romanos 1: 20.
[31] PG 98, 157BC.
[32] 6ª sessão, Mansi XIII, 344.
[33] Sete Capítulos contra os Iconoclastas, cap. I, PG 99, 488.
[34] 1re lettre à Clidénius contre Apollinaire, PG 37, 184AB.
[35] 6ª sessão, Mansi XIII, 244B.
[36] Ver I Colossenses 15: 35-46.
[37] 2ª e 3ª Stíchias, tom 4.
[38] I Coríntios 15: 35-38.
[39] I Coríntios 15: 42-44.
[40] I Coríntios 15: 45-50.
[41] I Coríntios 15: 53.
[42] Ouve-se dizer às vezes, da parte de heterodoxos e mesmo da parte de alguns ortodoxos, que, se a imagem Ocidental, aquela da Igreja romana, tende para o Nestorianismo, o ícone ortodoxo, ao contrário, seria manchado pelo monofisismo. O que dissemos sobre o conteúdo do ícone nos permite avaliar o absurdo de tal acusação. Se, por um lado, podemos afirmar que a imagem da Igreja romana é realmente nestoriana por representar o sagrado apenas sob seu aspecto humano, ou seja, em sua realidade terrestre, por outro, o ícone ortodoxo não tem nada a ver com o monofisismo, porque ele não representa nem a Divindade, nem o homem absorvido por ela. Ele representa o sem dúvida homem em toda a plenitude de sua natureza terrestre, purificado do pecado e unido à vida divina. Acusar a arte sacra ortodoxa de monofisismo equivale a não compreender nada de seu conteúdo. Pela mesma razão poderíamos acusar de monofisismo a Sagrada Escritura e a Liturgia ortodoxa, porque elas exprimem, assim como o ícone, uma dupla realidade: a da criatura e a da graça divina.
[43] Colossenses 2: 9.
[44] Mansi XIII, 404D.
[45] Refutação III, 5, PG 99, 421.
[46] Falando da base retratista do ícone, N. P. Kondakov cita um caso característico de retrato como documento para a pintura de um ícone. Quando da descoberta em 1558 das relíquias de são Nicetas, arcebispo de Novgorod, que foram encontradas intactas, um retrato póstumo desse santo foi feito e enviado às autoridades eclesiásticas com a seguinte mensagem: “Pela graça do santo, senhor, nós lhe enviamos sobre papel uma imagem de são Nicetas, bispo (...) e segundo esse modelo, ordena que seja feito o ícone do santo”. Em seguida vêm esclarecimentos caracterizando o aspecto exterior de são Nicetas, suas vestes, etc., para complementar o retrato desenhado sobre papel. (O ícone Russo, 3, 1ª parte)
[47] Quando a tradição viva começa e se perder, ou, mais exatamente, quando ela começa a se afastar, por volta do final do século XVI, a documentação da qual se serviam os iconógrafos foi sistematizada, e é então que aparecem os manuais que chamamos de podlinniks, com ou sem ilustrações. Eles fixaram a iconografia típica dos santos e das festas, indicando as cores principais. Quando não eram ilustrados, continham breves descrições que caracterizavam os santos e mencionavam também as cores. Esses podlinniks eram indispensáveis aos iconógrafos como documentação. Mas eles não passam disso e não se pode de modo algum atribuir a eles o mesmo significado que um cânon iconográfico ou que a Tradição sagrada, como o fazem alguns autores ocidentais.
[48] João 14: 9.
[49] Simeão o Novo Teólogo, Tratados teológicos e éticos, Introdução.
[50] Vladimir Lossky, Teologia mística da Igreja do Oriente.
[51] Hebreus 12: 1.
[52] São Simeão, ibid.
[53] Ibid.

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