sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Pe. Lev Gillet - A Prece de Jesus



PREFÁCIO

“Pronunciar o nome de Jesus de um modo sagrado é um auxílio suficiente e que ultrapassa a tudo para qualquer vida humana... Devemos chamar por Jesus Cristo em nossa mente, até que o nome do Senhor penetre em nosso coração, descendo até suas maiores profundezas... Quando o nome de Jesus se torna o centro de nossa vida, ele carrega tudo junto consigo”.

Assim escreveu o “Monge da Igreja do Oriente”, no decurso da presente obra. Para aqueles que perguntam de que forma tais afirmações podem ser atribuídas em favor da Prece de Jesus, e como pode ser que este modo específico de oração mantém seu apelo tão forte entre os Cristãos de hoje em dia, do Oriente e do Ocidente, Ortodoxos e não Ortodoxos, este curto livro traz uma resposta. Começando pela veneração do Santo Nome no Antigo e Novo Testamentos, o autor traça o desenvolvimento gradual da Prece de Jesus, primeiramente em Bizâncio e depois nos países Eslavos. Ele conclui com sugestões práticas para seu uso nos dias atuais, mostrando o quanto esta prece não pertence apenas ao passado, mas se coloca perfeitamente no século em que vivemos. De fato, existem boas razões para acreditar que o “caminho do Nome”, como ele o chama, está sendo seguido por mais Cristãos hoje do que o foi antes – um brilhante sinal de esperança numa era de ansiedade. Simples, embora profundo, este livro nos revela o segredo da atração contínua exercida pela Prece de Jesus. Desde a sua primeira aparição há algumas décadas atrás, ele se tornou um “clássico” da vida espiritual, e permanece ainda como a melhor introdução ao tema da Prece de Jesus.

“O Monge da Igreja do Oriente”, Arquimandrita Lev Gillet (1893-1980) foi uma pessoa muito amada a admirada. Mas ao mesmo tempo ele era enigmático, às vezes desconcertante, com um caráter cheio de paradoxos, facilmente mal interpretado. Provavelmente é muito cedo para tentar uma avaliação equilibrada de sua vida e obra. Nascido em Saint Marcellin no sudeste da França em 1893, ele recebeu o nome de Louis no batismo. Seus pais eram Católicos Romanos, pertenciam à classe média e se pai era magistrado na região de Grenoble. Desde uma tenra idade Louis demonstrou possuir dons intelectuais excepcionais. Ele iniciou seus estudos superiores em filosofia em Grenoble e em Paris imediatamente antes que estourasse a Primeira Guerra Mundial. Mobilizado em 1914, ele logo foi ferido e capturado pelos Alemães, passando mais de dois anos num campo de prisioneiros de guerra. As suas experiências durante a guerra deixaram nele uma permanente repulsa contra a violência e o derramamento de sangue, e em sua vida seguinte ele se tornou um pacifista convicto. Liberado do alistamento em 1817, ele continuou seus estudos em Genebra, trabalhando com psicologia experimental e matemática, entre 1917 e 1919 ele traduziu do alemão para o francês a principal obra de Freud, A interpretação dos sonhos. De seus estudos em psicologia ele reteve sempre um profundo entendimento a respeito da homossexualidade e de questões sexuais em geral.

Em 1920 a vida de Louis Gillet teve uma mudança fundamental de direção. Abandonando uma promissora carreira acadêmica, ele entrou como noviço no mosteiro Beneditino Francês em Farnborough, na Inglaterra. A comunidade posteriormente o enviou para avançar em seus estudos em Sant’Anselmo em Roma. Por essa época ele começou a se sentir atraído pelo Oriente Cristão. Seu interesse no mundo Eslavo parece ter sido despertado inicialmente pela amizade que teve com uma jovem Búlgara pouco antes da Primeira Guerra. Não conseguindo alguém que lhe ensinasse o Búlgaro, ele começou a estudar a língua Russa. Separado de sua amiga após o início das hostilidades, ele nunca mais conseguiu restabelecer contato com ela. Talvez isto tenha constituído um desapontamento pessoal que o influenciou a pensar em se tornar monge. No campo de prisioneiros Alemão ele encontrou sodados russos com quem fez amizade, continuando seus estudos de Russo. Então, durante seu tempo de noviciado em Farnborough, o mosteiro recebeu a visita do grande líder Uniata Andrew Szeptycky, Metropolita de Lvov na Galícia (que nesta época estava na Polônia).

Vendo que seu interesse “oriental” recebia pouca simpatia das autoridades monásticas de Farnborough, em 1924 ele viajou para Lvov, e lá foi sagrado monge e ordenado diácono e padre pelo Metropolita Andrew, recebendo o nome monástico de Lev (Leo). Servindo por um período como secretário privado do Metropollita, o Hieromonge Lev foi profundamente inspirado pela personalidade brilhante e cheia de santidade de Szeptycky. Pioneiro do movimento pela unidade do Cristianismo, o Metropolita estava convencido de que a reconciliação entre Católicos Romanos e Ortodoxos só poderia acontecer mediante o respeito mútuo e o amor, jamais pelo proselitismo. Ele havia inclusive considerado a possibilidade de um mosteiro “misto” na Galícia, no qual monges Ortodoxos viveriam ao lado de Católicos Romanos, sem que precisassem abandonar sua Ortodoxia – uma ideia revolucionária para esse tempo. Frei Lev partilhava da visão moderadora do Metropolita, embora com algumas reservas. Ao longo de sua vida ele continuou a sentir uma aversão por todas as formas de agressão e polêmicas eclesiásticas. Ele nunca acreditou que a reunião poderia acontecer através de confrontações teológicas, da controvérsia e das discussões formais.

Em 1927 Frei Lev estava de volta à França, engajado em trabalhos sociais e pastorais entre os refugiados Russos de Nice, muitos dos quais viviam na maior miséria material. Aqui ele sentiu mais fortemente a anormalidade de sua situação: ele amava e ansiava por servir ao povo Russo, ele se sentia como um só coração e uma só alma com a Ortodoxia Russa, e no entanto ele era um padre Católico Romano. Para complicar as coisas, houve nesse momento uma mudança básica de atitude em relação à obra ecumênica por parte do Papa Pio XI, que no início de 1928 publicou a encíclica Mortalium Animos, fortemente negativa a respeito. Depois de meses de dolorosas incertezas, no dia 25 de Maio de 1928 Frei Lev deu o passo decisivo: em Clamart, nos subúrbios de Paris, ele concelebrou a Divina Liturgia com o Bispo Ortodoxo Russo da França, Metropolita Evlogy. Ele atuou com o conhecimento de Szeptycky.

Não está totalmente claro como este passo foi entendido pelo Metropolita Evlogy, ou mesmo pelo próprio Frei Lev. Um ponto, entretanto, é fora de discussão: as formalidades normais requeridas aos Católicos Romanos convertidos à Ortodoxia foram omitidas. Frei Lev não teve que abjurar os erros e não se submeteu ao rito de recepção, tendo sido simplesmente admitido à celebração eucarística e à comunhão. Para ele, este fato permaneceu sempre como sendo da maior significância. Ele nunca viu suas ações do dia 25 de Maio de 1928 como um repúdio ao seu passado Católico Romano, como uma “conversão” no sentido da mudança de crenças e de uma ruptura com sua vida pregressa. Por acreditar que permanecia existindo um substrato de unidade entre Roma e a Ortodoxia que não havia sido rompido, ele viu esse passo como um aprofundamento e uma realização, não uma rejeição, de suas antigas aspirações. Como ele escreveu a seu Freinaqueles tempos, “eu cheguei aonde acredito que poderei encontrar, não digo outra luz, mas a mesma luz numa forma mais pura”. Em outra carta, escrita para sua mãe, ele disse que a Igreja Ortodoxa “apresenta a luz de Cristo numa forma mais pura do que as outras Igrejas”. Mas ele nunca negou a realidade eclesial da Igreja Católica Romana, nem a continuidade de sua própria união com Roma, num nível invisível e espiritual.

Ao mesmo tempo, a celebração em Clamart constituiu realmente para Frei Lev um novo começo, o fim de um período de sua vida e o começo de outro. “Você agora pode se considerar Ortodoxo”, disse o Metropolita Evlogy naquele instante. Pelo próximo meio século de sua vida subsequente, de um ponto de vista visível e canônico, Frei Lev serviu apenas como padre da Igreja Ortodoxa. No outono de 1928 encarregou-o da paróquia Ortodoxa francófona em Paris, à qual ele permaneceu ligado até 1938, ao mesmo tempo em que ensinava no Instituto Teológico de Saint-Serge. Ele era muito interessado nas ideias do Arcebispo Sergei Bulgarov, o Reitor do Instituto, tendo traduzido para o francês seu livro A Ortodoxia (Paris, 1932). Tipicamente, o nome do tradutor não é mencionado em parte alguma da publicação. Durante esses anos ele formou ainda uma duradoura amizade com o teólogo leigo Paul Evdokimov.

Em 1938 Frei Lev mudou-se para a Inglaterra, que seria seu lar permanente até sua morte. No começo dos anos 1940 ele liderou um grupo de pesquisas no Departamento das Missões no Selly Oak College em Birmingham, estudando as relações Judaico-Cristãs e escrevendo a Comunhão no Messias (Londres, 1942), o mais longo dos livros que escreveu. Nele, Frei Lev diz aos Cristãos que não é o bastante sentirem compaixão para com os Judeus como seres humanos, mas que “o Cristão é chamado a reconhecer o Judeu como um irmão”, e que ajudar o Judeu “implica ajudar todo Israel e cumprir o misterioso destino para o qual foi chamado, e que é inseparável do destino na própria Igreja Cristã”. Em seu estilo característico, ele escreveu no prefácio: “Este não é um livro letrado”. Mas de fato, foi o fruto de amplas leituras e de um pensamento criativo, e até hoje guarda seu valor próprio.

Em 1948 Frei Lev foi nomeado capelão da Irmandade de Santo Albano e São Sérgio, um posto que ele manteria até o final da vida. A Irmandade, que era dedicada ao trabalho da unidade Cristã, e mais especificamente à aproximação entre Anglicanos e Ortodoxos, mantinha uma central em Londres na Casa de São Basílio, em Ladborke Grove 52. Aqui viveu Frei Lev, num pequeno cômodo, celebrando a Divina Liturgia na capela, e tomando parte de todas as atividades da Irmandade – escrevendo para seu jornal Sobornost, falando na conferência anual de verão e conduzindo os retiros entre os membros. Ele não estava ligado a nenhuma paróquia em Londres, e seu trabalho para a Irmandade o deixava livre para viajar ao exterior, para a Suíça, a Grécia e acima de tudo para o Líbano, onde ele influenciou grandemente o Movimento da Juventude Ortodoxa. Quando em Londres ele trabalhava durante a semana na Sala de Leituras do British Museum, que ele costumava descrever como sendo o seu “claustro monástico”. Outros frequentadores da Sala recordam sua figura familiar, um homem pequeno, arqueado, que parecia um passarinho, com uma barba branca e grossos óculos – às vezes franzindo a testa, piscando e murmurando para si mesmo enquanto caminhava só, mas todo o seu rosto se iluminava com um sorriso quando parava para cumprimentar um amigo. No final da vida Frei Lev era como que um eremita urbano, e a grande metrópole era o seu deserto. Quando ele fala em A Prece de Jesus a respeito da invocação do Santo Nome sobre os homens e mulheres com quem cruzamos pelas ruas, “reconhecendo e adorando em silêncio a Jesus aprisionado nos pecadores, nos criminosos e nas prostitutas”, podemos estar certos de que isto era exatamente o que ele próprio fazia enquanto perambulava sozinho pelas ruas do centro de Londres. Onde quer que estivesse, fosse em Nice, Paris ou Londres, ele sempre mostrava uma ternura especial para com os sofridos, os destituídos, os desvalidos.

Já entrado em anos, mas mentalmente alerta, o “Monge da Igreja do Oriente” faleceu em seu quartinho na Casa de São Basílio em 29 de Março de 1980. No calendário Ortodoxo este dia foi o Sábado da Ressurreição de Lázaro, e ele celebrara sua última Liturgia naquela mesma manhã.

Foi durante os anos que passou na Casa de São Basílio que Frei Lev desenvolveu a forma de expressão que se tornou tão peculiar a ele. Cada vez mais ele escolheu se limitar a citações simples e curtas do Evangelho. Normalmente estas eram colocadas em conversas – às vezes em encontros da Irmandade na Inglaterra, às vezes em Genebra ou Beirute – para depois serem agrupadas e publicadas na forma de um livro. Sentado à sua mesa, sem um roteiro ou notas diante de si, mas apenas com a Bíblia aberta, Frei Lev podia criar com poucas sentenças uma atmosfera que era totalmente característica.  Econômico no uso das palavras, evitando artifícios de retórica, ele falava com uma lucidez e segurança que provinham de uma profunda reflexão. Seu raciocínio, nunca banal, é fácil de ser seguido. Ele fala de sua própria experiência, ainda que não se referindo explicitamente a si próprio, com um sentimento cálido, mas nunca sentimental. Ele era marcadamente original, sugerindo significados que provavelmente nunca tinham ocorrido aos seus leitores, mas sem ser afetado ou caprichoso.

O que mais me impressionava ao ouvi-lo, era a leveza que caracterizava sua interpretação da Escritura. Ele tomava alguma frase familiar ou algum incidente dos Evangelhos – Jesus com o jovem rico, com a mulher Samaritana no poço, com a adúltera – e, enquanto comentava o texto tão conhecido, era como se estivéssemos ouvindo as palavras da Bíblia pela primeira vez, ou como se fizéssemos parte da cena que ele descrevia. Ele não apenas comentava, ele anunciava o Evangelho. “Eu só encontro contentamento no Evangelho”, escreveu ele a um amigo, e isso se tornou cada vez ais manifesto em seus últimos anos. Nos anos 20 e começo dos 30, ele se sentiu atraído primeiramente pela tradição Russa – pelos iurodivye ou “loucos de Cristo”, pela luminosa compaixão de São Serafim, pela visão profética de Soloviov, pela teologia de sobornost[1]. Em seus escritos dos anos 40, como Espiritualidade Ortodoxa (Londres, 1945), o material provém largamente de autores da Patrística Grega. Mas nas meditações escriturárias de seus últimos anos, já não era sobre a Rússia Cristã que ele falava, nem sobre os Padres, mas simplesmente sobre Jesus Cristo nos Evangelhos. Quanto mais velho, mais ele se tornou transparentemente “evangélico”.

A simplicidade e a liberdade evidente na maneira com que Frei Lev fazia suas falas – sem anotações, apenas com a Bíblia diante de si – ficava aparente em outros aspectos de sua vida. Ele adotou o caminho da kenosis, a reserva, a renúncia. Muitos de seus escritos foram publicados sob o pseudônimo de “Um Monge da Igreja do Oriente”, e por muitos anos a identidade do autor permaneceu como um bem guardado segredo. Monge sem mosteiro, ele observava a regra da pobreza tão estritamente como poucos que vivem na clausura monástica. Com exceção de suas roupas, gastas e surradas, ele praticamente não tinha posses materiais que pudesse chamar de suas. Ao contrário de muitos clérigos monásticos, ele não acumulava ícones, vestimentas ou cruzes. Havia poucos papéis e documentos, e quase nenhum livro em seu quarto. Até onde eu pude ver, ele sequer possuía cópias de seus próprio livros, e parece jamais ter se preocupado em manter uma lista de seus textos publicados. Em seu desligamento ele era um verdadeiro monge.

A mesma visão de esvaziamento de si (kenosis), a mesma liberdade e radicalismo evangélicos, caracterizavam todo o seu serviço na Igreja. Ele evitava todas as responsabilidades administrativas, as comissões e as honras exteriores. Ele detestava todas as formas de clericalismo, as “posturas de seminário” e a pompa eclesiástica, e chegava a ser agudamente irônico a respeito dessas coisas. Seu ministério pastoral era conduzido de um modo discreto, obscuro, por meio de conversações pessoais e falas informais pronunciadas geralmente em pequenos grupos. Seus conselhos, que sempre tinham uma profunda influência para o bem na vida das pessoas, eram dados de uma forma direta que atingia rapidamente o coração do assunto, chegando mesmo a parecer abruptos algumas vezes. Ele costumava sublinhar a necessidade daquilo que se chamava “o sacramento do momento presente”. Cristo aparece nas pequenas coisas, insistia ele; a presença divina deve ser encontrada, não tanto nas situações extraordinárias, mas nas tarefas familiares que preenchem nossos dias. Ele possuía um dom especial como amigo e guia espiritual de mulheres, e nos seus textos sobre as mulheres dos Evangelhos – sobre a Mãe de Deus, a mulher pecadora, Santa Maria Madalena no jardim – havia sempre um sentimento comovente e terno para com o feminino.

O caráter de Frei Lev formava uma unidade cheia de contrastes. Ele era manso e ardente; gentil e compassivo, mas também temperamental, “difícil”, sujeito a repentes de ira, nitidamente indignado diante de tudo o que ele considerava como mentira, injustiça ou estupidez. Um homem de vasta cultura, sempre um ávido leitor, ele ocultava deliberadamente seus estudos. Receptivo a novas ideias na política, ciência e filosofia, ele era ao mesmo tempo profundamente tradicionalista. Sua vida era, em suas próprias palavras, um “êxodo dirigido”, uma peregrinação incessante: ele esperava pelo Espírito, e dizia a todos que fizessem o mesmo. E ao lado dessa abertura para o Espírito, ele demonstrava perseverança, consistência e continuidade. Em seu trabalho pastoral ele era sensível e rigoroso, nunca disfarçando as exigentes demandas feitas a nós com aquilo a que ele chamava de “amor sem limites”. Um ouvinte atento, sempre à inteira disposição de cada visitante, ele permanecia entretanto como “um gato que caminhava por si” – à vontade com os outros, ao mesmo tempo em que nunca deixava de ser verdadeiro consigo mesmo.

Ele amava a Igreja Ortodoxa, mas não fechava os olhos para as suas faltas. “Ó estranha Igreja Ortodoxa, disse ele uma vez, tão pobre e fraca... ao mesmo tempo tão tradicional e ainda assim tão livre, tão arcaica e tão viva, tão ritualística e tão pessoalmente mística, a Igreja na qual a mais cara pérola do Evangelho está preciosamente preservada, às vezes debaixo de uma camada de poeira... uma Igreja que tantas vezes se mostrou incapaz de agir, mas que mesmo sabe, como nenhuma outra, como cantar a alegria da Páscoa”.

Além das fronteiras da Ortodoxia, ele mantinha laços espirituais não apenas com Católicos Romanos e Anglicanos, mas também com a congregação dos Protestantes Franceses em Londres, com Pentecostais e Quakers; e, fora da Cristandade, com Judeus e Muçulmanos, Hindus e Budistas. Assim como o Quarto Evangelista e os teólogos do Logos do século II, ele acreditava que a verdadeira luz, a luz de Cristo “ilumina a todos os que nasceram no mundo[2]”. Sua universalidade era sem relativismo. Em sua busca pela unidade, ele estava sempre procurando construir pontes entre mundos separados; não que ele valorizasse de modo algum um amálgama eclético e sincrético de religiões, mas ele valorizava a autenticidade onde quer que a encontrasse. Contatos de todos os tipos eram possíveis para ele, precisamente porque ele próprio se achava firmemente ancorado na Igreja, e assim podia reconhecer livremente a presença de Cristo e o movimento do Espírito Santo em todas as pessoas.

A presente obra foi originalmente publicada em Francês como uma série de artigos da revista Irénikon, um periódico do Mosteiro beneditino de Chevetogne na Bélgica, ao qual Frei Lev estava estreitamente ligado por amizades pessoais, embora nunca tenha sido membro de lá. Os capítulos I a V apareceram na Irénikon XX (1947) e o capítulo V na Irénikon XXV (1952); os capítulos de I a V, com dois apêndices, foram reunidos num livro pelo Mosteiro de Chevetogne em 1951 sob o título de La Prière de Jésus. Em 1959 o trabalho foi reorganizado numa forma revista e ampliada, que incluía agora o capítulo VI; na página de título ele é descrito como a terceira edição, mas eu não consegui descobrir quando apareceu a segunda edição, que talvez nunca tenha existido. Uma quarta edição, extensamente revisada, foi publicada em 1963, e foi utilizada para a primeira edição em Inglês, The Prayer of Jesus, traduzida anonimamente pelo “Monge da Igreja do Oriente” (1967). Uma quinta edição francesa, mais uma vez como várias modificações, apareceu em 1974 na série Livres de Vie, e é esta que forma a base da presente versão.

Nesta segunda edição Inglesa, a tradução foi bastante retrabalhada; eu considerei necessário fazer modificações em cada parágrafo, às vezes em cada sentença. Ocasionalmente, quando eu detectava uma pequena falta de acuidade no original referente a datas, atribuições de autoria ou coisas assim, eu me aventurei a ajustar o texto; mas acredito que em nenhum momento eu alterei os valores da perspectiva teológica ou dos juízos expressos por Frei Lev. Nas notas de rodapé as referências bibliográficas foram dispostas e datadas sempre que possível; todo material adicional do qual eu seja responsável foi colocado entre colchetes. Eu também fui responsável pela seção final “Leituras adicionais[3]”.

Quais são as características predominantes na perspectiva de Frei Lev sobre a Prece de Jesus? Uma das características mais marcantes é o caloroso sentimento com que ele fala, o evidente amor pela pessoa viva de Cristo no qual ele se inspira. Isto fica especialmente claro no capítulo final, mas a mesma nota afetiva e pessoal pode ser sentida em muitos pontos na primeira parte do livro, como, por exemplo, na explicação que ele dá sobre o termo “misericórdia”. Para o “Monge da Igreja do Oriente” a Prece de Jesus não constitui uma técnica, mas um ato de amor. Ela expressa a relação direta entre pessoas. Ao dizer a Prece de Jesus, diz-nos ele, não devemos pensar no fato de que estamos invocando o Nome, nem sobre o “método” da prece que estamos empregando, e seus possíveis efeitos, mas apenas e tão somente devemos pensar no próprio Jesus.

Através de seu ensinamento sobre a Prece Frei Lev mostra uma grande sobriedade e discrição. Ao mesmo tempo em que ele acredita que a Prece de fato possui um poder especial para “simplificar e unificar nossa visa espiritual”, ele é cuidadoso em não demonstrar exageradamente esta convicção. O Nome de Jesus não é um talismã ou uma “fórmula mágica”, diz ele, “pois ninguém pode usar este Nome efetivamente se não possuir uma relação interior com o próprio Jesus”. A Prece de Jesus não é isolada, mas pressupõe a vivência total da vida Cristã em todas as suas variadas formas – a prece comum, a recepção dos sacramentos, a leitura das Escrituras, os atos pessoais de serviço e compaixão: “A Prece de Jesus é um livro para ser aberto e lido apenas com um espírito evangélico de amor humilde e autodoação”. Em particular, ela não torna desnecessária a Cruz para a qual todo Cristão batizado está convidado: “Não imaginemos que a invocação do Nome é um atalho que dispensa da purificação ascética”.

Alguns expoentes falam como se a Prece de Jesus e a “espiritualidade Ortodoxa” fosse termos mais ou menos intercambiáveis, mas Frei Lev não faz este tipo de afirmação oblíqua. Ele respeita a plena diversidade e a liberdade em nossa aproximação humana a Deus. O “caminho do Nome” é aberto a todos, mas ninguém é obrigado a adotá-lo, e ele não desfruta de nenhum monopólio: “Não devemos gritar com fervor doentio: ‘Esta é a melhor prece’, e menos ainda: ‘Esta é a única prece’”. Apenas para os que receberam um “vocação especialíssima” a Prece de Jesus se tornará “o método ao redor do qual toda sua vida interior se organizará”.

Frei Lev sabiamente nos previne contra os perigos da emotividade, da violência interior, tanto nesta como em todas as formas de oração: “Seria um erro “forçar” essa prece, elevarmos a voz interiormente, para tentar induzir intensidade e emoção (...) Devemos banir toda sensualidade espiritual”. Ele dá alguns conselhos úteis sobre os períodos de secura na prece: talvez os momentos em que não sentimos consolação emocional ao orarmos sejam especialmente preciosos aos olhos de Deus. Não estamos buscando “experiências”, estamos buscando apenas a Jesus Cristo.

Ao discutir a “técnica física” que algumas vezes é associada à Prece de Jesus, o “Monge” toma grande cuidado em insistir que isso não passa de um acessório, que pode ser benéfico para alguns, mas que de modo algum é obrigatório para todos: “A invocação do Nome de Jesus é suficiente em si mesma. O melhor suporte para ela é a ordem espiritual e moral. Ademais, nenhum dos seguidores da técnica Athonita sustentaram ser essa técnica essencial à Prece de Jesus (...) A Prece de Jesus nos confere uma absoluta liberdade em relação a tudo, exceto ao próprio Jesus”. Frei Lev enfatiza ainda a importância da obediência, da direção espiritual dada por um guia experiente. Isso é desejável para todos os que utilizam a Prece de Jesus, e, no caso de alguém que tencione usar a “técnica física”, é indispensável.

Em tudo isso Frei Lev reflete fielmente o ensinamento clássico a respeito da Prece de Jesus. Existem, no entanto, três pontos a respeito dos quais sua visão da Prece reflete uma opinião pessoal, que não é partilhada hoje pela maior parte dos que tratam desse tema. Em primeiro lugar, segundo seu julgamento, a Prece de Jesus consistiria originalmente apenas na recitação do nome de “Jesus”, e não em uma fórmula mais desenvolvida, como “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador” ou algo do gênero. “A mais antiga, a mais simples e, na minha opinião, a fórmula mais fácil, escreve ele, consiste na palavra “Jesus” usada sozinha”: recitando o nome isoladamente, poderíamos reencontrar uma “liberdade primitiva”, que é menos evidente durante o desenvolvimento posterior da Prece. Por conseguinte, no capítulo a respeito do uso prático da Prece Frei Lev tem em vista o emprego simples do nome “Jesus”, apesar do fato de que quase tudo o que ele diz se aplica igualmente ao desenvolvimento da fórmula em suas diferentes variações.

O estudioso jesuíta Frei Irineu Hausherr discorda aqui do “Monge da Igreja do Oriente”. “A Prece de Jesus, escreve ele em seu grande estudo Noms du Christ et voies d’oraison, não começa com o nome de Jesus. Ela tem sua origem no penthos[4], no luto, na tristeza pelo pecado (...) Quanto à fórmula desenvolvida, pelo menos no que diz respeito à substância, temos páginas e páginas de evidências documentais; quanto ao uso apenas do nome, temos poucos testemunhos; formalmente falando, não temos nada”. Na visão de Frei Hausherr a “fórmula desenvolvida” representa não uma expansão ou uma abreviação, mas uma concentração numa curta frase da quintessência do espírito monástico do penthos.

Em favor do Frei Lev, é possível encontrar alguns exemplos através dos séculos nos quais o nome “Jesus” é empregado isoladamente. Mas devemos admitir que a maior parte das evidências favorecem o Frei Hausherr. A Prece “monológica” – a prece do Logos único – geralmente significa a prece de uma única frase, não de uma única palavra. São Diádoco de Foticéia, o mais antigo autor a fornecer uma fórmula específica, não menciona “Jesus” apenas, mas “Senhor Jesus”, possivelmente seguido de outras palavras. Poucos anos depois os Santos Barsanulfo e João de Gaza dão uma variedade de fórmulas, todas contendo muitas palavras, e nunca simplesmente “Jesus”. Mas, quaisquer que seja a verdade dos fatos sobre o desenvolvimento histórico da Prece – e hiatos no desenvolvimento histórico não permitem nenhuma conclusão final – Frei Lev está plenamente qualificado para recomendar aos Cristãos de hoje o uso do Santo Nome; isso, aliás, era costume no Ocidente durante a Idade Média.  Alguns podem considerar que o Nome, invocado isoladamente, é demasiado poderoso e intenso, e podem preferi “diluí-lo” junto com outras palavras. Mas muitos podem concordar com Frei Lev que a simples palavra “Jesus” é “a fórmula mais simples e mais fácil”. Quanto a isso, como em todos os aspectos da vida de oração, a diversidade pessoal existe.

Em segundo lugar, ao relatar o desenvolvimento da Prece de Jesus, Frei Lev distingue um estágio “Sinaíta” (dos séculos V ao VII) de um estágio “Athonita” (por volta do século XIV). Essa concepção de uma “espiritualidade Sinaíta” foi assumida por Frei Lev a partir de um antigo trabalho do Frei Hausherr, La méthode d’oraison hésychaste (Roma, 1927), mas em seus trabalhos posteriores por volta de 1934 o Jesuíta abandonou essa ideia. A primeira evolução da Prece de Jesus, conforme ele sustenta em Noms du Christ, não está conectada de modo algum ao Sinai, e a própria noção de um estágio especificamente “Sinapita” é artificial e enganoso. Mais uma vez devemos admitir que a maior parte das evidências concorda com Frei Hausherr. As fontes da Prece de Jesus residem na espiritualidade dos Padres do deserto do Egito, enquanto que os mais antigos testemunhos explícitos estão espalhados por uma grande área: Ásia Menor (São Nilo), norte da Grécia (Diádoco) e Palestina (Barsanulfo e João, Doroteus). Clímaco, Hesíquio e Filoteus de fato constituem uma escola Sinaíta distinta, mas eles não são as testemunhas mais antigas da Prece de Jesus. Assim, muitos especialistas preferem acompanhar Frei Hausherr, e evitam o termo “espiritualidade Sinaíta”, exceto quando aplicado de maneira restrita àqueles três autores. Frei Lev, por outro lado, é cuidados em especificar que ele não emprega o termo “Sinaíta” num sentido geográfico.

Em terceiro lugar, Frei Lev parece menos justo quando escreve a respeito de São Gregório Palamas e a controvérsia hesiquiasta. Ele esta certo ao dizer que “Gregório não discutiu a Prece de Jesus como um tema específico”, e que dedicou apenas um espaço limitado em seus estudos devotados especialmente à invocação do Nome. É também lamentavelmente verdade que muito do que Palamas escreveu foi marcado por um tom claramente polêmico que os Cristãos modernos acham pouco atraente – mas o mesmo pode-se dizer de muitos dos primeiros Padres. Mas São Gregório Palamas possui um significado crucial para a espiritualidade e a teologia Ortodoxa, que o “Monge” falhou em deixar claro. O tratamento que ele dispensa ao grande teólogo Hesiquiasta é bastante insuficiente. Aqui frei Lev confessa seu desgosto de toda uma vida em relação a controvérsias religiosas, que empanou seu julgamento.

Mas no seu todo, A Prece de Jesus é um trabalho notável por seu equilíbrio, moderação e generosidade. Frei Lev escreveu essa obra, como todos os seus livros, com um objetivo prático em vista: não transmitir uma informação histórica, mas levar as pessoas a orar, acendendo nelas um amor mais ardente por Jesus Cristo. Desde sua primeira publicação, A Prece de Jesus fez exatamente isso, conforme sei pela minha própria experiência e de outros que me confirmaram o fato. Ao final do último capítulo, o “Monge” nos diz a respeito da “bênção especial” recebida por todos os que amam o Nome de Jesus. Possa este livro, agora revisado, continuar a iniciar mais e mais Cristãos neste caminho de oração que é antigo e sempre novo, e ajudar as pessoas a partilhar dessa “bênção especial” de que ele fala. “Eu esperarei no Nome do Senhor[5]”.

Bispo Kallistos de Diocleia


INTRODUÇÃO

A história da Prece de Jesus – um termo técnico da espiritualidade Bizantina que designa a invocação do Nome de Jesus, sozinho ou inserido numa fórmula mais ou menos extensa – ainda não foi contada de um modo abrangente, apesar de que existem diversos estudos a respeito de aspectos específicos dela. Não estamos aqui pretendendo fazer uma reconstituição histórica exaustiva; apenas gostaríamos de indicar alguns estágios do desenvolvimento da Prece. O assunto tem um interesse que não é meramente histórico. Ao mesmo tempo em que a Prece recua no tempo até seus primórdios, ela ainda permanece totalmente viva no Oriente Cristão de hoje em dia. Ela geralmente não é mencionada nos tratados normais sobre os “modos de orar”, mas mesmo assim ela é mais antiga e mais disseminada do que os métodos analisados nesses manuais clássicos. Um escritos Romeno, N. Crainic, escreveu que a Prece de Jesus é “o coração da Ortodoxia”. Também os Uniatas a praticam; Latinos têm interesse nela; existem Anglicanos e Protestantes modernos que seguem fervorosamente este método de oração; ela é um patrimônio comum. Mais do que uma devoção provada, ela faz fronteira com o domínio da liturgia e chega mesmo a penetrar nele. Suas implicações possibilidades exigem uma cuidados atenção. Possa esta publicação ajudar a atrair as pessoas, ainda que poucas, à pratica da Prece.

Soubemos com alegria que as primeiras edições deste pequeno trabalho deram frutos. O livro, disseram-nos, ajudou algumas almas a aprender melhor sobre os tesouros que estão contidos no Dulcíssimo Nome do Salvador. Non nobis, Domine, sed nomini tuo...


CAPÍTULO I
A INVOCAÇÃO DO NOME DE JESUS NAS ESCRITURAS E NA TRADIÇÃO PATRÍSTICA

A Prece de Jesus tem suas raízes imediatas no Novo Testamento, mas suas raízes distantes mergulham na Velha Aliança. Ela deriva, num certo sentido, da atitude que a Bíblia Hebraica adota em relação ao nome de Deus. Para os Hebreus, o nome de Yavé, em comum com esta palavra, constituía uma espécie de entidade destacada da pessoa divina, uma grandeza existente por si só, paralelamente à pessoa. Assim é que o anjo é considerado como o portador do nome[6], e o profeta vê esse nome como algo que vem de muito longe[7]. Se o nome divino é invocado sobre um lugar ou uma pessoa, daí por diante esse lugar ou essa pessoa passam a pertencer a Yavé; tornam-se estritamente seus e entram numa relação íntima com ele[8]. O nome habita no Templo[9]. O nome é o guia da vida do homem e de seu serviço a Deus[10]. Através dos Salmos, o nome divino aparece como um refúgio, um poder que vem em nosso auxílio, um objeto de adoração.

A veneração do nome divino acontece entre outras nações além de Israel. Ela é encontrada reiteradamente entre os Mandeus, e também nos cultos de Isis e Astarte. O nome da divindade desempenha um papel importante na religião dos povos primitivos; para eles, o nome é algo de real, substancial, um fragmento do ser da pessoa nomeada, uma espécie de “duplo”. Mas apenas uma crítica superficial concluiria, a partir dessas similaridades que a atitude Bíblica perante o nome de Deus não passa de uma sobrevivência de formas de pensamento prerracionais. O uso do nome de Yavé no Antigo testamento não parece provir de magia; não se trata de uma fórmula abstrata usada para produzir determinados efeitos. É verdade que a mentalidade Hebraica, como a dos Semitas, é especialmente ligada ao nome; mas suas tendências psicológicas correspondem a uma revelação divina, objetiva, que existia previamente no nível espiritual. Por um lado o nome de Yavé é uma revelação de sua pessoa, uma expressão da essência divina. Por outro lado, essa revelação, essa nova fase no conhecimento da divindade, sinaliza a entrada do homem numa relação com Deus que é nova, pessoal e prática. Aprender quem e o que ele é equivale a aprender também como devemos agir.

A tradição Rabínica contribuiu bastante para a veneração do nome divino. Sabemos que por uma questão de respeito o nome de Yavé, o tetragrama, nunca era invocado senão pelo sumo sacerdote no dia do Yom Kippur; a palavra Adonai o substituía. O próprio termo pelo qual o nome divino era designado, shem ha-mephorash, ou seja, “o nome inefável”, tem uma história curiosa. Literalmente essa expressão denota o oposto de inefável, pois significa originalmente “nome claramente pronunciado”. Mas, pouco apouco, na medida em que um véu de adoração recobria o nome divino, o mesmo termo que significava que o nome era pronunciado abertamente começou a indicar que o nome se tornara inexprimível. A evolução semântica da palavra marca aqui o desenvolvimento do culto.

Os Cabalistas ligam uma importância especial ao nome divino. Não se pode negar que alguns deles caem em superstições em relação ao uso das letras, números e fórmulas; mas mesmo assim, com toda justiça, devemos reconhecer que a Cabala em sua essência nunca foi uma espécie de mágica, mas um método tanto de exegese espiritual como de vida espiritual.

A tradição Judaica utiliza o termo baal shem, “mestre do nome”, sem conotações mágicas, para designar uma pessoal em particular reconhecida por possuir uma prece efetiva e um certo poder diante de Deus. É um título que foi aplicado, por exemplo, a Benjamin bem Zara no século XI, e a Israel bem Eliezer no século XVIII – o santo Judeu que fundou a moderna escola de misticismo conhecida como Hassidismo – e, mais recentemente, a Eli Gutmacher no século XIX.

Finalmente, devemos sublinhar a importância, tanto na espiritualidade Judaica ancestral como na contemporânea, dos dois conceitos de kiddush hash-shem, “santificação do nome” e hilul hash-shem, “profanação do nome”. A expressão “santificação do nome” não significa a simples honra ou o louvor devido ao nome de Deus. Trata-se de um termo técnico já em uso desde o primeiro século com um significado poderoso: santificar o nome é dar testemunho de Deus mesmo com o risco da própria vida, é glorificar a Deus, se preciso, mesmo derramando seu sangue. A santificação do nome se tornou quase sinônimo de martírio. Os Macabeus eram considerados os santificadores por excelência do nome divino. A noção Judaica de kiddush hash-shem lança uma luz particular sobre a primeira súplica da Prece do Senhor.

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O anjo anunciou a Maria que seu filho seria chamado de Jesus, porque ele iria salvar os homens de seus pecados[11]. O nome Iesous é a transcrição grega do Hebraico Yeshua (Jesus), que por sua vez é idêntico a Yehoshua (Joshua). A primeira destas duas palavras Hebraicas é a contração da segunda, evitando a sequência das vogais o e u que repugnava o ouvido Judeu. O significado do nome Yeshua, embora claro no sentido geral, é difícil de estabelecer com precisão estrita. A tradução “salvador” é aproximadamente correta; mais especificamente, o nome significa “salvação de Yavé”, ou “Yavé é a salvação”. Assim é que o antigo adágio nomen est omen – o nome expressa de certo modo a pessoa e seu destino – se aplica à Anunciação por parte do anjo em relação ao nome do menino.

Três textos do Novo Testamento são de especial importância para a veneração do nome de Jesus. Em primeiro lugar (seguindo aquilo que acreditamos ser uma ordem cronológica) vem o magnífico texto de São Paulo: “Deus lhe deu o nome que está acima de todos os nomes, pois diante do nome de Jesus todo joelho se dobrará, dos que estão nos céus, sobre a terra ou abaixo da terra[12]”. Depois temos a solene declaração nos Atos dos Apóstolos: “Não existe outro nome abaixo dos céus dado aos homens, por meio do qual eles possam ser salvos[13]”. Finalmente, no Quarto Evangelho temos o segredo que Jesus revelou aos seus discípulos: “Até agora vocês não pediram nada em meu nome (...) Tudo aquilo que vocês pedirem ao Pai em meu nome, ele dará a vocês[14]”.

As referências ao nome de Jesus no Novo Testamento são demasiado numerosas para que nos detenhamos em cada uma delas; mas todo estudante, com o auxílio de uma concordância, poderá fazer isso com grande proveito. O Apocalipse fornece uma colheita especialmente rica. Mas é principalmente nos Atos dos Apóstolos que temos o que se pode chamar de “livro do nome de Jesus”. “Em nome de Jesus” prega-se a boa nova, os crentes são convertidos, confere-se o batismo, realizam-se curas e outros “sinais”, arriscam-se e se entregam vidas. O que está envolvido nessa insistência no nome de Jesus não é o emprego de uma fórmula mágica, pois ninguém pode empregar esse nome efetivamente se não possuir uma relação interior com o próprio Jesus.

Infelizmente a expressão “em nome de”, em Inglês, bem como o Latim in nomine, é incapaz de  expressar a rica complexidade do termo Grego. Em Latim como em Inglês a frase “em nome de Jesus” é mais ou menos sinônimo de “pela autoridade de Jesus”; assim, “em nome de” se transforma em “por causa de”. Isso empobrece o Novo Testamento Grego, despojando-o tanto de seu realismo quanto de suas nuances. O texto Grego, ao se referir ao nome de Jesus, usa três fórmulas: epi tw onomati, eis to onoma, en tw onomati. As três fórmulas não são equivalentes, mas cada uma expressa uma atitude específica em relação ao nome. Na primeira, epi tw onomati, o locutor se apoia no nome: este é a fundação sobre a qual se constrói, o terminus a quo, o ponto de partida de uma ação subsequente, o começo de um novo avanço. Em eis to onoma existe um movimento na direção do nome, um relacionamento dinâmico de finalização que vê o nome como objetivo a ser alcançado, o terminus ad quem. Em en tw onomati a atitude é estática: expressa o repouso que se segue ao atingimento do objetivo, e uma certa interiorização ou imanência; nosso espírito é transportado “para dentro” do nome, no interior do nome, ele se une ao nome e nele faz sua morada. A expressão en tw onomati corresponde ao Hebraico be-shem, eis to onoma ao Hebraico le-shem.

O Padre Ferdinando Prat indicou claramente as diferenças entre essas três fórmulas, que podem nos proporcionar um programa para um caminho completo de oração centrado em torno do nome de Jesus.

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A mais antiga referência Patrística ao nome de Jesus é encontrada no Pastor de Hermas, da primeira metade do século II. Hermas diz para alguém que “sustentar o nome do Filho de Deus” equivale a “colocar-se à parte da mortalidade e assumir a vida”. Ele também diz que “ninguém pode entrar no Reino de Deus a não ser através do nome de Seu Filho”. Ele fala “daqueles que sofreram por causa do nome do Filho[15]”. Podemos ver nisso apenas alusões ao batismo e ao martírio, ou os primeiros começos de uma teologia do nome? A segunda hipótese poderia ser sugerida por um outro enunciado de Hermas: “O nome do Filho de Deus é grande e ilimitado, e é ele que sustenta todo o mundo[16]”. Os místicos Bizantinos que propagaram a Prece de Jesus durante a Idade Média teriam endossado alegremente esta colocação. Se lermos com cuidado as poucas linhas que se seguem, bem como o capítulo precedente ao trecho do qual foram extraídas, acharemos algo confusa a maneira pela qual o nome do Filho e os nomes de virgens, poderes e pedras estão misturados. Mas ficamos com a impressão de que para Hermas o nome era algo muito real, com um valor objetivo e ontológico.

Orígenes, no século III, não discute a teologia do nome, embora as especulações deste Alexandrino pudessem ter encontrado nela muita matéria para reflexão. Mas ele observa que por esse tempo o nome de Jesus produzia o mesmo efeito que na época apostólica: “Ainda hoje o nome de Jesus liberta as pessoas da distração mental, coloca em fuga o demônio, cura os doentes; ela infunde mansidão e tranquilidade ao caráter, amor pela humanidade, ternura e gentileza[17]”. Poderíamos esperar que os grandes teólogos Gregos dos séculos IV e V tivessem meditado profundamente sobre o nome de Jesus. Mas de fato nem Atanásio, nem os Capadócios, nem Crisóstomo, nem Cirilo de Alexandria deram atenção especial ao significado dos nomes. Quando algum deles toca no assunto é de maneira incidental, às vezes como um detalhes de uma biografia que estão escrevendo, mas nunca como um tema desenvolvido em seus ensinamentos. Os Padres Gregos que influenciaram o crescimento da devoção ao nome não eram teólogos dogmáticos, mas permaneceram mais ou menos à parte das grandes correntes especulativas, ficando mais ligados a questões da vida interior.

Se nos voltarmos para o Ocidente Latino, encontraremos Santo Ambrósio (†387), que dedicou muitas reflexões pessoais ao nome de Jesus. De acordo com ele, esse nome estava contido em Israel como um perfume num vidro fechado. Agora o vidro foi aberto e o perfume de espalhou por toda parte. Aconteceu um verdadeiro “transbordamento desse nome”, um transbordamento ou uma inundação de graça; como coloca Ambrósio, ex abundantia superfluit quidquid effunditur[18].

São Paulino de Nola (354-431) escreveu um poema sobre o nome de Cristo: este nome “é néctar na boca, mel na língua (...) um ambrosia viva (...) se você prová-lo uma única vez já não suportará ser separado dele (...) ele é uma serena luz para os olhos, e para os ouvidos o som da vida[19]”. Este é talvez o poema que, muitos anos depois, inspiraria São Bernardo. O papa São Damasco (366-384) também escreveu dois poemas acrósticos sobre o nome de Jesus[20]. São Cesário de Arles (470-542) ligou o nome de Jesus com a serpente de bronze: videte nomen Dei vestri quantum prodesse possit gratia quod tantum profuit in figura, “Considere o quanto o nome de seu Deus pode beneficiá-lo em graça, quando mesmo figurativamente seu poder era já tão grande[21]”. Santo Agostinho pouco ou nada falou a respeito do nome de Jesus. Um dia, porém, ele comentou um texto de Habacuque cuja versão Latina traduzia como Gaudebo in Deo salutari meo, “Eu me regozijarei em Deus, minha salvação”. Agostinho sabia que outros manuscritos davam o texto como Gaudebo in Deu Jesu meo, “Eu me regozijarei em Deus, meu Jesus”. A equivalência de significados entre as palavras Latinas salutaris, salvator e o Hebraico Yeshua poderia justificar, em certa medida, essa leitura alternativa. Então Agostinho escreveu estas palavras que lançaram uma luz inesperada sobre seus sentimentos: “A leitura de alguns manuscritos, ‘Eu me regozijarei em Deus, meu Jesus’, me parece melhor do que aquelas em outros manuscritos, os quais, ao buscarem traduzir a palavra [Yeshua] para o Latim, não retiveram o nome verdadeiro [de Jesus] – o nome que é tão querido a nós, e de pronúncia tão doce[22]”.

Um dos contemporâneos de Agostinho, o historiador Paulo Orosius, relata um evento que provavelmente aconteceu por volta do ano 173. A invocação do nome de Jesus por soldados Cristãos da Legio XII Fulminata obteve para eles tanto a chuva como a vitória[23]. Que o nome divino tivesse operado maravilhas parece normal. Santo Atanásio menciona de passagem que bastava invocar o nome de Cristo para colocar os demônios em fuga[24]. São Gregório de Nisse, em sua Vida de São Gregório o Taumaturgo, dizia que ele aterrorizava os demônios apenas com a invocação do nome de Cristo[25].

Os Padres do deserto estavam familiarizados com o poder do nome. Santo Atanásio reporta que Santo Antônio do Egito (†cerca de 356) exorcizava os demônios usando apenas o nome do Senhor Jesus Cristo[26]. São Jerônimo recorda a mesma coisa a respeito de Santo Hilário (†371)[27]. Não parece que os Padres do deserto tenham praticado a invocação do nome de um modo organizado. Dentre os Apoftegmas coletados por Bousset, encontramos apenas dois, de origem Síria, sobre o nome de Jesus. Não é muito. Mas esses círculos monásticos prepararam o caminho para a Prece de Jesus de outra maneira. Eles deram às suas orações privadas a forma de curtas aspirações. Santo Agostinho escreveu a esse respeito a Proba: “Eles dizem que os irmãos do Egito oferecem preces que são muito frequentes mas muito breves lançadas impetuosamente[28]”. Estas palavras de Agostinho, orationes (...) quomodo jaculatas, deram origem à expressão “prece jaculatória”. Era como flechas velozes lançadas diretamente ao coração de Deus. Os Padres do deserto usavam a fórmula Kyrie eleison ou o versículo “Senhor, venha em meu socorro; ó Senhor, apresse-se em socorrer-me[29]”. É Deus quem se invoca; não existe uma menção específica ao nome do Filho. Mas imagine que um dia este nome foi associado à prece jaculatória, que houve um encontro, uma fusão, entre o nome e a aspiração – e então temos a Prece de Jesus.

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Essa combinação foi trabalho do Hesiquiasmo. Este termo tem sido muitas vezes empregado limitando-se a um significado histórico, com o título de “Hesiquiasta” restrito aos místicos Bizantinos do século XIV, em especial aqueles da escola Palamita. Na realidade o Hesiquiasmo constitui uma tradição espiritual que se estende do século V até o XVIII. A palavra “hesíquia” foi estabelecida como um termo técnico na primeira metade do século VII quando São João Clímaco dedicou um capítulo ao tema no seu tratado A Escada Santa[30]. Mas desde o século V essa tradição foi também representada por homens como São Nilo de Ancyra ou O Sinaíta, São Diádoco de Foticéia e São João o Hesiquiasta, cuja vida foi escrita por Cirilo de Scythopolis. Devemos considerar São Nicodemos  o Hagiorita, no século XVIII, como o último porta-voz do Hesiquiasmo.

Então, como podemos definir o Hesiquiasmo? A palavra hesíquia significa “repouso”. O Hesiquiasta monástico ideal deve ser entendido em temos de sua relação tanto com os primeiros Padres do deserto, como com o monasticismo cenobítico de São Basílio e São Teodoro o Estudita. Assim como o primitivo monasticismo do deserto, o Hesiquiasmo insiste no silêncio, no retiro, numa rigorosa separação do mundo, quase um rompimento com todo contato humano. Mas a preocupação com as proezas ascéticas é menor do que no deserto; ao contrário, o Hesiquiasmo coloca a maior ênfase na oração, na contemplação e na vida mística, e – o que é novidade – persegue métodos específicos de oração e busca desenvolver uma técnica contemplativa. Comparado com o monasticismo de Basílio e de Teodoro, o Hesiquiasmo difere de modo definitivo. As tradições de Basílio e do Estudita recomendam um grau moderado de observância cenobítica, vida em comum e prece comum; o Hesiquiasmo insiste na santificação individual na solidão. Os primeiros permitem aos monges tomar parte em atividades eclesiásticas e caritativas ocasionalmente; o segundo advoga a radical separação do mundo. Os primeiros estão interessados especialmente na praxis, enquanto o segundo está focado na theoria.

Podemos distinguir na história do Hesiquiasmo, e consequentemente na história da Prece de Jesus, duas fases bastante distintas: a fase Sinaíta e a fase Athonita.


CAPÍTULO II
A PRECE DE JESUS NO HESIQUIASMO SINAÍTA

Foi em 527 que o Imperador Justiniano I estabeleceu no Sinai o famoso mosteiro de Santa Catarina que, até hoje, constitui por si só uma das Igrejas Ortodoxas autocéfalas. Mas os Cristãos já viviam na península desde o ano 400. Limitando-se com os monásticos desertos do Egito, o lugar oferecia uma localização ideal para um mosteiro. Desde cedo ele se tornou um centro de influência espiritual. Mas quando falamos da espiritualidade Sinaíta, não devemos encará-la como sendo estritamente localizada. O que está implicado nisso é a espiritualidade da qual o monasticismo do Sinai constitui o ponto focal e exemplar; o que temos em mente é uma corrente de pensamento e uma tendência comum, mas que não necessariamente estão geograficamente vinculados à península. No Sinai (num sentido amplo) o Cristão enxerga o pensamento como uma força geradora por trás da ação: ele acredita no primado do logos sobre o ethos, da teoria sobre a prática. Em Studion ele se pergunta: como devo agir? No Sinai a questão principal é: como devo pensar?

A espiritualidade Sinaíta tem um certo toque afetivo que a distingue da sobriedade de Basílio e do Estudita. Trata-se de uma piedade permeada pela ternura. Algo dessa ternura aparece desde as palavras dos primeiros Padres do deserto. A combinação da espiritualidade do deserto com a ternura não parecerá surpreendente para os que leram, em nossos dias, os escritos de Frei Charles de Foucauld. Essa ternura está concentrada sobre a pessoa, a lembrança e o nome de Cristo. De preferência a pessoa pode invocar o nome “Jesus” apenas, e isto já é significativo. É nessa atmosfera que nasceu e floresceu a Prece de Jesus. E foi no Sinai, como podemos lembrar, que há muito tempo Deus revelou seu nome a Moisés.

Dos vários testemunhos dessa espiritualidade, o mais antigo parece ser o de Diádoco, Bispo de Foticéia, por volta do ano 458.  Em seus Cem Capítulos sobre a Perfeição, ele  recomenda purificar o coração por meio da “lembrança de Jesus”, a qual, de fato, não apenas purifica, mas inflama. “Devemos, diz ele, dar ao intelecto (nous) nada senão as palavras Senhor Jesus (to Kurie Ihsou)”. Tomemos nota desta frase. A Prece de Jesus existe deste ponto em diante como uma fórmula e uma técnica. Diádoco é um mestre espiritual da maior importância, ao qual não foi até hoje concedido todo o mérito merecido.

Também representativos da espiritualidade Sinaíta estão dois santos inseparáveis, Barsanulfo e João, que vieram pouco depois de Diádoco. São Barsanulfo († 540), de origem Egípcia, viveu num mosteiro perto de Gaza. Ele era chamado de “o grande ancião”, e, embora não fosse padre, os fiéis atribuíam a ele o poder de perdoar os pecados, mesmo à distância. Havia uma identificação perfeita entre Barsanulfo e seu amigo João o Profeta. Temos destes dois “anciãos” mais de 840 cartas espirituais, das quais 446 de João e 396 de Barsanulfo. Essas cartas não são uma correspondência entre os dois amigos, mas são endereçadas a pessoas de fora. Os dois missivistas recomendam o abandono da própria vontade, a direção espiritual, o exame de consciência e, por fim, a invocação do nome de Jesus. João desaprova o sistema “antirrético”, ou “método da contradição[31]”, que consistia em confrontar as tentações cara a cara em combate e disputa direta. Esse método só era recomendado aos “poderosos em Deus”, àqueles que eram “como São Miguel”. Mas havia outro caminho. “Para nós, os fracos, o único caminho é buscar refúgio no nome de Jesus”. Esta é uma das declarações mais belas em toda a literatura a respeito da Prece de Jesus. Barsanulfo levanta a questão sobre o que é preferível, se a salmodia ou a Prece de Jesus. Ele responde: “Ambas devem ser praticadas”. Os Hesiquiastas de Athos seriam mais radicais, afirmando que a Prece de Jesus absorveria todas as outras orações. As cartas de Barsanulfo e João desfrutaram de grande sucesso na Rússia, onde, desde o século XVIII, foram traduzidas muitas vezes.

São João Clímaco (†649) foi um Sinaíta no sentido plenamente geográfico do termo, uma vez que ele se tornou monge na península com a idade de dezesseis anos e foi sucessivamente cenobita, anacoreta e superior monástico no Sinai. Sua Escada Santa constitui um tratado clássico da espiritualidade Sinaíta. A prece ideal para ele era aquela que eliminasse os elementos discursivos ou logismoi, e se transformasse numa única palavra ou frase, numa monologia. A “lembrança de Jesus” daria a essa prece seu conteúdo e sua forma. Em seus ensinamentos espirituais encontramos uma antecipação das futuras teorias Hesiquiastas que associam a Prece de Jesus com a percepção da luz sobrenatural, pois, de acordo com João, o “olho do coração” é capaz de enxergar o divino “Sol da inteligência” e, quando isso acontece, o contemplativo se torna completamente luminoso. O principal texto da Escada sobre a invocação do nome é este: “Possa a lembrança de Jesus unir-se à sua respiração, e então você compreenderá o valor da hesíquia”. Não há dúvida de que para os Sinaítas a “Lembrança de Jesus” não era apenas um sistema mnemônico, mas que estava fundado firmemente sobre o nome divino. É por isso que João sugere que devemos de certo modo “amarrar” à nossa respiração o nome de Jesus, para daí por diante possibilitar nossa vida de contemplação a se tornar verdadeiramente plena. Essa ideia, como veremos, estava destinada a um estranho fado.

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As Centúrias atribuídas a Hesíquio são um dos textos mais importantes na literatura da Prece do Coração. O trabalho foi erroneamente atribuído a Santo Hesíquio, um sacerdote de Jerusalém (†450), que aliás não tinha conexão alguma com o Hesiquiasmo. As Centúrias são trabalho de um autor, e provavelmente de muitos autores, associados ao mosteiro de Bathos (a Sarça ardente) no Sinai. O trabalho é posterior a São João Clímaco, porque este o menciona na seguinte passagem: “Possa a lembrança de Jesus se unir à sua respiração (...) prossegue Hesíquio (...) por toda a sua vida[32]”. A adição é importante. Não se trata simplesmente de rezar, mas é toda a nossa vida que deve ser controlada pela “lembrança de Jesus”. A espiritualidade do nome cresce ainda mais e abarca a tudo. As Centúrias falam da Prece como sendo monológica. O trabalho utiliza o termo “Prece de Jesus” (euch tou Ihsou) e, que tenhamos conhecimento, esta é a primeiríssima menção a essa frase, embora a realidade que ela denota já fosse bastante conhecida. O trabalho também emprega a expressão epiklhsis Ihsou, “chamado”, “invocação”, epiclese de Jesus. Às vezes fala-se aí também no “santo nome de Cristo”.

A Prece de Jesus deve ser “respirada” continuamente. Quando o intelecto se vê purificado e unificado nela, nossos pensamentos nadam nele como alegres golfinhos num mar calmo. Então começa um diálogo no qual Cristo, que se tornou nosso mestre interior, nos faz conhecer sua vontade ao coração. Quando a Prece de Jesus é compreendida desta maneira, claramente seu objetivo final não é o silêncio místico, mas a escuta da palavra divina. Não permanecemos no exterior do nome invocado, mas a invocação nos permite “participar do santo nome de Jesus”. Ela nos concede as virtudes da temperança e da continência. O nome de Jesus entra em nossa vida primeiramente como uma lâmpada na escuridão; depois como a luz da lua, e finalmente como um sol que nasce. Ao se mostrar como o sol de nosso intelecto, ela cria nele pensamentos luminosos, pensamentos que se assemelham ao sol. É o amor que nos eleva – devemos observar a parte que é desempenhada pelo amor divino nesse processo de transformação – e nos torna prwtaggeloi, mais altos do que os anjos. Pronunciar o nome de Jesus de um modo sagrado consiste num socorro autossuficiente e superabundante para qualquer vida humana. “Verdadeiramente abençoado, proclama a Centúria, é aquele que pronuncia incessantemente em seu coração o nome de Jesus, e que nas profundezas de sua mente está unido à Prece de Jesus como o corpo ao espaço que o rodeia ou a cera da vela à chama[33]”.

Nos Outros Capítulos (Capita alia) que aparecem na edição de Migne sob o nome de São Máximo o Confessor (†662), há uma insistência na prece monológica. Serão esses fragmentos realmente de Máximo? Argumentos existem contra e a favor. É possível que de fato Máximo seja o autor desses textos, e muito provável que ele tenha sido agraciado com os ensinamentos de João Clímaco sobre a Prece de Jesus.

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Nos séculos VIII e IX não existem textos notáveis referentes à Prece de Jesus. A Prece existia; ela era recomendada e, inclusive, fazia parte da tradição espiritual Bizantina. Mas ela permaneceu como se fosse fluída, algo inconstante. Não existem traços das técnicas psicofisiológicas que viriam a aparecer mais tarde. A própria forma da Prece parece não ter sido fixa. O nome de Jesus era obviamente um elemento necessário, era seu centro e sua fonte de poder. Apesar disso era consentida uma grande liberdade na sua utilização. Alguns pronunciavam apenas o nome, enquanto outros o associavam a alguma curta invocação. Para encontrarmos a Prece de Jesus, em certa medida, cristalizada, teremos que esperar pela aparição de um trabalho de data e autoria incertas, mas de importância e influência decisivas, o Método da Santa Prece e Atenção. A edição Migne apresenta este trabalho apenas na sua versão neo-Grega. Para Hausherr, estamos nos devendo uma primeira edição crítica do Método, baseada nos principais manuscritos.

Uma tradição geral e ininterrupta atribui o Método a São Simeão o Novo Teólogo (949-1022), abade do mosteiro de São Mamés em Constantinopla. Já Combefis no século XVIII, e hoje Holl, Stavrou, Stein e Papamikhail, colocaram em xeque essa atribuição. Haussher a rejeita categoricamente; ele acredita inclusive ter estabelecido a identidade do verdadeiro autor, que de seu ponto de vista foi um monge do Monte Athos, Nicéforo, de quem falaremos mais adiante. Os argumentos de Hausherr não convenceram o acadêmico Bizantino Frei Martin Jugie. Depois de estudar seus argumentos, o leitor provavelmente se inclinará para a solução proposta por Hausherr. Entretanto, nos parece melhor deixar a questão em aberto. Desta forma, poderemos falar do Método sem prejulgar a questão de sua origem. Mas o Método é tão dependente da atmosfera espiritual criada por Simeão que, mesmo que este não seja seu autor, algumas linhas a respeito do Abade de São Mamés nos ajudarão a entender essa atmosfera.

São Simeão o Novo Teólogo já foi comparado por seus admiradores com o autor do Quarto Evangelho. Ele é com certeza o maior nome na história da espiritualidade Bizantina pós-patrística. Se é certo que as Igrejas Ortodoxa e Romana se separaram mais por determinadas tendências espirituais do que por conflitos nos níveis estritamente dogmáticos e históricos, devemos afirmar que Simeão, e dois séculos mais tarde São Gregório Palamas, tiveram mais participação nisso do que Photius e Cerularius na divergência das “duas mentalidades”. Através de sua perspectiva sobre o ministério do “pai espiritual” e a necessidade da experiência mística, Simeão, provavelmente sem que tivesse a intenção, contribuiu para uma certa concepção da “primazia do espiritual”, entendida como o primado do elemento pneumático e carismático sobre o hierárquico-institucional, e também como o primado da contemplação sobre a vida intelectual e ativa. Essas noções, ou antes, essas atitudes ainda permanecem mais ou menos latentes na alma Ortodoxa. Ela foi desenvolvida por algumas escolas Russas de teologia, que se mostram especialmente partidárias dessa posição; e elas marcaram a Ortodoxia tanto quanto a Contrarreforma, o Concílio de Trento e o Primeiro Concílio Vaticano marcaram a Igreja Romana.

Mas o que nos interessa aqui é a relação de Simeão com a Prece de Jesus. Deixando de lado o tratado sobre o Método, não encontramos escritos de Simeão que façam referência direta a essa oração. Entretanto, três comentários são necessários.

Em primeiro lugar, a Prece de Jesus, tal como descrita no Método não teria sido unanimemente, nem continuamente atribuída a Simeão, se os círculos monásticos Hesiquiastas, nos quais a memória de Simeão permanece especialmente viva, não tivessem observado uma conexão muito próxima entre essa Prece e a espiritualidade do abade de São Mamés. Estamos muito inclinados a acreditar que os detalhes do Método não são atribuíveis a Simeão; é mais provável que Simeão tivesse extraído de João Clímaco e Hesíquio do que ter ele próprio advogado essa prece que, na época, era considerada a prece contemplativa por excelência, e que ele tenha inspirado seus discípulos a que desenvolvessem ulteriormente a prática dessa oração. Devemos notar que Simeão, que seguia ele próprio a vida Estudita, estava permeado pela espiritualidade Sinaíta na qual o nome de Jesus ocupava um lugar privilegiado. De fato, a influência Sinaíta era uma das razões das dificuldades encontradas por Simeão em suas relações com o meio Estudita.

Em segundo lugar, o extraordinário Cristocentrismo de Simeão o predispunha à Prece de Jesus. Em toda a Idade Média Bizantina não houve escritor mais Cristocêntrico do que Simeão. Nenhuma história de demonstração de amor a Cristo precisaria ser especialmente atribuída a ele. Simeão expressava seu amor por Jesus com a mais emocionada ternura, com o sentimento lírico mais vívido. Sua teologia era essencialmente uma teologia do “corpo de Cristo”. Não dizemos do “corpo místico de Cristo”, porque esta é uma expressão estranha à tradição Patrística; mas Simeão foi realmente interessado na incorporação do homem em Cristo. É bem conhecido que a tradição Grega via essa incorporação de um modo mais realista do que o Ocidente Cristão jamais o fez. Mais além de uma mera analogia entre a estrutura local da Igreja e o organismo biológico humano, além mesmo da incorporação pela graça, os Padres Gregos, sem cair em nenhum tipo de identificação panteísta, basearam sua concepção do corpo de Cristo na ideia de que o Logos assumiu a natureza humana; e esta última, no seu modo de pensar, era muito similar à Ideia ou Forma platônica de humanidade. Simeão desenvolveu o tema de nossa incorporação em Cristo com tamanho realismo psicológico que seus editores Latinos ficaram escandalizados. Quando o leitor de Migne chegou às passagens mais ousadas dos Hinos do Amor Divino, ele se deparou com um corte e uma nota na qual o Jesuíta Jacob Spanmuller (†1626) declarava que esse tipo de desenvolvimento seria “melhor deixado em silêncio, pois seria dificilmente seria considerado digno de ouvidos Latinos”; o Jesuíta falava também de “ideias que são escassamente piedosas ou decentes”. Mas existe prece mais Cristocêntrica do que a Prece de Jesus? Alguma que expresse melhor nossa incorporação em Cristo? Alguma em que Jesus chegue a tamanho grau de substancialidade de nosso pensamento e nossa fala? É por isso que, na história da Prece de Jesus, Simeão permanece “ausente no nome, mas presente em espírito”.

Mas isso não é tudo. Parece que podemos ter uma evidência definitiva da ligação que une Simeão à Prece de Jesus. O biógrafo de Simeão, Nicetas Stetathos, reporta o seguinte episódio durante a juventude de seu herói: “Por esse tempo ele ficava, durante a prece, cheio de uma grande alegria que lhe infundia lágrimas ardentes. Não tendo sido ainda iniciado nessas revelações, em seu espanto ele clamava em alta voz e continuamente, “Senhor, tem piedade” (...). Sob esta luz, então, ele recebeu o poder de ver; e então, em direção aos céus, apareceu a ele uma espécie de nuvem luminosíssima, sem forma nem contorno, cheia da inefável glória de Deus (...). Finalmente, mais tarde, quando a luz gradualmente evanesceu, ele se viu novamente em seu corpo e dentro de sua cela, e sentiu seu coração cheio de uma indescritível alegria, enquanto sua bica clamava alto: “Senhor, tem piedade”, e toda sua pessoa estava banhada em lágrimas mais doces do que o mel”. Encontramos nesse episódio a alegria do coração e a visão da luz que o Hesiquiasmo mais tarde iria associar à Prece de Jesus.

Mas será que as palavras de Simeão, “Senhor, tem piedade”, estavam endereçadas a Cristo? Um dos escritos de Simeão nos autoriza a responder afirmativamente. Simeão é o autor de um discurso sobre a necessidade da experiência mística. Nesse discurso ele descreve uma experiência idêntica àquela reportada por Nicetas, mas sem colocar que ele próprio era o sujeito da experiência. Um homem, dizia Simeão, que passou pela experiência da luz, da doçura e das lágrimas, sabia que “alguém aparecera diante de seu rosto”. Começa então um diálogo: “Meu Deus, é você?”; “Sim, sou eu, Deus, que me tornei home por você”. Portanto, é a pessoa de Jesus que apareceu a Simeão. Então, se, como suspeitamos, Simeão está relatando a visão extática que ele teve em sua juventude, as palavras “Senhor, tem piedade” estão dirigidas a Cristo. Ainda não é a Prece de Jesus, no sentido de que o nome real de Jesus está faltando nela. Mas a união de “Senhor, tem piedade” com o pensamento de Jesus já aponta para a fórmula na qual a frase “Senhor, tem piedade” e o nome de Jesus estarão unidos; é uma fórmula como esta que provavelmente, senão certamente, o tratado do Método nos apresenta.

Esse tratado, que vamos agora analisar, começa com um alerta contra os perigos de usar a imaginação na prece. E assim como a prece da imaginação, existe (disseram-nos) uma forma alternativa de prece que consiste me lutar violentamente contra os demônios; mas este método apresenta muitas dificuldades. Existe ainda uma terceira forma de prece. Mas antes de considerá-la, devemos notar que ela pressupõe a obediência, sem a qual não existe a consciência pura. Ela pressupõe ainda a “guarda sobre o coração”, que permite à pessoa obter facilmente todo o resto.

Isso nos leva à passagem centra do trabalho. Para orar, está dito, o discípulo deve fechar a porta de sua cela, deve se colocar num estado de quietude, sentar-se, colocar seu queixo contra o peito, olhar para o centro de seu abdome, segurar a respiração e fazer um esforço mental para encontrar o “lugar do coração”, ao mesmo tempo em que repete incessantemente “a epiclese de Jesus Cristo[34]”. De início ele só experimentará dificuldade e obscuridade, mas logo perceberá uma espécie de luz. Desse ponto em diante, assim que um mau pensamento se levantar, e antes mesmo que ele possa se completar e tomar forma, será expelido e destruído. “Por meio da invocação do Senhor Jesus, os ventos das paixões se dissolvem e desaparecem como cera”. Evidentemente que este resultado não pode ser obtido num dia. A pessoa deve passar pelos sucessivos estágios da dominação sobre as paixões, por meio do enternecimento da salmodia primeiramente e depois pela substituição desta pela Prece de Jesus; assim, finalmente, ela alcançará a theoria, a contemplação que passa a estar firmemente estabelecida e que já não se desvia mais. Nesta fase está sendo construída a morada espiritual em que Cristo virá residir. Tudo isso está além de nosso alcance. “O resto você aprenderá com a ajuda de Deus, permanecendo alerta em seu intelecto e mantendo Jesus em seu coração; conforme prosseguir a oração, sente-se em sua cela, e sua cela lhe ensinará tudo”. Uma frase deliciosa que poderia bem ter sido escrita pelo autor da Iniciação.

É importante notar que o Método não oferece nenhuma fórmula definitiva da Prece de Jesus ; ele fala apenas na invocação da “epiclese” de Jesus. O mesmo está nos manuscritos Gregos e no texto crítico baseado nos manuscritos feito por Frei Hausherr. Mas a versão neo-Grega do Método, que encontramos em Migne e que às vezes constitui uma paráfrase, por duas vezes dá a fórmula: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”. A versão neo-Grega não é anterior ao século XVIII; mas ela traz o testemunho daquilo que é certamente uma interpretação muito antiga e tradicional da “epiclese de Jesus”. Mais do que possível, é provável que a fórmula “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” seja aquela a que o Método se refere quando fala da invocação do nome. Em todo caso, essa era a interpretação corrente nos séculos XIII e XIV.

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Uma leitura do Método deixa em nós uma impressão assaz complexa. Por um lado, ele oferece um alerta clássico quanto à vida espiritual. Por outro, existe uma inovação, à primeira vista francamente desconcertante, na medida em que a invocação do nome é ligada a determinados métodos psicofisiológicos. Voltaremos a esse ponto mais adiante. A tese de Hausherr, que atribui o Método ao monge Athonita Nicéforo, parece bastante provável se compararmos o Método com o tratado Da guarda do coração, do qual Nicéforo é de fato autor.

Nicéforo advoga a Prece de Jesus, acompanhada de uma retenção da respiração no coração, de modo a facilitar, conforme ele coloca, a entrada do intelecto (nous) no coração. A colocação mais importante do tratado de Nicéforo é a seguinte: “Retire todo pensamento discursivo da razão (você pode, se desejar fazê-lo) e dê a ela a invocação “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”; e obrigue-se, no lugar de todos os demais pensamentos, a apenas gritar essa prece dentro de si mesmo”. A fórmula da prece aparece aqui expandida pela adição do “Filho de Deus”. Ao mesmo tempo, como o indica o próprio título do tratado, Nicéforo apresenta a Prece de Jesus dentro de um contexto ascético emprestado dos Padres e muito consistente com a espiritualidade tradicional. É difícil datar este tratado. De acordo com a tradição Athonita, Nicéforo foi monge na Montanha Santa por volta de 1340, desfrutando de grande reputação de santidade ali; ele foi um dos mestres de Gregório Palamas. Estranhamente, Nicéforo teria origem Latina. Mas tudo isso é duvidoso. Talvez o tratado deva ser datado dos séculos XII ou XIII.

Fora de dúvidas, a carta endereçada aos monges, preservada em meio aos escritos de Crisóstomo, deve ter sido escrita depois do tempo de Nicéforo. Seu editor, Migne, a chama de omnino futilis et inepta. Esta avaliação parece completamente injusta. O autor desconhecido nos conta em substância que podemos superar todos os maus pensamentos invocando o nome de Jesus. Devemos repetir de manhã até de noite, “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de nós”. Devemos orar assim mesmo quando estamos comendo ou bebendo. Devemos chamar Jesus Cristo à nossa mente até que o nome do Senhor penetre no coração e desça até suas profundezas, destruindo o dragão e dando vida à alma. Nosso coração deve absorver o Senhor e o Senhor absorver nosso coração até que os dois se tornem um. Isso não é tarefa para um ou dois dias, mas requer tempo e exercício. Mas é algo que podemos fazer em qualquer lugar: a prece não está restrita ao edifício da igreja: “Você é o templo: não procure outro lugar”. Podemos notar que o autor utiliza a fórmula de Nicéforo, mas substitui o pronome singular pelo plural “nós”. E ele também não faz nenhuma menção a uma técnica física.

Por volta de 1200, a monja Teodora, irmã do Imperador Isaac Angelos, trocou correspondência com um certo Abba Isaías, que costuma ser confundido com o escritor Monofisista do século V. Este Abba Isaías inicialmente recomendou a Teodora que usasse o Kyrie eleison. Podemos nos perguntar se, para Isaías, o Kyrie eleison mantinha o significado geral de uma invocação a Deus, como era entre os Padres do deserto, ou se Kyrios, como acontece com frequência no Novo Testamento, designava aqui especificamente a pessoa de Cristo. O que torna esta segunda alternativa provável é o fato de que Isaías incorporou em suas cartas uma passagem preservada do manuscrito Athonita Codex Panteleimon 571, um texto que já havia sido utilizado por Nicéforo, que nitidamente o relacionou à Prece de Jesus. Nesse caso, as cartas de Isaías nos permitem traçar de perto o processo pelo qual o uso do Kyrie eleison pode ter conduzido à Prece de Jesus.


CAPÍTULO III
A PRECE DE JESUS NO HESIQUIASMO ATHONITA

São Gregório Sinaíta (†1346) representa, na história da Prece de Jesus, o fim da fase Sinaíta e o começo da fase Athonita. Ele próprio, quando em Creta, recebeu do monge Arsênio a tradição da Prece de Jesus; em seguida ele foi para uma região próxima a Athos e depois se retirou para o Monte Katakryomenos. Certamente não foi ele quem introduziu a Prece de Jesus em Athos; em relação à Prece, aliás, Athos não difere essencialmente do Sinai. O que Gregório fez foi reavivar a chama. Quando ele chegou a Athos, encontrou ali apenas três monges, Isaías, Cornélio e Macário, que tinham experiência na vida contemplativa. Mas, do t empo de Gregório em diante, foi Athos, não mais o Sinai, que se constituiu no principal centro de prática e difusão da Prece de Jesus. Em Athos a prece perdeu sua inconstância original. Gradualmente Athos restringiu a prece a uma fórmula fixa na qual não eram permitidas variações, e insistiu em particular no acompanhamento da técnica psicofisiológica. Resumidamente, Athos exibiu uma maior rigidez. Algo da ternura e da espontaneidade do Sinai se perdeu na Montanha Santa, e isto é algo que podemos lamentar.

Tudo isso, naturalmente, não se aplica ao próprio Gregório do Sinai. Três de seus trabalhos são de especial interesse para a história de espiritualidade. Em seu tratado Da quietude e da oração, ele estabeleceu os fundamentos teológicos da vida mística em termos que o leitor contemporâneo poderá achar familiar e atrativo. De acordo com Gregório, a vida mística é energeia, a manifestação ativa e operativa do Espírito recebida no batismo; é a descoberta de um dom latente, é tornar atual ou que era potencial. Gregório distingue dois modos pelos quais isso pode ser obtido: o caminho dos mandamentos, que requer muito tempo e trabalho, e o caminho da invocação contínua ou “epiclese” do Senhor Jesus. É óbvio que deve ser claramente entendido que ninguém está dispensado da observação dos mandamentos, mas a Prece de Jesus cria em nós a humildade e a contrição que torna essa praxis mais fácil.

Seu tratado Da quietude e os Dois Métodos da Prece chegam a detalhes concretos. O aspirante espiritual deve se dedicar à Prece de Jesus pela manhã. Ele deve permanecer sentado, com a cabeça baixa. Ele deve pronunciar insistentemente a fórmula “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”, colocando tanto sua alma como seu intelecto (nous) a trabalhar, imergindo seu intelecto no coração. Ao pronunciar o nome de Jesus, ele será alimentado por esse nome divino como se fora um alimento (seguindo essa linha de raciocínio, podemos explorar o uso eucarístico do nome de Jesus, sendo a Prece de Jesus entendida como uma forma de comunhão espiritual). Ele deve se dedicar a dar um pleno significado a cada uma das palavras. Gregório concede uma certa variedade no uso de fórmulas: é legítimo alternar entre “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” e “Filho de Deus, tem piedade de mim”, embora não se deva mudar a fórmula da invocação com frequência, assim como uma planta frequentemente transplantada não cria raízes. A Prece  de Jesus nos permite alcançar o estado descrito por São Paulo: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim[35]”. Também deve ser deixado um espaço para a salmodia e a leitura.

O tratado Como o Hesiquiasta deve se sentar para a Prece e não se levantar logo retorna para a questão da forma das palavras. Qual a melhor fórmula a empregar? Alguns dizem: “Jesus, Filho de Deus, tem piedade de nós”. Falar “Jesus” ao invés de “Senhor Jesus” é mais fácil, “por causa da fraqueza de nosso intelecto”. De fato, sabemos pela Escritura que ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor sem uma inspiração especial do Espírito Santo. A pessoa pode dizer “de modo puro e perfeito” as palavras “Senhor Jesus” apenas no Espírito[36]. É melhor evitar usar essas palavras do que repeti-las inconscientemente como uma criança balbuciando por aí. Neste último ponto devemos concordar ou discordar de Gregório,; mas o que permanece fora de dúvida é a alta visão espiritual expressa em seus escritos.

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No Monte Athos Gregório conheceu e admirou grandemente um anacoreta do século XIV, São Máximo Kapsokalyvia. Máximo era tão apaixonado pela vida solitária que por várias vezes queimou sua cela[37] para escapar do fluxo de visitantes. A ele se creditava possuir o dom de discernir os corações dos homens. Os Imperadores João VI Cantacuzeno e João V Paleólogo o consultavam sempre. Ele disse a Gregório de que modo, entre lágrimas, ele pediu à Virgem Maria a graça da “prece espiritual” (termo sinônimo de Prece de Jesus). Enquanto ele permanecia diante do ícone da Santa Virgem, ele sentiu um calor e uma doçura em seu peito, e seu coração começou a dizer a Prece. Máximo costumava unir “a lembrança de Jesus e da Mãe de Deus”. Vimos que a expressão “lembrança de Jesus” é equivalente à invocação do nome. Teria Máximo utilizado uma fórmula na qual os dois nomes de Jesus e Maria apareciam juntos? Não podemos afirmar. Mas aqui nos defrontamos com um caso notável – único, até onde sabemos – no qual a Prece de Jesus e a prece à Virgem e aos santos estão de certo modo unidas. Veremos mais adiante, é verdade, algo de análogo na utilização do rosário monástico Grego; mas no século XIV parece não ter havido nada de semelhante ou paralelo. Isso mostra como a Prece de Jesus e a devoção à Bendita Virgem Maria e aos santos podiam ser harmonizadas. Mais do que isso, temos aí uma indicação de como Maria pode conformar a Prece de Jesus em nosso interior. Máximo insiste na unificação de nosso espírito através da Prece de Jesus; o espírito ou intelecto, diz ele, “se torna monos na lembrança de Cristo”. Libertando-nos de tudo o que nos é estranho, atemo-nos apenas a essa lembrança e a essa prece.

Teolepto, Arcebispo de Filadélfia, que morreu entre 1310 e 1320, ocupa na história da Prece de Jesus o papel de um expoente teórico – um expoente, entenda-se, não da técnica psicofisiológica da Prece (atitude corporal, respiração, etc.), mas de sua psicologia das operações mentais implicadas nela. Teolepto é um dos autores espirituais que merecem ser resgatados de um não merecido esquecimento. A maior parte de seus trabalhos não foi publicada. Ele assinala a cada uma de nossas funções mentais seu respectivo papel na prática da Prece de Jesus. Nossa dianoia, nossa inteligência discursiva ou entendimento, concebe e repete incessantemente o nome do Senhor. Nosso nous, nossa potência intelectual ou racional, se dedica inteiramente a este nome. Quando invocamos o nome em nossa “epiclese”, fazemos uso da faculdade da fala, da palavra ou logos. Finalmente, o espírito, pneuma, cria em nós a compunção e o amor.

Teolepto não menciona uma fórmula definida da invocação; ele sequer diz explicitamente que o nome invocado seja o de Jesus. Mas os termos “lembrança de Deus”, “nome do Senhor” e “epiclese” já possuíam na linguagem técnica espiritual do século XIV um significado tão preciso que não hesitamos em considerá-los como sinônimos à Prece de Jesus. Ademais, a tradição monástica Ortodoxa há muito considera Teolepto como um dos mestres desta Prece.

Teolepto fala em logos e pneuma. Estas palavras, no entanto, não têm apenas um significado psicológico, mas nos conduzem aos umbrais do mistério da Trindade, dado que elas designam teologicamente o Verbo de Deus e o Espírito Santo. No documento reproduzido em Migne, Teolepto escreve: “A prece pura reúne em si o nous, o logos e o pneuma. Por meio do logos ela invoca o nome de Deus, por meio do nous ela calmamente fixa  seu olhar no Deus que ela invoca. Por meio do pneuma ela manifesta a compunção, a humildade e o amor. Desta forma ela chama pela Trindade eterna, Pai, Filho e Espírito Santo, o Deus único e uno”.

De acordo com Filoteu Kokkinos, Teolepto foi o reverenciado mestre de São Gregório Palamas (1296-1359). O renome do discípulo eclipsou o mestre. Gregório seguiu a vida Hesiquiasta em vários centros monásticos na Montanha Santa, e ainda por algum tempo nos arredores da montanha de Beroea. Quando o monge calabrês Barlaam começou uma campanha contra os Hesiquiastas, atacando-os como heréticos, Messalianos e “onfalopsíquicos”, Gregório saiu em defesa destes e daí por diante se envolveu numa acalorada polêmica. Por volta de 1341 os superiores e os principais monges de Athos vieram dar suporte a Gregório num documento chamado de Tomo Hagiorítico. O Concílio de Santa Sofia, sob a presidência do Imperador, condenou Barlaam. Mas Gregório iria conhecer a seguir estranhas e súbitas mudanças da sua sorte. Ele foi aprisionado, excomungado e depois elevado ao Arcebispado de Tessalônica; depois ele foi capturado por corsários Turcos e mantido um ano sob custódia. Em 1368 sua doutrina foi declarada como sendo o ensinamento oficial da Igreja Bizantina. Já em 1851 o Concílio de  Blachernae havia incorporado no Sinódico do Domingo da Ortodoxia, anátemas contra Acindino, Nicéforo, Gregoras e outros adversários de Palamas. Este último não foi apenas o autor de inúmeros escritos controversos, como a Tríade em defesa dos Santos Hesiquiastas, mas ainda o autor místico e ascético de trabalhos como Três Capítulos sobre a Prece e a Pureza do Coração, Sobre as Paixões e as Virtudes, e o Decálogo das Leis segundo Cristo.

Gregório não discutiu especificamente a Prece de Jesus como um de seus temas, mas esta está presente em quase todos os seus escritos, uma vez que ele estava replicando ataques diretamente direcionados contra ela. O aspecto mais original e controverso de sua teologia é seu entendimento da “luz incriada” e sua distinção entre a divina essência e as energias divinas. Foi a Prece de Jesus que permitiu a Gregório desenvolver essas ideias, uma vez que a visão da luz divina, da “luz do Tabor”, era para Gregório o objetivo normal da prece Hesiquiasta e da invocação do nome. Foi em relação a esta perspectiva sobre a luz incriada que um violento conflito se desenvolveu. Não pretendemos entrar nessa controvérsia. Só diremos o seguinte: houve uma tendência a perder de vista o fato de que a teoria Hesiquiasta sobre a visão da luz divina está ligada a um nível sobrenatural, e não à ordem psicológica normal; ademais, essa controvérsia, como a disputa do filioque, resulta mais de um mal-entendido entre as partes. Corremos o risco de criar monstruosidades quando transpomos um conceito de um sistema para outro que é estranho a ele, divorciando-o de seu contexto, e quando traduzimos para determinadas categorias intelectuais ideias que só podem ser concebidas e expressa numa categoria completamente diferente.

Sendo assim, permanece o fato de que a Prece de Jesus foi talvez a causa direta da controvérsia Palamita e da animosidade que a partir daí se instalou entre Gregos e Latinos. Essa corrente de devoção simples e terna se expandiu no século XIV por todo um estuário de discussões hostis. Isso foi lamentável. Monges que haviam aprendido a contemplar em paz se lançaram na batalha a propósito dos conceitos intelectuais nos quais se expressava sua contemplação; como sempre acontece, o resultado foi se tornarem menos monges. O próprio Gregório Palamas sofreu o infortúnio de todos os místicos que interrompem sua prece para se engajar em disputas a respeito dela. É verdade que ele foi provocado por ataques que eram em sua maioria injustos e insultantes. Mas não teria sido uma resposta melhor para a ofensiva direta contra a Prece de Jesus, a influência pacífica que a própria Prece irradia, um mergulho exploratório mais profundo, e, se preciso, um breve testemunho baseado na experiência pessoal, livre de teorias e polêmicas? Qualquer que tenha sido o ganho para a especulação teológica a partir da disputa Hesiquiasta – se ganho houve – para a pura espiritualidade só houve perdas.

Emergindo desse conflito, é refrescante ler um trabalho tão cheio de paz, devoção e rara beleza espiritual, como as Centúrias de Calixto e Inácio Xanthopouloi. Os dois buscaram permanecer acima de todos os monges e contemplativos. Eles eram membros do mosteiro de Xanthopouloi em Constantinopla. O Calixto das Centúrias é o Patriarca de Constantinopla, São Calixto II, que ocupou a sede patriarcal em 1397 por apenas três meses, e que não deve ser confundido com o homônimo Patriarca Calixto I.

As Centúrias constituem uma completa regra de vida para o Hesiquiasta. O centro da vida é a Prece de Jesus. Com uma visão técnica, a Centúria recomenda a fórmula “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Os autores distinguem aqui um duplo movimento: um, ascendente e direcionado a Jesus Cristo na primeira parte da prece, “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”; e um retorno sobre si mesmo em “tem piedade de mim”. O ritmo da respiração é associado a esse duplo movimento. Essa prática produz um certo aquecimento do coração.

O mais importante é que as Centúrias inserem a Prece de Jesus num contexto geral ascético. Elas tomam o Hesiquiasta pela mão e o conduzem desde a alvorada até o crepúsculo. Fica estabelecido como um princípio fundamental que não pode haver hesíquia sem uma fé Ortodoxa e boas obras; assim, o risco do quietismo é eliminado. A seguir vêm orientações diretas e precisas: sobre o silêncio, a leitura das Escrituras, a vigília noturna, as prostrações (trezentas por dia), o jejum (uma dieta de vegetais secos, pão e água; algum vinho é permitido), a comunhão com “o coração puro”, a salmodia para os que são incapazes de se concentrar na Prece de Jesus. Permeando todas essas recomendações detalhadas, o objetivo espiritual sempre se mantém à vista. A finalidade é alcançar um estado no qual a alma devotada à Prece de Jesus possa dizer como nos Cânticos, “Eu fui ferido de amor[38]”. As Centúrias permanecem até hoje como um manual precioso. Atualmente, para aqueles que foram chamados por Deus para adotar a Prece como seu caminho pessoal e que têm condições de organizar sua vida em torno dela, não há guia melhor a ser recomendado – com algumas adaptações – ou, no mínimo, não há iniciação melhor.

Do Monte Athos, a Prece de Jesus se espalhou não apenas através do Oriente Grego, como também pelo mundo Eslavo. Por volta da primeira metade do século XV, se não antes, ela começou a ser praticada na Rússia. A Prece de Jesus é mencionada numa instrução para o treinamento de jovens noviços, datada desse período e proveniente do Mosteiro da Trindade, próximo a Obnora, fundado em 1389 por Paul, discípulo de São Sérgio de Radonezh. Ela devia ser falada segundo as contas do rosário monástico. São Nilo Sorsky (1433-1508), que viveu em Athos e esteve sob a influência de Gregório Sinaíta, propagou a Prece de Jesus entre os “monges ao longo do Volga”. Nesse trabalho ele a apresenta como uma tarefa ascética, um “trabalho”, uma “ação”, e este modo de ver nunca desapareceu do monasticismo Russo. O movimento espiritual dos monges do Transvolga, tão profundamente oposto ao institucionalismo que prevalecia na Igreja Russa, teve uma afinidade natural com o Hesiquiasmo e com as tendências representadas pela Prece de Jesus. No século XVI encontramos a Prece completamente estabelecida na Rússia. No século XVII a Prece era advogada por São Dimitri, Metropolita de Rastov (1651-1709), que era não apenas um teólogo dogmático e um escritor catequético, como também o autor das obras Medicina Espiritual (sobre os modos de libertar-se dos maus pensamentos) e O Homem Interior (sobre a efetividade da Prece). É interessante que Dimitri era ao mesmo tempo um latinizador que aceitava a visão dos teólogos  Romanos sobre a Imaculada Concepção de Maria e a epiclese eucarística.


CAPÍTULO IV
A ERA DA FILOCALIA

Desde que se encerrou a controvérsia Palamita o Monte Athos deixou de desempenhar papel ativo no desenvolvimento da prece Hesiquiasta. No século XVIII, entretanto, a Montanha Santa voltou a ser o centro de uma intensa difusão da Prece de Jesus. Isto se deveu ao trabalho de dois guias espirituais cujos nomes não podem ser separados: São Macário de Corínto e São Nicodemos Hagiorita.

O Metropolita Macário de Corinto (1731-1805) foi destituído de seu bispado por pressão dos Turcos e se viu reduzido a uma existência errante. Ele faleceu como eremita em Chios. Ele causou um certo escândalo ao publicar anonimamente em Veneza, em 1777, um Encheiridion sobre a “participação nos divinos mistérios”; nessa obra ele sustentou a prática da comunhão frequente, que nessa época era considerada um costume Latino. No decurso desse mesmo ano ele fez sua primeira viagem ao Monte Athos, e ali ele encontrou Nicodemos de Naxos, conhecido como “o Hagiorita”, ou seja “da Montanha Santa”. Canonista, tendo desempenhado papel predominante na edição do Pedalion, hagiógrafo, liturgista, escritor místico e ascético, Nicodemos (1749-1809) reivindica junto com Eugênio Boulgaris (1716-1806) o mesmo título de maior escritor religioso Grego do século XVIII; e não resta dúvida que, espiritualmente, ele era muito superior a Boulgaris.

Nicodemos dividiu com Macário uma atitude simpática em relação a algumas noções que prevaleciam no Ocidente Latino. Ele traduziu para o Grego, em 1796, o Combate Espiritual de Lorenzo Scupoli, e em 1800 ele chegou a publicar um Exercícios Espirituais muito próximo daqueles de Santo Inácio de Loyola, compreendendo 34 meditações, cada qual com três pontos. Ele partilhava com Macário sua opinião a respeito da comunhão frequente e auxiliou o santo bispo a revisar seu livro em 1777, que resultou na publicação em Veneza em 1783, de outro trabalho anônimo intitulado Um livro muito útil para a alma digna da participação nos mais puros mistérios de Cristo. Trata-se de um livro de Macário, mas que foi adaptado por Nicodemos, que lhe acrescentou alguns desenvolvimentos. A obra foi inicialmente proibida pelo Patriarca de Constantinopla, mas quando os monges de Athos expressaram seu apoio a condenação foi retirada. Macário não residiu permanentemente em Athos; depois de sua primeira visita em 1777 ele não pode retornar até 1784. De fato, o livro de 1783 foi apenas uma publicação menor dos dois escritores. Foi no ano precedente que a maior obra de Macário e Nicodemos apareceu: a Filocalia.

A palavra Filokalia significa “amor ao belo”, mas este termo deve ser entendido de acordo com a perspectiva Helenística que identifica o belo e o bom; aqui se trata da beleza espiritual. Existe também uma seleção de trabalhos de Orígenes com o mesmo título. Macário pretendia compor uma antologia do Hesiquiasmo, e mais especificamente da prece Hesiquiasta e da Prece de Jesus. Nicodemos também se sentia atraído por ideias similares. Ele admirava Simeão o Novo Teólogo, cujos trabalhos ele traduziu e editou em Grego vernacular em colaboração com Denis Zagoraios (Veneza, 1790). Ele também preparou uma edição das cartas de Barsanulfo e João de Gaza, que foi publicada apenas depois de sua morte, em Viena, no ano de 1816. Ele estava assim interiormente muito bem preparado para o empreendimento, que todavia fora de iniciativa de Macário. Não é possível determinar com precisão a parte que cada um teve na composição da Filocalia; tudo o que podemos dizer é que a colaboração entre os dois foi estreita. O resultado foi um trabalho de consideráveis dimensões, no qual foram reunidos os textos mais significativos referentes à vida Hesiquiasta e, sobretudo, à Prece de Jesus, não apenas dos escritores que nós mesmos citamos neste livro, como de um grande número de outros. O leitor poderá avaliar a importância da Filocalia para o nosso tema se dissermos que o trabalho de Macário e Nicodemos constitui a “Suma da Prece de Jesus”.

***

Nicodemos o Hagiorita também escreveu um trabalho original sobre a prece Hesiquiasta intitulado. Um manual de conselhos para a guarda dos cinco sentidos, da imaginação, do intelecto e do coração. O autor fornece algumas recomendações definidas sobre a Prece de Jesus. No capítulo X podemos ler: “Os iniciantes costumam obter este retorno do intelecto (nous) ao coração, como disseram nossos Padres ascéticos, inclinando a cabeça e apoiando o queixo sobre o peito”. O discípulo é aconselhado a sustar momentaneamente a respiração, porque isso auxilia no controle da dispersão e da dissipação do intelecto. Ele deve praticar esse controle da respiração pela tarde, por uma hora ou duas sem interrupção, num lugar obscuro e quieto. Dessa forma o intelecto “é recolhido, reunido e retorna ao coração”. Ali ele encontra o “discurso interior” , e é esta voz interior que recita a Prece de Jesus. “Portanto, quando seu intelecto encontrar esse discurso interior, não o permita dizer mais nada senão a curta prece chamada de monológica: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim’”. Nada de mecânico deve haver na Prece de Jesus. Ela deve ser colocada em seu contexto espiritual pleno. “Apenas essa prece não é o bastante. A pessoa deve colocar em movimento a força de vontade da alma; esta deve orar com toda sua vontade, toda sua força e todo o seu amor”. Deve ser evitado todo tipo de imaginação, toda “impressão de forma, seja qual for”, lembrando a advertência de São Nilo (isto é, de Evagro): “Aproxime-se do Imaterial de um modo imaterial”.

Esse trabalho de Nicodemos parecerá desconcertante para o leitor Ocidental, por causa do modo como ele combina uma técnica física específica com a espiritualidade de um despojamento profundo de si e uma interiorização. Seu espanto (poderíamos dizer, seu embaraço) aumentará quando, na página 328 da edição de 1801 que temos diante de nós, ele se deparar com diagramas anatômicos do coração humano, desenhados da maneira mais científica e precisa. Aqui, portanto, no início do século XIX, temos um escritor com uma bagagem literária e teológica excepcional, com uma experiência espiritual profunda e autêntica, muito bem informado sobre as teorias dos anatomistas e dos fisiologistas de seu tempo; e ainda assim ele não hesita em recomendar os métodos psicofisiológicos de oração, criados na Idade Média Bizantina por monges cujas noções sobre e respiração, o coração e o cérebro estavam próximas de parecer primitivas. Uma vez que Nicodemos é historicamente o último dos Hesiquiastas – o que, como poderemos ver, não significa que a história da Prece de Jesus termina com ele – talvez seja útil fazermos uma pausa para olhar mais de perto a Prece de Jesus tal como ele a descreve, refletindo fielmente uma longa tradição.

Invariavelmente, essencialmente, a Prece de Jesus consiste numa fórmula na qual o nome de Jesus é invocado. Em segundo lugar, de acordo com muitos autores, isso envolve um método físico dado, para facilitar a recitação da fórmula. Vamos começar por considerar a fórmula em si.

A fórmula, conforme existe no moderno uso monástico, é: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”. A palavra “pecador” falta na fórmula indicada por Nicodemos, mas sua fórmula de certo modo a implica. A fórmula moderna combina duas orações do Evangelho, de um modo algo modificado: a grito dos dois cegos, “Filho de Davi, tem piedade de nós[39]”, e o humilde pedido do Publicano, “Deus, tem piedade de mim, pecador[40]”. O elemento comum às duas orações é “tem piedade”. A prece dos dois cegos fornece o vocativo “Filho”, mas a expressão “Filho de Davi” é substituída por “Filho de Deus”.

Essa frase é precedida pelas palavras “Senhor Jesus Cristo”. Estas três palavras são encontradas juntas pela primeira fez em Atos 16: 31: “Creia no Senhor Jesus Cristo”. A justaposição das duas palavras “Jesus” e “Cristo” já consiste numa confissão de fé. A primeira, de um ponto de vista etimológico, implica a existência, no nome de Jesus, de uma swthria, um mistério de salvação, e coloca na pessoa de Jesus a presença do poder salvador de Deus. A segunda palavra atribui a Jesus uma unção messiânica, tanto sacerdotal como real. A palavra “Senhor” confessa a “soberania” de Jesus, e esse termo possuía uma significado especialmente forte no primeiro século, quando o culto ao imperador tendia a monopolizar seu uso de uma forma idólatra. Seu emprego pelos Cristãos fez a este costuma uma veemente oposição. A transição de “Senhor Jesus Cristo” para “Filho de Deus” – outra confissão de fé explícita – pode talvez ter sido sugerida pelas palavras do alto sacerdote: “...se você é o Cristo, o Filho de Deus[41]”.

A frase “tem piedade” é geralmente expressa pelo Grego elehson, que é o termo usado pelos dois cegos no Evangelho de Mateus. Mas algumas vezes, na Prece de Jesus, ao invés de elehson, se usa a palavra ilasqhti, que Lucas coloca nos lábios do Publicano[42]. A diferença de significado dessas duas palavras é considerável. As palavras eleos, “piedade”, eleew, “eu demonstro piedade” e elehmosunh, “esmola”, todas expressão a noção de misericórdia compassiva, expressa através de uma auto-humilhação. Encontramos a mesma ideia nas palavras Eslavônicas milost, milostiv, pomilovat, pomilui, utilizadas nas versões Eslavônicas da Prece de Jesus; aqui, porém, existe ainda uma nuance que pode ser expressa pela palavra “benignidade”. Mas ilasqhti diz algo diferente. O verbo ilaskomai implica a ideia de apaziguar, reconciliar, propiciar; o mesmo sentido é encontrado também nas palavras ilasmos, ilasthrios, ilastherion. Podemos lembrar que este último termo designa, na Bíblia Grega, a “conciliação” ou “lugar do perdão” que recobriu a Arca e que é descrita no Livro do Êxodo[43]. Esse poderoso significado não existe originalmente, por exemplo, no termo Homérico ilaos, “divindade”, “graça”, ou em ilaros, “alegre”, do qual deriva nossa palavra “hilário”; mas gradativamente ele foi sendo acentuado, de modo que a prece do Publicano pode ser traduzida como “seja propício a mim”, mais do que “tem piedade de mim”. Assim, se, na Prece de Jesus, empregarmos ilasthti ou invés de elehson, estaremos introduzindo nela a noção do mistério da redenção e de tudo o que os Alemães entendem por Versöhnung e os Ingleses por Astonement, “expiação”. O texto Grego da Liturgia justapõe esses dois verbos na prece dita pelo sacerdote na Prótese: “Deus, sê propício para comigo, pecador, e tem piedade de mim[44]”. O texto Eslavônico traduz com muita precisão: “Deus, purifica (otchisti) a mim, pecador, e tem piedade de mim”. A expressão litúrgica Kyrie eleison também deve ter tido sua influência sobre a Prece de Jesus; não existe registro dela antes do Livro VIII das Constituições Apostólicas, na metade do século IV. O fato de que ela aparece primeiro na região de Antioquia sugere que pode ter sido usada nos desertos monásticos da Síria.

A partir de tudo isso fica claro que existe, debaixo da fórmula tão simples da Prece de Jesus, uma teologia extremamente rica. Longe de ser monótona, essa prece contém uma diversidade maravilhosa, se a pessoa que a utiliza enfatizar sucessivamente, conforme sua necessidade específica ou a graça recebida, os diversos aspectos contidos na fórmula. Entretanto, devemos nos lembrar de que o nome de Jesus basta por si só pata constituir a Prece de Jesus. Foi somente depois de muitos séculos, durante os quais a Prece teve um caráter indefinido e vago, que uma forma bastante fixa e rígida chegou a se impor. Mas quem quiser retornar à liberdade primitiva e se concentrar apenas no nome, pode proclamar plenamente que está praticando a Prece de Jesus. Pois ele estará de fato retornando ao mais antigo uso da Prece, e restaurando o termo monologistos em seu sentido literal, de “uma prece constituída de uma única palavra”, sendo esta única palavra o próprio Verbo no sentido absoluto expresso eternamente pelo Pai.

Desde a Idade Média os monges do Oriente Bizantino associaram a recitação da Prece de Jesus ao uso do rosário ou cordão de oração que auxilia na contagem das invocações. Esse rosário é entregue aos monges e monjas durante a cerimônia de profissão monástica. A recitação da Prece de Jesus, ou, em outras palavras, de um certo número de rosários – acompanhado de “metanias” e prostrações – pode substituir no todo ou em parte o ofício divino, de acordo com uma tabela que define claramente as equivalências. Desta forma a Prece de Jesus se torna algo além de uma devoção privada. Numa certa medida, ela faz parte da prece canônica da Igreja, e inclusive é prescrita na regra 87 do Nomocanon.

Passemos agora da fórmula para os métodos físicos que passaram a ser associados a ela. Já vimos que os Hesiquiastas Athonitas ligavam a Prece de Jesus a certas práticas ou experiências – retenção da respiração, fixar o olhar no meio do corpo, percepção da luz – que podem nos chocar ou, no mínimo, nos surpreender. Faremos apenas duas observações a esse respeito.

Em primeiro lugar, precisamos ser muito prudentes, muito precavidos, ao falarmos de um método que assistimos de fora e não experimentamos pessoalmente. É fácil para os escritores Latinos falar com ironia sobre a técnica Hesiquiasta, ou ficar escandalizados com ela. Tudo o que eles conhecem dessa técnica é o que leram dela. Aqueles que possuem um conhecimento prático dos métodos Hesiquiastas – e essas pessoas existem ainda em nossa época – já não escrevem a respeito. Mas não se pode desaprovar a priori alguém que tenta encontrar corporalmente as disposições capazes de tornar mais fácil a oração. Santo Inácio de Loyola, em seus Exercícios Espirituais, ligou uma importância considerável à postura exterior e a atitude corporal da pessoas que desempenha os exercícios. Isso é natural e legítimo. Um Cristão Oriental que critique ou ironize os Latinos por fazerem genuflexões ou rezar com os braços estendidos em cruz estará mostrando o mesmo mau gosto. Quando uma tradição de oração, como a de Athos, é antiga de muitos séculos, quando gerações de ascetas e místicos cujo testemunho não pode ser simplesmente rejeitado acreditaram que determinados métodos os ajudaram a rezar, é sinal de sabedoria nos perguntarmos até que ponto, afinal, não haverá algo de positivo nesses métodos. Aqui como sempre, é apropriado demonstrar uma certa reserva respeitosa, especialmente entre aqueles que pertencem a uma tradição diferente.

Dito isso, é importante fazer uma clara distinção entre a Prece de Jesus e todas as formas de técnicas psicofisiológicas. A invocação do nome de Jesus é suficiente por si só. Seus melhores suportes são de ordem espiritual e moral. Ademais, nenhum dos seguidores da técnica Athonita jamais sustentou que essa técnica fosse essencial para a Prece de Jesus. Hoje, de fato, quando algum fiel, depois de ler os textos do passado, se sente tentado a adotar a técnica Hesiquiasta, a orientação prática dos diretores espirituais da Ortodoxia consiste em dissuadi-lo de fazê-lo. Para a maioria das pessoas, essa tentativa seria inútil e perigosa, apesar de que em certos casos, e sob a guia de um orientador experiente, ela possa dar frutos. O Cristão que se sente atraído pela Prece de Jesus e que pretende iniciar esse caminho espiritual deve, portanto, evitar os métodos psicofisiológicos recomendados pelos monges do passado. Ele deve dizer para si mesmo simplesmente que essas coisas, que podem ter sido excelentes em determinado meio e em circunstâncias específicas, não foram escritas para ele. O caminho do método psicofisiológico não está fechado para que pretender segui-lo com a prudência necessária e sob orientação confiável. Mas todo Cristão pode alcançar o cume da Prece de Jesus sem nenhuma “técnica” a não ser o amor e a obediência. É a atitude interior que importa aqui. A Prece de Jesus nos concede a liberdade em relação a tudo, com exceção do próprio Jesus.

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O que foi dito parece ser evidente por si só. Porém, existe um perigo real de cairmos em certas incompreensões a respeito do assunto. Seria uma grande falta de entendimento da evidência histórica, ver na Prece de Jesus uma espécie de método exterior, uma “receita” que nos dispensaria de um sério esforço moral. Isso equivale a esquecer tudo o que os Hesiquiastas escreveram sobre a “guarda do coração”, como condições indispensável para a Prece de Jesus. Eles nunca viram a Prece como um “caminho curto” para evitar a renúncia que a estrada real da Santa Cruz exige de nós. O que os distinguia do “ascetismo” puro e simples era sua crença de que era a Prece de Jesus que os conduzia a essas renúncias e que as tornava mais leves e menos severas; mas eles jamais imaginaram que a Prece de Jesus poderia existir sem a nhyis, ou “sobriedade”. Esta palavra Grega implica a total vigilância e controle sobre si, condição também expressa na palavra “ascetismo”. “A sobriedade e a prece estão unidas como a alma e o corpo; se uma falta, a outra não consegue se manter firme”. Esta recomendação é feita no início do Método da Santa Prece e Atenção, o manual básico do Hesiquiasmo.

O entendimento Hesiquiasta sobre a relação existente entre a prece e o ascetismo nunca foi mais bem expresso do que pelo monge Estudita Nicetas Stethatos, o biógrafo e devoto admirador de Simeão o Novo Teólogo, em suas Centúrias. Ele diz que o retorno do homem à imagem divina original exige uma remodelagem de nossos sentidos e sua reordenação sob a direção do intelecto (nous). Os sentidos externos devem receber apenas os logoi ou impressões essenciais das coisas; eles devem ser desmaterializados e submeter o irracional ao que é inteligível; o sentido do paladar deve ser dirigido pelo discernimento da razão, a audição pelo entendimento da alma, e assim por diante para os demais sentidos. Deixamos a satisfação carnal para alcançar fins mais elevados. Este é o mais alto ascetismo que o Hesiquiasmo recomenda. Então, pode isto ser considerado um sistema fácil? Além disso, nem os discípulos do Novo Teólogo, nem os monges de Athos estiveram jamais em risco de esquecer a importância crucial do “pai espiritual”, cuja orientação protege o iniciante da autoindulgência e da ilusão. O mesmo Nicetas escreve: “Não se submeter a um pai espiritual, imitando o Filho que era obediente ao Pai até a morte na Cruz, equivale a não nascer para o alto”. Portanto, ninguém pode falar em métodos mecânicos ou em “atalhos”. A Prece de Jesus é um livro que só pode ser aberto e lido dentro de um espírito evangélico de humilde amor e autodoação.

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Tendo assim, numa certa medida, clareado a atmosfera, vamos retornar à história da Prece de Jesus. Paissy Velichkovsky (1722-94), de origem Russa, foi o apóstolo da Prece de Jesus na Romênia, onde ele dirigiu o mosteiro de Niamets. Um dos grandes nomes da história monástica da Ortodoxia, ele viveu em Athos por algum tempo. Ele traduziu a Filocalia para a Igreja Eslavônica sob o título de Dobrotolubie (o “amor ao belo” transformou-se em Eslavônico em “amor ao bom”). A Dobrotolubie teve uma influência ainda maior sobre o povo Russo, do que a Filocalia entre os Gregos. Foi por meio dessa coleção de textos que não apenas os monges, mas as pessoas simples das cidades e vilas se familiarizaram com os Padres e com a Prece de Jesus. Paissy também escreveu uma carta aos “inimigos e difamadores da Prece de Jesus”. Nela, ele dizia: “É preciso que se saiba que essa ação divina era a ocupação constante de nossos pais que estavam inteiramente preenchidos por Deus. Ela brilhou como o sol em inúmeros lugares, tanto no deserto como nos mosteiros cenobíticos: no Sinai, nas sketes no Egito, no Monte Nitria, em Jerusalém e nos mosteiros das vizinhanças, numa palavra, em todo o Oriente e mais tarde em Constantinopla, na Sagrada Montanha de Athos, em muitas ilhas, e, nestes últimos tempos, pela graça de Cristo, na Rússia”.

São Serafim de Sarov (1759-1833), o mais popular dos santos Russos, não insistiu de modo especial na Prece de Jesus. Mas é preciso dizer que ele possuía uma alma que estava acima de todo Pentecostes, e que ele concentrava sua vida espiritual na “aquisição do Espírito Santo”. Isso é evidente para os leitores de sua famosa Conversação com Motovilov. Ele escreveu as seguintes linhas: “De modo a receber e sentir a luz de Cristo no coração, é preciso se retirar o máximo possível das coisas visíveis. Quando a alma, com fé interior no Crucificado, purificou a si mesma pelo arrependimento e as boas obras, é preciso então fechar os olhos do corpo, fazer a inteligência descer ao coração e chamar incessantemente pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim’. Então a pessoa, de acordo com a medida de seu zelo e de seu fervor pelo Amado, encontrará na invocação do nome consolação e ternura, e nela crescerá o desejo de buscar por uma iluminação mais elevada”. É também notável que uma das primeiras biografias de Serafim contenha um longo suplemento sobre a Prece de Jesus. Nele estão incluídas interessantes reflexões a respeito do retorno do espírito ao coração, sobre a sensação de calor que se produz neste momento, e sobre a transição da “prece completa” (‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim’) para um simples chamado: Iissousse moi!, “Meu Jesus”!

Um dos principais mestres espirituais Russos do século XIX, Inácio Brianchaninov (1807-1867), Bispo de Kostroma, devotou uma de suas obras à Prece de Jesus. Ele também publicou uma edição da Dobrotolubie, mais completa do que a de Paissy. A história da Prece de Jesus no século XIX está em grande medida ligada à história da Dobrotolubie e da Filocalia. Outro famoso asceta Russo, Teófano Govorov (1815-1894), chamado de Teófano o Recluso, Bispo de Tambov e depois de Vladimir, e que finalmente se retirou para o “deserto” de Vyshen, preparou uma nova edição da Dobrotolubie, consideravelmente mais extensa do que as anteriores, e que foi reimpressa muitas vezes. Nessa edição estabelece-se uma clara distinção entre a Prece de Jesus enquanto tal e as técnicas psicofisiológicas. Teófano coloca que ele omitiu “certos métodos externos que podem escandalizar a alguns e levá-los a abandonar a prática da Prece, enquanto outros poderão deformar a própria prática da Prece”. Esses métodos são apenas “preparações exteriores para a atividade interior, sem nenhuma contribuição essencial para ela”. A advertência prossegue: “Deve ser lembrado que, de nossa parte, está apenas o esforço, enquanto que a realidade em si, especialmente a união do intelecto com o coração, é um dom da graça concedido quando e como o Senhor desejar (...). A essência da prática da Prece de Jesus consiste em adquirir o hábito de manter o intelecto em guarda dentro do coração (...) dentro do coração físico, embora não de um modo físico[45]”. A edição de Teófano está em Russo; mas uma reedição da Dobrotolubie pela Igreja Eslavônica foi publicada no inicio do século XX. Os Gregos, por sua vez, reeditaram muitas e muitas vezes a Filocalia.


CAPÍTULO V
O CAMINHO DO PEREGRINO E A PRECE DE JESUS EM NOSSA ÉPOCA

Um pequeno livro intitulado Sinceras Conversas de um Peregrino com seu Pai Espiritual apareceu em Kazan em 1884. Para os leitores Ocidentais ele é geralmente conhecido como Relatos de um Peregrino Russo. Ele havia sido copiado pelo Frei Paissy (†1883), na época Abade do Mosteiro de São Miguel de Cheremissi em Kazan, a partir de um manuscrito de posse de um monge Athonita. A julgar por certas alusões feitas pelo autor anônimo, ele foi provavelmente escrito depois da guerra da Crimeia e antes da abolição da servidão Russa, ou seja, entre 1855 e 1861. O “peregrino” (strannik) descreve sua odisseia através da Rússia, que ele percorre tendo apenas um saco contendo pão seco e uma Bíblia. Num mosteiro ele encontra um estaroste (um pai espiritual) e lhe pergunta como é possível realizar o conselho do Apóstolo: “Orai sem cessar[46]”. O estaroste coloca em suas mãos a Dobrotolubie e explica a ele a prática da Prece de Jesus. Ele o submete ao que podemos chamar de um regime de treinamento progressivo. Ele deveria começar dizendo a Prece de Jesus 3.000 vezes por dia, depois 6.000 vezes e por fim 12.000 vezes. Então o peregrino poderia parar de contar as orações; ele teria unido a prece “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador” com cada respiração, cada batida do coração. Chegaria um momento em que nenhuma palavras precisaria mais ser pronunciada: seus lábios permaneceriam em silêncio e tudo o que ele tinha a fazer era escutar o coração orando. A Prece de Jesus servia-lhe de alimento quando estava faminto, de bebida quando estava sedento, de descanso quando se cansava, de proteção contra lobos e outros perigos. Ela o inspirava nas conversações que ele tinha com as pessoas que encontrava, pessoas simples como ele próprio. Eis algumas poucas passagens significativas:

“Todo o meu desejo estava fixado numa única coisa, dizer a Prece de Jesus, e, assim que consegui me devotar inteiramente a ela, me senti cheio de alegria e consolação. Era como se meus lábios e minha língua pronunciassem as palavras sem nenhum esforço de minha parte”.

“Então eu senti como que uma sutil sensação de queimação em meu coração, e um amor tão grande por Jesus Cristo em meu pensamento que imaginei que me lançava a seus pés – se eu pudesse ao menos vê-lo – e que o segurava num abraço, beijando seus pés afetuosamente em lhe agradecendo com lágrimas por ter me permitido, com sua graça e seu amor, encontrar tamanha consolação em seu nome – eu, sua mais indigna e pecadora criatura. Então nasceu em meu coração um calor agradável que se espalhou por todo meu peito”.

“Às vezes meu coração sentia como se explodisse de alegria, tão leve ficava, e cheio de liberdade e consolação. Às vezes eu sentia um amor abrasador por Jesus Cristo e por todas as criaturas de Deus (...). Uma vez, ao invocar o nome de Jesus, eu fui invadido pela felicidade, e daí por diante eu entendi o significado destas palavras: O Reino de Deus está dentro de você”.

Seriam os Relatos de um Peregrino realmente autobiográficos? Ou seria uma novela espiritual, talvez uma peça de propaganda? Se for este o caso, de que meio teriam eles saído? Somos obrigados a deixar sem resposta essas questões. Nem tudo nessa obra foi modelado com ouro da mesma pureza. A Prece de Jesus é apresentada nela um pouco demasiado pensada como se agisse ex opere operato. Um teólogo, um superior monástico, um padre encarregado de almas saberia se expressar de modo mais sóbrio e prudente. Mas não podemos ficar insensíveis à leveza da narrativa, sua evidente sinceridade, sua beleza espiritual, enfim, aos dons literários do autor.

Os Relatos deixaram uma sequência. Uma segunda partem atribuída ao mesmo autor da primeira, aparecer vinte e sete anos depois. Esta segunda parte é bastante diferente. Ela é mais teológica, reproduz conversas nas quais, em um caso, intervêm um professor e um estaroste; ela perde a inocência (talvez apenas aparente) e o encanto da obra original, e as duas não parecem ter sido escritas pela mesma pena. Veremos adiante como o peregrino foi recebido no Ocidente atual.

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A história da Prece de Jesus nos primeiros anos do século XX inclui um lamentável episódio que teve lugar no Monte Athos. O monge e sacerdote Antonio Bulatovich, um antigo oficial do Exército Russo, e outro monge Hilarion, que havia sido eremita no Cáucaso, propagaram nos círculos monásticos Russos na Montanha Santa, por volta do ano de 1912, uma doutrina segundo a qual o próprio nome de Jesus é a Divindade. Os que adotaram essa doutrina se chamavam “glorificadores do nome” (imenoslavtsi, em Russo). Joaquim III, Patriarca de Constantinopla, condenou a doutrina como sendo herética; mas os “glorificadores do nome” persistiram em seus ensinamentos e perturbaram enormemente a península. Em 1913 o governo imperial Russo enviou um navio de guerra a Athos, embora este se localizasse em território Grego, e os dois recalcitrantes monges foram presos por marinheiros Russos. Os “glorificadores” foram deportados para a Rússia. Ecos destes distúrbios foram ouvidos ainda durante a Primeira Guerra Mundial.

Os “glorificadores do nome” expressavam-se de uma forma rude e atrapalhada a respeito de um assunto que requer o mais alto discernimento. Sua teoria era obviamente inadmissível, mas eles haviam tocado num problema real. Frei Sérgio Bulgarov (1871-1944), do Instituto Russo de Teologia Ortodoxa de Paris, colocou a questão em termos precisos. Permitam-nos colocar aqui sua considerações, embora um pouco longas:

“O significado mais importante na vida da oração consiste no Nome de Deus invocado na prece (...). O que existe de mais importante na prece, o que constitui seu coração, é aquilo que é chamado Prece de Jesus: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”. Esta prece, repetida centenas de vezes, ou mesmo continuamente, forma o componente essencial de toda regra de prece monástica; ela pode até, se necessário, substituir o Ofício e todas as outras orações, pois seu valor é universal. O poder dessa prece não reside no seu conteúdo, que é simples e claro – é a prece do coletor de impostos – mas no Dulcíssimo Nome de Jesus. Os ascetas testemunham que esse nome traz em si o poder e a presença de Deus. Não apenas Deus é invocado por intermédio desse nome, mas ele próprio se torna presente na invocação. É claro que isto pode ser dito para cada um dos nomes de Deus; mas é especialmente verdadeiro para o nome divino e humano de Jesus, que é ao mesmo tempo o nome de Deus e do homem, em resumo, o nome de Jesus, presente no coração humano, comunica a este o poder da deificação[47], que o Redentor nos concedeu (...). Brilhando no coração, a luz do nome de Jesus ilumina todo o universo. Esse estado não pode ser descrito por palavras, mas ele prenuncia o Último Dia, quando ‘Deus será tudo em todos’”.

“A prática da Prece de Jesus levou naturalmente a discussões teológicas sobre o nome de Deus e seu poder, sobre o significado da veneração do nome de Deus e sobre sua força ativa. Essas questões ainda não receberam uma solução que tenha a força de um dogma para a Igreja como um todo; de fato, elas ainda não foram suficientemente consideradas pela literatura teológica. Neste momento, coexistem duas perspectivas. Um primeiro grupo, que se autodenomina “glorificadores do nome”, adota uma atitude realista em relação ao significado do nome em geral. Eles acreditam que o nome de Deus, invocado em prece, já contém em si a presença de Deus (Frei João de Kronstadt e outros). O segundo grupo prefere um ponto de vista mais racional e nominalista : o nome de Deus é visto como uma meio humano e instrumental para expressar o pensamento da alma sobre Deus e seu esforço em sua direção. Aqueles que praticam a Prece de Jesus, bem como os místicos em geral, sustentam a primeira opinião, junto com alguns teólogos e membros da hierarquia. O segundo ponto de vista é característico da escola de teologia Ortodoxa que reflete a influência do racionalismo europeu. De qualquer maneira, a doutrina teológica do nome de Deus é um problema para os tempos atuais, um problema essencial para a expressão e a compreensão da Ortodoxia, um problema que nossa época irá legar as futuras gerações. Esse problema indica o principal caminho que permanece aberto perante o pensamento teológico contemporâneo”.

Sérgio Bulgarov ainda deixou um trabalho, não publicado até o tempo de seu falecimento, sobre a Filosofia do Nome. Nesta obra ele lida com o nome em geral, mais do que com o nome de Deus, mas no pensamento do autor toda a questão está intimamente ligada à Prece de Jesus.

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Foi durante a emigração que Frei Bulgarov escreveu as linhas que transcrevemos; de fato, foi no seio da emigração Russa que aconteceu um verdadeiro renascimento da Prece de Jesus. Esse renascimento se tornou mais aparente nas devoções privadas dos fiéis do que na atitude oficial da Igreja. A Dobrotolubie desfrutou de uma revivência de sucesso. Os Relatos de um Peregrino foram republicados. Mais do que isso, foram traduzidos para várias línguas Ocidentais, e essa obra tão característica da Rússia Ortodoxa foi recebida com simpatia inesperada por Romanos, Anglicanos, Luteranos e Calvinistas. A obra se tornou, como se diz, um dos “clássicos menores” da literatura devocional. Os monges do mosteiro Russo de Valamo na Finlândia publicaram dois volumes de textos selecionados sobre a Prece de Jesus a partir da Patrística e de autores ascéticos.

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Mais do que qualquer outro país do Ocidente, a Inglaterra deu atenção especial à Prece de Jesus. Evelyn Underhill (pseudônimo de Mrs. Stuart Moore, 1875-1941), um dos discípulos Anglicanos de Von Hügel, que se esforçou para criar interesse em seu país por autores místicos e questões da vida espiritual, falava da Prece de Jesus em termos admiráveis: “Essa técnica é tão simples que está ao alcance do mais humilde fiel, e tão penetrante que pode introduzir aos que a usam com fé nos mais profundos mistérios da vida contemplativa (...). Ela traz em si o apelo simples e infantil do camponês devoto, e o esforço contínuo e a aspiração do grande contemplativo”.

Foi por intermédio da Irmandade de Santo Albano e São Sérgio, à qual ela pertencia, que Evelyn Underhill entrou em contato com a espiritualidade Russa. A Irmandade merece uma menção na história da Prece de Jesus por causa do modo pelo qual membros não Ortodoxos vieram a aprender, através de seu contato com os membros Ortodoxos, o que é esta Prece. Ela foi um tema tratado muitas vezes em leituras e retiros organizados pela Irmandade. Muitos Ingleses passaram desde então a praticar a Prece de Jesus. Recentemente fomos surpreendidos por um Inglês que, sem ter lido nada a respeito do assunto, devotou-se à Prece – e de modo sério e frutífero – apenas porque um amigo lhe falara dela. Os Dominicanos de Oxford acolheram um artigo em sua publicação mensal, no qual um escritor Ortodoxo falava da Prece de Jesus em termos tão acertados que iremos aqui reproduzir um trecho:

“Muitos parecem ter construído toda a sua vida espiritual sobre a Prece de Jesus (...). Uma determinada técnica corporal foi indicada pelos metres para o ato de orar: imobilidade, respiração regular, fixar os olhos sobre o coração, etc. Esses exercícios “físicos” são permitidos apenas àqueles que dispõem de um orientador experiente para auxiliá-los. Todos os Padres enfatizara, entretanto, que esses métodos consistiam apenas em “muletas” para suportar o corpo e a alma até que a pessoa consiga o controle sobre si mesma. O objetivo é o de purificar o corpo e transformá-lo em instrumento da prece (...). A invocação pode ser repetida oralmente ou mentalmente (...). Para evitar a repetição mecânica, é possível modificar as palavras de tempos em tempos, mas não com muita frequência. Algumas pessoas consideram suficiente apenas repetir: Jesus, Jesus (...)”.

“É esta uma prece para monges , os únicos que podem dedicar todo o seu tempo a ela? De fato, a Prece de Jesus é largamente praticada por leigos da Igreja Ortodoxa. Ela é tão simples que não necessita treinamento algum para ser lembrada. Ela pode permanecer nos lábios até dos que estão por demais enfraquecidos para rezar o Pater (...). Muitos vão aos seus empregos habituais repetindo essa prece. O trabalho doméstico, no campo, em fábricas e escritórios não são incompatíveis com ela e, na realidade, certas formas de trabalhos manuais podem mesmo ajudar na concentração. Também é possível, embora mais difícil, realizar ocupações intelectuais juntamente com a prece contínua. Ela resguarda a pessoa de muitas palavras vãs e pouco caridosas, santifica a dura rotina diária e os relacionamentos. As palavras se tornam familiares; depois de um tempo, elas saem por si só. Mais e mais elas conduzem a pessoa à prática da Presença de Deus (...). Gradualmente, as palavras parecem desaparecer; um silêncio, uma vigília indizível junto com uma profunda paz do coração e da mente se mantém durante a azáfama da vida cotidiana. Mas em casos de distração, de tentação, cansaço ou aridez, é útil recorrer novamente à invocação oral: ‘Eu durmo, mas meu coração vigia[48]’. O ato de orar passou a um estado de oração”.

“Como todo caminho espiritual, a Prece requer fidelidade, perseverança e coragem. Mas essa lembrança contínua de Jesus Cristo se aprofunda em nós e lança uma nova luz sobre toda a nossa vida. Ela se liga à lembrança do Calvário e da Última Ceia; nossa comunhão e o sacrifício do altar penetram o coração, a mente e a vontade , oferecidos numa incessante invocação ao nome de Jesus. Por outro lado, podemos aplicar este nome às pessoas, aos livros, às flores, a tudo o que encontramos, vemos ou pensamos. O nome de Jesus pode se tornar uma chave mística para o mundo, um instrumento de uma oferenda oculta de tudo e de todos, estabelecendo o selo divino sobre o mundo. Talvez possamos falar aqui no sacerdócio de todos os fiéis. Em união com nosso Alto Sacerdote, imploramos ao Espírito: Transforme nossa prece num sacramento”.

O principal interesse do artigo do qual extraímos essas extensas colocações é que ele constitui uma espécie de síntese das intenções da Prece de Jesus e de seu uso prático. Ele abre avenidas e perspectivas, mostrando quais possibilidades são oferecidas para uma exploração orante e amorosa do nome de Jesus. Notamos em particular o que é dito sobre o aspecto eucarístico da Prece de Jesus: com efeito, ela se torna uma oferenda e uma comunhão. Notamos ainda as sugestões sobre a aplicação do nome de Jesus às pessoas e coisas do dia-a-dia, e sobre o emprego deste nome como um meio para a transfiguração do mundo; temos aqui um desenvolvimento bastante concreto da teologia do Corpo de Cristo.

Talvez seja apropriado acrescentar aqui uma série de títulos sobre a Prece de Jesus, que fazem parte do esquema de estudos proposta pela Irmandade de Santo Albano e São Sérgio aos seus membros:

“O Nome de Jesus e a Prece de Jesus. A Prece de Jesus como: a) um chamado para a meditação e a intercessão; b) a realização da Presença; c) a oferenda sacrificial; d) a partilha da alegria e do poder da Ressurreição; e) a vinda do Espírito Santo; f) um instrumento para a transfiguração dos homens e das coisas. Suas técnicas e possibilidades. Sua ligação com ouso do Nome de Deus no Velho Testamento e com o Nome de Jesus nos Atos dos Apóstolos”.

Para aqueles que considerarem atrativos os horizontes abertos por este esquema de estudos, a Prece de Jesus não constituirá uma relíquia do passado. Se nos aproximarmos dela com discrição e respeito, ela pode trazer nova vida às nossas almas. Essa renovação poderá servir de causa para a unidade do Cristianismo, porque a invocação do nome de Jesus foi de início comum a todos, e ela ainda permanece aceitável e acessível a todos. Mas sua proposta não é apenas de estabelecer laços entre os que se acham divididos, mas em primeiro lugar e acima de tudo reacender a devoção a nosso Senhor.

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Tentamos dar alguma ideia a respeito do que a Prece de Jesus foi e ainda é. Esperamos que um historiador se dedique a este tema e escreva um livro digno dele. Mas nenhum estudo histórico sobre a Prece de Jesus, por mais exaustivo que seja, jamais será senão uma introdução, conduzindo o leitor ao verdadeiro ponto de partida, o ponto onde os fatos e a crítica intelectual não estão distantes, e no qual nossa vontade e nosso amor se acham também envolvidos. Se esse trabalho chegar a ser escrito, sua conclusão mais adequada consistirá nas palavras com as quais São Bernardo – um dos Padres Latinos que melhor falou sobre o nome de Jesus – terminou os cinco livros que ele dedicou ao Papa Eugênio III:

“devemos buscar por aquele que nunca foi suficientemente encontrado, a quem nunca procuramos o bastante; e talvez seja por meio da oração, mais do que com discussões eruditas, o modo mais digno de buscá-lo e o meio mais fácil de encontrá-lo. Que seja este o fim de nosso trabalho, mas não o fim de nossa busca”.


CAPÍTULO VI
O USO PRÁTICO DA PRECE DE JESUS

I.                    A forma da Prece

O Oriente Bizantino, como vimos, designou algo inadequadamente como “Prece de Jesus” todo tipo de invocação centrada no nome literal do Salvador. Essa invocação assumiu diferentes formas específicas dependendo de se no nome era usado sozinho ou inserido em fórmulas mais ou menos desenvolvidas. Sempre coube, porém, a cada indivíduo determinar sua própria forma de invocação do nome, no Oriente a invocação acabou cristalizando-se na fórmula “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”, mas esta fórmula nunca foi nem é a única. Qualquer invocação repetida, em que o nome de Jesus forme o núcleo e imprima sua força, pode ser autenticamente a Prece de Jesus no sentido Bizantino. A pessoa pode dizer, por exemplo, “Jesus Cristo”, ou “Senhor Jesus”. A mais antiga, a mais simples e, em nossa opinião, a fórmula mais fácil consiste apenas na palavra “Jesus” usada sozinha. É a partir dessa última possibilidade que passaremos a falar agora da Prece de Jesus.

Essa modalidade de prece pode ser pronunciada ou meramente pensada. Seu lugar encontra-se assim na fronteira entre a prece vocal e a mental, entre e prece de meditação e a prece de contemplação. Ela pode ser praticada a qualquer momento e em qualquer lugar: na igreja, no quarto, na rua, no escritório, no trabalho, e assim por diante. Podemos repetir o nome enquanto caminhamos. Os iniciantes, porém, farão melhor se se limitarem a uma certa regularidade em sua prática da Prece, escolhendo tempos e lugares fixos e solitários para orar. Claro que esse treino sistemático não exclui um uso paralelo e inteiramente livre da invocação do nome.

Antes de começar a pronunciar o nome de Jesus, devemos primeiro nos colocar num estado de paz e recolhimento, e então implorar o socorro do Espírito Santo, pois “apenas nele podemos dizer que Jesus Cristo é o Senhor[49]”. Todas as demais preliminares são supérfluas. Quem quer nadar deve primeiro entrar na água; da mesma forma, devemos num único salto nos colocarmos dentro do nome de Jesus. Depois de começarmos a pronunciar o nome com amorosa adoração, tudo o que temos a fazer é nos ligarmos a ele, agarrarmo-nos a ele e repeti-lo lenta, suave e quietamente. Seria um erro “forçar” essa prece, erguer a voz interiormente, tentando introduzir intensidade e emoção. Quando Deus se manifestou ao profeta Elias, não foi através de uma forte ventania, nem de um terremoto, nem do fogo, mas com uma suave brisa murmurante que se seguiu a todos estes[50].  Pouco a pouco iremos concentrar todo nosso ser em torno do nome, aquiescendo a ele como a uma gota de óleo que silenciosamente penetra e impregna nossa alma. Ao invocar o nome, não é necessário repeti-lo continuamente. Uma vez pronunciado, o nome pode ser “prolongado” por vários minutos de repouso, de silêncio, de pura atenção interior, do mesmo modo como um pássaro alterno no voo o bater das asas e o voo planado.

Toda tensão e toda pressa devem ser evitadas. Se a fadiga se abater sobre nós, a invocação deve ser interrompida e só retomada quando nos sentirmos impelidos a ela. Nosso objetivo não é uma repetição constante e literal, mas uma espécie de presença do nome de Jesus em nosso coração, latente e passiva. “Eu durmo, mas meu coração vigia[51]”. Devemos banir toda sensualidade espiritual, toda busca de emoção. Não há dúvida de que é natural esperar resultados que sejam em certa medida tangíveis, querer tocar a barra da túnica do Salvador e não largar até que ele nos conceda sua bênção[52]. Mas não pensemos que foi perdida a hora durante a qual invocamos o nome sem “sentirmos” nada, durante a qual permanecemos no frio e na aridez. Essa invocação que imaginamos ter sido estéril será, ao contrário, muito bem aceita por Deus, desde que seja quimicamente pura, se podemos nos expressar assim, pura porque despida de toda preocupação com delícias espirituais e reduzida apenas a uma oferenda da vontade nua. Em outros momentos, em sua generosa misericórdia, o Salvador poderá envolver seu nome numa atmosfera de alegria, calor e luz: “Seu nome é como o azeite escorrendo... arraste-me com você, corramos![53]”.

II.                  Circunstância ou método?

Para algumas pessoas a invocação do nome poderá ser uma circunstância em sua jornada espiritual; para outros, será mais do que uma circunstância, ela se transformará em um dos métodos habitualmente empregados, ainda que não seja o método por excelência; para outros ainda, ela será o método por excelência, em torno do qual toda sua vida interior irá se organizar. Decidir por uma escolha arbitrária, apenas por capricho, que nosso caso seja o último, seria como construir um edifício condenado a ruir desgraçadamente. Não somos nós que escolhemos a “Prece de Jesus”. Nós somos chamados a ela, conduzidos a ela por Deus, se ele assim o desejar. Podemos nos devotar a ela por obediência ou por uma vocação especial, desde que outras obediências não sejam prioritárias. Se esta forma de oração não estiver no caminho de outras formas com as quais estamos comprometidos em virtude de nosso modo de vida, se ela estiver acompanhada de uma atração que nos apressa, se produzir em nós frutos de purificação, caridade e paz, se nosso guia espiritual nos encoraja a praticá-la, em tudo isso poderemos ver, se não os sinais infalíveis de uma vocação, ao menos indicações que devem ser consideradas com humildade e atenção.

O “caminho do nome” foi provado e aprovado por muitos Padres e monges do Oriente, e também por muitos santos do Ocidente. Portanto, trata-se de um caminho legítimo e que permanece aberto como uma possibilidade para todos. Mas devemos evitar todo zelo indiscreto, toda propaganda fora de hora. Não devemos bradar com fervor doentio, “É a melhor prece”, e muito menos, “É a única prece”. Os segredos do Rei devem ser guardados e escondidos num lugar secreto. Aqueles que estiverem ligados a uma comunidade ou a uma regra saberão discernir em que medida o caminho do nome é compatível com os métodos aos quais obedecem; as autoridades competentes os auxiliarão na tarefa do discernimento. Não estamos nos referindo aqui à prece litúrgica, pois esta não pode conflitar com o tipo de prece interior que estamos discutindo aqui. Em particular, não pretendemos sugerir àqueles cuja prece é um autêntico diálogo com o Senhor, nem aos que estão estabelecidos no profundo silêncio da contemplação, que abandonem seus caminhos de oração para praticar a Prece de Jesus. Não depreciamos o valor de nenhum modo de oração. Porque em última análise a melhor prece para cada um é aquela, qualquer que seja, por meio da qual a pessoa se vê conduzida pelo Espírito Santo, dentro de suas circunstâncias específicas, e sob a orientação de um guia espiritual.

O que podemos dizer com tranquilidade e segurança em relação à Prece de Jesus é que ela ajuda a simplificar e unificar nossa vida espiritual. Enquanto que métodos complicados tendem a dissipar e enfraquecer a atenção, esta “prece de uma só palavra” possui o poder de unificação e integração, assistindo à alma fragmentada que descobre que seu nome e seus pecados são uma “legião[54]”. O nome de Jesus, quando começa a se tornar o centro de nossa vida, carrega todo o resto consigo. Mas não devemos imaginar que a invocação do nome seja um “atalho” que nos dispensa da purificação ascética. O nome de Jesus é em si um instrumento de ascetismo, um filtro pelo qual só passam os pensamentos, as palavras e as ações compatíveis com a realidade viva e divina que este nome simboliza. O crescimento do nome em nossa alma implica uma diminuição correspondente de nosso “eu” separado, uma morte diária de nossa autocentralidade, da qual deriva todo pecado.

III.                Os primeiros passos: adoração e salvação

Existem muitos níveis na Prece de Jesus. Ela se aprofunda e se alastra na medida em que vamos descobrindo novos níveis no nome. Ele normalmente começa como uma adoração e uma sensação da presença. Então, essa presença começa a ser experimentada especificamente como sendo a presença do Salvador (pois este é o significado da palavra “Jesus”). A invocação do nome constitui um mistério de salvação no sentido que ela traz consigo uma libertação. Ao proferir o nome, já estamos recebendo aquilo de que necessitamos. Nós o recebemos aqui e agora em Jesus, que é não apenas aquele que dá, mas que é também o próprio dom; não só o purificador, mas toda a pureza; não apenas o que alimenta o faminto e dessedenta o que tem sede, mas que é ele mesmo alimento e bebida. Ele é a substância de todas as coisas boas (se não empregarmos esse termo num sentido estritamente metafísico).

O nome de Jesus traz paz àqueles que são tentados: ao invés de argumentar com a tentação, ao invés de pensar nela como um tempestade furiosa – que foi o erro de Pedro no lago, depois de um bom começo – porque não enxergarmos apenas a Jesus e caminharmos até ele andando sobre as ondas, refugiando-nos em seu nome? A pessoa tentada deve se recolher calmamente e pronunciar o nome sem ansiedade, de um modo não febril; então seu coração se encherá com o nome e desse modo se protegerá dos ventos violentos. Se um pecado foi cometido, o nome serve como uma imediata reconciliação. Sem demora ou delongas, deixe que ele seja pronunciado com perfeita caridade e arrependimento, e ele logo se tornará um ponto de perdão. De um modo inteiramente natural Jesus retomará seu lugar na vida do pecador, assim como depois da Ressurreição ele voltou e tomou de modo simples seu lugar à mesa com os discípulos que o haviam abandonado, e que então lhe ofereceram peixe e mel[55]. É claro que não estamos rejeitando ou subestimando os meios objetivos de arrependimento e absolvição que a Igreja oferece aos pecadores; falamos aqui apenas do que acontece nas profundezas ocultas da alma.

IV.                Encarnação

O nome de Jesus é mais do que o mistério da salvação, mais do que o socorro em tempos de necessidade, mais do que o perdão depois do pecado. Ele é um meio pelo qual podemos aplicar a nós mesmos o mistério da Encarnação. Para além de sua presença, ele traz união. Ao pronunciar o nome, entronizamos Jesus em nossos corações, nele colocamos Cristo; oferecemos nossa carne ao Verbo para que ele a assuma em seu Corpo Místico; provocamos a realidade interior e o poder interior da palavra “Jesus” para que cubram nossos membros que estão sujeitos à lei do pecado. Dessa maneira nos purificamos e nos consagramos. “Grave-me como selo em seu coração, como selo em seu braço[56]”. Mas a invocação do nome de Jesus faz mais do que nos capacitar para que apreciemos o significado do mistério da Encarnação para nós pessoalmente. Por meio dessa prece também nos tornamos capazes de captar um vislumbre da “plenitude daquele que preenche tudo em todas as coisas[57]”.

V.                  Transfiguração

O nome de Jesus é um instrumento e um método de transfiguração. Quando o pronunciamos, ele nos ajuda a transfigurar – sem nenhuma confusão panteísta – todo o mundo em Jesus Cristo.

Isso é verdadeiro inclusive em relação à natureza inanimada. O universo material, que não é apenas um símbolo visível da invisível beleza divina, mas que “geme” por Cristo[58], e cujos misteriosos movimentos elevam todos os que chegam a ser ao patamar do Pão e do Vinho da salvação, esse universo murmura secretamente o nome de Jesus: “Até as pedras gritarão seu nome[59]”. Cabe ao ministério sacerdotal de todo Cristão dar voz a essa aspiração, pronunciar o nome de Jesus sobre os elementos da natureza, pedras e árvores, flores e frutos, montanhas e mar, e assim levar até sua plenitude o segredo das coisas, levando uma resposta a essa longa, silenciosa e inconsciente espera.

Podemos também transfigurar o mundo animal. Jesus, que declarou que sequer um pardal é esquecido por seu Pai[60], e que esteve no deserto “com os animais selvagens[61]”, jamais deixou os animais fora da esfera de sua divindade e influência. Como Adão no Paraíso, deveremos dar nome a cada animal. Qualquer que seja o nome dado pela ciência, devemos invocar sobre cada um o nome de Jesus, e dessa forma devolver a eles sua dignidade primitiva que tantas vezes esquecemos, lembrando-nos de que eles foram criados e amados pelo Pai em Jesus e por Jesus.

Mas é especialmente em relação aos nossos irmãos humanos que o nome de Jesus nos ajuda a exercitar o ministério da transfiguração. Jesus, que depois de sua Ressurreição escolheu diversas ocasiões para aparecer a seus discípulos com “outra aparência[62]” – o viajante desconhecido na estrada para Emaús, o jardineiro junto ao túmulo, o estrangeiro à beira do lago – continua a nos encontrar diariamente de forma velada, para nos confrontar com este importantíssimo aspecto de sua presença: sua presença no homem. Aquilo que fazemos ao menor de nossos irmãos, a ele o fazemos. Por sob o rosto de homens e mulheres somos capazes, com nossos olhos de fé e amor, de ver a face do Senhor; ao assistirmos ao sofrimento dos pobres, dos doentes, dos pecadores, de todos os homens, colocamos nosso dedo no lugar dos pregos, introduzimos nossa mão no flanco aberto, e experimentamos pessoalmente a Ressurreição e a presença real (sem nenhuma confusão de essência) de Jesus Cristo em seu Corpo Místico; e assim poderemos dizer com São Tomé: “Meu Senhor e meu Deus[63]”.

O nome de Jesus é um meio concreto e poderoso para transfigurar os homens em sua mais profunda e divina realidade. Observemos os homens e mulheres que cruzamos pela rua, que encontramos no escritório ou na fábrica – em especial aqueles que nos parecem irritantes a antipáticos – com o nome de Jesus em nossos corações e nossos lábios. Pronunciemos o nome silenciosamente sobre essas pessoas, pois esse é se verdadeiro nome; chamemo-los por esse nome com um espírito de adoração e serviço. Devotemo-nos a eles de um modo prático, se possível, ou em todo caso com uma aspiração interior, pois através deles estaremos nos devotando realmente a Jesus Cristo. Ao reconhecermos e silenciosamente adorarmos a Jesus prisioneiro num pecador, num criminoso, numa prostituta, de certa forma libertamos tanto a eles como ao nosso Mestre. Se virmos a Jesus em todas as pessoas, se pudermos dizer “Jesus” para todos, atravessaremos o mundo com uma nova visão e um novo do em nosso coração. Desse modo, tanto quanto estiver ao nosso alcance, podemos transformar o mundo em tornar nossas as palavras que Jacó disse a seu irmão: “Eu vi seu rosto, e era como se fosse o rosto de Deus[64]”.

VI.                O Corpo de Cristo

A invocação do nome de Jesus possui um aspecto eclesial. Neste nome encontramos todos os que se uniram ao Senhor, e em meio aos quais ele se mantém. Neste nome podemos abraças a todos os que se encontram dentro do Divino Coração. Interceder pelo próximo não é tanto suplicar em seu favor perante Deus, mas aplicar a seu nome o nome de Jesus e nos unirmos pela intercessão de nosso Senhor em pessoal por aqueles a quem ele ama.

Neste ponto tocamos no mistério da Igreja. Onde está Jesus Cristo, ali está a Igreja. O nome de Jesus é um meio de nos unirmos à Igreja, porque a Igreja está em Cristo. Em Cristo a Igreja está imaculada. Não se trata de tentarmos nos dissociar da existência e dos problemas da Igreja terrestre, ou fecharmos os olhos para as imperfeições e a desunião dos Cristãos. Não queremos separar ou opor os aspectos visíveis e invisíveis da Igreja. Mas sabemos que o que está implicado no nome de Jesus é o aspecto impecável, espiritual e eterno da Igreja, que transcende toda e qualquer manifestação terrena e que nenhuma cisma pode destruir. Quando Jesus falou à mulher Samaritana sobre a hora “que está para chegar e é agora[65]”, na qual os verdadeiros adoradores adorarão ao Pai, já não em Jerusalém ou em Gerizim, mas em espírito e verdade, havia uma aparente contradição em suas palavras. Como poderia a hora ter chegado e ainda estar por chegar? O paradoxo é explicado pelo fato de que a mulher Samaritana estava naquele momento diante de Jesus. Certamente a oposição entre Jerusalém e Gerizim ainda existia, e Jesus, longe de minimizá-la, declara que a salvação viria dos Judeus e que, portanto, a hora ainda estava por chegar. Mas, pelo fato de que Jesus estava ali em pessoa, Jerusalém e Gerizim tinham sido infinitamente transcendidas, e a hora ali havia chegado. Quando invocamos o nome do Salvador, estamos numa situação análoga. Não podemos acreditar que as diferentes interpretações do Evangelho sejam todas igualmente verdadeiras ou que os Cristãos divididos possuam todos a mesma medida de luz; mas acreditamos que aqueles que, pronunciando o nome de Jesus, tentam se unir ao seu Senhor por um ato de obediência incondicional e perfeita caridade, estes transcendem as divisões humanas, participam de alguma maneira da unidade sobrenatural do Corpo Místico de Cristo e se tornam, se não visível e explicitamente, ao menos invisível e implicitamente membros da Igreja. E assim a invocação do nome de Jesus, feita com uma coração direito, é uma via para a unidade Cristã.

Ela também nos ajuda, em Jesus, a que encontremos os fiéis que partiram. A Marta, que professava sua fé na futura Ressurreição, Jesus respondeu: “Eu sou a Ressurreição e a Vida[66]”. Isso significa que a ressurreição dos mortos não é meramente um evento futuro; que a pessoa de Cristo reerguido é desde já a ressurreição e a vida de todos os redimidos; e que, aos invés de buscarmos, seja pela prece, pela memória ou pela imaginação, estabelecer um contato espiritual direto entre nós e nossos mortos, devemos buscá-los em Jesus, onde está sua verdadeira vida, ligando o nome de Jesus aos seus próprios nomes. Esses que partiram, cuja vida está oculta em Cristo, estão no seio da Igreja celestial que forma a mais numerosa parte da Igreja eterna e total.

No nome de Jesus encontramos os santos que “trazem seu nome em sua fronte[67]”, e também os anjos, um dos quais disse a Maria: “Seu nome será Jesus[68]”, e encontramos também Maria. Que possamos no Espírito buscar ouvir e repetir o nome de Jesus, assim como Maria ouviu e repetiu!

VII.              A Ceia do Senhor

O nome de Jesus se tornou para nós uma espécie de Eucaristia. Assim como o mistério da Sala Superior consistiu no sumo de toda a vida e missão do Senhor, também um certo uso “eucarístico” do nome de Jesus traz a si e une todos os aspectos do nome considerado em sua extensão.

A Eucaristia sacramental não cabe dentro dos limites de nosso tema. Mas nossa alma também se encontra na sala superior na qual Jesus quis comer a Páscoa com seus discípulos, e onde a Ceia do Senhor pode ser celebrada a qualquer momento, ainda que de modo invisível. Nessa Última Ceia puramente espiritual, o nome do Salvador toma o lugar do pão e do vinho do sacramento. Podemos fazer do nome de Jesus uma oferenda de ação de graças – e este é o sentido original da palavra “eucaristia” – o suporte e a substância de um sacrifício de louvor oferecido ao Pai. Nessa oferenda interior e invisível, apresentamos ao Pai, ao pronunciarmos o nome de Jesus, o cordeiro sacrificado, a vida entregue, o corpo destroçado, o sangue vertido. O nome sagrado, utilizado dessa maneira sacrificial, se torna um meio para aplicarmos a nós mesmos, aqui e agora, os frutos da perfeita oblação oferecida de uma vez por todas no Gólgota.

Não existe Ceia do Senhor sem comunhão. Nossa Eucaristia invisível implica aquilo que a tradição chama de “comunhão espiritual”, ou seja, o ato de fé e desejo por meio do qual a alma se nutre do Corpo e Sangue de Cristo, sem fazer uso dos elementos visíveis do pão e do vinho. Nada pode estar mais distante de nosso pensamento do que diminuir ou subestimar o sacramento da Eucaristia, tal como praticado pela Igreja, o qual não podemos simplesmente identificar com a comunhão espiritual. Mas acreditamos estar dentro da mais autêntica tradição da Igreja ao afirmar a realidade de uma aproximação constante, invisível e puramente espiritual do Corpo e Sangue de Cristo, uma aproximação que é diferente do encaminhamento geral à sua pessoa, porque implica um tipo especial de relação entre nós e o Salvador, que é considerado, nesse caso, como aquele que alimenta, e que ao mesmo tempo é o alimento de nossas almas. O nome de Jesus pode ser usado como a forma, o suporte e a expressão dessa aproximação. Ele pode ser para nós o alimento espiritual, a partilha do Pão da Vida. “Senhor, dá-nos sempre deste pão[69]”. Nesse nome, nesse pão nos unimos a todos os membros do Corpo Místico de Cristo, a todos os que se sentam no banquete do Messias, todos os que, “sendo muitos, são um só pão, um só corpo[70]”.

E uma vez que a Eucaristia proclama “a morte do Senhor, até que ele venha[71]”, uma vez que ela é uma antecipação do reino eterno, o uso “eucarístico” do nome de Jesus também possui um sentido “Escatológico”. Ele proclama o “fim” e a Segunda Vinda, ele se apresenta como um desejo ardente, não apenas pelas ocasionais “aparições” de Cristo em nossa vida terrena, mas pela chegada definitiva de Cristo a nós, que acontecerá no momento de nossa morte. Existe uma maneira determinada de dizer o nome de Jesus que constitui uma preparação para a morte, um salto de nosso coração para além da barreira, um último apelo geral ao Noivo, “a quem, sem vê-lo, você ama[72]”. Dizer “Jesus” é, assim, repetir o grito do Apocalipse: “Vem, Senhor Jesus[73]”.

VIII.            O Nome e o Espírito

Quando lemos os Atos dos Apóstolos, vemos o lugar central ocupado pelo nome de Jesus na mensagem e nas ações dos apóstolos. Por meio deles “o nome do Senhor Jesus foi glorificado[74]”; neste nome sinais milagrosos foram praticados e vidas se transformaram. Depois do Pentecostes os apóstolos se tornaram capazes de proclamar o nome “com poder”. Temos agora o uso “pentecostal” do nome de Jesus, um uso do qual os apóstolos não possuem o monopólio, mas que está aberto a todos os fiéis. Apenas a fraqueza de nossa fé e caridade nos impedem de renovar no nome de Jesus os frutos do Pentecostes, de expulsar os demônios, impor as mãos sobre os doentes e curá-los. Os santos continuaram atuando assim. O Espírito escreve o nome de Jesus em letras de fogo sobre os corações dos eleitos. Este nome se torna neles uma chama ardente.

Mas existe também, entre o Espírito Santo e a invocação do nome de Jesus, outra ligação mais interior do que o ministério “pentecostal” dos Cristãos. Ao pronunciar o nome de nosso Salvador, obtemos uma certa “experiência” – este termo deve aqui ser entendido com as necessárias reservas – da relação entre o Filho e o Espírito. Podemos fazer coincidir em nossa pessoa a descida da pomba sobre nosso Senhor; podemos unir nosso coração – na medida em que uma criatura pode se unir à atividade divina – ao eterno movimento do Espírito em direção a Jesus. “Oh, se eu tivesse asas como uma pomba[75]”, não apenas para voar para longe dos assuntos terrenos, mas para pousar junto a ele que é todo o meu bem! Se ao menos eu soubesse como escutar “a voz da rolinha[76]”, quando ela fala “com suspiros demasiado profundos para palavras[77]” o nome do Amado! Então a invocação do nome de Jesus seria uma iniciação ao mistério da relação de amor entre Cristo e o Espírito.

Inversamente, podemos nos esforçar para coincidir – sempre respeitando os limites apropriados – com o relacionamento reverso, ou seja, a atitude de Jesus em relação ao Espírito Santo. Concebido pelo Espírito, conduzido pelo Espírito, Jesus mostrou a mais humilde docilidade para com o Sopro de seu Pai. Ao pronunciar o nome de Jesus, deixemo-nos unir, tanto quanto é possível aos humanos, à completa entrega que Jesus dez de sua vida ao Sopro divino.

Procuremos ver no nome de Jesus um coração de onde irradia o Espírito, e ver em Jesus o ponto de partida a partir do qual o Espírito é enviado aos homens, a boca de onde o Espírito é assoprado em nós. A invocação do nome de Jesus, unindo-nos a esses diferentes momentos – Jesus sendo preenchido pelo Espírito, o envio do Espírito aos homens por Jesus, e ainda o anseio de Jesus pelo Pai – nos fará crescer no conhecimento e na união com aquilo que Paulo chamou de “Espírito de seu Filho[78]”.

IX.                EM direção ao Pai

Existe o Filho, e existe o Pai. Nossa leitura do Evangelho permanecerá superficial enquanto o considerarmos apenas como uma mensagem dirigida aos homens. O coração do Evangelho, o mistério de Jesus, consiste na relação entre o Pai e seu único Filho amado.

Proferir o nome de Jesus equivale a proferir o Verbo tal como “era no princípio[79]”, o Verbo que o Pai pronunciou por toda eternidade. O nome de Jesus, podemos dizê-lo com um pouco de antropomorfismo (facilmente corrigível), é a única palavra humana que o Pai pronunciou quando engendrou o Filho e se entregou a ele. Proferir o nome de Jesus equivale a colocar-se junto ao Pai, contemplando o amor e o dom do Pai concentrados sobre Jesus; é sentir, numa limitada medida, um pouco desse amor e unir-se a ele desde tão longe; é ouvir a voz do Pai que declara: “Este é meu Filho muito amado[80]”, e humildemente responder “sim” a essa declaração.

Pronunciar o nome de Jesus é, por outro lado, penetrar, na medida em que isso é possível a uma criatura, na consciência filial de Cristo. Depois de encontrar na palavra “Jesus” o terno apelo do Pai, “Meu Filho!”, encontramos no Filho sua terna resposta, “Meu Pai!”. Isso significa reconhecer em Jesus a perfeita expressão do Pai, significa que nos unimos à eterna orientação do Filho para o Pai, à eterna oferenda do Filho ao Pai. Pronunciar o nome de Jesus – se podemos dizê-lo assim – é de certo modo juntar o Filho ao Pai e vislumbrar um pequeno reflexo do mistério de sua unidade. É encontrar a melhor perspectiva para aproximar o coração do Pai.

X.                  Jesus em sua totalidade

Nós consideramos os vários aspectos da invocação do nome de Jesus. Nós os organizamos numa espécie de escala ascendente, talvez útil pedagogicamente, mas artificial, porque na verdade existem inúmeros degraus intermediários e “Deus dá o Espírito sem medida[81]”. Em diversos estágios da prática da invocação do nome de Jesus pode ser bom, e até necessário, concentrar nossa atenção sobre um ou outro aspecto particular do nome divino. Mas chega um momento em que essa especialização se torna cansativa, difícil, às vezes impossível. A contemplação e a invocação do nome de Jesus se tornam então abarcantes. Toda implicação do nome se torna simultaneamente, embora obscuramente, presente em nossa mente. Dizemos “Jesus” e nos colocamos numa plenitude e numa totalidade que já não podem nos ser tiradas. O nome de Jesus se torna um veículo de Cristo por inteiro. Ele nos coloca em sua presença total.

Nessa presença total encontram-se as realidades para as quais o nome serviu como um meio de aproximação: salvação e perdão, a Encarnação e a Transfiguração, a Igreja e a Eucaristia, o Espírito e o Pai. Todas as coisas aparecem para nós “unidas em Cristo[82]”. A presença total é tudo. O nome não é nada sem a Presença. Aquele que alcançar a Presença já não necessitará do nome, pois este é apenas o suporte da Presença. No final da estrada, nos tornamos livres do nome em si, livres de tudo exceto Jesus, exceto de do contato vivo e inefável com a sua Pessoa.

Um raio de luz traz consigo as várias cores que o prisma divide. Da mesma forma, o “nome total”, o sinal e o suporte da Presença Total, age como uma lente que recebe e concentra a luz branda de Jesus. Essa lente nos ajuda a acender o fogo do qual foi dito: “Eu vim trazer o fogo à terra[83]”. Se nos apegarmos ao nome de Jesus, poderemos receber a bênção especial que a Escritura promete, “Volta-te para mim, tem piedade de mim: é a justiça para os que amam o teu nome[84]”. E possa o Senhor dizer a nós o que ele disse a Saulo: “Ele foi escolhido por mim como um vaso, para carregar meu nome[85]”.


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APÊNDICE 1
O MÉTODO PSICOFISIOLÓGICO DA PRECE DE JESUS

Nós não estamos comprometidos com a defesa dessa método, mas gostaríamos de explicá-lo numa certa medida. A diminuição ou a retenção da respiração é um método conhecido para obter calma. Um homem de espiritualidade profunda e interior como Vladimir Soloviov recomendava essa prática. Santo Inácio de Loyola, em seus Exercícios, sugeria uma “prece rítmica (...) entre uma respiração e outra”. Cada movimento respiratório pode equivales a uma prece. Ademais, os Hesiquiastas atribuíam grande importância em manter o espírito “dentro dos limites do corpo”; estamos aqui, vale dizer, prevenindo o espírito de se dispersar nas coisas externas, coisa que costuma acontecer nos exercícios das funções visuais, táteis e locomotoras. Se a pessoa retém a respiração e ao mesmo tempo de mantém imóvel, com os olhos baixos ou fechados, e se essa atitude corporal é acompanhada de um esforço para “trazer de volta o espírito para o interior do corpo”, e não partir para além dos limites do corpo, essa operação, quase impossível de descrever, produz um sentido de contração (que pode se tornar doloroso), mas também um sentido de cooperação claramente definido entre o espírito e o corpo, um sentido de intensa concentração.

Quanto ao caso da “onfaloscopia”, ou a fixação do olhar sobre o umbigo, nem o nome nem a coisa correspondem àquilo que o Hesiquiasmo recomenda. Nunca foi recomendado que se contemplasse o próprio umbigo, coisa que se pareceria mais com o puro Yoga. Trata-se antes de fixar o olhar, estando na posição sentada, no centro do corpo. O umbigo representa, de um modo algo ingênuo, um ponto de concentração, mas também podemos dizer com a mesma acuidade que o olhar deve ser dirigido ao peito.

“Uma prática bizarra, quase escandalosa”, escreveu o Frei Jugie em seu artigo sobre Gregório Palamas, que já citamos. Por coisas como essa é que precisamos entender a questão. O objetivo é “encontrar o lugar do coração”, para fazer o espírito descer até este. Desconsiderando uma psicologia desatualizada, isso significa que devemos, ao mesmo tempo em que concentramos o olhar na direção do coração, figurarmos vividamente nosso coração como o local simbólico de toda a nossa vida afetiva e volitiva, o lugar do amor; então devemos mergulhar nesse fogo chamejante nossos pensamentos “intelectuais” para que eles se inflamem, para que acendam e peguem fogo em contato com essa chama, até que um grito abrasador estale de dentro de nós e suba até Jesus.

A atitude física, com a cabeça inclinada para o coração, está, ao mesmo tempo, relacionada com aquilo que Denis o Pseudo-Areopagita chamou de “movimento circular” da alma. “O movimento da alma é circular, escreveu ele, quando, penetrando em si mesma, ele dá as costas às coisas exteriores e se apega à unidade dos poderes espirituais[86]”. Esse movimento cíclico da prece expressa o transbordamento do espírito dentro do coração, a interpenetração entre o intelecto e o amor. Ele também representa, ainda que de um modo grosseiro, a interpenetração circular da Trindade, a comunhão de amor entre as Três Pessoas. O famoso ícone da Trindade de Andrei Rublev, que talvez seja a mais alta expressão artística da Ortodoxia, sugere claramente, mesmo em seus menores detalhes, um movimento circular (por sinal anti-horário). Resumidamente, é nosso objetivo, por intermédio de atitudes corporais, criar poderosas representações mentais que por sua vez irão liberar determinados dinamismos psíquicos. A estreita relação entre a representação mental e a configuração espacial foi bastante estudada pela Psicologia da Gestalt.

Em relação à visão luminosa à qual conduz a Prece de Jesus, devemos distinguir duas possibilidades. Em primeiro lugar, existe a percepção, pelos órgãos naturais, de uma luz produzida sobrenaturalmente; isso acontece com santos e pecadores. Depois, muito acima disso, como num caso limite, existe a percepção sobrenatural de uma luz sobrenatural, uma percepção que não é sensível nem física, que consequentemente transcende a psicologia normal; isso acontece quando se torna visível a luz da Transfiguração, não pelos órgãos dos sentidos e da percepção em seu estado normal, mas pelos olhos já transfigurados. Na parte de baixo da escada da ascensão espiritual, existe um uso puramente simbólico da palavra “luz”, quando o nome de Jesus é visto num sentido figurado como o sol da alma. Entre esse estágio e o primeiro mencionado acima, existe espaço para possibilidades intermediárias: a prática frequente ou constante da Prece de Jesus pode estabelecer a pessoa num estado interior de “luminosidade”. Mesmo fechando os olhos, ela tem a impressão de estar penetrada pela irradiação e de se mover na luz. Isso é mais do que um símbolo; é menos do que uma percepção sensível, e certamente não é um êxtase; mas já é algo real, embora indescritível.

Não vamos entrar aqui na questão Palamita sobre a relação entre a essência de Deus e a luz divina. Lembraremos apenas que o misticismo oriental sempre foi o misticismo da luz (como no caso dos Judeus e da Shekina, ou “glória”). “Deus é luz”.

APÊNDICE 2
A INVOCAÇÃO DO NOME DE JESUS NO OCIDENTE

A Igreja Romana inclui entre suas festas a do Sagrado Nome de Jesus (que a Igreja Ortodoxa não tem); desde Pio X essa festa tem sido celebrada no Domingo que cai entre o dia 1 de Janeiro e a Epifania, ou, se falhar, no dia 2 de Janeiro. A Missa e o Ofício da festa foram compostos por Bernardino dei Busti (†1500) e aprovados pelo Papa Sixto IV. Originalmente restrita às casas Franciscanas, a festa foi expandida para toda a Igreja. O estilo das preces carrega a marca do período em que foram compostas, e difere bastante do antigo estilo Romano. Não podemos deixar de nos admirar, porém, da beleza das lições da Escritura e da Homilia de São Bernardo escolhida para as Matinas.

Os hinos Jesu dulcis memoria e Jesu rex admirabilis, falsamente atribuídos a São Bernardo, foram extraídos de um jubileus escrito por uma autor desconhecido no século XII. As litanias do Sagrado Nome de Jesus aprovadas por Sixto IV são de origem duvidosa; talvez tenham sido compostas por volta do começo do século XV por São Bernardino de Siena ou São João Capistrano. Essas litanias, como indicam as invocações – “Jesus, esplendor do Pai”, “Jesus, sol de justiça”, “Jesus, manso e humilde coração”, “Jesus, amante da castidade” – são devotadas mais aos atributos do que ao nome de Jesus em si. Podemos compará-las com os akathistos do “Dulcíssimo Jesus” da Igreja Bizantina.

Sabemos quanta devoção cerca o monograma IHS. Ele não significa, como se costuma dizer, Jesus Hominum Salvator, mas representa simplesmente uma abreviação do nome de Jesus. Os Jesuítas, encimando com uma cruz a letra H, fizeram desse monograma o emblema de sua Sociedade. Em 1564 o Papa Pio IV aprovou a Fraternidade dos Santos Nomes de Deus e Jesus, que depois se tornaria a Sociedade do Santo Nome de Jesus, que existe até hoje. Sua fundação resultou do Concílio de Lyons (1274) que prescreveu uma especial devoção ao nome de Jesus. A Inglaterra do século XV usava um Saltério de Jesus composto por Richard Whytford; ele compreendia uma série de petições, cada qual começando pela tripla repetição d sagrado nome. Esse Saltério existe até hoje.

O grande promotor da devoção ao nome de Jesus durante a Idade Média foi São Bernardino de Siena (1380-1444). Ele recomendou que as pessoas carregassem tabuinhas com a inscrição IHS, e, substituindo por essas tabuletas as inscrições de Guelfos e Gibelinos que cobriam os muros das ruas, ele esperava levar um sentido de paz aos corações dos homens. Essa propaganda mereceu-lhe um ataque do Agostiniano André Biglia, numa longa dissertação em dois livros escritos em tom de reprimenda, e outro, também por parte de um Agostiniano, André de Cascia, num tratado ainda mais violento endereçado ao Papa Martinho V, no qual se lia: “Este culto destrói a fé na Santíssima Trindade e diminui a dignidade da humanidade de Cristo; ele deixa de lado o culto da cruz”. Apesar disso, Martinho V e Eugênio IV declararam que Bernardino estava certo. Mas o humanista Poggio denunciou o que ele chamou de illa jesuitas e “a impudência desses homens que, devotados apenas ao nome de Jesus, estabelecem uma nova heresia”. São João Capistrano, um discípulo de Bernardino, foi também um fervoroso promotor da devoção ao nome de Jesus. Os dois santos pertenciam à família religiosa de São Francisco de Assis. Sabemos que o próprio Francisco sentia um terno amor pelo nome de Jesus. O culto do Sagrado Nome se tornou uma tradição Franciscana, e é significativo que uma versão Italiana dos Fioretti, feita em Trevi em 1458 por um Frade Menor da reforma de Bernardino, contenha um capítulo adicional sobre o culto prestado por São Francisco ao nome de Jesus.

Mas ao final foi São Bernardo de Clairvaux, durante o século XII, quem foi o mais inspirado pelo nome de Jesus. É preciso ler sobretudo seu sermão sobre o Cântico dos Cânticos. Comentando um verso dos Cânticos, ele compara o nome de Jesus à unção que é derramada[87], e desenvolve a ideia de que o nome sagrado traz a luz, alimenta e unge, exatamente como faz o óleo. “Não foi através da luz desse nome que Deus nos chamou para sua luz maravilhosa?” (podemos nos lembrar dos Hesiquiastas). “O nome de Jesus não é apenas luz, mas também alimento”. Este nome castas fovet affectiones, “estima as castas afeições” – palavras que iluminam com maravilhosa claridade a relação entre a Prece de Jesus e a amizade humana ou o amor conjugal. Finalmente: “Escreva o que quiser, não sentirei prazer nisto a menos que possa ler aí o nome de Jesus. Fale ou argumento como quiser, considerarei vazio e sem graça a menos que ouça o nome de Jesus. Jesus é mel para a boca, melodia para o ouvido, um sentido de alegria para o coração. E esse nome é ainda um remédio. Você está triste? Deixe que Jesus entre em seu coração e que daí ele brote em sua boca. Você caiu em pecado? Se você invocar o verdadeiro nome de vida, não soprará ele logo um hálito de vida?”. Estas passagens contêm uma profunda teologia do nome sagrado.

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[1] Literalmente: “comunidade espiritual de pessoas que vivem em comunhão”.
[2] João 1: 5.
[3] A presente tradução não apresenta a maior parte das notas de Kallistos Ware, por se tratar de questões de extrema erudição que não nos interessam para o presente. Do mesmo modo, a seção “Leituras Adicionais” foi suprimida, por se tratar de livros que não são encontrados em português. (N.T.)
[4] Dor, aflição.
[5] LXX, Salmo 52: 9.
[6] Êxodo 23: 21.
[7] Isaías 30: 27.
[8] Gênesis 48: 16; Deuteronômio 28: 10; Amós 9: 12.
[9] I Reis 8: 29.
[10] Miquéias 4: 5.
[11] Mateus 1: 21; cf. Lucas 1: 13.
[12] Filipenses 2: 9-10.
[13] Atos 4: 12.
[14] João 16: 23-24.
[15] Pastor de Hermas, Livro III, Sim. IX.
[16] Ibid.
[17] Orígenes, Contra Celsum I, 67.
[18] Ambrósio, De Spiritu Sancto, I, VIII, 96 (PL 16, col. 727D).
[19] PL 61, col. 741ª.
[20] Carmina IV-V (PL 13, cols. 377-8)
[21] Homilia 2 (PL 67, col. 1047B).
[22] De civitate Dei XVIII, 32 (PL 41, col. 591).
[23] Historiarum adversum paganos libri VII, 15.
[24] Da Encarnação 48 (PG 25, col. 181B)
[25] PG 46, col. 916A.
[26] Vida de Santo Antônio 63 (PG 26, col. 933A).
[27] Vida de Santo Hilário 22 (PL 23, col. 40A).
[28]  Epístola CXXX, 20 (PL 33, col. 501).
[29] Salmo 70: 1.
[30] A Escada Santa 27 (PG 88, cols. 1096-1101).
[31] Podemos aqui lembrar o Antirrhetikos de Evagro o Pôntico.
[32] Centúria I, 99.
[33] Todas as citações anteriores: Centúria II, 85,87, 54,84, 96, 64, 94, 69, 94.
[34] Apesar de que as instruções nem sempre são claras, parece que o autor do Método considera o controle da respiração como um exercício preliminar que precede, mais do que acompanha, a “epiclese de Jesus Cristo”. Esta começa apenas depois que o discípulo, com o uso da técnica psicossomática, encontra o “lugar do coração”. No tratado Da Guarda do Coração, de Nicéforo, a técnica respiratória também é vista como um exercício preliminar antes de começar a Prece de Jesus. Mas em Gregório Sinaíta e Calixto e Inácio Xanthopouloi, o controle da respiração acompanha a recitação da Prece.
[35] Cf. Gálatas 2: 20.
[36] CF. I Coríntios 12: 3.
[37] Sua alcunha de Kapsokalyvia significa “o que queima as celas”.
[38] Cânticos 5: 8.
[39] Mateus 9: 27.
[40] Lucas 18: 13.
[41] Mateus 26: 63.
[42] Lucas 18: 13.
[43] Êxodo 25: 17-22. Cf. Hebreus 9: 5.
[44] O Qeos ilastheti moi tw amartwlw kai elehson me.
[45] Esta frase requer um comentário cuidadoso: esse esforço de uma descida lenta e calma, que conduz o intelecto a se estabelecer no coração, é uma experiência perfeitamente real, mas que é inútil tentar descrever por escrito.
[46] Tessalonicenses 5: 17.
[47] “Deificação” deve ser entendida aqui no sentido dos Padres Gregos, como a participação e a união, mas não como a identidade de natureza. Os seres criados e incriados permanecerão sempre distintos no que se refere à sua essência.
[48] Cânticos 5: 2.
[49] Cf. I Coríntios 12: 3.
[50] I Reis 19: 11-12.
[51] Cânticos 5: 2.
[52] Cf. Mateus 9: 21; Gênesis 32: 26.
[53] Cânticos 1: 3-4.
[54] Marcos 5: 9.
[55] Cf. Lucas 24: 41-42.
[56] Cânticos 8: 6.
[57] Efésios 1: 23.
[58] Romanos 8: 22.
[59] Lucas 19: 40.
[60] Lucas 12: 6.
[61] Marcos 1: 13.
[62] Marcos 16: 12.
[63] João 20: 28.
[64] Gênesis 33: 10.
[65] João 4: 23.
[66] João 11: 25.
[67] Apocalipse 22: 4.
[68] Lucas 1: 31.
[69] João 6: 34.
[70] I Coríntios 10: 17.
[71] I Coríntios 11: 26.
[72] I Pedro 1: 8.
[73] Apocalipse 22: 20.
[74] Atos 19: 17.
[75] Salmo 55: 6.
[76] Cânticos 2: 12.
[77] Romanos 8: 26.
[78] Gálatas 4: 6.
[79] João 1: 1.
[80] Lucas 3: 22.
[81] João 3: 34.
[82] Efésios 1: 10.
[83] Lucas 12: 49.
[84] Salmo 119: 132.
[85] Atos 9:15.
[86] Sobre os Nomes Divinos IV, 9.
[87] Cânticos 1: 3.

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