A encarnação do Verbo é um mistério maior e mais profundo do que o da
criação do mundo; e, no entanto, a obra de Cristo se realiza em relação com o
contingente, como uma ação divina cumprida em consequência do pecado de Adão.
Consequência preexistente, vontade divina de salvação que precedeu a vontade
humana da queda, esse “mistério oculto antes de todos os séculos em Deus” que
se revela na história como o mistério da Cruz de Cristo não é, propriamente
falando, ocasional, na medida em que a liberdade humana estava implicada na
ideia da criação. É por isso que essa liberdade não pôde destruir o universo
concebido por Deus: ela estava incluída num outro plano existencial, mais
vasto, aberto pela cruz e a ressurreição. Uma nova realidade penetra no mundo,
um corpo mais perfeito do que o mundo – a Igreja, fundada sobre uma dupla
economia divina: a obra de Cristo e a obra do Espírito Santo, as duas pessoas
da Trindade enviadas ao mundo. As duas obras estão na base da Igreja, as duas
são necessárias para que possamos alcançar a união com Deus.
Se Cristo é “o Chefe da Igreja que é Seu corpo”, o Espírito Santo é
“Aquele que preenche tudo em todas as coisas”. Assim, as duas definições que
São Paulo dá da Igreja[1]
assinalam nela dois polos diferentes, correspondendo às duas pessoas divinas. A
Igreja é o corpo, na medida em que
Cristo é seu Chefe; ela é plenitude,
na medida em que o Espírito Santo a anima, a enche de divindade, pois a
divindade nela habita corporalmente, assim como ela habitava a humanidade
deificada de Cristo. Podemos então dizer, com Santo Irineu, que “onde está a
Igreja, aí está o Espírito; onde está o Espírito, aí está a Igreja[2]”.
Porém, o Espírito, “que falou pelos Profetas”, jamais foi estranho à
economia divina no mundo em que manifestou a vontade comum da Santa Trindade.
Ele estava presente tanto na obra da criação como na da redenção. É o Espírito
Santo quem realiza tudo, segundo São Basílio: “Vinda de Cristo: o Espírito o
precedeu. Encarnação: lá estava o Espírito. Operações milagrosas, graças e
curas: pelo Espírito Santo. Demônios expulsos: pelo Espírito de Deus. O diabo
manietado: o Espírito, presente. A remissão dos pecados: na graça do Espírito
Santo (...) A conjunção com Deus: pelo Espírito. A Ressurreição dos mortos:
pela virtude do Espírito[3]”.
Entretanto, a palavra do Evangelho é formal: “O Espírito ainda não estava [no
mundo] porque Jesus ainda não havia sido glorificado[4]”.
Portanto, a ação do Espírito Santo no mundo antes da Igreja e fora da Igreja
não é a mesma que sua presença na Igreja depois do Pentecostes. Assim como o
Verbo, per quem omnia facta sunt, que
manifestava a Sabedoria de Deus na criação antes de ser enviado ao mundo e
entrar na história como uma pessoa divina encarnada, também o Espírito Santo,
no qual a vontade divina – criadora e conservadora do universo – se realizou
desde o momento da criação, foi enviado num momento determinado ao mundo para
nele estar presente não apenas por sua ação, comum com toda a Trindade, mas
também enquanto pessoa.
***
Os teólogos sempre insistiram na diferença radical entre a processão
eterna das pessoas, que é “obra da natureza”, segundo São João Damasceno – o
próprio ser da Santa Trindade – e a missão temporal do Filho e do Espírito
Santo no mundo, obra da vontade comum às três hipóstases. No que diz respeito
ao Espírito, os Padres gregos utilizam habitualmente o verbo ekporeuomai para designar sua processão
eterna, enquanto que os verbos proimni
e proceomai designam no mais das vezes
sua missão no mundo. No plano eterno, as pessoas do Filho e do Espírito
procedem do Pai, “fonte única da divindade”. No plano da missão temporal, obra
da vontade que pertence à substância da Trindade, o Filho é enviado pelo Pai e
se encarna pelo Espírito Santo; podemos dizer também que Ele é enviado por Si
mesmo na medida em que ele preenche a vontade de ser enviado, não tendo
“vontade própria”. A mesma coisa é verdadeira quanto à missão do Espírito Santo
no mundo: Ele cumpre a vontade comum aos Três, sendo enviado pelo Pai e
comunicado pelo Filho. Segundo São Simeão o Novo Teólogo, “dizemos que o
Espírito Santo é enviado ou dado, mas isso não significa em absoluto que Ele
permanece estranho à vontade de sua missão; com efeito, o Espírito Santo, uma
das pessoas da Santa trindade, realiza pelo Filho aquilo que o Pai deseja, como
se fosse sua própria vontade, pois a Santa Trindade é indivisível quanto à sua
natureza, substância e vontade[5]”.
Portanto, assim como o Filho desce à terra e realiza sua obra pelo
Espírito, a pessoa do Espírito Santo vem ao mundo enviada pelo Filho: “o
Consolador que eu lhes enviarei do Pai, o Espírito da Verdade que procede do
Pai, Ele dará testemunho de Mim[6]”.
Intimamente ligados em sua obra comum sobre a terra, o Filho e o Espírito Santo
permanecem, entretanto, nessa mesma obra, como duas pessoas independentes uma
da outra quanto ao seu ser hipostático. É por isso que o advento pessoal do
Espírito Santo não terá o caráter de uma obra subordinada, de certa forma
funcional em relação à obra do Filho. O Pentecostes não é uma “continuação” da Encarnação,
ela é sua decorrência, sua consequência: a criatura se torna apta a receber o
Espírito Santo, e Ele desce ao mundo, enchendo com sua presença a Igreja
resgatada, lavada, purificada pelo sangue de Cristo.
Podemos dizer, num certo sentido, que a obra de Cristo preparou a do
Espírito Santo: Ignem veni mittere in
terram et quid volo nisi ut accendatur[7].
O Pentecostes aparece assim como o objetivo, como o fim último da economia
divina sobre a terra. Cristo retorna ao Pai para que o Espírito venha: expedit vobis ut ego vadam: si enim non
abiero, Paraclitus non veniet ad vos; si autem abiero, mittam eum ad vos[8].
Entretanto, em seu advento pessoal o Espírito Santo não manifesta sua pessoa.
Ele não vem em seu próprio nome, mas em nome do Filho, para dar testemunho do
Filho – assim como o Filho veio em nome do Pai, para dar a conhecer o Pai. Não
pensamos no Pai sem o Filho, diz São Gregório de Nissa, e não concebemos o
Filho sem o Espírito Santo. Pois é impossível chegar ao Pai, a menos que
sejamos conduzidos pelo Filho, e é impossível nomear o Senhor Jesus se não for
no Espírito Santo[9]”.
As pessoas divinas quase que não se afirmam por si mesmas, mas uma dá
testemunho da outra. Essa é a razão pela qual São João Damasceno diz que “o
Filho é a imagem do Pai e o Espírito Santo é a imagem do Filho[10]”.
Segue-se daí que a terceira hipóstase da Trindade é a única a não ter sua
imagem em outra pessoa. O Espírito Santo permanece não-manifestado enquanto
pessoa, oculto, dissimulando-se em sua própria aparição. É por isso que São
Simeão o Novo Teólogo o cantará em seus hinos ao amor divino, sob os traços
apofático de uma pessoa incognoscível e misteriosa: “Vem, Luz verdadeira; vem,
Vida eterna; vem, mistério escondido; vem, tesouro sem nome; vem, coisa
indizível; vem, Pessoa incognoscível; vem, alegria incessante; vem, Luz sem
crepúsculo; vem, esperança que nos quer salvar a todos; vem, ressurreição dos
mortos; vem, ó Poderoso, que realizas, transformas e mudas a tudo apenas com
teu querer; vem, Invisível, completamente intangível e impalpável; vem, O que
permanece sempre imutável e que, a toda hora, Te moves e vens a nós, que
jazemos no inferno. Tu te ergues mais alto do que os céus. Teu nome, tão
desejado e constantemente proclamado, ninguém sabe o que é. Ninguém pode saber
como és, de que gênero ou espécie, pois isso é impossível. Vem, coroa jamais
corrompida. Vem, O que minh’alma miserável amou e ama. Vem, só Tu, só a mim.
Vem, Tu que me separaste de todos e me tornaste solitário nesse mundo, e que Te
tornaste desejo em mim, que quis que eu Te queira, a Ti, absolutamente
inacessível. Vem, alento e vida minha, consolo de meu humilde coração[11]”.
O próprio ensinamento sobre o Espírito Santo possui o caráter de uma
tradição mais secreta, menos revelada, contrariamente à manifestação brilhante
do Filho, proclamada pela Igreja até os confins do universo. São Gregório de
Nazianze assinala uma economia misteriosa no conhecimento das verdades
relativas à pessoa do Espírito Santo. “O Antigo Testamento, diz ele, manifestou
claramente o Pai, mas obscuramente o Filho. O Novo Testamento revelou o Filho e
insinuou a divindade do Espírito. Hoje o Espírito vive entre nós e se deixa
conhecer mais claramente. Pois teria sido perigoso, no tempo em que a divindade
do Pai ainda não era reconhecida, pregar abertamente o Filho, assim como,
enquanto a divindade do Filho não fosse admitida, impor, ouso dizer, como uma
sobrecarga, o Espírito Santo (...) Antes, convinha que, por meio de adições
parciais, como disse Davi, por ascensões de glória em glória, irradiasse
progressivamente o esplendor da Trindade (...) Vejam como a luz nos chega pouco
a pouco. Vejam em que ordem Deus se nos revelou: ordem que, de nossa parte,
devemos respeitar, não tentando desvelar a tudo apressadamente e sem
discernimento, ou sem guardar algo de oculto até o fim. Pois um seria
imprudente, e o outro, ímpio. Um arriscaria a ferir os de fora, outro afastaria
seus próprios irmãos (...) O Salvador conhecia certas coisas que Ele
considerava que seus discípulos ainda não podiam suportar, embora já estivessem
cheios de abundante doutrina (...) E Ele lhes repetia que o Espírito, quando
viesse, lhes ensinaria tudo. Penso, então, que dentre essas coisas estava a
própria divindade do Espírito Santo: ela deveria ser declarada com mais clareza
adiante, quando, depois do triunfo do Salvador, o conhecimento de sua própria
divindade estivesse afirmado e assegurado[12]”.
A divindade do Filho é afirmada pela Igreja e pregada a todo o universo; também
confessamos a divindade do Espírito Santo, comum com a do Pai e do Filho,
confessando assim a Santa Trindade. Mas a pessoa em si do Espírito Santo, que
nos revela essas verdades, que as torna interiormente visíveis para nós,
manifestas, quase tangíveis, permanece, entretanto, não revelada, oculta, dissimulada
pela divindade que ela nos revela, pelo dom que ela nos comunica.
A teologia da Igreja do Oriente distingue a pessoa do Espírito Santo
dos dons que ela comunica aos homens. Essa distinção está fundamentada sobre as
palavras de Cristo: “O Espírito da Verdade manifestará a minha glória, porque
ele vai receber daquilo que é meu, e o interpretará para vocês. Tudo o que
pertence ao Pai, é meu também. Por isso é que eu disse: o Espírito vai receber
daquilo que é meu, e o interpretará para vocês[13]”.
O que é comum ao Pai e ao Filho é a divindade que o Espírito Santo comunica aos
homens na Igreja, tornando-os “participantes da natureza divina” e conferindo o
fogo da divindade, a graça incriada, àqueles que se tornam membros do corpo de
Cristo. Cantamos numa antífona do rito oriental: “O Espírito Santo vivifica as
almas, Ele as exalta na pureza, Ele faz resplender misteriosamente nelas a
natureza una da Trindade[14]”.
Costumamos designar os dons do Espírito Santo pelos nomes dos
espíritos que encontramos no texto de Isaías – o espírito de sabedoria, o de
inteligência, o de conselho, o de força, o de conhecimento e o de temor a Deus[15].
Entretanto, a teologia ortodoxa não faz uma distinção especial entre esses dons
e a graça deificante. A graça significa em geral, para a Igreja do Oriente,
toda a riqueza da natureza divina, na medida em que ela se comunica aos homens;
é a divindade que procede fora da essência e que se dá – a natureza divina da
qual participamos nas energias.
O Espírito Santo, fonte desses dons incriado e infinitos, ao mesmo
tempo em que permanece anônimo e não revelado, recebe toda a multiplicidade dos
nomes que podem ser aplicados à graça. “Eu sou tomado de pavor, diz São
Gregório de Nazianze, quando eu penso na riqueza das denominações: Espírito de
Deus, Espírito de Cristo, Inteligência de Cristo, Espírito de Adoção. Ele nos
restaura no batismo e na ressurreição. Ele sopra onde quer. Fonte de luz e de
vida, Ele faz de mim um templo. Ele me deifica, Ele me torna perfeito, Ele
antecede o batismo e é buscado depois do batismo. Tudo o que Deus faz, é Ele
que o faz. Ele se multiplica em línguas de fogo e multiplica os dons, Ele cria
os pregadores, os apóstolos, os profetas, os pastores, os doutores (...) Ele é
um outro Consolador (...) como se fosse um outro Deus[16]”.
Segundo São Basílio, não existe dom concedido à criatura sem que o Espírito
Santo esteja presente[17].
Ele é “o Espírito da verdade, dom de filiação, promessa dos bens futuros,
primícias da beatitude eterna, força vivificante, fonte de santificação[18]”.
São João Damasceno o chama de “Espírito de Verdade, Soberano, Fonte de
sabedoria, de vida e de santificação, Plenitude, Aquele que contém todas as
coisas, Todo-Poderoso, Poder infinito, que exerce sua dominação sobre toda
criatura sem ser submetido a qualquer dominação, santificador sem ser Ele
próprio santificado”, etc.[19].
Como dissemos, toda essa plenitude infinita de denominações se refere sobretudo
à graça, à riqueza natural de Deus que o Espírito Santo comunica àqueles nos
quais Ele está presente. Ora, Ele está presente com sua divindade que Ele dá a
conhecer, ao mesmo tempo em que permanece desconhecido e não-manifestado:
hipóstase não revelada, que não tem sua imagem em outra pessoa divina.
***
O Espírito Santo foi enviado ao mundo, ou melhor, à Igreja em nome do
Filho – “o Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em Meu nome[20]”.
É preciso então trazer o nome do Filho, ser membro de seu corpo, para receber o
Espírito Santo. Cristo recapitulou Nele a humanidade, segundo a expressão
favorita de Santo Irineu. Ele se tornou o Chefe, o Príncipe, a hipóstase da
natureza humana renovada, que é seu Corpo; é por isso que o mesmo Santo Irineu
aplica à Igreja o nome de “filha de Deus”[21].
Trata-se da unidade do “homem novo”, à qual se acede quando se é “revestido de
Cristo”, quando se torna membro de seu corpo pelo batismo. Essa natureza é una
e indivisa, o “homem único”. Clemente de Alexandria vê na Igreja o próprio
Cristo por inteiro, o Cristo total que não pode ser dividido: “Não existe nem
bárbaro, nem judeu, nem grego, nem homem, nem mulher, mas apenas o Homem novo
inteiramente transformado pelo Espírito[22]”.
“Homens, mulheres, crianças, diz São Máximo, profundamente divididos sob o
aspecto da raça, da nação, da língua, do gênero de vida, do trabalho, da
ciência, da dignidade, da fortuna (...) A todos a Igreja recria no
Espírito. A todos igualmente ela imprime
uma forma divina. Todos recebem dela uma natureza única, impossível de ser
rompida, uma natureza que já não permite que doravante sejam consideradas as
múltiplas e profundas diferenças que a todos afetam. Por meio dela todos são
elevados e unidos de modo verdadeiramente católico. Nela, ninguém está
absolutamente separado da comunidade, todos se fundem, por assim dizer, uns nos
outros, pela força simples e indivisível da fé (...) Também Cristo é tudo em
todos, Ele que encerra a tudo em Si segundo o poder único, infinito e
sapientíssimo de Sua bondade – como um centro para onde convergem as linhas – a
fim de que as criaturas do Deus único não permaneçam como estrangeiras ou
inimigas umas das outras, sem ter um lugar comum no qual manifestar sua amizade
e sua paz[23]”.
Diante dessa unidade de natureza na Igreja, São João Crisóstomo se pergunta: “O
significa isso? Significa que, de uns e outros, Cristo faz um só corpo. Assim,
alguém que reside em Roma vê os Indianos como seus próprios membros. Existe
união comparável a essa? E Cristo é a cabeça de todos[24]”.
É o mesmo sentido da “recapitulação” do universo, de toda a natureza no
homem-Adão, que deveria reunir o cosmo criado a Deus. Cristo, o segundo Adão,
realizou no presente essa recapitulação. Chefe de seu corpo, Ele se tornou a
hipóstase desse corpo reunido desde os confins do universo. Nele, os filhos da
Igreja são os membros e, como tais, estão incluídos em sua hipóstase. Mas esse
“homem único” em Cristo, ao mesmo tempo em que é um por sua natureza renovada,
é múltiplo em pessoas: ele existe em muitas pessoas. Se a natureza humana se
encontra reunida na hipóstase de Cristo, se ela é uma natureza “enipostática” –
que existe numa hipóstase – as pessoas humanas, as hipóstases dessa natureza
unificada, não são suprimidas. Elas não se confundem com a pessoa divina de
Cristo, nem se unem a ela. Pois uma hipóstase não pode entrar em união com
outra hipóstase sem deixar de existir enquanto ser pessoal: isso significaria a
destruição das pessoas humanas no Cristo único, uma deificação impessoal, uma
beatitude na qual não haveria nenhuma bem-aventurança. Mas ao mesmo tempo em
que constitui uma natureza única em Cristo, a Igreja, esse novo corpo da
humanidade, compreende muitas hipóstases humanas. É o que diz São Cirilo de
Alexandria: “Divididos, de certa forma, em personalidades estanques, de modo que
um é Pedro, ou João, ou Tomé, ou Mateus, somos como que fundidos num só corpo
em Cristo, nutrindo-nos de uma só carne[25]”.
A obra de Cristo se refere à natureza humana que Ele recapitulou em
sua hipóstase. A obra do Espírito Santo, por sua vez, se refere às pessoas,
dirigindo-se a cada uma delas. O Espírito Santo comunica na Igreja às
hipóstases humanas a plenitude da divindade segundo um modo único, “pessoal”,
apropriado a cada um dos homens enquanto pessoa criada à imagem de Deus. São
Basílio diz que o Espírito Santo é a “fonte de santificação”, que “não se
exaure por causa da multitude dos participantes[26]”.
“Ele está totalmente presente em cada um e em toda parte. Dividindo-se, Ele não
sofre divisão. Quando comungamos com Ele, Ele não deixa de permanecer inteiro,
assim como um raio do sol (...) que leva delícias a todos, de modo que cada um
pode se acreditar ser o único a se beneficiar, enquanto que na verdade essa
claridade ilumina a terra e o mar e penetra todo o espaço. Da mesma forma o
Espírito está presente em cada um daqueles que O recebem, como se só tivesse se
comunicado com ele, e, no entanto, ele derrama sobre todos a graça total, da
qual desfrutam todos os que dela participam segundo a medida de suas próprias
capacidades, pois não existem medidas para as possibilidades do Espírito[27]”.
***
Cristo se torna a única imagem apropriada à natureza comum da
humanidade; o Espírito Santo confere a cada pessoa criada à imagem de Deus a
possibilidade de realizar a semelhança nessa natureza comum. Um empresta sua
hipóstase à natureza, o outro concede sua divindade às pessoas. Dessa forma, a
obra de Cristo unifica, a obra do Espírito Santo diversifica. E, no entanto,
uma é impossível sem a outra: a unidade da natureza se realiza nas pessoas;
quanto às pessoas, elas não podem atingir sua perfeição, tornar-se plenamente
pessoas, senão na unidade da natureza, deixando de ser “indivíduos” vivendo por
si mesmos, tendo sua natureza e sua própria vontade “individuais”. A obra de
Cristo e a obra do Espírito Santo são assim inseparáveis: Cristo cria a unidade
de seu corpo místico por meio do Espírito Santo, e o Espírito Santo se comunica
com as pessoas humanas por meio de Cristo. Com efeito, podemos distinguir duas
comunicações do Espírito Santo à Igreja: uma se dá pelo sopro de Cristo que
apareceu aos apóstolos na tarde da ressurreição[28];
a outra consistiu no advento pessoal do Espírito Santo no dia do Pentecostes[29].
A primeira comunicação do Espírito Santo foi feita ao conjunto da
Igreja, à Igreja enquanto corpo; ou antes, o Espírito foi dado ao colégio dos
apóstolos, aos quais Cristo conferiu ao mesmo tempo o poder sacerdotal de ligar
e desligar. Trata-se de uma presença do Espírito Santo, não pessoal, mas mais
funcional em relação a Cristo que O concedeu – o laço de unidade da Igreja,
segundo a interpretação de São Gregório de Nissa[30].
Aqui o Espírito é dado a todos em comum, enquanto laço e enquanto poder
sacerdotal; ele permanecerá estranho às pessoas e não lhes comunicará nenhuma
santidade pessoal. É a última perfeição que Cristo concede à Igreja, antes de
deixar a terra. Nicolas Cabasilas estabelece uma analogia entre a criação do
homem e a reconstituição de nossa natureza por Cristo na criação de Sua Igreja:
“Ele não recria, diz ele, da mesma matéria com a qual a criou no princípio:
naquela ocasião Ele se utilizou do pó da terra, agora Ele usa sua própria
carne; Ele renova em nós a vida, não por reformar um princípio vital que Ele
mantinha na ordem natural, mas derramando Seu sangue no coração dos comungantes
para aí fazer germinar Sua vida. Antes ele insuflara o sopro da vida, agora Ele
nos comunica Seu próprio Espírito[31]”.
É uma obra de Cristo endereçada à natureza, à Igreja, na medida em que essa é o
Seu corpo.
Bem diversa é a comunicação do Espírito Santo no momento de sua vinda
pessoal, na qual Ele aparece como uma pessoa da Trindade, independente do Filho
quanto à sua origem hipostática, mesmo que tenha sido enviado ao mundo “em nome
do Filho”. Ele então apareceu sob a forma de “línguas de fogo” separadas umas
das outras e que pousaram sobre cada um
dos presentes, sobre cada um dos membros do corpo de Cristo. Já não se trata de
uma comunicação do Espírito à Igreja, enquanto corpo. Essa comunicação está
longe de ser uma função de unidade. O Espírito Santo se comunica às pessoas, marcando cada membro da
Igreja com um selo de relação pessoal e único com a Trindade, tornando-se
presente em cada pessoa. De que forma? Isso permanece como um mistério, o
mistério do rebaixamento, da kenwsis do
Espírito Santo em sua vinda ao mundo. Se na kenwsis
do Filho a pessoa nos apareceu, enquanto que a divindade permaneceu oculta sob
a “figura de um escravo”, o Espírito Santo, em seu advento, manifestou a
natureza comum da Trindade, mas manteve sua pessoa dissimulada sob a divindade.
Ele permaneceu não revelado, oculto, por assim dizer, pelo dom, para que o dom
que Ele comunica seja plenamente nosso, apropriado às nossas pessoas. São
Simeão o Novo Teólogo, em um de seus hinos, glorifica o Espírito Santo que se
uniu misteriosamente a nós, conferindo-nos a plenitude divina: “Eu Te dou
graças porque Tu, Ser divino acima de todos os seres, Te fizeste um só espírito
comigo – sem confusão, sem alteração – e Te Tornaste para mim tudo em tudo: o
alimento inefável, distribuído gratuitamente, que se derrama dos lábios de
minha alma, que escorre em abundância da fonte de meu coração; a veste
resplendente que me cobre e me protege, e que consome os demônios; a
purificação que me lava de toda mancha por intermédio dessas santas e perpétuas
lágrimas que Tua presença concede àqueles que visitas. Eu te dou graças por Te
teres revelado a mim, como o dia sem crepúsculo, como o sol sem declínio, ó Tu
que não tens onde Te ocultares; pois jamais Te teres recusado: por jamais teres
desdenhado ninguém, quando, ao contrário, somos nós que te ocultamos, por nos
recusarmos a ir até onde estás[32]”.
O advento pessoal do Espírito Santo, “soberanamente livre”, segundo as
palavras de um cântico do Pentecostes, não poderia ser concebido como uma
plenitude, como uma riqueza infinita abrindo-se subitamente no interior de cada
pessoa, se a Igreja do Oriente não confessasse a independência da hipóstase do
Espírito Santo em relação à do Filho, quanto à sua origem eterna. Se fosse de
outro modo, o Pentecostes, princípio de santificação, não se distinguiria do
sopro que Cristo comunicou aos seus apóstolos, agindo como um auxiliar da obra
de Cristo, criando a unidade de seu corpo místico. Se o Espírito Santo fosse
considerado como sendo dependente do Filho enquanto pessoa divina, Ele teria se
apresentado então, mesmo em sua vinda pessoal, como um laço que nos remetesse
ao Filho. A vida mística se desenvolveria então como uma via para a união da
alma com Cristo por meio do Espírito Santo. Isso nos conduz à questão das
pessoas humanas na união: ou bem elas se anulariam ao se unir à pessoa de
Cristo, ou bem a pessoa de Cristo se imporia a nós desde o exterior. Nesse
último caso a graça seria concebida como exterior em relação à liberdade, ao
invés de ser seu desabrochar interior. Ora, é nessa liberdade que confessamos a
divindade do Filho, tornada manifesta ao nosso espírito pelo Espírito Santo que
habita em nós.
***
Para a tradição mística da cristandade oriental o Pentecostes, por
conferir às pessoas humanas a presença do Espírito Santo, primícias da
santificação, significa o objetivo, o fim último, e, ao mesmo tempo, marca o
começo da vida espiritual. Descendo sobre os discípulos por meio de línguas de
fogo, o Espírito Santo desceu visivelmente sobre os novos batizados através do
sacramento do santo crisma. No rito oriental, a confirmação segue-se
imediatamente ao batismo. O Espírito Santo opera nos dois sacramentos: Ele
recria a natureza, purificando-a, unindo-a ao corpo de Cristo. Ele também comunica
a divindade à pessoa humana, essa energia comum da Santa Trindade, ou seja, a
graça. A ligação íntima entre esses dois sacramentos, batismo e confirmação, é
a razão pela qual o dom incriado e deificante que a descida do Espírito Santo
confere aos membros da Igreja é frequentemente chamado de “graça batismal”.
Assim é que São Serafim de Sarov dizia da graça do Pentecostes: “Esse sopro
inflamado da graça que todos nós, fiéis cristãos, recebemos no sacramento do
santo batismo, é selado pelos selos sagrados do santo crisma, apostos sobre as
partes principais de nosso corpo, segundo as prescrições da Igreja; pois nosso
corpo se torna a partir desse momento um tabernáculo da graça por toda a
eternidade (...) Essa graça batismal é tão grande, essa fonte de vida é tão
necessária ao homem, que ela sequer pode ser retirada de um herético até o
momento de sua morte, até esse termo que a Providência assinala ao homem para prova-lo
durante sua vida na terra. Pois Deus experimenta dos homens assinalando a eles
o tempo durante o qual eles devem realizar sua obra, fazendo valer a virtude da
graça que lhes foi dada[33]”.
A graça batismal, a presença do Espírito Santo em nós, inalienável e pessoal
para cada um, é o fundamento de toda a vida cristã; é o Reino de Deus que o
Espírito Santo prepara dentro de nós, segundo o mesmo São Serafim.
***
O Espírito Santo, vindo habitar em nós, faz de nosso ser a sede da
Santa Trindade, pois o Pai e o Filho são inseparáveis da divindade do Espírito.
“Nós recebemos o fogo nu da divindade, diz São Simeão o Novo Teólogo, o fogo do
qual disse nosso Senhor: ‘Eu vim trazer o fogo sobre a terra[34]’.
O que é esse fogo, senão o Espírito Santo, com o qual o Pai e o Filho entram em
nós e podem ser contemplados?[35]”.
Pela vinda do Espírito Santo, a Trindade habita em nós e nos deifica, nos
confere suas energias incriada, sua glória, sua divindade, que é a Luz eterna
da qual todos devemos participar. É por isso que, segundo São Simeão, a graça
não pode permanecer oculta em nós, e a habitação do Espírito Santo não pode
permanecer não revelada. “Se alguém pretende, diz esse grande místico, que
todos os crentes receberam e possuem o Espírito Santo sem ter a consciência ou
a experiência disso, estará blasfemando e tratando como mentirosa a palavra de
Cristo que diz que o Espírito Santo é “uma fonte de água que jorra da vida
eterna[36]”,
e também que “aquele que crê em Mim, de seu seio correrão rios de água viva[37]”.
Se a fonte brota em nós, o rio que dela procede deve necessariamente ser
visível aos que têm olhos para ver. Mas se tudo isso se passa em nós sem que
tenhamos disso qualquer consciência ou experiência, é certo que tampouco
sentiremos a vida eterna que daí resulta, e que não veremos a luz do Espírito
Santo, que permaneceremos como mortos, cegos, insensíveis à vida eterna, tanto
quanto o somos em relação à vida presente. Nossa esperança será então vã e
nossa vida será inútil, se permanecermos sempre na morte, se ficarmos mortos
segundo o espírito, privados da experiência da vida eterna. Mas não é assim que
são as coisas, na verdade, não é assim que elas são. É o que eu já disse muitas
vezes, direi novamente e repetirei ainda: luz é o Pai, luz é o Filho, luz é o
Espírito Santo. Os três são uma só luz intemporal, indivisível, sem confusão,
eterna, incriada, impalpável, sem medida, invisível – porque ela está além e
acima de todas as coisas – luz que ninguém jamais viu sem estar antes
purificado, nem recebeu antes de ter visto. Pois é preciso primeiramente vê-la,
para depois adquiri-la com muitas penas e múltiplos trabalhos[38]”.
Como já dissemos, a teologia da Igreja do Oriente distingue sempre a
pessoa do Espírito Santo, Doador da graça, da graça incriada que Ele nos confere.
A graça é incriada, divina em sua natureza. Trata-se da energia ou da processão
da natureza una, a divindade (Qeoths),
na medida em que ela se distingue inefavelmente da essência e se comunica aos
seres criados, deificando-os. Já não é, como no Antigo Testamento, um efeito
produzido na alma pela vontade divina agindo como uma causa exterior à pessoa;
presentemente, é a vida divina que se abre em nós no Espírito Santo. Pois Ele
se identifica misteriosamente com as pessoas humanas, ao mesmo tempo em que
permanece incomunicável; Ele se substitui, por assim dizer, a nós mesmos, pois
é Ele que clama em nossos corações “Abba, Pai”, segundo as palavras de São
Paulo. Melhor seria dizer que o Espírito Santo se apaga, enquanto Pessoa,
diante das pessoas criadas para as quais Ele concede a graça. Nele a vontade de
Deus não é mais exterior a nós: ela nos concede a graça desde o interior,
manifestando-se em nossa própria pessoa, na medida em que a nossa vontade humana
permanece em acordo com a vontade divina e coopera com ela adquirindo a graça,
tornando-a nossa. É o caminho de
deificação que desemboca no Reino de Deus, que é introduzido em nossos corações
pelo Espírito Santo já nessa vida presente. Pois o Espírito Santo é a unção
real que repousa sobre Cristo e sobree os cristãos chamados a reinar com Ele no
século futuro. É então que essa Pessoa divina desconhecida, que não tem sua
imagem em nenhuma outra hipóstase, se manifestará nas pessoas deificadas: pois
sua imagem será a multidão dos santos.
[1]
Efésios 1: 23.
[2] Contra Haeres., III, 24, §1, P.G., t. 7,
col. 966C.
[3]
De Spiritu Sancto, XIX, 49, P.G., t.
42, col. 157AB; ver Gregório de Nazianze, or.
XXXI, 29, P.G., t. 36, col. 165B.
[4]
João 7: 38.
[5] Homilia 62.
[6]
João 15: 26.
[7]
Lucas 12: 49.
[8]
João 16: 7.
[9] Contra Macedonium, §12, P.G., t. 44, col.
1316.
[10] De fide orth., I, 13, P.G., t. 94, col.
856.
[11] P.G., t. 120, col. 507-509 (trad.
latina).
[12] Or. XXXI (Theologica V), §§26-27, P.G.,
t. 36, col. 161-164.
[13]
João 16: 14-15.
[14]
Antífona do Tom 4 do ofício de Domingo.
[15] Isaías 11: 2.
[16] Or. XXXI (Theologica V), §29, P.G., t. 36,
col. 159BC.
[17] Liber de Spiritu Sancto, c. XVI, §37,
P.G., t. 32, col. 133C.
[18]
Liturgia de São Basílio, secreta.
[19] De fide orth., I, 8, P.G., t. 94, col.
821BC.
[20]
João 14: 26.
[21] Adv. Haeres. IV, 33, 14, P.G., t. 7,
col. 1082.
[22] Propreptico, XI, P.G., t. 8, col. 229B.
[23] Mystagogia, I, P.G., t. 91, col.
665-668.
[24] Hom. 61, §1, P.G., t. 59, col. 361-362.
[25] In Ioannem, XI, 11, P.G., t. 74, col.
560.
[26] Lib. De Spiritu Sancto, IX, 22, P.G., t.
32, col. 108BC.
[27] Ibid., col. 108-109.
[28]
João 20: 19-23.
[29]
Atos 2: 15.
[30] In Canticum hom. XV, P.G., t. 44, col.
1116-1117.
[31] De vita in Christu, IV, P.G., t. 150,
col. 617AB.
[32] Introdução aos hinos do Amor divino,
P.G., t. 120, col. 509 (tradução Latina).
[33] Revelações de São Serafim de Sarov,
trad. fr. Le Semeur, março-abril
1927.
[34]
Lucas 12: 49.
[35] Homilia, 45, 9.
[36] João
9: 14.
[37] João
7: 38.
[38] Homilia, 57, 4.
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