sábado, 9 de março de 2019

Vladimir Lossky - Ensaios sobre a Teologia Mística da Igreja do Oriente - Capítulo VIII: A economia do Espírito Santo





A encarnação do Verbo é um mistério maior e mais profundo do que o da criação do mundo; e, no entanto, a obra de Cristo se realiza em relação com o contingente, como uma ação divina cumprida em consequência do pecado de Adão. Consequência preexistente, vontade divina de salvação que precedeu a vontade humana da queda, esse “mistério oculto antes de todos os séculos em Deus” que se revela na história como o mistério da Cruz de Cristo não é, propriamente falando, ocasional, na medida em que a liberdade humana estava implicada na ideia da criação. É por isso que essa liberdade não pôde destruir o universo concebido por Deus: ela estava incluída num outro plano existencial, mais vasto, aberto pela cruz e a ressurreição. Uma nova realidade penetra no mundo, um corpo mais perfeito do que o mundo – a Igreja, fundada sobre uma dupla economia divina: a obra de Cristo e a obra do Espírito Santo, as duas pessoas da Trindade enviadas ao mundo. As duas obras estão na base da Igreja, as duas são necessárias para que possamos alcançar a união com Deus.

Se Cristo é “o Chefe da Igreja que é Seu corpo”, o Espírito Santo é “Aquele que preenche tudo em todas as coisas”. Assim, as duas definições que São Paulo dá da Igreja[1] assinalam nela dois polos diferentes, correspondendo às duas pessoas divinas. A Igreja é o corpo, na medida em que Cristo é seu Chefe; ela é plenitude, na medida em que o Espírito Santo a anima, a enche de divindade, pois a divindade nela habita corporalmente, assim como ela habitava a humanidade deificada de Cristo. Podemos então dizer, com Santo Irineu, que “onde está a Igreja, aí está o Espírito; onde está o Espírito, aí está a Igreja[2]”.

Porém, o Espírito, “que falou pelos Profetas”, jamais foi estranho à economia divina no mundo em que manifestou a vontade comum da Santa Trindade. Ele estava presente tanto na obra da criação como na da redenção. É o Espírito Santo quem realiza tudo, segundo São Basílio: “Vinda de Cristo: o Espírito o precedeu. Encarnação: lá estava o Espírito. Operações milagrosas, graças e curas: pelo Espírito Santo. Demônios expulsos: pelo Espírito de Deus. O diabo manietado: o Espírito, presente. A remissão dos pecados: na graça do Espírito Santo (...) A conjunção com Deus: pelo Espírito. A Ressurreição dos mortos: pela virtude do Espírito[3]”. Entretanto, a palavra do Evangelho é formal: “O Espírito ainda não estava [no mundo] porque Jesus ainda não havia sido glorificado[4]”. Portanto, a ação do Espírito Santo no mundo antes da Igreja e fora da Igreja não é a mesma que sua presença na Igreja depois do Pentecostes. Assim como o Verbo, per quem omnia facta sunt, que manifestava a Sabedoria de Deus na criação antes de ser enviado ao mundo e entrar na história como uma pessoa divina encarnada, também o Espírito Santo, no qual a vontade divina – criadora e conservadora do universo – se realizou desde o momento da criação, foi enviado num momento determinado ao mundo para nele estar presente não apenas por sua ação, comum com toda a Trindade, mas também enquanto pessoa.

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Os teólogos sempre insistiram na diferença radical entre a processão eterna das pessoas, que é “obra da natureza”, segundo São João Damasceno – o próprio ser da Santa Trindade – e a missão temporal do Filho e do Espírito Santo no mundo, obra da vontade comum às três hipóstases. No que diz respeito ao Espírito, os Padres gregos utilizam habitualmente o verbo ekporeuomai para designar sua processão eterna, enquanto que os verbos proimni e proceomai designam no mais das vezes sua missão no mundo. No plano eterno, as pessoas do Filho e do Espírito procedem do Pai, “fonte única da divindade”. No plano da missão temporal, obra da vontade que pertence à substância da Trindade, o Filho é enviado pelo Pai e se encarna pelo Espírito Santo; podemos dizer também que Ele é enviado por Si mesmo na medida em que ele preenche a vontade de ser enviado, não tendo “vontade própria”. A mesma coisa é verdadeira quanto à missão do Espírito Santo no mundo: Ele cumpre a vontade comum aos Três, sendo enviado pelo Pai e comunicado pelo Filho. Segundo São Simeão o Novo Teólogo, “dizemos que o Espírito Santo é enviado ou dado, mas isso não significa em absoluto que Ele permanece estranho à vontade de sua missão; com efeito, o Espírito Santo, uma das pessoas da Santa trindade, realiza pelo Filho aquilo que o Pai deseja, como se fosse sua própria vontade, pois a Santa Trindade é indivisível quanto à sua natureza, substância e vontade[5]”.

Portanto, assim como o Filho desce à terra e realiza sua obra pelo Espírito, a pessoa do Espírito Santo vem ao mundo enviada pelo Filho: “o Consolador que eu lhes enviarei do Pai, o Espírito da Verdade que procede do Pai, Ele dará testemunho de Mim[6]”. Intimamente ligados em sua obra comum sobre a terra, o Filho e o Espírito Santo permanecem, entretanto, nessa mesma obra, como duas pessoas independentes uma da outra quanto ao seu ser hipostático. É por isso que o advento pessoal do Espírito Santo não terá o caráter de uma obra subordinada, de certa forma funcional em relação à obra do Filho. O Pentecostes não é uma “continuação” da Encarnação, ela é sua decorrência, sua consequência: a criatura se torna apta a receber o Espírito Santo, e Ele desce ao mundo, enchendo com sua presença a Igreja resgatada, lavada, purificada pelo sangue de Cristo.

Podemos dizer, num certo sentido, que a obra de Cristo preparou a do Espírito Santo: Ignem veni mittere in terram et quid volo nisi ut accendatur[7]. O Pentecostes aparece assim como o objetivo, como o fim último da economia divina sobre a terra. Cristo retorna ao Pai para que o Espírito venha: expedit vobis ut ego vadam: si enim non abiero, Paraclitus non veniet ad vos; si autem abiero, mittam eum ad vos[8]. Entretanto, em seu advento pessoal o Espírito Santo não manifesta sua pessoa. Ele não vem em seu próprio nome, mas em nome do Filho, para dar testemunho do Filho – assim como o Filho veio em nome do Pai, para dar a conhecer o Pai. Não pensamos no Pai sem o Filho, diz São Gregório de Nissa, e não concebemos o Filho sem o Espírito Santo. Pois é impossível chegar ao Pai, a menos que sejamos conduzidos pelo Filho, e é impossível nomear o Senhor Jesus se não for no Espírito Santo[9]”. As pessoas divinas quase que não se afirmam por si mesmas, mas uma dá testemunho da outra. Essa é a razão pela qual São João Damasceno diz que “o Filho é a imagem do Pai e o Espírito Santo é a imagem do Filho[10]”. Segue-se daí que a terceira hipóstase da Trindade é a única a não ter sua imagem em outra pessoa. O Espírito Santo permanece não-manifestado enquanto pessoa, oculto, dissimulando-se em sua própria aparição. É por isso que São Simeão o Novo Teólogo o cantará em seus hinos ao amor divino, sob os traços apofático de uma pessoa incognoscível e misteriosa: “Vem, Luz verdadeira; vem, Vida eterna; vem, mistério escondido; vem, tesouro sem nome; vem, coisa indizível; vem, Pessoa incognoscível; vem, alegria incessante; vem, Luz sem crepúsculo; vem, esperança que nos quer salvar a todos; vem, ressurreição dos mortos; vem, ó Poderoso, que realizas, transformas e mudas a tudo apenas com teu querer; vem, Invisível, completamente intangível e impalpável; vem, O que permanece sempre imutável e que, a toda hora, Te moves e vens a nós, que jazemos no inferno. Tu te ergues mais alto do que os céus. Teu nome, tão desejado e constantemente proclamado, ninguém sabe o que é. Ninguém pode saber como és, de que gênero ou espécie, pois isso é impossível. Vem, coroa jamais corrompida. Vem, O que minh’alma miserável amou e ama. Vem, só Tu, só a mim. Vem, Tu que me separaste de todos e me tornaste solitário nesse mundo, e que Te tornaste desejo em mim, que quis que eu Te queira, a Ti, absolutamente inacessível. Vem, alento e vida minha, consolo de meu humilde coração[11]”.

O próprio ensinamento sobre o Espírito Santo possui o caráter de uma tradição mais secreta, menos revelada, contrariamente à manifestação brilhante do Filho, proclamada pela Igreja até os confins do universo. São Gregório de Nazianze assinala uma economia misteriosa no conhecimento das verdades relativas à pessoa do Espírito Santo. “O Antigo Testamento, diz ele, manifestou claramente o Pai, mas obscuramente o Filho. O Novo Testamento revelou o Filho e insinuou a divindade do Espírito. Hoje o Espírito vive entre nós e se deixa conhecer mais claramente. Pois teria sido perigoso, no tempo em que a divindade do Pai ainda não era reconhecida, pregar abertamente o Filho, assim como, enquanto a divindade do Filho não fosse admitida, impor, ouso dizer, como uma sobrecarga, o Espírito Santo (...) Antes, convinha que, por meio de adições parciais, como disse Davi, por ascensões de glória em glória, irradiasse progressivamente o esplendor da Trindade (...) Vejam como a luz nos chega pouco a pouco. Vejam em que ordem Deus se nos revelou: ordem que, de nossa parte, devemos respeitar, não tentando desvelar a tudo apressadamente e sem discernimento, ou sem guardar algo de oculto até o fim. Pois um seria imprudente, e o outro, ímpio. Um arriscaria a ferir os de fora, outro afastaria seus próprios irmãos (...) O Salvador conhecia certas coisas que Ele considerava que seus discípulos ainda não podiam suportar, embora já estivessem cheios de abundante doutrina (...) E Ele lhes repetia que o Espírito, quando viesse, lhes ensinaria tudo. Penso, então, que dentre essas coisas estava a própria divindade do Espírito Santo: ela deveria ser declarada com mais clareza adiante, quando, depois do triunfo do Salvador, o conhecimento de sua própria divindade estivesse afirmado e assegurado[12]”. A divindade do Filho é afirmada pela Igreja e pregada a todo o universo; também confessamos a divindade do Espírito Santo, comum com a do Pai e do Filho, confessando assim a Santa Trindade. Mas a pessoa em si do Espírito Santo, que nos revela essas verdades, que as torna interiormente visíveis para nós, manifestas, quase tangíveis, permanece, entretanto, não revelada, oculta, dissimulada pela divindade que ela nos revela, pelo dom que ela nos comunica.

A teologia da Igreja do Oriente distingue a pessoa do Espírito Santo dos dons que ela comunica aos homens. Essa distinção está fundamentada sobre as palavras de Cristo: “O Espírito da Verdade manifestará a minha glória, porque ele vai receber daquilo que é meu, e o interpretará para vocês. Tudo o que pertence ao Pai, é meu também. Por isso é que eu disse: o Espírito vai receber daquilo que é meu, e o interpretará para vocês[13]”. O que é comum ao Pai e ao Filho é a divindade que o Espírito Santo comunica aos homens na Igreja, tornando-os “participantes da natureza divina” e conferindo o fogo da divindade, a graça incriada, àqueles que se tornam membros do corpo de Cristo. Cantamos numa antífona do rito oriental: “O Espírito Santo vivifica as almas, Ele as exalta na pureza, Ele faz resplender misteriosamente nelas a natureza una da Trindade[14]”.

Costumamos designar os dons do Espírito Santo pelos nomes dos espíritos que encontramos no texto de Isaías – o espírito de sabedoria, o de inteligência, o de conselho, o de força, o de conhecimento e o de temor a Deus[15]. Entretanto, a teologia ortodoxa não faz uma distinção especial entre esses dons e a graça deificante. A graça significa em geral, para a Igreja do Oriente, toda a riqueza da natureza divina, na medida em que ela se comunica aos homens; é a divindade que procede fora da essência e que se dá – a natureza divina da qual participamos nas energias.

O Espírito Santo, fonte desses dons incriado e infinitos, ao mesmo tempo em que permanece anônimo e não revelado, recebe toda a multiplicidade dos nomes que podem ser aplicados à graça. “Eu sou tomado de pavor, diz São Gregório de Nazianze, quando eu penso na riqueza das denominações: Espírito de Deus, Espírito de Cristo, Inteligência de Cristo, Espírito de Adoção. Ele nos restaura no batismo e na ressurreição. Ele sopra onde quer. Fonte de luz e de vida, Ele faz de mim um templo. Ele me deifica, Ele me torna perfeito, Ele antecede o batismo e é buscado depois do batismo. Tudo o que Deus faz, é Ele que o faz. Ele se multiplica em línguas de fogo e multiplica os dons, Ele cria os pregadores, os apóstolos, os profetas, os pastores, os doutores (...) Ele é um outro Consolador (...) como se fosse um outro Deus[16]”. Segundo São Basílio, não existe dom concedido à criatura sem que o Espírito Santo esteja presente[17]. Ele é “o Espírito da verdade, dom de filiação, promessa dos bens futuros, primícias da beatitude eterna, força vivificante, fonte de santificação[18]”. São João Damasceno o chama de “Espírito de Verdade, Soberano, Fonte de sabedoria, de vida e de santificação, Plenitude, Aquele que contém todas as coisas, Todo-Poderoso, Poder infinito, que exerce sua dominação sobre toda criatura sem ser submetido a qualquer dominação, santificador sem ser Ele próprio santificado”, etc.[19]. Como dissemos, toda essa plenitude infinita de denominações se refere sobretudo à graça, à riqueza natural de Deus que o Espírito Santo comunica àqueles nos quais Ele está presente. Ora, Ele está presente com sua divindade que Ele dá a conhecer, ao mesmo tempo em que permanece desconhecido e não-manifestado: hipóstase não revelada, que não tem sua imagem em outra pessoa divina.

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O Espírito Santo foi enviado ao mundo, ou melhor, à Igreja em nome do Filho – “o Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em Meu nome[20]”. É preciso então trazer o nome do Filho, ser membro de seu corpo, para receber o Espírito Santo. Cristo recapitulou Nele a humanidade, segundo a expressão favorita de Santo Irineu. Ele se tornou o Chefe, o Príncipe, a hipóstase da natureza humana renovada, que é seu Corpo; é por isso que o mesmo Santo Irineu aplica à Igreja o nome de “filha de Deus”[21]. Trata-se da unidade do “homem novo”, à qual se acede quando se é “revestido de Cristo”, quando se torna membro de seu corpo pelo batismo. Essa natureza é una e indivisa, o “homem único”. Clemente de Alexandria vê na Igreja o próprio Cristo por inteiro, o Cristo total que não pode ser dividido: “Não existe nem bárbaro, nem judeu, nem grego, nem homem, nem mulher, mas apenas o Homem novo inteiramente transformado pelo Espírito[22]”. “Homens, mulheres, crianças, diz São Máximo, profundamente divididos sob o aspecto da raça, da nação, da língua, do gênero de vida, do trabalho, da ciência, da dignidade, da fortuna (...) A todos a Igreja recria no Espírito.  A todos igualmente ela imprime uma forma divina. Todos recebem dela uma natureza única, impossível de ser rompida, uma natureza que já não permite que doravante sejam consideradas as múltiplas e profundas diferenças que a todos afetam. Por meio dela todos são elevados e unidos de modo verdadeiramente católico. Nela, ninguém está absolutamente separado da comunidade, todos se fundem, por assim dizer, uns nos outros, pela força simples e indivisível da fé (...) Também Cristo é tudo em todos, Ele que encerra a tudo em Si segundo o poder único, infinito e sapientíssimo de Sua bondade – como um centro para onde convergem as linhas – a fim de que as criaturas do Deus único não permaneçam como estrangeiras ou inimigas umas das outras, sem ter um lugar comum no qual manifestar sua amizade e sua paz[23]”. Diante dessa unidade de natureza na Igreja, São João Crisóstomo se pergunta: “O significa isso? Significa que, de uns e outros, Cristo faz um só corpo. Assim, alguém que reside em Roma vê os Indianos como seus próprios membros. Existe união comparável a essa? E Cristo é a cabeça de todos[24]”. É o mesmo sentido da “recapitulação” do universo, de toda a natureza no homem-Adão, que deveria reunir o cosmo criado a Deus. Cristo, o segundo Adão, realizou no presente essa recapitulação. Chefe de seu corpo, Ele se tornou a hipóstase desse corpo reunido desde os confins do universo. Nele, os filhos da Igreja são os membros e, como tais, estão incluídos em sua hipóstase. Mas esse “homem único” em Cristo, ao mesmo tempo em que é um por sua natureza renovada, é múltiplo em pessoas: ele existe em muitas pessoas. Se a natureza humana se encontra reunida na hipóstase de Cristo, se ela é uma natureza “enipostática” – que existe numa hipóstase – as pessoas humanas, as hipóstases dessa natureza unificada, não são suprimidas. Elas não se confundem com a pessoa divina de Cristo, nem se unem a ela. Pois uma hipóstase não pode entrar em união com outra hipóstase sem deixar de existir enquanto ser pessoal: isso significaria a destruição das pessoas humanas no Cristo único, uma deificação impessoal, uma beatitude na qual não haveria nenhuma bem-aventurança. Mas ao mesmo tempo em que constitui uma natureza única em Cristo, a Igreja, esse novo corpo da humanidade, compreende muitas hipóstases humanas. É o que diz São Cirilo de Alexandria: “Divididos, de certa forma, em personalidades estanques, de modo que um é Pedro, ou João, ou Tomé, ou Mateus, somos como que fundidos num só corpo em Cristo, nutrindo-nos de uma só carne[25]”.

A obra de Cristo se refere à natureza humana que Ele recapitulou em sua hipóstase. A obra do Espírito Santo, por sua vez, se refere às pessoas, dirigindo-se a cada uma delas. O Espírito Santo comunica na Igreja às hipóstases humanas a plenitude da divindade segundo um modo único, “pessoal”, apropriado a cada um dos homens enquanto pessoa criada à imagem de Deus. São Basílio diz que o Espírito Santo é a “fonte de santificação”, que “não se exaure por causa da multitude dos participantes[26]”. “Ele está totalmente presente em cada um e em toda parte. Dividindo-se, Ele não sofre divisão. Quando comungamos com Ele, Ele não deixa de permanecer inteiro, assim como um raio do sol (...) que leva delícias a todos, de modo que cada um pode se acreditar ser o único a se beneficiar, enquanto que na verdade essa claridade ilumina a terra e o mar e penetra todo o espaço. Da mesma forma o Espírito está presente em cada um daqueles que O recebem, como se só tivesse se comunicado com ele, e, no entanto, ele derrama sobre todos a graça total, da qual desfrutam todos os que dela participam segundo a medida de suas próprias capacidades, pois não existem medidas para as possibilidades do Espírito[27]”.

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Cristo se torna a única imagem apropriada à natureza comum da humanidade; o Espírito Santo confere a cada pessoa criada à imagem de Deus a possibilidade de realizar a semelhança nessa natureza comum. Um empresta sua hipóstase à natureza, o outro concede sua divindade às pessoas. Dessa forma, a obra de Cristo unifica, a obra do Espírito Santo diversifica. E, no entanto, uma é impossível sem a outra: a unidade da natureza se realiza nas pessoas; quanto às pessoas, elas não podem atingir sua perfeição, tornar-se plenamente pessoas, senão na unidade da natureza, deixando de ser “indivíduos” vivendo por si mesmos, tendo sua natureza e sua própria vontade “individuais”. A obra de Cristo e a obra do Espírito Santo são assim inseparáveis: Cristo cria a unidade de seu corpo místico por meio do Espírito Santo, e o Espírito Santo se comunica com as pessoas humanas por meio de Cristo. Com efeito, podemos distinguir duas comunicações do Espírito Santo à Igreja: uma se dá pelo sopro de Cristo que apareceu aos apóstolos na tarde da ressurreição[28]; a outra consistiu no advento pessoal do Espírito Santo no dia do Pentecostes[29].

A primeira comunicação do Espírito Santo foi feita ao conjunto da Igreja, à Igreja enquanto corpo; ou antes, o Espírito foi dado ao colégio dos apóstolos, aos quais Cristo conferiu ao mesmo tempo o poder sacerdotal de ligar e desligar. Trata-se de uma presença do Espírito Santo, não pessoal, mas mais funcional em relação a Cristo que O concedeu – o laço de unidade da Igreja, segundo a interpretação de São Gregório de Nissa[30]. Aqui o Espírito é dado a todos em comum, enquanto laço e enquanto poder sacerdotal; ele permanecerá estranho às pessoas e não lhes comunicará nenhuma santidade pessoal. É a última perfeição que Cristo concede à Igreja, antes de deixar a terra. Nicolas Cabasilas estabelece uma analogia entre a criação do homem e a reconstituição de nossa natureza por Cristo na criação de Sua Igreja: “Ele não recria, diz ele, da mesma matéria com a qual a criou no princípio: naquela ocasião Ele se utilizou do pó da terra, agora Ele usa sua própria carne; Ele renova em nós a vida, não por reformar um princípio vital que Ele mantinha na ordem natural, mas derramando Seu sangue no coração dos comungantes para aí fazer germinar Sua vida. Antes ele insuflara o sopro da vida, agora Ele nos comunica Seu próprio Espírito[31]”. É uma obra de Cristo endereçada à natureza, à Igreja, na medida em que essa é o Seu corpo.

Bem diversa é a comunicação do Espírito Santo no momento de sua vinda pessoal, na qual Ele aparece como uma pessoa da Trindade, independente do Filho quanto à sua origem hipostática, mesmo que tenha sido enviado ao mundo “em nome do Filho”. Ele então apareceu sob a forma de “línguas de fogo” separadas umas das outras e que pousaram sobre cada um dos presentes, sobre cada um dos membros do corpo de Cristo. Já não se trata de uma comunicação do Espírito à Igreja, enquanto corpo. Essa comunicação está longe de ser uma função de unidade. O Espírito Santo se comunica às pessoas, marcando cada membro da Igreja com um selo de relação pessoal e único com a Trindade, tornando-se presente em cada pessoa. De que forma? Isso permanece como um mistério, o mistério do rebaixamento, da kenwsis do Espírito Santo em sua vinda ao mundo. Se na kenwsis do Filho a pessoa nos apareceu, enquanto que a divindade permaneceu oculta sob a “figura de um escravo”, o Espírito Santo, em seu advento, manifestou a natureza comum da Trindade, mas manteve sua pessoa dissimulada sob a divindade. Ele permaneceu não revelado, oculto, por assim dizer, pelo dom, para que o dom que Ele comunica seja plenamente nosso, apropriado às nossas pessoas. São Simeão o Novo Teólogo, em um de seus hinos, glorifica o Espírito Santo que se uniu misteriosamente a nós, conferindo-nos a plenitude divina: “Eu Te dou graças porque Tu, Ser divino acima de todos os seres, Te fizeste um só espírito comigo – sem confusão, sem alteração – e Te Tornaste para mim tudo em tudo: o alimento inefável, distribuído gratuitamente, que se derrama dos lábios de minha alma, que escorre em abundância da fonte de meu coração; a veste resplendente que me cobre e me protege, e que consome os demônios; a purificação que me lava de toda mancha por intermédio dessas santas e perpétuas lágrimas que Tua presença concede àqueles que visitas. Eu te dou graças por Te teres revelado a mim, como o dia sem crepúsculo, como o sol sem declínio, ó Tu que não tens onde Te ocultares; pois jamais Te teres recusado: por jamais teres desdenhado ninguém, quando, ao contrário, somos nós que te ocultamos, por nos recusarmos a ir até onde estás[32]”.

O advento pessoal do Espírito Santo, “soberanamente livre”, segundo as palavras de um cântico do Pentecostes, não poderia ser concebido como uma plenitude, como uma riqueza infinita abrindo-se subitamente no interior de cada pessoa, se a Igreja do Oriente não confessasse a independência da hipóstase do Espírito Santo em relação à do Filho, quanto à sua origem eterna. Se fosse de outro modo, o Pentecostes, princípio de santificação, não se distinguiria do sopro que Cristo comunicou aos seus apóstolos, agindo como um auxiliar da obra de Cristo, criando a unidade de seu corpo místico. Se o Espírito Santo fosse considerado como sendo dependente do Filho enquanto pessoa divina, Ele teria se apresentado então, mesmo em sua vinda pessoal, como um laço que nos remetesse ao Filho. A vida mística se desenvolveria então como uma via para a união da alma com Cristo por meio do Espírito Santo. Isso nos conduz à questão das pessoas humanas na união: ou bem elas se anulariam ao se unir à pessoa de Cristo, ou bem a pessoa de Cristo se imporia a nós desde o exterior. Nesse último caso a graça seria concebida como exterior em relação à liberdade, ao invés de ser seu desabrochar interior. Ora, é nessa liberdade que confessamos a divindade do Filho, tornada manifesta ao nosso espírito pelo Espírito Santo que habita em nós.

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Para a tradição mística da cristandade oriental o Pentecostes, por conferir às pessoas humanas a presença do Espírito Santo, primícias da santificação, significa o objetivo, o fim último, e, ao mesmo tempo, marca o começo da vida espiritual. Descendo sobre os discípulos por meio de línguas de fogo, o Espírito Santo desceu visivelmente sobre os novos batizados através do sacramento do santo crisma. No rito oriental, a confirmação segue-se imediatamente ao batismo. O Espírito Santo opera nos dois sacramentos: Ele recria a natureza, purificando-a, unindo-a ao corpo de Cristo. Ele também comunica a divindade à pessoa humana, essa energia comum da Santa Trindade, ou seja, a graça. A ligação íntima entre esses dois sacramentos, batismo e confirmação, é a razão pela qual o dom incriado e deificante que a descida do Espírito Santo confere aos membros da Igreja é frequentemente chamado de “graça batismal”. Assim é que São Serafim de Sarov dizia da graça do Pentecostes: “Esse sopro inflamado da graça que todos nós, fiéis cristãos, recebemos no sacramento do santo batismo, é selado pelos selos sagrados do santo crisma, apostos sobre as partes principais de nosso corpo, segundo as prescrições da Igreja; pois nosso corpo se torna a partir desse momento um tabernáculo da graça por toda a eternidade (...) Essa graça batismal é tão grande, essa fonte de vida é tão necessária ao homem, que ela sequer pode ser retirada de um herético até o momento de sua morte, até esse termo que a Providência assinala ao homem para prova-lo durante sua vida na terra. Pois Deus experimenta dos homens assinalando a eles o tempo durante o qual eles devem realizar sua obra, fazendo valer a virtude da graça que lhes foi dada[33]”. A graça batismal, a presença do Espírito Santo em nós, inalienável e pessoal para cada um, é o fundamento de toda a vida cristã; é o Reino de Deus que o Espírito Santo prepara dentro de nós, segundo o mesmo São Serafim.

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O Espírito Santo, vindo habitar em nós, faz de nosso ser a sede da Santa Trindade, pois o Pai e o Filho são inseparáveis da divindade do Espírito. “Nós recebemos o fogo nu da divindade, diz São Simeão o Novo Teólogo, o fogo do qual disse nosso Senhor: ‘Eu vim trazer o fogo sobre a terra[34]’. O que é esse fogo, senão o Espírito Santo, com o qual o Pai e o Filho entram em nós e podem ser contemplados?[35]”. Pela vinda do Espírito Santo, a Trindade habita em nós e nos deifica, nos confere suas energias incriada, sua glória, sua divindade, que é a Luz eterna da qual todos devemos participar. É por isso que, segundo São Simeão, a graça não pode permanecer oculta em nós, e a habitação do Espírito Santo não pode permanecer não revelada. “Se alguém pretende, diz esse grande místico, que todos os crentes receberam e possuem o Espírito Santo sem ter a consciência ou a experiência disso, estará blasfemando e tratando como mentirosa a palavra de Cristo que diz que o Espírito Santo é “uma fonte de água que jorra da vida eterna[36]”, e também que “aquele que crê em Mim, de seu seio correrão rios de água viva[37]”. Se a fonte brota em nós, o rio que dela procede deve necessariamente ser visível aos que têm olhos para ver. Mas se tudo isso se passa em nós sem que tenhamos disso qualquer consciência ou experiência, é certo que tampouco sentiremos a vida eterna que daí resulta, e que não veremos a luz do Espírito Santo, que permaneceremos como mortos, cegos, insensíveis à vida eterna, tanto quanto o somos em relação à vida presente. Nossa esperança será então vã e nossa vida será inútil, se permanecermos sempre na morte, se ficarmos mortos segundo o espírito, privados da experiência da vida eterna. Mas não é assim que são as coisas, na verdade, não é assim que elas são. É o que eu já disse muitas vezes, direi novamente e repetirei ainda: luz é o Pai, luz é o Filho, luz é o Espírito Santo. Os três são uma só luz intemporal, indivisível, sem confusão, eterna, incriada, impalpável, sem medida, invisível – porque ela está além e acima de todas as coisas – luz que ninguém jamais viu sem estar antes purificado, nem recebeu antes de ter visto. Pois é preciso primeiramente vê-la, para depois adquiri-la com muitas penas e múltiplos trabalhos[38]”.

Como já dissemos, a teologia da Igreja do Oriente distingue sempre a pessoa do Espírito Santo, Doador da graça, da graça incriada que Ele nos confere. A graça é incriada, divina em sua natureza. Trata-se da energia ou da processão da natureza una, a divindade (Qeoths), na medida em que ela se distingue inefavelmente da essência e se comunica aos seres criados, deificando-os. Já não é, como no Antigo Testamento, um efeito produzido na alma pela vontade divina agindo como uma causa exterior à pessoa; presentemente, é a vida divina que se abre em nós no Espírito Santo. Pois Ele se identifica misteriosamente com as pessoas humanas, ao mesmo tempo em que permanece incomunicável; Ele se substitui, por assim dizer, a nós mesmos, pois é Ele que clama em nossos corações “Abba, Pai”, segundo as palavras de São Paulo. Melhor seria dizer que o Espírito Santo se apaga, enquanto Pessoa, diante das pessoas criadas para as quais Ele concede a graça. Nele a vontade de Deus não é mais exterior a nós: ela nos concede a graça desde o interior, manifestando-se em nossa própria pessoa, na medida em que a nossa vontade humana permanece em acordo com a vontade divina e coopera com ela adquirindo a graça, tornando-a nossa. É o caminho de deificação que desemboca no Reino de Deus, que é introduzido em nossos corações pelo Espírito Santo já nessa vida presente. Pois o Espírito Santo é a unção real que repousa sobre Cristo e sobree os cristãos chamados a reinar com Ele no século futuro. É então que essa Pessoa divina desconhecida, que não tem sua imagem em nenhuma outra hipóstase, se manifestará nas pessoas deificadas: pois sua imagem será a multidão dos santos.


[1] Efésios 1: 23.
[2] Contra Haeres., III, 24, §1, P.G., t. 7, col. 966C.
[3] De Spiritu Sancto, XIX, 49, P.G., t. 42, col. 157AB; ver Gregório de Nazianze, or. XXXI, 29, P.G., t. 36, col. 165B.
[4] João 7: 38.
[5] Homilia 62.
[6] João 15: 26.
[7] Lucas 12: 49.
[8] João 16: 7.
[9] Contra Macedonium, §12, P.G., t. 44, col. 1316.
[10] De fide orth., I, 13, P.G., t. 94, col. 856.
[11] P.G., t. 120, col. 507-509 (trad. latina).
[12] Or. XXXI (Theologica V), §§26-27, P.G., t. 36, col. 161-164.
[13] João 16: 14-15.
[14] Antífona do Tom 4 do ofício de Domingo.
[15] Isaías 11: 2.
[16] Or. XXXI (Theologica V), §29, P.G., t. 36, col. 159BC.
[17] Liber de Spiritu Sancto, c. XVI, §37, P.G., t. 32, col. 133C.
[18] Liturgia de São Basílio, secreta.
[19] De fide orth., I, 8, P.G., t. 94, col. 821BC.
[20] João 14: 26.
[21] Adv. Haeres. IV, 33, 14, P.G., t. 7, col. 1082.
[22] Propreptico, XI, P.G., t. 8, col. 229B.
[23] Mystagogia, I, P.G., t. 91, col. 665-668.
[24] Hom. 61, §1, P.G., t. 59, col. 361-362.
[25] In Ioannem, XI, 11, P.G., t. 74, col. 560.
[26] Lib. De Spiritu Sancto, IX, 22, P.G., t. 32, col. 108BC.
[27] Ibid., col. 108-109.
[28] João 20: 19-23.
[29] Atos 2: 15.
[30] In Canticum hom. XV, P.G., t. 44, col. 1116-1117.
[31] De vita in Christu, IV, P.G., t. 150, col. 617AB.
[32] Introdução aos hinos do Amor divino, P.G., t. 120, col. 509 (tradução Latina).
[33] Revelações de São Serafim de Sarov, trad. fr. Le Semeur, março-abril 1927.
[34] Lucas 12: 49.
[35] Homilia, 45, 9.
[36] João 9: 14.
[37] João 7: 38.
[38] Homilia, 57, 4.





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