quinta-feira, 7 de março de 2013

Filocalia Tomo I Volume 3 - Elias de Ecdicos: Florilégio de Sentenças


FLORILÉGIO DE SENTENÇAS

DOS FILÓSOFOS CONSAGRADOS À VIRTUDE,

COMPOSTO E PREPARADO PELO HUMILDE PADRE

ELIAS DE ECDICOS

 

 

 

Uma fonte abundante

Um discurso em que correm as águas da conduta moral,

Isto você encontrará aqui, se verdadeiramente buscar.

 

 

1. Longe de não se inquietar, todo cristão que crê retamente em Deus deve sempre esperar pela prova e se preparar para recebê-la, a fim de não se assustar nem se perturbar quando ela chega, mas aguentar esta prova e esta aflição com reconhecimento e compreender bem o que ela lhe diz, cantando com o Profeta: “Ponha-me à prova, Senhor, teste-me[1]”. Ele não diz: “A educação que você me deu está terminada”, mas: “Não cesse de me endireitar[2]”.

 

2. O começo dos bens é o temor a Deus, e o fim é o desejo de amá-lo.

 

3. O começo de todo bem é a razão que fundamenta a ação e a ação que fundamenta a razão. Por isso, nenhuma ação é boa sem a razão e nenhuma razão progride sem ação.

 

4. A ação do corpo é o jejum e as vigílias. A ação da boca é a salmodia, a prece e o silêncio mais precioso do que a palavra. A ação das mãos consiste em fazer seu trabalho sem autocomiseração. E a ação dos pés é de caminhar para o objetivo à primeira exortação.

 

5. Tudo isso é precedido pela compaixão e a verdade, cujos frutos são a humildade e o discernimento que, segundo os Padres, provém da humildade: sem ela, nem a compaixão nem a verdade verão seus próprios limites. Pois a ação que rejeita o jugo da razão pode errar aqui e ali, como um bezerro, em meio às vaidades. E a razão que recusa vestir os mantos preciosos da prática não mantém seu posto, mesmo que, de um modo ou de outro, mantenha as aparências.

 

6. A alma corajosa que, como uma mulher, mantém ao longo de toda sua vida acesas as duas lâmpadas da vida ativa e da vida contemplativa, esta cumpre com seu dever. Mas a alma que se abandona aos prazeres faz o contrário.

 

7. Para se libertar perfeitamente do vício não é suficiente o sofrimento voluntário: a alma também deve se deixar consumir pelo sofrimento involuntário. Se, como uma espada, ela não passa pelo fogo e pela água[3], ou seja, pelas penas voluntárias e involuntárias, ela não pode evitar curvar-se sob as adversidades que lhe sobrevêm.

 

8. Assim como as provas voluntárias têm três causas gerais, a saúde, a riqueza e a glória, as provas involuntárias têm três causas, que são a ruína, o ultraje e a doença. Estas coisas acontecem para edificar a uns e purificar a outros.

 

9. Á alma estão ligados o desejo e a tristeza, ao corpo estão ligados o prazer e a dor. A causa da dor é o prazer, pois é tentando evitar a penosa sensação de dor que corremos para o prazer. E a causa da tristeza é o desejo.

 

10. O homem virtuoso planta o bem em seu coração, mas o vaidoso o faz girar em sua cabeça. Quanto ao mal, aquele que se consagra à virtude o leva na superfície, mas quem ama o prazer o tem em profundidade.

 

11. A ação da alma consiste em alcançar a temperança que suscita a simplicidade, e a simplicidade que suscita a temperança.

 

12. A ação do intelecto consiste em chegar à prece na contemplação, e à contemplação na prece.

 

13. Quem tem aversão ao mal só o comete raramente, e de modo inadvertido. Mas quem se liga às suas causas é levado ao mal de modo frequente e deliberado.

 

14. Aqueles que não se arrependem de si mesmos não cessam de cometer faltas. Mas os que pecam contra sua vontade se arrependem plenamente e não se tornam alvo fácil, por causa do arrependimento.

 

15. Que os sentidos e a consciência estejam de acordo nas palavras que proferimos, para que a divina palavra de paz se encontre no meio delas sem ser confundida pelo que possa nelas haver de desconsiderado ou desmedido.

 

16. Não é bastante não prejudicar a alma em ato, para mantê-la pura em palavras, nem basta mantê-la pura em palavras para não manchá-la; pois o pecado é tríplice[4].

 

17. Você não poderá ver o rosto da virtude enquanto tiver prazer em observar o do vício. Mas este lhe parecerá detestável quando você houver banido o gosto pelas delícias desejadas e pela visão de suas formas.

 

18. É primeiro pelos pensamentos, não pelos atos, que os demônios combatem a alma. Pois os atos a combatem por si sós. A fonte dos atos é o ouvido e o olho; a dos pensamentos são o costume e os demônios.

 

19. A parte pecadora da alma é tríplice, pois ela peca em pensamentos, palavras e obras. Mas o bem da impecabilidade é sêxtuplo, pois ele guarda sem faltas os cinco sentidos e mais a palavra proferida. Quem não comete nisto nenhum erro é um homem perfeito, capaz de refrear igualmente as demais partes da alma[5].

 

20. A parte irracional da alma se divide em seis: os cinco sentidos e a palavra proferida. Esta palavra é mantida sem faltas se for impassível, ao mesmo tempo em que é guardado inseparavelmente dela aquele que é testado pelas paixões. Mas se ela própria for passional, ela molda em si mesma seu próprio vício.

 

21. Nem o corpo pode se purificar sem o jejum e as vigílias, nem a alma pode se purificar sem compaixão e sem verdade, nem o intelecto pode se purificar sem a intimidade e a contemplação de Deus. As conexões aqui são claríssimas.

 

22. Dentro do conjunto das virtudes que mencionei, a alma opõe às tentações um guarda imperturbável, que é a paciência. “É por sua paciência que vocês salvarão suas almas”, disse o Verbo. Se isto não acontecer, ela cairá sob as alavancas da lassidão, como uma cidade sem muralhas cai ante os gritos que vêm de longe.

 

23. Os que são sensatos em suas palavras nem sempre o são nos seus pensamentos. E os que são sensatos em seus pensamentos talvez não o sejam nos seus sentidos exteriores. Pois se todos somos tributários dos sentidos, nem todos pagam seu tributo da mesma maneira. Com efeito, por uma natural simplicidade, a maior parte não é capaz de honrar os sentidos naquilo que lhes é próprio, como os próprios sentidos o pedem.

 

24. O bom senso, que é indivisível por natureza, é repartido de maneira desigual. A um é dado antes, a outro menos, até que a virtude prática, que tem como companheiras de viagem as virtudes gerais, atinja o bem de quê cada um é capaz. Pois a maioria das pessoas é sensata na medida da insuficiência de sua vida prática.

 

25. Poucos homens prudentes podem ser encontrados, no que se refere a agir em conformidade com a natureza. Mas encontraremos muitos dispostos a fazer o que é contra a natureza. Com efeito, nas coisas submetidas ao temor, os que extirparam todo bom senso natural são pouco prudentes, mas o são muito nas coisas que ultrapassam a circunspecção, mesmo que por natureza elas não sejam louváveis.

 

26. O tempo e a circunspecção são os convivas do silêncio devotado à razão, e a verdade é seu festim. Quando estão presentes, no momento em que a alma se retira, o pai da mentira não encontra nela nada do que procura.

 

27. O homem verdadeiramente compassivo não é aquele que dá com gosto o supérfluo, mas o que abandona o necessário aos agressores.

 

28. Uns adquirem o imaterial pela riqueza material, observando as leis da compaixão. Outros são despossuídos do material pelo imaterial, quando tomam consciência do indefectível.

 

29. Todos gostam de ser ricos de bens. Mas para quem se enriqueceu com a riqueza de Deus, é doloroso não ter recebido a plena liberdade de se regozijar disto.

 

30. Por fora, a alma parece sã. É por dentro, na raiz dos sentidos, que se esconde normalmente a doença. Se, de fora, tal enfermidade implica absolutamente que sejam colhidas provas dela, e se, por dentro, uma saúde tal implica a renovação do intelecto, será insensato aquele que rejeitar as provas e que não tiver vergonha de permanecer sempre acamado pela enfermidade da insensibilidade.

 

31. Não se irrite contra quem o maltratou sem querer. Diante do remédio desagradável que ele lhe ministrou você pode se considerar infeliz, mas glorifique aquele que lhe prestou tal serviço cumprindo a economia de Deus.

 

32. Não recuse a doença como se ela fosse uma coisa temível, mas afaste-se dela usando remédios eficazes – os remédios do amor e das penas – se você quiser cuidar da saúde de sua alma.

 

33. Não fuja de quem lhe faz mal curando-o quando isto é necessário, mas vá até ele e ele lhe mostrará como é bom aquilo que ele aplica sobre os seus sentidos. Você comerá o doce alimento que dá a saúde quando tiver destruído o alimento que rejeitou por ser amargo.

 

34. Na mesma medida em que você se ressente das penas que lhe fazem mal, deve aceitar aquele que as inflige repreendendo você. Com efeito, ele está, em relação a você, na origem de uma purificação perfeita, sem a qual o intelecto não conseguirá penetrar no espaço puro da oração.

 

35. Quando você for repreendido, ou bem se cale, ou bem responda com doçura a quem o repreendeu. Se você é repreendido, você deve responder não para formular suas reivindicações, mas para restabelecer a verdade naquele que o repreendeu sem saber e que talvez tenha se enganado.

 

36. Quanto àquele que ofendeu alguém, se se arrepender antes de que o ofendido o cite na justiça, não receberá nenhuma das penas merecidas; e se se arrepender depois da citação, receberá metade da pena. Entretanto, aquele que nunca foi excluído da assembleia por ter ofendido alguém ganhará todas as cauções depositadas. Mas quem perdoar completamente a falta de outro acrescentará para si uma recompensa.

 

37. Nem o orgulhoso conhece seus defeitos, nem o humilde conhece suas qualidades. Uma loucura de perdição cobre o primeiro; mas uma loucura que agrada a Deus cobre o segundo.

 

38. O orgulhoso não quer ser comparado aos seus iguais no bem. Mas quando é comparado aos que o superam no mal, acha suportável sua inferioridade.

 

39. A vergonha firma a alma, mas o elogio a relaxa e a torna mais lenta em fazer o bem.

 

40. O fundamento da riqueza é o ouro, o fundamento da virtude é a humildade. Portanto, do mesmo modo como o que não tem ouro é pobre ainda que pareça rico aos olhos dos outros, também sem humildade quem combate não será nunca virtuoso.

 

41. Assim como um mercador sem ouro não é um verdadeiro mercador, por mais que seja dotado para os negócios, sem a humildade o asceta se verá impedido de alcançar as doçuras da virtude, ainda que confie totalmente em sua sabedoria.

 

42. Quem se abre para a humildade reabsorve o sentimento que tem de si mesmo. Mas quem não tem humildade exalta este sentimento: este homem não suporta voluntariamente ser contado entre os menores, e é por isso que sua inveja se manifesta em relação aos primeiros lugares[6].

 

43. Para quem combate é bom ter pensamentos que permaneçam antes daquilo que faz, e conduzir ações que sejam mais fortes que sua preguiça. Assim ele será um operário respeitado pelos homens e irrepreensível diante de Deus.

 

44. Quem teme ser visto como um estrangeiro no meio dos que estão diante de si no local das núpcias[7] deve, seja assumir retamente os mandamentos de Deus, seja colocar todo seu esforço sobre um único: a humildade.

 

45. Una a temperança à simplicidade, a verdade à humildade, e você será visto como um conviva da justiça, à mesa da qual todas as demais virtudes gostam de se reunir.

 

46. Sem a humildade, a verdade é cega. Pois então ela toma como guia a contradição, que tem que se apoiar sobre qualquer coisa, mas não encontra nada senão a fortaleza do ressentimento.

 

47. Uma conduta afável testemunha a beleza da virtude, e o equilíbrio dos membros do corpo testemunha uma alma em paz.

 

48. O primeiro bem consiste em não cair em nenhum erro. O segundo consiste em não esconder sua falta por vergonha, nem mergulhar nela, mas se humilhar, acusando a si próprio se for acusado, e aceitando a pena com alegria. Se não fizermos isto, nada permanecerá daquilo que oferecemos a Deus.

 

49. Além do sofrimento que enfrentamos voluntariamente, também é preciso acolher o sofrimento involuntário, ou seja, as penas e as enfermidades que provêm dos demônios. Quem não acolhe estes sofrimentos mas os recusa, é semelhante ao homem que quer comer seu pão não com sal, mas apenas com mel; ele não terá sempre o prazer como companheiro, mas antes terá como vizinho constante o desgosto.

 

50. Embora seja um mestre, parece revestido de uma roupa de escravo[8] aquele que lava com palavras divinas o manto esfarrapado do próximo ou que o remenda para que ele possa usar. Porém, que age assim deve tomar cuidado para não perder, por vanglória ou por não agir como um servidor, a recompensa e a honra que lhe é própria, a honra da liberdade.

 

51. Assim como a fé é o fundamento daquilo que se espera[9], a sabedoria é o fundamento da alma e a humildade o fundamento da virtude. Isto pode espantar: sem estes atributos, o perfeito em si é imperfeito.

 

52. Está dito: “O Senhor guardará sua entrada e sua saída[10]”, manifestamente pela temperança nos alimentos e nas palavras. Pois quem modera a entrada e a saída dos alimentos e das palavras foge da concupiscência dos olhos e acalma o ardor da convulsão. Ora, é nisto que deve se aplicar e trabalhar acima de tudo e de toda maneira aquele que conduz o combate. Pois são estas coisas que reconfortam a vida ativa e firmam a vida contemplativa.

 

53. Alguns são muito atentos à entrada dos alimentos, mas negligenciam a saída das palavras. Estes não sabem afastar a cólera de seus corações[11], nem a concupiscência de sua carne, como diz o Eclesiastes: é por meio destas coisas, normalmente, que o Espírito novo cria um coração puro.

 

54. Encontraremos a frugalidade nas refeições na qualidade inferior dos alimentos, e a retidão das palavras na qualidade maior do silêncio.

 

55. Consuma seus rins abstendo-se de alimentos, guarde seu coração moderando suas palavras, e assim você colocará a serviço do bem o desejo e o ardor.

 

56. O prazer do baixo ventre se perde nos ascetas quando o corpo perde sua vitalidade. Mas o prazer da língua permanece naquele que ainda não se desembaraçou do supérfluo. É preciso que você se dedique, agindo sobre a causa, a purificar o ultraje do efeito, a fim de não se revestir de vergonha se for pego estranho à virtude da temperança lá em baixo.

 

57. É preciso que o asceta saiba quando e com que alimentos nutrir seu corpo como se este fosse seu inimigo, quando consolá-lo como a um amigo e quando reconfortá-lo como a um enfermo, a fim de não oferecer por engano ao amigo o que cabe ao inimigo, nem ao inimigo o que é do amigo, nem fazer-lhes guerra no momento da tentação por haver escandalizado a uns e outros.

 

58. Quando aquele que se alimenta coloca o alimento antes do desfrute, a graça das lágrimas que penetram nele começa a consolá-lo e a fazê-lo esquecer das outras doçuras, como se estas doçuras fossem daqui por diante, sem comparação, engolidas pela própria doçura das lágrimas.

 

59. Naquele que vive com largueza as lágrimas são reabsorvidas. Mas elas se espalham em quem ama a via estreita[12].

 

60. Nem o pecador nem o justo escapam à aflição. Um, porque não está totalmente afastado do pecado; outro, porque ainda não alcançou a perfeição.

 

61. Dependem de nós as virtudes que estão ao nosso alcance: a prece e o silêncio. Não dependem de nós, mas em geral do estado do corpo, o jejum e a vigília. É preciso buscar o que está mais acessível àquele que combate.

 

 

62. A morada da alma é a paciência: ela aí reina. Mas seu trabalho é a humildade, que a alimenta.

 

63. Se você não suporta as penas, não será honrado com os louvores. Se você preferir a dor ao prazer, você evitará ser afligido.

 

64. Não se deixe prender pelas pequenas coisas e não será sujeitado pelas grandes. Pois não cometemos naturalmente as faltas maiores sem antes termos cometido as menores.

 

65. Se você tiver os olhos postos nos grandes inimigos, você será temido pelos pequenos. Mas se os menores o desdenharem, parecerá que você  sucumbiu diante dos grandes.

 

66.  Você não poderá alcançar as virtudes maiores, se não conquistar o cume das virtudes que estão ao seu alcance.

 

67. Naqueles em quem reinam a compaixão e a verdade, tudo agrada a Deus. Pois a verdade não julga ninguém sem a compaixão, e esta não ama os homens sem a verdade.

 

68. Se você unir a temperança à simplicidade, você estará em condições de compreender a beatitude do Reino.

 

69. Você não verá mais as paixões que o combatem se previamente não deixar baldia a terra em que elas vicejam.

 

70. Uns se dedicam a purificar somente a matéria do corpo. Outros se dedicam também a purificar a matéria da alma. Pois uns são atacados apenas pelos pecados da ação, enquanto outros o são pela paixão. Mas bem poucos enfrentam o pecado do desejo.

 

71. A matéria ruim do corpo é a emoção passional. A matéria ruim da alma é o desfrute passional. A matéria ruim do intelecto é o pendor passional. A primeira é simbolizada pelo tato; a segunda pelos demais sentidos; e a última é simbolizada pela disposição hostil.

 

72. O homem passional no seu desfrute é semelhante ao homem passional nas suas emoções. O homem passional nos seus pendores é semelhante ao homem passional nos seus desfrutes. Mas o impassível está distante de ambos.

 

73. O homem passional nas suas emoções é um homem cuja tendência ao pecado é mais forte do que a razão, mesmo que até então ele não tenha pecado exteriormente. O homem passional em seu desfrute é aquele em quem o pecado ativo domina a razão, mesmo que ele só experimente o pecado interiormente. O homem passional nos seus pendores é o que busca a liberdade mais do que a sujeição dos que permanecem no entremeio. O homem impassível será aquele que ignora a diferença que separa todos esses estádios.

 

74. A emoção passional é retirada da alma pelo jejum e a oração. O desfrute passional é retirado da alma pelas vigílias e o silêncio. O pendor passional é retirado da alma pela hesíquia e a atenção. Mas a impassibilidade nasce da lembrança de Deus.

 

75. Dos lábios da impassibilidade escorrem as palavras da vida eterna, como favos de mel[13]. Quem será considerado digno de unir estes lábios aos seus[14], de repousar em seus seios, de sentir o doce odor de suas vestes[15], ou seja, de cair sob o encantamento da lei das virtudes, da qual se diz que ultrapassa todos os perfumes do conhecimento sensível?

 

76. Muitos talvez tenham se despido das vestes do amor próprio. Poucos se despojaram das vestes do amor ao mundo. Mas somente os impassíveis se despojaram da veste da vanglória, que se diz ser a última.

 

77. Toda alma será despojada do corpo visível. Mas do corpo do pecado só será despojada a alma que tiver aproveitado pouco dos prazeres daqui de baixo.

 

78. Todos passarão visivelmente da vida à morte. Mas morrerão para o pecado[16] apenas os que tiverem aversão deliberada a ele.

 

79. Quem se verá despojado do pecado antes da morte comum do corpo? E quem conhecerá a si mesmo e saberá qual é sua própria natureza, antes do despojamento futuro?

 

 

A alma ferida pelo amor nupcial,

saberá a prece, aqui em baixo, uni-la ao esposo[17].

 

 

80. À alma dotada de razão, situada na fronteira entre a luz vista pelos sentidos e a luz vista pelo intelecto é dado bem ver, por meio de uma, as coisas do corpo e, por meio da outra, as coisas do Espírito. Mas uma vez que nela uma se obscurece e outra se aviva, por causa do hábito adquirido desde o começo, ela já não consegue tendes totalmente para as coisas divinas se não estiver mergulhada na oração com a luz vista pelo intelecto. Ela permanece necessariamente no intervalo que separa as trevas da luz, voltada para a luz por seu estado, e para as trevas pela imaginação.

 

81. O intelecto passional não pode entrar pela porta estreita da prece antes de ter renunciado aos cuidados de seu estado. Ocupada ao redor das moradas da prece, ele não deixará de se afligir.

 

82. Que a prece permaneça no intelecto, como um raio de sol. Sem a prece, as preocupações dos sentidos, desenvolvendo-se como nuvens sem água, privam o intelecto de sua própria luminosidade.

 

83. A força da oração está na fome, pela qual nos privamos de alimentos voluntariamente. A força da fome está em não ouvir nem ver nada do mundo sem uma extrema necessidade. Quem não se precaver contra estas coisas não conseguirá consolidar o edifício do jejum, e fará ruir com ele o edifício da oração.

 

84. Se o intelecto não se libera de todo sombreamento dos sentidos, ele não poderá se voltar para o alto nem conhecer sua própria dignidade.

 

85. O jejum é o símbolo do dia, por sua claridade, e a prece é o símbolo da noite, por sua escuridão. Quem caminhar por uma e outra destas duas vias alcançará a cidade que procura, de onde fugiram a dor, a aflição e os gemidos[18].

 

86. O trabalho espiritual se faz naturalmente independentemente das penas do corpo. Feliz daquele, portanto, que considera o trabalho imaterial melhor do que o trabalho material. É por meio deste trabalho que ele completa o que faltou à obra material, vivendo a vida de oração, que é oculta, mas que Deus vê.

 

87. O Apóstolo divino nos exorta a permanecer firmes na fé, a nos alegrarmos na esperança, a perseverar na prece[19], para que em nós persista o bem da alegria. Se é assim, aquele que não permanece firme não é fiel, e aquele que não se regozija não possui a boa esperança. Porque ele rejeitou a causa da alegria, que é a prece, por não ter perseverado nela.

 

88. Se o intelecto que desde o princípio viveu nos pensamentos do mundo se ligou completamente a eles, como não tornará sua a prece contínua? Com efeito, como se diz, onde se passa muito tempo, é ali que se desabrocha[20].

 

89. Assim como o intelecto depois de muito tempo separado de sua própria morada esquece o esplendor de lá, da mesma forma ele deve retornar por meio da oração, esquecendo, por sua vez, as coisas aqui de baixo.

 

90. Como uma criança deitada sobre o seio frio de sua mãe, assim se sentirá o intelecto que se deita sobre uma prece que não pode consolá-lo. Mas se for de outro modo, se a prece consolá-lo, ele será como uma criança que dorme prazerosamente nos braços de sua mãe.

 

91. É aí, diz-se, sobre o leito austero da vida virtuosa, que, como no leito de que fala o Cântico dos Cânticos, a esposa, a prece, poderá dizer àquele que a ama: “Eu lhe darei meus seios[21], se você se consagrar inteiramente a mim”.

 

92. Não consegue sentir afeição pela prece aquele que não renunciou a toda a matéria.

 

93. Quando for reza separe-se de tudo, salvo a vida e o sopro, se quiser estar a sós com o intelecto.

 

94. O testemunho de um intelecto amado por Deus é a prece do único nome divino, o testemunho de um pensamento sábio é a linguagem oportuna, o testemunho de uma sensibilidade livre é o gosto simples. É por meio destes três testemunhos, diz-se, que são reconfortadas as coisas da alma.

 

95. A natureza de quem ora deve ser doce e terna, como das crianças, a fim de que lhe seja possível se abrir docilmente, como elas fazem, ao desabrochar que a prece ordena. Portanto, não seja negligente, você que deseja se unir assim à oração.

 

96. Nem todos têm o mesmo objetivo quando oram. Um visa isto, outro aquilo. Um pede que seu coração esteja sempre em estado de prece, se for possível. Outro pede para ir além da oração. Outro pede para não ser interrompido por pensamentos enquanto ora. Mas todos pedem para ser guardados no bem e protegidos do mal.

 

97. Se é verdade que ninguém termina a oração sem um coração humilhado (pois que ora está quebrantado pela humildade), o homem que coloca sua confiança em outra coisa não ora com humildade.

 

98. Se orarmos considerando a viúva que insistiu na sua demanda diante do juiz iníquo[22], jamais nos desencorajaremos por tardarem os bens prometidos.

 

99. A oração não permanecerá em você se você se demorar nos pensamentos interiores e nas conversas exteriores. Ela se volta para aqueles que, por causa dela, se cortaram da maior parte das coisas.

 

100. Se as palavras da oração não penetrarem nas profundezas da alma, as lágrimas não poderão banhar as maçãs do rosto.

 

101. Para o agricultor, a colheita crescerá, ainda que ele não tenha sob seus olhos a semente que derramou sobre a terra. Mas para o monge, as lágrimas não brotarão, a menos que ele siga, sem se desviar do esforço, as palavras da oração.

 

102. A prece é a chave do Reino dos céus. Quem se liga a ela como se deve enxerga os bens que ela prepara para os que a amam. Mas quem não coloca sua confiança no Reino só terá olhos para as coisas presentes.

 

103. No momento da prece, o intelecto não poderá dizer a Deus: “Você rompeu os meus laços; eu lhe oferecerei um sacrifício de louvor[23]”, se, por desejar o melhor, não tiver rompido com a lassidão e a negligência, o sono prolongado e os festins, de onde provêm todas as derrotas.

 

104. Quem se perde em fantasias quando ora permanece fora do primeiro véu. Quem atingiu a prece única do nome divino penetrou no interior. Mas só é admitido ao Santo dos Santos[24] aquele que, com os pensamentos naturais em paz, considera aquilo que concede a outra paz, a que ultrapassa toda inteligência[25], e que é considerado digno de receber do alto uma revelação divina.

 

105. Quando, depois de se ter desligado das coisas exteriores, a alma se liga à prece, então, semelhante a uma chama que a envolve assim como quando o fogo envolve o ferro, ela se abrasa inteira. A alma permanece a mesma, mas já não podemos tocá-la, assim como não podemos tocar o ferro ao rubro pela ação do fogo.

 

106. Feliz o homem que nesta vida foi considerado digno de ser assim considerado, semelhante a uma estátua de argila por natureza, mas de fogo pela graça.

 

107. Para os que se engajam nesta via, a lei da oração é um mestre rigoroso. Mas para os que progrediram ela é como o amor, que arrasta para um festim suntuoso os que têm fome.

 

108. Quanto aos que se dedicam devidamente à ascese, a prece tanto os cobre como uma nuvem[26], deles afastando os pensamentos que queimam, tanto lhes abre as contemplações espirituais derramando sobre eles a fina chuva das lágrimas.

 

109. A doçura do prazer que sentimos quando ouvimos alguém tocar a cítara é e será sempre exterior. Mas se as palavras secretas que ela diz em espírito não produzem o mesmo som quando ela ora, a alma não se acha em estado de compunção. Pois é por “não saber o que pedir quando oramos, etc.[27]” que ora aquele que ora.


Do conhecimento

 

 

O intelecto recebe a luz da contemplação gnóstica

quando se eleva às alturas.

Mas se ele busca as razões

ele retorna às trevas, deslizando para a paixão.

 

 

 

1. É preciso que o gnóstico saiba: seu intelecto tanto é o país da origem dos pensamentos quanto o país dos raciocínios, quanto o país dos sentidos. E ele retorna ao primeiro país se encontrar primeiro os pensamentos que lhe vêm a propósito do que os que lhe vêm fora de propósito.

 

2. O intelecto que não permanece na origem dos pensamentos fica por inteiro nos raciocínios. Se permanecer nos raciocínios, não ficará na origem dos pensamentos. Se penetrar nos sentidos, ficará no meio de todas as coisas.

 

3. Por meio da origem dos pensamentos o intelecto se une ao inteligível. Por meio do raciocínio, a razão encontra o racional. E, por meio da imaginação, os sentidos encontram a vida prática.

 

4. O intelecto que se recolhe sobre si mesmo não contempla nem as coisas dos sentidos nem as coisas do raciocínio, mas os pensamentos nus e os raios da luz divina, de onde transbordam a paz e a alegria.

 

5. Uma é a inteligência da coisa, outra a inteligência em si, e outra ainda a que se refere aos sentidos. Existem aí a essência, o acidente e a diversidade do fundamento material.

 

6. O intelecto pode abrir numerosos caminhos: ele se mostra insaciável. É somente quando ele se engaja na via única da prece que, antes de alcançar o objetivo, ele se sente apertado: então ele suplica ao que partilha de seu caminho que o envie de volta ao ponto de onde saiu.

 

7. Se se deixar levar para longe daquilo que está no alto, o intelecto não conseguirá regressar para lá sem suscitar em si o perfeito desdém pelo que está em baixo, consagrando-se apenas às coisas divinas.

 

8. Se você não consegue fazer com que sua alma permaneça apenas com seus pensamentos, pelo menos obrigue seu corpo a permanecer na solidão para aí considerar continuamente sua miséria. É assim que, com o tempo e a piedade de Deus, você poderá retornar à dignidade primeira de sua origem nobre.

 

9. O monge ativo pode facilmente submeter o intelecto à oração, e o monge contemplativo pode facilmente submeter a oração ao intelecto. Um separa os sentidos das formas visíveis. Outro transporta sua alma para as razões ocultas nas formas. Um leva o intelecto a ignorar as razões dos corpos. Outro conduz o intelecto a compreender as razões dos incorpóreos. Ora, os incorpóreos são as razões dos corpos, suas naturezas próprias e suas essências.

 

10. Quando você tiver liberado seu intelecto dos prazeres do corpo, do dinheiro e da comida, então aquilo que você fizer será considerado por Deus como uma oferenda pura. Em retribuição, lhe será concedido abrir os olhos de seu coração e estudar com toda clareza as palavras que Deus inscreveu nele, as quais, pela doçura que transmitem, são consideradas pela boca de sua inteligência como favos de mel[28].

 

11. Você não poderá fazer com que seu intelecto esteja acima do desejo do corpo, do dinheiro e das comidas desnecessárias se você não conseguir fazê-lo penetrar no país da pureza, no país dos justos, onde a lembrança da morte e a lembrança de Deus escorrem e apagam do coração terrestre todos os levantes do desejo.

 

12. Nada é mais terrível do que o pensamento da morte e nada mais maravilhoso do que a lembrança de Deus. Um suscita uma tristeza salutar, a outra traz alegria. “Eu me lembrei de Deus, diz o Profeta, e me alegrei[29]”. E o sábio disse: “Lembre-se do seu fim e você não pecará mais[30]”. É impossível se regozijar com a lembrança de Deus sem ter antes tido a amarga experiência da morte.

 

13. Enquanto o intelecto não olhar de frente para a glória de Deus[31] a alma não poderá dizer com conhecimento de causa: “Eu me regozijarei no Senhor, exultarei na sua salvação[32]”. Pois o véu do amor próprio cobre seu coração, impedindo que lhe sejam revelados os fundamentos do universo, que são as razões das criaturas. E este véu não lhe será retirado sem as penas voluntárias e involuntárias.

 

14. Não foi após fugir do Egito, que é o pecado pela ação, nem depois de passar o mar Vermelho, que é a sujeição à natureza, mas depois de haver permanecido no deserto, nomeio dos efeitos e dos movimentos dos vícios, que o guia do povo de Israel pode ver a terra prometida[33], que é a impassibilidade, e enviar suas forças para olhar e observar.

 

15. Alguns, que permanecem no deserto, ou seja, na inércia das paixões, não conhecem os bens desta terra bem-aventurada senão por ter ouvido falar. Outros, depois de haver examinado estes bens, mantiveram-se apenas e simplesmente na consideração daquilo que viram. Outros enfim, que foram considerados dignos de entrar na terra prometida, foram premiados com o sentir plenamente as palavras que escorrem dela como leite e mel[34], vale dizer, as palavras da primeira e da segunda contemplação.

 

16. Aquele que ainda traz em si os movimentos naturais da carne ainda não pode se considerar crucificado com Cristo[35]. Nem foi enterrado com Cristo aquele que arrasta atrás de si as concupiscências da alma. Como poderão então tais homens ressuscitar com ele para levar a vida nova?

 

17. As três virtudes fundamentais da alma são o jejum, a oração e o silêncio. Aquele que pretende sair da oração deve buscar o repouso de uma contemplação natural. Quem pretende sair do silêncio deve buscar o repouso de uma conversação moral. E quem pretende sair do jejum deve buscar o repouso de um segundo alimento agradável.

 

18. Enquanto o intelecto está entretido com as coisas de Deus, ele salvaguarda a semelhança divina permanecendo bom e compassivo. Passando para as coisas dos sentidos, se descer oportuna e convenientemente, ele transmite sua experiência, adquire outra e retorna a si mesmo com renovadas forças. Mas se descer despropositadamente e sem necessidade, ele se verá como um general insensato, separado do grosso de suas tropas no decurso do combate.

 

19. O paraíso da impassibilidade oculto em nós é a imagem daquele que deve receber os justos. Porém, dos que não forem capazes de penetrar neste paraíso que trazemos em nós, nem todos serão excluídos do outro.

 

20. O sol sensível mantém seus raios no exterior de uma casa fechada. E o sol espiritual não consegue acariciar com suas doçuras a alma que o recebe sem manter os sentidos fechados às coisas sensíveis.

 

21. É gnóstico aquele que coloca a grandeza nas descidas de sua alma, e a humildade nas suas elevações.

 

22. A abelha que vai e vem pelas pradarias mostra de onde tirou seu mel. E a alma que vai e vem pela diversidade dos séculos daí tira a doçura que transmitirá aos seus pensamentos.

 

23. O cervo que come um serpente corre às fontes de água para extinguir o veneno. Mas a alma que foi ferida pelas flechas de Deus não cessa de aspirar pelo amor que a levará àquele que a feriu.

 

24. Os pensamentos nus brotam da vida solitária. Os pensamentos do mundo brotam na vida a dois. Mas quando a alma está dividida, os pensamentos se afastam. Somente as inteligências desprovidas de corpos se aproximam dela e lhe manifestam as razões da providência e do julgamento, como se revelassem os fundamentos da terra.

 

25. Na vida a dois, o homem e a mulher não têm naturalmente uma visão simples. Encontraremos esta visão no coração da vida solitária, na qual, em Jesus Cristo, pela semelhança, não mais encontraremos distinção entre homem e mulher.

 

26. Os pensamentos não são típicos nem da parte da alma desprovida de razão (pois não existem pensamentos naquilo que é desprovido de razão), nem da parte da alma dotada de inteligência (pois tampouco existem pensamentos entre os anjos). Eles são fruto do trabalho da razão. Servindo-se da imaginação como se fosse uma escada, eles se elevam dos sentidos ao intelecto para lhe relatar as impressões, e dessem do intelecto para os sentidos para lhes confiar as razões.

 

27. Como homens que saem de um abismo e procuram qualquer coisa em que se agarrar, assim são os maus pensamentos quando o vício se encontra em perigo, como um navio à deriva quando as lágrimas jorram.

 

28. Dependendo da qualidade fundamental da alma, os pensamentos que a cercam se reúnem, ou bem para atirá-la ao mar como piratas, ou bem para vir em seu auxílio, como remadores, quando ela está em perigo. Aqueles empurram o navio metendo-o no oceano dos pensamentos maléficos. Estes, escolhendo a costa mais próxima, conduzem o navio para praias aprazíveis.

 

29. Se a alma que deseja se desembaraçar do sétimo e último pensamento, o pensamento da vanglória, não se despoja antes dos seis pensamentos precedentes[36], ela não poderá revestir-se do oitavo, que vem depois dos demais, e do qual o Apóstolo disse ter o nome de “morada celeste[37]” e ao qual podem ser levados com seus gemidos aqueles que se desnudam assim para não mais se vestir com as coisas da matéria.

 

30. À prece perfeita se reportam naturalmente os pensamentos angélicos. À prece mediana se reportam os pensamentos espirituais. À prece elementar se reportam os pensamentos naturais.

 

31. Assim como a qualidade do grão se revela normalmente pela espiga, também a pureza da contemplação se revela pela oração. Uma, para dissuadir os pássaros que a bicam se reveste de barbelas como se fossem lanças. Outra, para suprimir as tentações, carrega consigo as meditações da sabedoria.

 

32. Aquilo que a ação deixa entrever da alma está coberto de prata como as asas das pombas. Mas o que a contemplação dá a compreender – vale dizer, a outra face – é semelhante ao ouro verde[38]. Pois a alma que não está na flor de sua beleza não é capaz de voar e pousar[39] onde se encontra a moradia dos que são felizes[40].

 

 

DA AÇÃO E DA CONTEMPLAÇÃO

 

 

Aqui está a pradaria coberta de frutos

da ação e da contemplação espirituais.

 

 

33. Outrora foi ordenado aos antigos para que levassem ao templo as primícias do moinho e da moenda[41]. Mas a nós é agora ordenado entregar a Deus as primícias da ação, a temperança e a verdade, e as primícias da virtude contemplativa, o amor e a oração. Para as primeiras, devemos deter os impulsos do desejo e do ardor irracionais. Para as últimas, devemos evitar os pensamentos vãos e as armadilhas nas quais podemos cair por causa do próximo.

 

34. O começo da prática é a temperança e a verdade. O meio é a castidade e a humildade. O fim é a paz dos pensamentos e a santificação dos corpos.

 

35. A ação não consiste simplesmente em fazer o bem, mas em fazê-lo como se deve, no tempo adequado e na medida certa.

 

36. A contemplação não consiste apenas em ver os corpos tais como são, mas também em ver suas razões e aquilo que elas mostram.

 

37. Não existe ação segura fora da contemplação, nem verdadeira contemplação sem ação. Pois é preciso que a ação tenha sua origem na razão, e que a contemplação seja fruto da ação, a fim de que numa o vício perca a força e na outra a virtude tenha o poder de se comprazer na bondade.

 

38. O objetivo dos monges ativos é a anulação das paixões. O fim dos monges gnósticos é a contemplação das virtudes.

 

39. Aquilo que a matéria representa para a forma, a ação é relativamente à contemplação. O que o olho é para o rosto, a contemplação é para a ação.

 

40. Na corrida para a virtude ativa muitos disputam, mas só um recebe o prêmio[42]: o que deseja chegar ao final por meio da contemplação.

 

41. Durante a prece, o monge ativo bebe a água da compunção. Mas o monge contemplativo se embriaga com a melhor das taças. Um ama a sabedoria nas coisas da natureza. O outro ignora a si próprio na oração.

 

42. Não é permitido ao monge ativo permanecer por muito tempo na contemplação espiritual. Pois tudo se passa como se ele recebesse a hospitalidade em casa de alguém, devendo se retirar secretamente o mais depressa possível.

 

43. Assim como os monges ativos passam orando pelas portas dos mandamentos de Deus, os contemplativos entram cantando nas mansões das virtudes. Uns rendem graças por ter sido libertos de seus bens, outros rendem graças por haver capturados os que os combatiam.

 

44. A força da contemplação deve se regrar pela força da prática. Senão, como um navio cujas velas não se harmonizam, ou bem não suportará o perigo que, por sua desproporção o farão desabalar sob a violência dos ventos, ou não suportará o peso dos ventos, por serem pequenas as velas para o tamanho do barco.

 

45. Considere que os pensamentos piedosos são os remadores do navio inteligível, e que as potências vitais da alma, o ardor e o desejo, a vontade e a resolução, são como os remos. O monge ativo sempre tem necessidade destes remos, mas não o contemplativo: pois, no momento da prece, depois de ter saudado todos os seres, ele coloca a si mesmo no leme do discernimento e passa toda a noite em contemplação, oferecendo seus louvores Àquele que dirige o universo. Talvez até, retomando um canto de amor, ele cante também à sua alma, enquanto observa os solavancos do mar e seus movimentos violentos, tão tomado de temor está diante dos juízos de Deus e das decisões de sua justiça.

 

46. Quem se divide com equilíbrio entre a ação e a contemplação não navega, em tudo e por tudo, só com os marinheiros no leme ou só com as velas inteligíveis, mas é com uns e outros que realiza a travessia com felicidade. Ele se regozija de trazer consigo as penas da ação para alcançar a medida da contemplação. E se regozija de ter em si as razões da perfeita contemplação para receber o reconforto da ação.

 

47. O monge contemplativo, no qual convergem a natureza e a vontade, navega sem dificuldade como se fosse levado por uma correnteza. Mas o monge ativo, encontrando um estado natural oposto à resolução, enfrenta uma grande tempestade de pensamentos e corre o risco de, sob tal peso, ser levado ao desespero, ou quase isto.

 

48. Se não for bem trabalhado, normalmente um campo não devolve ao semeador muitos grãos bons, Da mesma forma, quem se dedica à ação, se não busca-la atentamente e sem ostentação, não verá sua prece lhe trazer muitos bons frutos.

 

49. O intelecto que não cessa de polir o passo da prece é semelhante a uma terra que é muito percorrida. Esta será plana e aquele direito, para acolher, a segunda pés delicados e a primeira, preces puras.

 

50. Na ordem das coisas materiais, o intelecto tem o pensamento como auxiliar. Mas na ordem do imaterial, se ele não se remete a uma instância mais competente, ele terá em si um espinho para feri-lo[43].

 

51. O monge ativo tem sobre seu coração, durante a prece, um véu – o conhecimento das coisas sensíveis – que não pode ser retirado pela força das coisas. Somente o contemplativo, por escapar à lei da natureza, pode ver em parte a glória de Deus com o rosto descoberto[44].

 

52. A prece unida à contemplação espiritual é a terra prometida onde corre, como o leite e o mel[45], o conhecimento das palavras de Deus sobre a providência e o juízo. A prece misturada à contemplação natural é o Egito, no qual a lembrança das concupiscências da abundância vem perturbar os que oram. A prece simples é o maná no deserto[46], que, por sua própria simplicidade, interdita aos que não sabem se conter os bens que procuram em seu desejo de coisas prometidas, e dá aos que se mantém com este alimento frugal o gosto durável das coisas do alto.

 

53. A ação unida à contemplação será considerada como um corpo unido ao espírito que o dirige. Mas a ação sem a contemplação será considerada como uma carne unida ao espírito do arbitrário.

 

54. Os sentidos são o átrio da alma dotada de razão. A reflexão é seu templo. O intelecto, o grão-sacerdote. No átrio permanece a inteligência atravessada pelos pensamentos intempestivos; no templo, entra a inteligência atravessada pelos pensamentos justos. Mas nenhum desses pensamentos atravessa a inteligência considerada digna de penetrar no santuário divino.

 

55. São as lamentações, as auto-recriminações e os arrependimentos que encontramos na morada[47] da alma ativa, por causa de seu sofrimento. Mas é a voz do regozijo e da gratidão[48] que ouvimos na morada da alma contemplativa, por causa do seu conhecimento.

 

56. O monge ativo deseja morrer através de suas penas e nascer com Cristo[49]. Mas o contemplativo prefere permanecer na carne, pela alegria que ele recebe da prece e pelo bem que ele pode fazer a seu próximo.

 

57. Entre os mais cultos, a contemplação precede a ação. Entre os mais incultos a ação precede a contemplação. Mas ambas as vias chegam ao mesmo final feliz. Entretanto, este fim se revelará mais depressa para aqueles em quem a contemplação precede a ação.

 

58. A contemplação dos inteligíveis é o paraíso. O monge gnóstico aí penetra como se fosse sua casa. Quanto ao monge ativo, ele se parece mais como um passante que deseja se debruçar para o interior da casa, mas que é impedido pela grade que lhe impõe sua estatura espiritual.

 

59. As paixões do corpo se parecem com feras, e as paixões da alma se parecem com pássaros. O monge ativo impede as feras de entrar em sua vinha, mas não consegue impedir os pássaros a menos que acesse a contemplação espiritual. E ainda deve prestar uma atenção extrema à guarda do coração.

 

60. O monge ativo não é capaz de ir além de uma bela aparência moral se, a exemplo do patriarca Abrahão[50], não abandonar a lei natural como se saísse de sua própria terra, e se não deixar, como a seus parentes, a vida ligada à sua idade e ao seu estado. É assim que ele receberá, como um selo, ser desembaraçado do prazer que encontramos que engendramos todo o tempo e por cuja causa o véu que nos envolve desde o nascimento não permite que nos seja dada a liberdade total.

 

61. Como um jovem cavalo que na primavera não suporta permanecer no estábulo e aí comer do que lhe é dado, o intelecto que se alista conseguirá perseverar por pouco tempo sobre a via estreita da prece, pois, como o cavalo jovem, ele busca mais o que lhe é agradável, saindo para o campo da contemplação natural tal como o encontra na salmodia e na leitura.

 

62. Assim como a virtude ativa cinge os rins aplicando as potências da vida ao jejum e às vigílias, a virtude contemplativa mantém as lâmpadas acesas[51] aplicando as potências do conhecimento ao silêncio e à prece. Um, por meio do jejum e das vigílias, tem a reflexão por pedagogo. Outro, pelo silêncio e a prece, tem a razão interior para leva-lo ao Esposo.

 

63. Um intelecto imperfeito não é capaz de penetrar na vinha abundante da oração. Como um pobre que esmola, ele mal conseguirá acessar os simples ecos dos salmos.

 

64. Assim como nem todos os que são admitidos à audiência do rei são convidados para o banquete, nem todos os que alcançam a bonança da prece irão, a nosso ver, até a contemplação cuja via ela abre.

 

65. O freio do ardor é o silêncio oportuno. O freio do desejo desregrado é a alimentação comedida. E o freio da razão fogosa é a prece do nome único de Deus.

 

66. Um mergulha no abismo das águas profundas para nele pescar a pérola sensível, outro mergulha no abismo do conhecimento para aí pescar a pérola inteligível[52]. Mas se não se despojarem, um de suas vestes, outros de seus sentidos, nenhum obterá o que deseja.

 

67. O intelecto que permanece no coração de seus pensamentos enquanto ora é como o esposo que conversa com a esposa na câmara nupcial. Mas o intelecto que não consente voltar-se para si permanecerá fora, gemendo e chorando: “Quem me levará a uma cidade fortificada? Quem me conduzirá[53], quando eu oro, a não mais contemplar a vaidade e as loucuras passageiras?”.

 

68. Assim como a comida sem sal é avaliada pela garganta, também o será pelo intelecto a oração cumprida sem compunção.

 

69. A alma que busca a oração é semelhante à mulher presa das dores do parto. Mas a alma que alcançou a oração se parece com a mulher que deu á luz e que está cheia de alegria à vista de sua criança.

 

70. Antigamente, o Amorreu que habitava a montanha veio atacar os que tentavam forçar a passagem[54]. Hoje, o esquecimento pernicioso expulsa os que, sem ter atingido a pureza, tentam se elevar até a mais alta oração, na simplicidade.

 

71. Os demônios têm naturalmente uma grande aversão à prece pura. O que eles mais temem não é o número de salmos (assim como os inimigos exteriores não temem o exército em marcha), mas o acordo dos três: da intelecto com a razão e da razão com os sentidos.

 

72. Aos olhos dos que oram a prece simples será reconfortante como pão, a prece acompanhada de alguma meditação nutrirá como o azeite. A prece desembaraçada de toda forma terá o bom aroma do vinho: os que dele beberem conhecerão o êxtase sem jamais ficar saciados.

 

73. Diz-se que o asno selvagem se ri das cidades superpovoadas[55] e que o unicórnio não pode ser agarrado por ninguém. Também o intelecto, quando domina os pensamentos naturais e os pensamentos contra a natureza se ri dos pensamentos vãos quando ora, e não fica sob o poder de nenhuma das coisas submetidas aos sentidos.

 

74. Quem brande um bastão para afugentar cachorros os acirra contra si. O mesmo acontece com quem expulsa os demônios pela prece pura.

 

75. Quem conduz o combate deve reduzir os sentidos ao alimento mais simples e reduzir seu intelecto à prece do nome único de Deus. Assim desembaraçado das paixões ele alcançará a prece até ser conduzido ao Senhor.

 

76. Quando oram, os que mergulham no prazer e que, por isso, vivem no pântano, veem seus pensamentos se dispersar em todas as direções como sapos. Os que têm as paixões mais dominadas veem suas contemplações diversas se alegrar e responder como rouxinóis que pulam de galho em galho. Mas quando os impassíveis oram eles unem o silêncio a uma grande calma dos pensamentos e das reflexões.

 

77. Antigamente Maria, a irmã de Moisés, vendo a queda dos inimigos, tomou o tamborim e entoou para os cantores o cântico da vitória[56]. Hoje, porém, para celebrar a alma que venceu as paixões, o amor, a maior das virtudes, se levanta e canta acompanhando-se da cítara na forma de uma contemplação – esta cítara que se tocava antes para apreciar uma beleza supérflua – e não cessa de louvar a Deus com as virtudes que a rodeiam em regozijo.

 

78. Quando, pela perseverança na prece, as palavras do salmo descem ao coração do que ora, então, semelhante à boa terra, o coração passa a carregar consigo, como rosas, a contemplação dos incorpóreos, como lírios o flamejamento dos corpos, e como violetas a diversidade e o difícil discernimento dos juízos de Deus.

 

79. A chama ligada à matéria carrega consigo a luz. Mas a alma desembaraçada da matéria carrega em si a Deus. Uma é levada a se consumir naturalmente; a outra é levada até seu cumprimento no amor divino.

 

80. A alma que renunciou perfeitamente a si mesma e que se elevou totalmente voltada para a prece, já não desce mais para baixo quando quer, porque se coloca no cimo da criação. Mas ela descerá quando achar justo Aquele que, com seus pesos e suas medidas, dirige todas as nossas vidas.

 

81. Quando a acídia se afasta da alma e a malícia é expulsa da reflexão, então o intelecto nu, devotado à simplicidade e à vida despojada, sem precisar de nenhum véu que esconda a vergonha, canta assim a Deus um canto novo. E quando, com alegria, ela entoa este canto ela rende graças celebrando com ele as primícias da vida futura.

 

82. Quando a alma orante começa a se voltar para a vida mais divina, então, como a esposa do Cântico, ela chama por suas companheiras: “Meu bem-amado passou a mão pelo vão da porta e minhas entranhas estremeceram[57]”.

 

83. Quando volta da guerra, o soldado se desembaraça do pesa de suas armas. Também o monge ativo se desembaraça dos pensamentos quando alcança a contemplação. Pois nem o primeiro tem necessidade de suas armas quando não está na guerra, nem o outro precisa dos pensamentos se não dá espaço ao que está submetido aos sentidos.

 

84. Os monges ativos consideram os corpos tais como eles aparecem em sua situação. Os monges contemplativos os consideram tais como eles são em sua natureza. Somente os monges gnósticos veem as razões de uns e de outros.

 

85. Nas razões dos corpos se revelam os incorpóreos, e nos incorpóreos se revela a razão mais alta que o ser, para a qual toda alma fervorosa se apressa em correr.

 

86. As razões dos incorpóreos são, como o esqueleto, recobertas pelo sensível. Ninguém que não tenha se desembaraçado do pendor passional pelo sensível é capaz de vê-las.

 

87. O soldado que terminou a guerra depõe as suas armas. Da mesma forma, o contemplativo que se desembaraçou de tudo para se dirigir ao Senhor depõe seus pensamentos.

 

88. O general que não toma o botim da guerra se desencoraja. Também se desencoraja o monge ativo que, na oração, não alcança a contemplação espiritual.

 

89. O cervo mordido por uma fera corre para as fontes corporais das águas. A alma ferida pela flecha dulcíssima da prece corre para a luz dos incorpóreos.

 

90. Nem o olho corporal pode ver o grão de trigo, nem o intelecto ativo pode ver sua própria natureza, se o grão de trigo não for debulhado de sua casca e se o intelecto não for despojado das relações que o recobrem.

 

91. As estrelas se escondem quando o sol se levanta. Os pensamentos se dissipam quando o intelecto retorna à sua própria forma.

 

92. Ao final da ascese, as contemplações espirituais espalhadas no intelecto, como raios de sol que partem do horizonte parecem se derramar dele como de sua morada, que elas cercam com sua pureza.

 

93. Quando, pelas necessidades da natureza, o intelecto contemplativo é enviado do céu, ele pode pronunciar as mesmas palavras daquele que disse: o que há de mais maravilhoso do que a beleza de Deus? Que pensamento é mais belo do que o da magnificência de Deus? E que desejo é tão violento e insuportável como o desejo que, desde Deus, passa para a alma purificada de todo vício, quando, no estado em que ela se encontra, ela diz: “Estou ferida pelo amor![58]”?

 

94. Dizer: “Meu coração está aquecido dentro de mim e em minha meditação um fogo me abrasará[59]” é típico de quem não se cansa de seguir a Deus na oração, pois este homem não deseja contemplar outra coisa por todo o dia.

 

95. Depois de haver rejeitado o mal, diga a alma ativa, como a esposa do Cântico dos Cânticos se dirigindo aos demônios malignos e aos pensamentos perversos que a constrangem a olhar novamente para as vaidades e as loucuras enganadoras: “Eu despi meu manto, como o vestirei de novo? Eu lavei meus pés, como irei sujá-los novamente?[60]”.

 

96. Somente uma alma bem-amada por Deus pode ousar dizer: “Responda-me, bom pastor, aonde você leva a pastar suas ovelhas e onde repousa os cordeiros ao meio-dia, para que eu os siga e não seja mais como uma errante em meio aos rebanhos dos seus companheiros?[61]”.

 

97. Quando a alma ativa tenta descobrir a razão da oração e não a encontra, ela clama, como a esposa do Cântico dos Cânticos: “Sobre meu leito, ao longo das noites, eu busquei aquele a quem amo. Eu o busquei e não o encontrei. Eu o chamei e ele não me escutou. Eu me levantarei e chamarei, sofrendo a cada dia, darei a volta à cidade pelas ruas e pelas praças, buscando àquele a quem amo[62]”. Talvez eu encontre aquele que habita no coração deste universo e talvez então, fora do mundo, eu me saciarei com a visão de sua glória[63].

 

98. Quando, pela alegria da oração, a alma começa a não ser mais do que lágrimas, então, como a esposa a seu esposo, ela clama abertamente: “Que meu bem-amado desça ao meu jardim[64], e que ele prova da consolação de minhas lágrimas, quais frutos, pela qual eu tanto penei”.

 

99. Quando, diante da grandeza das criaturas, a alma ativa começa a admirar o Criador e a se entregar às delícias do prazer que elas lhe dão, ela também clama maravilhada: “Porque você se adornou de beleza, meu esposo, paraíso de seu Pai? Flor do campo e cedro qual cedros do Líbano, eu desejei me assentar sob sua sombra, e seu fruto é doce em minha boca[65]”.

 

100. Se aquele que recebe reis em sua casa atrai os olhares, é admirado e coberto de alegria, quanto mais a alma que, purificada, recebe o Rei dos reis[66], conforme a promessa que não mente jamais. Entretanto, esta alma deve estar atenta para guardar a si mesma, jogando fora tudo o que possa perturbar o repouso do Rei e trazendo a ele tudo o que possa agradá-lo.

 

101. Quem aguarda para ser convocado no dia seguinte à presença do rei, de que cuidará e com que outra coisa se preocupará, senão com que possa agradá-lo? A alma que é assim sóbria vigilante não comparecerá ao tribunal do outro mundo sem estar preparada.

 

102. Bem-aventurada a alma que, aguardando o dia da vinda de seu Senhor, considera como nada as penas do dia e da noite, pensando que ele virá em seguida, na madrugada.

 

103. Deus vê todos os seres. E veem a Deus aqueles que mais nada veem quando oram. Os que veem a Deus são também ouvidos por ele. Mas os que não são ouvidos não o veem. Bem-aventurado aquele que crê ser visto por Deus, pois ele não perderá o pé[67] a menos que assim o queira Deus.

 

104. Os bens do Reino que está dentro de nós[68], estes bens que os olhos ofuscados pela beleza não veem, que os ouvidos que amam as honrarias não escutam e que não chegam ao coração privado do Espírito Santo[69], são as garantias dos bens que Deus concederá aos justos no Reino por vir. Quem não faz suas delícias dos bens que estão dentro de nós, que são os frutos do Espírito[70], tampouco usufruirá dos bens do Reino por vir.

 

105. Os pensamentos dos monges ativos são semelhantes aos cervos. Estes tanto sobem às montanhas por medo dos caçadores como descem às ravinas para buscar o alimento que ali se encontra. Assim são os pensamentos dos monges ativos: eles não podem permanecer continuamente na contemplação espiritual por causa de sua insuficiência, mas também não podem permanecer sempre na contemplação natural, porque não buscam o repouso o tempo todo. Quanto aos pensamentos dos monges contemplativos, eles estão acima das buscas que não tocam senão a terra.

 

106. O orvalho quando cai embriaga os sulcos da terra. Mas a alma em prece secreta gemidos molhados de lágrimas que exsudam do coração.

 

107. Ninguém será capaz de contemplar a Divindade concebida na Trindade se não tiver se elevado acima da dualidade da matéria, e inclusive da unidade que lhe é próxima. Nem se elevará acima desta unidade se não fizer de seu próprio intelecto uma solidão em meio aos pensamentos.

 

108. É mais fácil deter o curso de um rio para que ele não corra para sua foz, do que deter o impulso do intelecto para que ele não se disperse nas coisas visíveis, e conduzi-lo à oração contra sua vontade, para aquilo que está acima de nós e nos é aparentado, mesmo que a elevação vá ao encontro da natureza e a dispersão vá contra a natureza.

 

109. Os que purificam seu intelecto conduzindo-o para além e para o coração do visível, enchem-se de tal maravilhamento e são cumulados de tamanha alegria que nada do que é terrestre pode alcançá-lo ainda que tudo o que há de mais desejável aqui em baixo se derrame sobre ele.

 

110. O simples enunciado das leis da natureza basta para causar um grande maravilhamento. Mas quando as compreendemos, descobrimos nelas pradarias cobertas de flores que, como um néctar celeste, espalham de suas flores puras a doçura do festim espiritual.

 

111. Nas pradarias, dentre as flores úmidas de orvalho, as abelhas rodeiam com seu voo a rainha do enxame. Mas as potências intelectuais que, como sua guarda pessoal, cercam a alma em contínuo estado de compunção, a ajudam a encontrar o que ela deseja.

 

112. No mundo visível, o homem aparece como outro mundo. No mundo inteligível, o pensamento do céu, da terra e dos seres intermediários, exprime, com efeito, um e outro. O pensamento é o intérprete do intelecto e dos sentidos. Sem eles, os dois mundos permaneceriam surdos.

 

113. O prisioneiro libertado depois de muito tempo preso não sai da cadeia com tanta alegria como o intelecto que, liberto de seus pendores naturais, vai para as coisas do céu como se fossem seu próprio bem, com céleres pés.

 

114. Quem não ora com atenção, mas se dispersa, considera os salmos como primitivos. Mas, para o salmo, primitivo é ele. E os demônios consideram tolos a ambos.

 

115. Existe uma diferença entre aqueles para os quais o mundo está crucificado e aqueles que são crucificados ao mundo[71]. Para uns, os pregos são os jejuns e as vigílias. Para os outros, a pobreza e a abjeção. Mas sem a pobreza e a abjeção, perde-se tempo jejuando e vigiando.

 

116. Ninguém pode ter a prece pura em si se for dominado pelo amor ao luxo e às honrarias. Pois os pendores naturais e os pensamentos vaidosos se enrolam ao redor dele como uma cadeia e retêm o intelecto que, como um pássaro preso, tenta voar no momento da oração.

 

117. É impossível que o intelecto esteja em paz no momento da oração se não estiver em si e afeiçoado à temperança e à caridade. Com efeito, a temperança luta por dissipar a inimizade que tem o corpo pela alma, e a caridade se esforça para dissipar pelo amor de Deus a inimizade que nos opõe ao próximo. A partir daí, a paz que ultrapassa todo entendimento[72] vem habitar no intelecto e promete fazer sua morada nele, que se encontra assim pacificado.

 

118. Quem luta para entrar no Reino de Deus[73] deve tornar superabundantes de bem suas obras de justiça: na compaixão, dando em sua indigência, nas penas que sofre pela paz e respondendo ao Senhor com sua paciência.

 

119. Nem o que é sem virtudes por sua negligência, nem o que se imagina cheio de virtudes por sua presunção, chegarão ao abrigo do porto da impassibilidade. Com efeito, nem um nem outro desfrutaram dos bens concedidos pela justiça, que para eles seria um intermediário entre a falta e o excesso.

 

120. Se a terra não devolver ao semeador muitas vezes cada semente, fazendo-a render o tanto ou mais, ela não o enriquecerá. Da mesma forma, se o ardor que dedica a Deus não for mais forte do que sua intenção, o monge ativo não o poderá tornar justo.

 

121. Nem todos os que não amam o próximo o odeiam, nem todos que não o odeiam amam-no. Uma coisa é se orgulhar de seu progresso, outra é não tornar isto um obstáculo ao progresso. É aqui que encontramos a falsidade em seu mais alto grau: não apenas ser ferido pela eminência do próximo, mas ainda caluniar o bem que existe nele, como se não existisse.

 

122. Umas são as paixões do corpo, outras as da alma. Umas são as que estão de acordo com a natureza, outras as que são contra a natureza. Quem repele umas sem se prevenir contra as outras se parece com alguém que, para se defender dos animais selvagens, ergue uma paliçada alta e bem escondida, mas se felicita de ver os pássaros que vêm devorar as vinhas da razão, que permanecem totalmente expostas.

123. A alma primeiro cria uma representação do mal na imaginação, depois o conduz ao desejo, depois para o prazer ou a tristeza, enfim para os sentidos e, depois dos sentidos, direta ou indiretamente, ela o toca, Em tudo isso os pensamentos se encadeiam, exceto o primeiro movimento: se você não o receber, todo o mal que se seguiria fica sem efeito.

 

124. Os que se aproximam da impassibilidade são perturbados apenas pelas imaginações. Os que moderam suas paixões são perturbados pelos desejos. Os que fazem mau uso do que é necessário e se afligem com isto trazem o mal nos seus sentidos. Enfim, abraçam o mal aqueles que se habituam a ele e já não se afligem.

 

125. O prazer está situado em todos os membros do corpo, mas não parece perturbar a todos da mesma maneira. Em alguns ele afeta mais a parte da alma ligada ao desejo, em outros ele afeta o ardor, em outros ainda a razão. Ele os afeta pela gula, pelo enfurecimento e pela malícia, que são as causas de todas as paixões ímpias.

 

126. É preciso que os sentidos se abram como as portas de uma cidade. Mas quando os sentidos se abrem àquilo de que não temos necessidade, também é preciso não deixar entrar ao mesmo tempo as nações que desejam a guerra e que vêm provocar uma batalha.

 

127. O prazer é a mãe da concupiscência. O enfurecer-se é a mãe da cólera. A malícia é a mãe da inveja. Quem não combate as causas iniciais não conseguirá ficar em paz com as últimas consequências. E quem transgride os mandamentos não consegue penetrar no porto onde as paixões são moderadas.

 

128. Os que afastam as sugestões não permitem aos pensamentos penetrar como feras selvagens no interior das vinhas da razão, levando aí a ruína[74]. Os que os acolhem mas não têm prazer nisto, deixam-nas entrar na vinha mas em tocar em nada. Mas os que têm prazer em se ligar às paixões por intermédio dos pensamentos, sem chegar ao consentimento, se parecem com alguém que deixa que o javali entre no campo e no interior do cercado[75] sem permitir que este avance nas parreiras, apenas para descobrir que o animal é mais forte do que ele, para então consentir nas paixões.

 

129. Quem precisa sempre vigiar os muros da temperança ainda não atingiu a simplicidade. Pois não é o perfeito, como dissemos, que se dedica à temperança, mas o que ainda combate. Este se parece com quem possui um campo ou uma vinha não em meio a outros campos e vinhas, mas num lugar afastado. Por isso esta vinha ou este campo têm que ser guardados, com sobriedade e vigilância. Ninguém atinge a vinha do que alcançou a simplicidade: ele é como um rei ou um príncipe temido, que exerce o poder e cuja simples menção do nome faz tremer de medo os ladrões e os passantes tentados a atacá-lo.

 

130. Muitos sobem à cruz por meio dos sofrimentos da vida dura, mas poucos aceitam os pregos. Com efeito, muitos se submetem às penas e às aflições que escolheram. Mas às que lhes acontece sem que tenham buscado só se submetem aqueles que morreram perfeitamente para este mundo e seus confortos.

 

131. Muitos se despojaram de todas as túnicas de pele[76]. Mas da última túnica, a da vanglória, só se despem os que se tomaram de aversão pela mãe dela: a autossuficiência.

 

132. Quem recebe os louvores dos homens e as comodidades do corpo e as recusa, este, despojado da última túnica – a da vanglória – é a partir daí considerado digno de ser revestido do esplendor da moradia que buscou através de tantos gemidos: a morada do céu[77].

 

133. Uma coisa é a energia, outra a operação. Uma indica o pecado cumprido, outra representa apenas o regozijo suscitado internamente, mas não externamente. Da mesma forma, os que não querem se afastar de sua própria terra pagam em tributo aos seus opressores aquilo que lhes é mais caro.

 

134. Quando o sentido do paladar reina sobre os prazeres, é impossível que os demais sentidos não o sigam, mesmo que o baixo ventre dos mais frios pareça ter se acalmado, como entre os mais velhos que, por esgotamento, não fervem mais. Mas não é por não engravidar que uma mulher estéril que comete adultério será considerada casta. Diremos que é casto o homem a quem a paixão não queima por dentro e que não é seduzido pelo olhar.

 

135. É nos alimentos, nas formas e nas vozes que o desejo da alma se revela tal como é. Que estas coisas seduzam ou não, é por meio delas que se revela pelo conhecimento, pela vista ou pelo ouvido, seja quem delas usa, seja quem delas abusa, seja quem permanece entre o uso e o abuso.

 

136. Os pensamentos que não são guiados pelo  temor se verão confundidos como ovelhas sem pastor[78]. Mas se o temor os empurra ou os precede, os pensamentos se manterão em ordem, como no interior de um aprisco onde tudo está organizado.

 

137. O temor é filho da fé. É ele quem leva a pastar os mandamentos. Quem não tem a fé dentro de si, a mãe do temor, não será julgado digno de ser considerado como uma ovelha do rebanho do Senhor.

 

138. Alguns não têm em si senão o começo dos bens, outros chegaram até a metade, outros foram até o fim. Sem chegar ao fim, somos semelhantes a um simples soldado ou a um oficial que não recebeu seu soldo. É por isso que um não faz mais do que proteger sua casa contra os que a ameaçam, e outro não tem o posto que lhe caiba, aos olhos dos que vai combater.

 

139. Os que nos convidam, imperfeitos que somos, a partilhar com eles dos prazeres da boca, fazem como quem nos empurra a que caiamos doentes de enfermidades de que já nos curamos, ou que nos arranha uma coceira pelo prazer, ou que nos faz comer algo que aumentará nossa febre, ou que nos incita a fechar nossa vinha deixando penetrar nela o amor à carne como um javali selvagem[79] que irá devorar nossos bons pensamentos como parreiras. Não devemos escutá-los nem nos deixar dobrar pelas bajulações intempestivas, quer venham dos homens ou das paixões. Antes devemos consolidar os muros por meio da temperança, até que os animais selvagens, as paixões da carne, cessem de uivar, e que os pensamentos vãos deixem de descer como pássaros para devastar a vinha, nossa alma, na qual floresce a vida contemplativa em Jesus Cristo nosso Senhor. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.



[1] Salmo 25 (26): 2.
[2] Salmo 17 (18): 36.
[3] Cf. Salmo 65 (66): 12.
[4] Ver infra no. 19.
[5] Cf. Tiago 3: 2.
[6] Cf. Lucas 14: 7.
[7] Cf. Mateus 12: 12.
[8] Cf. Filipenses 2: 7.
[9] Cf. Hebreus 11: 1.
[10] Salmo 120 (121): 8.
[11] Cf. Eclesiástico 11: 10.
[12] Cf. Mateus 7: 13.
[13] Cf. Cântico dos Cânticos 4: 11.
[14] Cf. Cântico dos Cânticos 1: 13.
[15] Cf. Cântico dos Cânticos 4: 10-11.
[16]  Cf. Romanos 6: 11.
[17] Cf. Cântico dos Cânticos 2: 5.
[18] Cf. Isaías 35: 10.
[19] Cf. Romanos 12: 12.
[20] Cf. Máximo o Confessor, Sobre o amor III, 71.
[21] Cântico dos Cânticos 7: 13.
[22] Cf. Lucas 18: 2-5.
[23] Salmo 115 (116): 7-8.
[24] Cf. Hebreus 9: 6-7.
[25] Cf. Filipenses 4: 7.
[26] Cf. Êxodo 13: 21.
[27] Romanos 8: 25.
[28] Salmo 18 (19): 11; 118 (119): 103.
[29] Salmo 76 (77): 4 LXX
[30] Eclesiástico 7: 36.
[31] Cf. II Coríntios 3: 18
[32].Salmo 34 (35): 9.
[33] Cf. Josué 2: 1-3.
[34] Cf. Êxodo 3: 8.
[35] Cf. Gálatas 2: 20.
[36] Os oito pensamentos de malícia, definidos e classificados por Evagro, são: a gula, a prostituição, o amor ao dinheiro, a cólera, a tristeza, a acídia, a vanglória e o orgulho. Cf. Evagro, Sobre os pensamentos; Cassiano, Sobre os oito pensamentos de malícia.
[37] Cf. II Coríntios 5: 2-4.
[38] Cf. Salmo 67 (68): 14.
[39] Cf. Salmo 54 (55): 7.
[40] Cf. Salmo 86 (87): 7.
[41] Cf. Êxodo 22: 28.
[42] Cf. I Coríntios 9: 24.
[43] Cf. II Coríntios 12: 7.
[44] Cf. II Coríntios 3: 18.
[45] Cf. Êxodo 3: 6.
[46] Cf. Números 11: 7.
[47] Cf. Provérbios 23: 29.
[48] Cf. Salmo 41 (42): 5.
[49] Cf. Filipenses 1: 23.
[50] Cf. Gênesis 12: 1.
[51] Cf. Lucas 12: 35; Efésios 6: 14.
[52] Cf. Mateus 13: 46.
[53] Salmo 59 (60) 11.
[54] Cf. Deuteronômio 1: 44.
[55] Cf. Jó 39: 7.
[56] Cf. Êxodo 15: 20-21.
[57] Cântico dos Cânticos 5: 4.
[58] Cântico dos Cânticos 2: 5. Cf. São Basílio, Grande Regra 2.
[59] Salmo 38 (39): 4.
[60] Cântico dos Cânticos 5: 3.
[61] Cântico dos Cânticos 1: 7.
[62] Cântico dos Cânticos 3: 1-2.
[63] Cf. Salmo 16 (17): 15.
[64] Cântico dos Cânticos 4: 16.
[65] Cântico dos Cânticos 2: 1-3.
[66] Cf. Apocalipse 19: 16.
[67] Cf. Salmo 72 (73): 2.
[68] Cf. Lucas 17: 21.
[69] Cf. I Coríntios 2: 9.
[70] Cf. Gálatas 5: 22.
[71] Cf. Gálatas 6: 14.
[72] Cf. Filipenses 4: 7.
[73] Cf. Lucas 13: 24.
[74] Cf. Salmo 79 (80): 14.
[75] Cf. Salmo 79 (80): 14.
[76] Cf. Gênesis 3: 21.
[77] Cf. II Coríntios 5: 2.
[78] Cf. Marcos 6: 34.
[79] Cf. Salmo 79 (80): 14.

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