domingo, 22 de setembro de 2013

Filocalia Tomo II Volume 1 - Pedro Damasceno: Livro Segundo


 

LIVRO SEGUNDO

 

 

24 DISCURSOS SINÓTICOS

CHEIOS DE CONHECIMENTO ESPIRITUAL

 

 

 

Primeiro Discurso

 

Eis o prólogo e a letra Alfa.

Ela contém a sabedoria espiritual,

Pois assim como dentre todas as letras

Alfa é em todas as línguas a primeira,

Também dentre as virtudes este saber

É o começo e o fim de todos.

Mas assim como o alfabeto

É um conhecimento elementar

Sem o qual não se pode receber a primeira instrução,

Também o começo do conhecimento

É pequenino, mas sem ele

É impossível encontrar a virtude.

Assim sendo, abençoa, ó Pai, este início.

 

Em todas as línguas escritas a primeira letra é o A, embora alguns não o saibam. Da mesma forma, o começo de todas as virtudes é a sabedoria espiritual, que é igualmente seu fim. Pois se o intelecto não se aproxima da sabedoria, o homem não pode fazer nada de bom: ele jamais ouve falar do bem. Mas se de alguma maneira isto lhe for dado, a sabedoria estará lá.

 

O alfabeto é um ensinamento para as crianças, mas sem ele é impossível descobrir a sabedoria dos primeiros estudos. O mesmo acontece com o início do conhecimento: ele é ínfimo, mas sem ele é impossível descobrir verdadeiramente a virtude. Por isso fico temeroso de escrever sobre a sabedoria, uma vez que eu mesmo não sou sábio.

 

Pois existem, penso eu, quatro caminhos que preparam o intelecto para poder falar: ou bem a graça que vem do alto de forma sobrenatural, e a beatitude; ou bem a pureza que provém da ascese que vem de Deus e que pode conduzir a alma à sua beleza original; ou bem a experiência dos ensinamentos terrestres, por meio da instrução humana e do exercício da sabedoria profana; ou bem ainda, suscitado pelo orgulho e pelas armadilhas do demônio, o erro maldito e satânico e a perversão da natureza. Ora, eu não participo de nenhuma delas. Como poderei escrever? Ignoro. Eu não sei de que modo a fé, nos que se obrigam a escrever diante de Deus, atrai a graça para sua pena. Pois meu intelecto e minha mão são indignos e impuros. Sei disto por experiência, isto já me aconteceu e me acontece sempre: cada vez que pretendo escrever alguma coisa, acreditem em mim, Padres, não a consegui levar ao intelecto antes de tomar da pena. No mais das vezes eu não tinha senão uma vaga ideia que me vinha da Escritura, ou de algo que ouvira, ou de algo que vira dentre as coisas sensíveis do mundo. De lá partia meu intelecto, e só no instante em que eu tomava da pena e punha mãos à obra é que eu descobria o que escrever. A partir daí, eu trazia em mim Aquele que me obrigava a escrever.

 

Assim eu escrevia enquanto minha mão tivesse forças, sem empecilhos, sem inquietudes, sem jamais me deter. Aquilo que Deus colocava em meu coração obscuro, eu escrevia sem que me viesse outro pensamento. Eu nunca considerei que possuísse o que recebia, senão pela prece de alguém outro, conforme a palavra de João Clímaco ao se referir ao dito do Apóstolo: “O que você possui que não tenha recebido? E se você recebeu, porque glorifica a si próprio como se não tivesse recebido de fora?[1]”. Mas ele, de quem recebeu ele? Aquilo que vem por si só ao intelecto daqueles que repousam em Deus fora de todo pensamento é agradável, como disse santo Isaac[2]. Toda meditação tem um sentido próprio. Também santo Antônio disse: “Toda obra e toda palavra deve ser atestada pelas divinas Escrituras[3]”.

 

É por isso que eu me ponho a escrever como outrora falou a mula de Balaam[4]. Não para ensinar, coisa que não agrada a Deus, mas para refutar minha pobre alma, para que aquele que fala e nada faz se ponha a trabalhar, como disse João Clímaco[5], por ter vergonha de suas palavras. Quem sabe? Viverei eu o suficiente para poder escrever? Ou ainda: alguém poderá terminar meu trabalho? Bem, entre um e outro fiquemos com os dois, a palavra e o trabalho, até onde cada um deles alcançar. Pois a morte nos é oculta, ignoramos quando virá nosso fim[6]. Mas Deus, que sabe tudo previamente, conhece também nossas vidas. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém[7].

 

 

Segundo Discurso

 

Agora já foi escrito o prólogo, contra toda esperança.

E eis aqui a segunda letra,

O Beta, e o segundo discurso,

No qual será falado resumidamente

Que uma fé engendra outra, e que é a grande fé,

Como afirmam os santos Padres,

O fundamento das virtudes, conforme disse

Aquele que o afirmou, o Apóstolo do Senhor[8].

Pois uma nos é dada sem as obras da lei,

Mas a outra se cumpre pelas obras.

Ela se encontra na hesíquia

E se realiza por meio de inúmeros combates.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Nosso santo Padre Isaac, querendo nos mostrar o que é a fé, da qual disse o Apóstolo ser o fundamento das obras feitas conforme a Deus[9], afirma que nós a recebemos no divino batismo pela graça de Cristo, e não por causa de nossas obras[10]. Com efeito, é a graça que engendra o temor ligado à fé, do qual provém a guarda dos mandamentos e a paciência nas tentações, como disse são Máximo. Mas é preciso trabalhar para que nasça em nós a grande fé da contemplação, da qual disse o Senhor: “Se vocês tiverem fé do tamanho de um grão de cevada[11]”, etc. Isto significa que uma é a fé comum aos ortodoxos, ou seja, a justa doutrina sobre Deus e suas criaturas inteligíveis e sensíveis, tal como a recebemos pela graça de Deus da santa Igreja católica; e outra é a fé da contemplação, ou do conhecimento, que, de resto, não se opõe à primeira, mas antes a confirma[12].

 

Pois aprendemos a primeira por ouvir falar: nós a herdamos de pais piedosos e de mestres da fé ortodoxa. A segunda provém da retidão de nossa fidelidade e de nosso temor ao Senhor[13], no qual cremos. Pois fomos chamados a guardar os mandamentos pelo temor, e por isso quisemos trabalhar as virtudes do corpo: a hesíquia, o jejum, a vigília, a salmodia, a prece, a leitura, a interrogação aos que têm experiência, sobre todo pensamento, toda palavra, todo gesto – a fim de que por meio de tais atos o corpo se purificasse das paixões infames – a gula, a prostituição, as riquezas inúteis – e para que nos contentemos com o que temos[14], segundo o Apóstolo.

 

A partir daí o homem recebe a força para permanecer em Deus, pela ausência de preocupações. Ele aprende mandamentos divinos e os dogmas a partir das Escrituras e de homens experientes. Ele começa a desprezar as oito paixões que precedem a malícia. Compreendendo as ameaças ele teme a Deus, não simplesmente por medo, mas por que Deus é Deus, como disse são Nilo. Este temor opera nele a guarda dos mandamentos por meio do conhecimento. Quanto mais suporta ele por cada mandamento a morte desejada, mais aumenta seu conhecimento e mais ele contempla o que nele se faz por meio da graça de Cristo. Ele passa a acreditar que a fé dos ortodoxos é de fato imensa, e começa a querer agradar a Deus. Ele já não hesita como antes diante do socorro de Deus, mas coloca nele todas as suas preocupações[15], conforme o Profeta. Como disse o grande Basílio: aquele que pretende ter em sua a grande fé não deve em nada se preocupar com sua própria vida ou com sua morte. Ainda que se veja diante de uma fera, ou diante de todos os levantes dos demônios ou das agressões de bandidos, ele nada teme, pois sabe que é tudo obra do único Criador, que eles são seus companheiros de serviço e que não possuem nenhum poder sobre ele que não tenha sido concedido por Deus. Ele só deve temer aquele que tem o poder. Como disse o Senhor: “Eu lhes mostrarei aquele a quem vocês devem temer”. E ele prossegue: “Temam aquele que pode lançar seus corpos e almas no inferno”. E para confirmar suas palavras ele acrescenta: “Sim, eu lhes digo, a este devem temer[16]”. E com razão, pois, se houvesse outro com poder além de Deus, deveríamos temer a este outro.

 

Mas se somente Deus é o Criador e o Mestre do que está no alto e do que está em baixo, quem poderá fazer seja lá o que for sem ele? Se disserem que existem criaturas que possuem um poder autônomo, responderei que as Potências intelectuais, os homens e mesmo os demônios o têm, de fato. Mas as ordens dos anjos celestes e os homens bons não suportam prejudicar seus companheiros de serviço, ainda que estes sejam maus. Antes eles se compadecem e pedem a Deus por eles, como disse o grande Atanásio. Os homens maus e seus mestres, os demônios de malícia, querem com certeza nos prejudicar, mas não podem fazê-lo a menos que nos coloquemos em estado de sermos abandonados por Deus por nossas más obras. Em sua imensa bondade, Deus então castiga o que pecou e lhe abre a salvação, se este quiser ser corrigido de seu mal por meio de um paciente reconhecimento. Caso contrário, o julgamento divino fará o bem a outro, por que Deus em sua bondade total deseja salvar todos os seres[17].

 

Os justos e os homens santos jamais são tentados senão no seio da benevolência de Deus, para o perfeccionamento de suas almas e a confusão de seus inimigos, os demônios. O operário dos mandamentos de Cristo, que sabe destas coisas, crê não apenas que Cristo é Deus e que ele tem o poder (pois também os demônios o sabem por causa de suas obras, e tremem[18]), mas que a ele tudo é possível, que toda vontade lhe é boa e que sem ele nada se pode fazer de bom. É por isso que este homem não deseja fazer coisa alguma que seja contra a vontade de Deus, ainda que isto represente sua própria vida. Não é nela que ele deverá pensar, mas sim que a vontade de Deus é vida eterna[19] e que ela é boa, mesmo que a obra de semelhante vida pareça penosa a alguns.

 

Por isso, pobre de mim, devo me considerar pior do que um descrente, pois não quero por mãos à obra para encontrar a grande fé e por meio dela alcançar o temor a Deus e o começo da sabedoria[20] do Espírito. Mas tanto eu transgrido a lei manchando por mim mesmo os olhos da alma quanto caio na total ignorância, entenebrecido pelo esquecimento. Então já não sei o que é bom para minha alma e ensombrecido pelos maus hábitos me torno presa da malícia. Mesmo quando tento retornar para ali de onde tombei já não consigo, pois minha vontade se tornou um muro que me separa de Deus, como dizem os Padres[21]. E não quero me dar ao trabalho de derrubar este muro[22]. Se eu tivesse fé, esta fé que provém das obras do arrependimento, eu poderia dizer: “Por meu Deus, eu atravessarei este muro[23]”. A dúvida não me faria temer quando eu dissesse para mim mesmo: “Quem me responderá quando eu me lançar para ultrapassar a altura deste muro? Haverá um abismo do outro lado? Se não puder vencê-lo pelo alto, não me verei outra vez enterrado e por baixo, depois de tanto penar?”.

 

Eu falo para mim mesmo muitas outras coisas. Mas quem tem fé na proximidade de Deus[24] jamais considera estas coisas. Este simplesmente corre para Deus que tem toda força, todo poder, toda bondade, todo amor pelo homem, a fim de compreender[25], mas não como quem luta contra o vento[26]. Como quem nada, ele busca as coisas do alto[27]. Deixando para trás toda vontade, ele se encaminha para a vontade divina, até escutar as línguas novas[28], ou aprender e falar a língua dos mistérios, elevando-se por degraus[29] da potência da ação à potência da contemplação, e mais ainda, recebendo tudo da graça do amor que nosso Senhor Jesus Cristo tem pelo homem, a ele toda glória, honra e poder pelos séculos dos séculos. Amém[30].

 

 

Terceiro Discurso

 

Dentre as letras a terceira é o Gama,

E eis aqui o terceiro discurso sobre o temor.

Dois são os temores do Senhor:

O temor inicial, que afasta a malícia,

E o temor perfeito, que trabalha com fervor.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

A gula é a primeira das oito paixões que precedem a malícia. Mas o temor a Deus, o primeiro mandamento, derruba todas. Quem não o possui, porém, ainda poderá acessar os outros bens. Como poderia o homem sem temor guardar o mandamento sem que tenha alcançado o amor? Entretanto, ele começou pelo temor, mesmo que ignore como se passou este temor primeiro. Podemos dizer também que o amor pode ser alcançado por outra via. Éramos de fato prisioneiros, seja de nossa própria alegria espiritual, seja de nossa insensibilidade, como aqueles que atravessaram o rio adormecidos, dos quais falou santo Efrém.

 

Este homem, por todas as benesses que lhe foram concedidas pela graça de Deus, maravilhado, ama ao seu Benfeitor. Mas quando um homem, à custa de viver nas delícias e na glória, se torna insensível tal como o rico do Evangelho, chega a pensar que os que são consumidos pelo temor a Deus e que por ele atravessam as tentações, sofrem por seus pecados. Ele se revolta contra eles e não se compadece. Ele imagina merecer o conforto, quando na verdade não merece, por que se tornou indigno da vida futura. Ele está entenebrecido pela ligação passional às coisas passageiras. Talvez até creia ter alcançado o amor e que por ele tenha recebido mais benesses do que os outros. Mas isto é por que ele sempre ignorou o que é para ele a bondade de Deus. No dia do Juízo este homem não terá o que responder quando ouvir com toda justiça: “Você recebeu seus bens durante a sua vida[31]”. É a própria evidência. Inúmeros infiéis são cumulados de bens dos quais não são dignos, mas nenhum homem de bom senso sonha sequer longinquamente em glorificá-los por isto, ou dizer que eles são dignos de serem amados por Deus ou de amar a Deus, e que é por causa disso que eles prosperam nesta vida. É exatamente isto que acontece.

 

O temor a Deus é duplo, assim como a fé. Existe um começo e uma perfeição que se realizam no início do caminho. Aquele que teme os castigos teme como um servidor e evita o mal: “Pelo temor ao Senhor cada um evite o mal[32]”. E: “Eu lhes ensinarei o temor ao Senhor[33]”. Tudo o que podemos dizer em relação ao começo do temor, segundo são Doroteu[34], nos chama, pecadores que somos, a chegar ao arrependimento por medo das ameaças, buscando modos de encontrar a absolvição dos nossos pecados. Mas quando o temor passa a viver em nós ele nos ensina o caminho da vida, conforme foi dito: “Evite o mal e faça o bem[35]”. Com efeito, quanto mais um homem luta pelo bem, mais aumenta nele o temor, até que aparecem suas faltas mais sutis, que ele considerava desprezíveis quando vivia nas trevas da ignorância. Quando o temor se torna perfeito o homem se realiza no luto e já não quer pecar, por temer o retorno das paixões, e se torna incorruptível pelo puro temor. Foi dito: “O temor ao Senhor é puro e permanece pelos séculos dos séculos[36]”. Pois o primeiro temor não é puro, mas provém dos pecados.

 

A partir daí, mesmo livre do pecado, o homem purificado não deixa de temer, não por estar em falta, mas por se saber mutável e portador do mal. Quanto mais ele se eleva adquirindo virtudes, mais ele teme em sua humildade. E com todo direito. Pois quanto mais rico se é, mas se teme o prejuízo, o tormento, a desonra a sofrer se tombar de tão alto. Mas o pobre normalmente nada tem a temer. Só tem medo o que não foi maltratado.

 

Isto foi dito daqueles que, em suas almas e corpos, são perfeitos e puros. Mas se alguém ainda se encontra em falta, por pequena que seja, que não se iluda: ele está perdido, como disse João Clímaco. Pois seu temor não é puro: não provém da humildade, mas do reconhecimento servil e do medo das ameaças. Por isso este homem precisa ser corrigido em seus pensamentos, a fim de aprender a conhecer em que tipo de temor se encontra, e para purificar suas faltas pelo extremo luto e pela paciência nas aflições, para poder assim alcançar o temor perfeito, pela graça de Cristo.

 

O sinal do primeiro temor é a aversão e a abominação do pecado: é como um homem ferido por um animal. Mas o sinal do temor perfeito é o amor pela virtude e o medo da mudança, pois ninguém é imutável. Quando vemos o grande Profeta, o rei Davi, amargar dois pecados[37], e Salomão cair em tamanha malícia[38], devemos nesta vida temer a queda a cada momento. Como disse o Apóstolo: “Aquele que se crê em pé vigie para não cair[39]”. Se afirmamos com João o Teólogo que o amor expulsa o temor[40], dizemos bem. Mas estamos falando do primeiro temor, o inicial. Quanto ao temor perfeito, disse Davi: “Bem-aventurado o homem que teme o Senhor e se agrada de seus mandamentos[41]”. Ou seja: bem-aventurado aquele que possui tamanho amor pela virtude. Este homem segue a ordem do Filho, pois em tudo ele age não por temor dos castigos, mas pelo amor que expulsa o temor[42].

 

Você se agradará dos mandamentos, mas não irá cumpri-los como um escravo, por necessidade e medo do castigo. Possamos nós estar livres disto, pelo amor ao homem e a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem se deve toda glória, honra e adoração, pelos séculos dos séculos. Amém.

 

Quarto Discurso

 

Eis o quarto, o da piedade,

Que é tratada no presente discurso, cuja letra

É Delta. Este é o sinal.

Ele tem em si a temperança

Que é a primeira das oito virtudes opostas

Às oito paixões, junto com a castidade, ambas obras da piedade.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Não é preciso dizer que a piedade é um nome que designa muitas formas e maneiras, como a filosofia profana. Pois, assim como os dez ensinamentos, quando realizados, se denominam filosofia, mas um ou dois apenas não merecem este nome, cuja denominação se refere aos dez, também a piedade não é o nome de uma única virtude, mas o nome dado a todos os mandamentos. Por isso, se amamos a Deus, somos bons servidores. Mas se alguém afirmar que a fé depende de se reverenciar a Deus como se deve, perguntaremos como podemos temer a Deus antes de crer nele. Ao contrário, não devemos crer primeiro no Senhor, para só então temê-lo? É assim que o temor provém da fé e a fé da piedade, segundo o profeta que recebeu do alto o poder de falar e que anunciou, ao descer, o Espírito de conhecimento e de piedade, o Espírito do temor a Deus[43]. O Senhor começou pelo temor, para depois conduzir ao luto aquele que temeu.

 

Não cabe aqui nos estendermos sobre todas as formas da piedade, ou seja, sobre a ordem inteligível. Mas, deixando de lado as ações do corpo que precedem a grande fé e o temor puro – que são conhecidas de todos – falaremos brevemente, com a graça de Deus, das plantas do Paraíso espiritual, vale dizer, das virtudes da alma, de onde procede a temperança total, a abstenção de todas as paixões. Dentre as ações corporais, existe de fato uma outra temperança, que é parcial e que nos ensina o uso dos alimentos e das bebidas. Mas a temperança total detém todo pensamento e todo movimento dos membros que não estejam voltados para Deus, e esta é chamada domadora das paixões. Quem possui esta temperança não suporta nem pensamento, nem palavra, nem movimento algum do pé, da mão ou de qualquer parte do corpo, que não seja para o necessário uso do corpo, ou seja, da vida corporal e da salvação da alma. É quando se multiplicam as tentações do demônio, que veem um anjo naquele corpo, através do fervor e da obra do bem. É preciso então trabalhar e guardar[44]. Pois a obra é perfeita, ela deve ser guardada continuamente, para que nenhuma paixão exterior seja esquecida e encontre ocasião de entrar.

 

As duas temperanças, as duas castidades, não são as mesmas. Uma detém a prostituição e as paixões infames; a outra recolhe em si a ponta fina e infalível do pensamento e a encaminha a Deus. Mas esta não é uma coisa que se possa descrever com precisão pelas palavras, nem conhecer por ter ouvido falar. Ela provém da experiência adquirida pelas obras e pelo conhecimento de uma e outra, que reviram o intelecto. Pode-se afirmar que pela simples denominação muitas coisas são possíveis, até erguer a terra e tornar a matéria imaterial. O ensinamento profano conhece muitos nomes e seus sentidos, extraídos da etimologia. Mas a experiência e a aquisição das virtudes necessitam de Deus. Elas exigem muitas penas e tempo, em especial as virtudes da alma, que são as virtudes fundamentais e as mais secretas. Pois as virtudes do corpo, que não na verdade os instrumentos das virtudes, são mais fáceis de adquirir, embora não sem penas. Mas as virtudes da alma, embora não exijam senão a atenção do pensamento, são muito mais difíceis de atingir. É por isso que a Lei diz antes de tudo: “Esteja atento a si mesmo[45]”. O grande Basílio escreveu a este respeito um discurso admirável[46].

 

Mas nós, que não estamos atentos a nada e vivemos a maior parte do tempo como Fariseus, que diremos? Alguns de nós praticam o jejum, a vigília e coisas semelhantes. Mas na maior parte das vezes nosso conhecimento é parcial. OU então não possuímos o discernimento, por que não queremos estar atentos a nós mesmos nem conhecer o que nos é solicitado. Tampouco vigiamos suficientemente os pensamentos, não perseveramos para receber a experiência que nasce dos combates e das tentações, ainda que para os outros possamos parecer experimentados marinheiros, e até mesmo pilotos. Mas somos todos cegos. E quando vemos, como Fariseus dizemos sermos nós que vemos. Por isso a condenação é maior[47]. Se fôssemos cegos, não seríamos condenados. Bastaria sermos agradecidos e confessarmos nossa fraqueza e nossa ignorância. Mas, como os Gregos, estamos condenados previamente, como disse Salomão: “Eles conceberam muitas coisas, mas perderam aquilo que estavam buscando[48]”. Devemos então nos calar, como se não tivéssemos nada a fazer? Isto seria pior. “Ao contrário, examinem a si mesmos. O que é feito em segredo é vergonhoso até para dizê-lo[49]”.

 

Calar-me-ei a este respeito. Mas falarei das virtudes que devemos admirar. Meu coração entenebrecido se agrada com sua lembrança e sua doçura. Quando penso nelas esqueço-me de minha posição, e já não me preocupo com a condenação que me espera, por dizer e não fazer.

 

A temperança e a castidade têm o mesmo poder, e são duplas, como dissemos. Mas agora falaremos de coisas mais perfeitas ainda. Quem pela graça de Deus, possui a grande fé da contemplação e o temor puro e divino[50], e que por meio deles deseja guardar a temperança e a castidade, deve guardar a si próprio por dentro e por fora, e, como um morto, ter seu corpo e sua alma longe deste mundo e dos homens, repetindo para seu próprio pensamento: que sou eu? Qual a minha natureza[51], senão uma abominação? Na origem, terra[52]; no fim, podridão[53]. No meio, orgulho até o final. Que é minha vida? Quanto dura? Um instante, e é a morte. Com que tenho eu que me preocupar, com isto ou aquilo? A qualquer momento morro. É Cristo que traz a vida e a morte. Porque me inquietar e disputar em vão? Preciso de um pouco de pão, para que todo o resto? Se eu tenho este pouco de pão, não tenho mais com que me inquietar; mas se não o tenho, fico pensando apenas nele, por causa da imperfeição do meu conhecimento, embora seja Deus a minha providência.

 

Que o homem se preocupe antes de tudo com a guarda dos sentidos e dos pensamentos, a fim de nada ser e de nada fazer que lhe pareça sem Deus. Que se prepare com paciência diante dos prazeres e das dificuldades que lhe advém dos demônios e dos homens. Que nada tema, nem de uns, nem de outros. Que não se deixe levar nem à alegria irracional e a presunção, nem à tristeza e ao desespero. E que rejeite a autossuficiência do pensamento, até que venha o Senhor. A ele a glória, pelos séculos dos séculos. Amém[54].

 

 

Quinto Discurso

 

Quinto é este discurso, e a letra

É o Epsilon, sobre a paciência.

Esta é a primeira, e grande dentre as virtudes,

E para cada uma ela é a ciência.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

O Senhor disse: “Aquele que perseverar até o final será salvo[55]”. Todas as virtudes convergem para a paciência. Sem ela nenhuma virtude se mantém. Pois quem volta atrás não está apto para o Reino dos céus[56]. Se alguém pensa possuir todas as virtudes, nem assim está apto a alcançar o Reino dos céus, perseverando até o fim e se vendo a salvo das armadilhas do diabo. Pois até os que receberam as garantias têm necessidade da paciência, a fim de recolher no século futuro a recompensa perfeita.

 

Em toda ciência, em todo conhecimento, a paciência é necessária. É evidente: sem ela, mesmo as coisas sensíveis não existiriam. Mas para o que quer que façamos a partir dessas coisas, é preciso paciência, para que o feito tenha permanência. Numa palavra, todas as coisas, antes de serem feitas, se tornam o que serão por meio da paciência. E quando elas acontecem, é ainda pela paciência que elas permanecem. As coisas não se realizam nem duram sem ela. Pois se a coisa é boa, a paciência a conduz e guarda; mas se ela é ruim, a paciência fornece a agilidade e a grandeza de alma e não permite que aquele que é tentado seja atormentado pela pequenez, pelas garantias do inferno.

 

É a paciência que normalmente destrói o desespero que assola a alma. É ela que ensina a consolar a alma, para que esta não caia na acídia sob a multidão das aflições e dos combates. Por falta de paciência e por não ter nenhuma experiência de combate, Judas encontrou a dupla morte. Mas Pedro tinha paciência e experiência no combate. Ele caiu, mas venceu o diabo que o havia derrubado[57]. Também é encontrando a paciência que certo monge que caiu sob a prostituição venceu a quem o havia vencido, recusando-se a se submeter ao pensamento desesperado que o empurrava a deixar sua cela e o deserto. Em sua paciência, ele dizia: “Eu não pequei, e repito: eu não pequei[58]”. Quão divinas a prudência e a perseverança deste homem corajoso!

 

Foi ela, a bem-aventurada, que levou à perfeição Jó[59] e suas primeiras boas obras. Pois se o justo tivesse perdido a paciência, ainda que pouco, teria verdadeiramente perdido também tudo o que lhe tinha sido dado inicialmente. Mas Aquele que conhecia sua paciência permitiu esta chaga para seu aperfeiçoamento e para o benefício de muitos outros.

 

Aquele que sabe onde se encontra seu bem luta acima de tudo para ter paciência. É o que disse o grande Basílio[60]: não combata todas as paixões de uma vez. Você poderá não conseguir seu objetivo, voltará atrás e não será considerado apto para o Reino dos céus[61]. Combata as paixões uma a uma, começando pela paciência nas tribulações. Isto é evidente. Se alguém tem paciência, jamais se detém no combate dos homens, cuida apenas para nunca recuar e protege a outros da fuga e da perdição, segundo a palavra que Deus disse a Moisés: “Quem tem medo, que recuse o combate[62]”, etc.

 

Num combate de homens é possível se esconder em casa e não sair para lutar, mas quem o faz se priva dos dons e das coroas, só lhe restando a indigência e a desonra. No combate espiritual, ao contrário, não existe lugar que não esteja envolvido na luta, ainda que se percorra toda a criação: onde quer que se vá, lá está a guerra, seja no deserto, com as feras, os demônios, as tormentas e coisas assustadoras, seja na hesíquia, com os demônios e as tentações, seja no meio dos homens, com os demônios e os corruptores. Nenhum lugar está ao abrigo das tentações. É por isso que sem a paciência é impossível encontrar repouso.

 

O repouso nasce do temor e da fé, e começa pela sabedoria. O homem sábio experimenta primeiro as coisas em seu intelecto. Ele se acha constrangido por todos os lados, como disse Suzana[63]. Mas assim como ela, ele escolhe o que é melhor. Com efeito, a bem-aventurada disse a Deus: “Eu me sinto constrangida por todos os lados. Se eu fizer a vontade dos anciãos iníquos, o adultério perderá minha alma; se nãos os obedecer, eles me acusarão de adultério Eles são os juízes do povo e me condenarão à morte. É melhor refugiar-me junto ao Todo-Poderoso, mesmo que a morte esteja diante de mim”. Quanta prudência desta bem-aventurada! Pois ela teve o discernimento e não perdeu suas esperanças. Diante do povo reunido, e enquanto os anciãos se sentavam a fim de acusar a inocente e condená-la à morte por adultério, Deus revelou seu profeta Daniel com apenas doze anos. Ele a livrou da morte e voltou a condenação contra os anciãos que desejavam julgá-la injustamente.

 

Com isto Deus mostrou o quanto ele está próximo daqueles que, sem levar em conta sua pena, preferem suportar a tentação por ele e não trair a virtude, os que, por meio da paciência nas tribulações preferem a lei de Deus, alegres com a esperança da salvação. Eles têm razão: diante de dois perigos, um passageiro e outro eterno, não é melhor ficar com o primeiro? É por isso que santo Isaac disse: “É melhor enfrentar os perigos por amor a Deus e lhe fazer a oferenda do risco na esperança da vida eterna do que tombar longe de Deus por medo das tentações, nas mãos do diabo, e com ele ir parar nos castigos”.

 

Quando amamos a Deus, é bom nos alegrarmos com as tentações, como o fizeram os santos. Mas se não somos santos, escolhamos do mesmo modo o que nos for mais leve nesta hora de necessidade, pois será preciso ou colocar nosso corpo em perigo, mas em nosso intelecto reinar com Cristo no século presente pela impassibilidade e também no século futuro, ou tombar por medo das tentações, como foi dito, e se encaminhar para o castigo eterno. Possa Deus nos livrar disto pela paciência nos perigos, como uma pedra inquebrantável diante dos ventos e das vagas da vida.

 

Quem descobriu a paciência não a relaxa quando transbordam as águas, nem volta atrás. Quando encontra repouso e alegria, tampouco se deixa levar pela presunção. Ele permanece sempre o mesmo, na prosperidade como na dificuldade. Por isso, ele jamais é pego nas armadilhas do inimigo[64]. Se encontra mau tempo, suporta-o com alegria, perseverando até o fim. Mas se o tempo é bom, ele aguarda a tentação até o último suspiro, como dizia o grande Antônio[65].  Este homem sabe que nada é imutável nesta vida, mas que tudo passa. Ele não se preocupa com nenhuma dessas coisas, mas abandona tudo a Deus. Pois ele cuida de todos nós[66]. A ele toda a glória, poder e honra pelos séculos do séculos. Amém[67].

 

 

Sexto Discurso

 

Eis ainda aqui um discurso evangélico escrito

Agora sobre a esperança nos bens futuros.

Pois Zeta é a sexta dentre as letras,

 E o intelecto busca se desembaraçar de todos os cuidados[68].

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

A vida é uma esperança longe de toda preocupação e uma riqueza escondida aos sentidos, mas de quê dão testemunho a sabedoria e a natureza das coisas. Quando semeiam ou plantam, os cultivadores se esforçam. Também os marinheiros enfrentam muitos perigos. As crianças aprendem as letras e as demais ciências. Todos têm os olhos voltados para a esperança, e se esforçam com alegria. Aparentemente eles deixam perder o que tinham em mãos. Mas na realidade é para ganhar coisas maiores que eles suportam a prova e são muitas vezes privados daquilo que são obrigados a abandonar.

 

Mas alguém poderá objetar que tudo o que se refere a ganhos se aprende pela experiência; porém, quanto às coisas inteligíveis, ninguém ressuscitou dos mortos para nô-las ensinar. Donde, tudo provém dos carismas e dos conhecimentos espirituais dos quais não se tem experiência. Mas não há nada de espantoso nisto. Os que não têm experiência das coisas primeiras se assustam até receberem sua dose de experiência. As crianças, que ignoram a utilidade das letras e de outros ensinamentos, fogem deles. Mas os pais, que sabem o quanto elas têm a ganhar, por amor a elas as apressam e forçam a adquirirem estas coisas. Quando chega o tempo, as crianças recebem a experiência, e não apenas passam a amar o que adquiriram e aqueles que as obrigaram a tal, como ainda se alegram em se esforçar em aprender o que lhes é dado.

 

É por isso que devemos em primeiro lugar, partindo da fé, caminhar com paciência[69] e não nos desencorajarmos diante das aflições[70], a fim, de chegado o momento, podermos reconhecer imediatamente o que nos acontece. Então trabalharemos sem fadiga, com alegria e bom humor. Caminharemos pela fé, como disse o Apóstolo, e não pela vista[71]. Mas, assim como é inconcebível encontrar pela fé o ganho daquilo que fazemos neste tempo, é também impossível descobrir o conhecimento e o repouso antes de ter trabalhado pela virtude pelas obras e as palavras. Devemos até o último suspiro ser como quem teme a todo o momento a perda e como quem espera a todo instante o ganho. Os primeiros não correm apenas quando ganham, mas também quando perdem e estão em perigo. Os outros devem fazer o mesmo, sabendo que o preguiçoso não come o fruto de seu trabalho, sendo por isto indigente e devedor de muitos talentos[72]. “É na esperança que você me faz habitar[73]”, disse o Profeta. E “é na esperança que se consegue a salvação[74]”, disse também o Apóstolo.

 

Tudo isto foi lembrado de passagem por que nos referimos às coisas da natureza e das divinas Escrituras. Se alguém deseja adquirir a experiência, trabalhe tanto quanto possível sobre as sete ações do corpo, como se estivesse numa escola, com constância e se aplicando ao ato moral, ou seja, à obra da alma. A partir daí, tendo alcançado a esperança e nela perseverando, encontrará precisamente o conhecimento de que falamos, a saber, que no começo do arrependimento, engajado nessas sete ações, desde a primeira, a hesíquia, ele terá o salário da esperança e seu ganho antes mesmo de enfrentar as seis seguintes, o jejum, a vigília, etc. Desde a entrada na primeira ação, na ascese da hesíquia, que é o começo da purificação da alma, o ganho já está lá.

 

Mas o discípulo que não tem experiência não reconhece a graça do Mestre, assim como a criança não conhece o papel dos pais, ainda que estes tencionassem ser seus benfeitores desde antes do seu nascimento, orando para que ela nascesse e vivesse. Esta criança será herdeira, receberá tudo o que eles lhe prepararam, todo o fruto de seus esforços; porém, em sua ignorância, ela não se preocupa com nenhuma dessas coisas e considera uma tentação submeter-se aos pais. Se não precisasse de alimentação e das necessidades da natureza, não teria para com eles nenhum reconhecimento. Ora, quem pretende herdar o Reino dos céus, mas recusa o que dele provém, se mostra ainda mais ingrato. Pois ele foi criado pela graça, recebeu todos os seres, aguarda o porvir e reina eternamente com Cristo que o tornou digno, a ele que nada é, de tantos e tais dons sensíveis e inteligíveis, a ponto de por ele derramar seu precioso sangue e de não pedir mais do que que ele receba seus bens, nada além disto. Esta é a única exigência; quem a pode compreender fica maravilhado.

 

Foi dito: “O que Deus exige de você?”. Ó loucura! Como, agora que podemos ver, ficamos tão cegos diante destes terríveis mistérios? Pois aquilo que ele espera de nós é justamente o maior dos dons. Como não compreendemos que o melhor de todos é aquele que se dedica à virtude? Este está acima de todos, ele pode voar, ainda que não seja nem rico nem nobre. Não conhecemos nós neste século os profetas, os apóstolos e os mártires, e ainda assim hesitamos quanto às coisas do século futuro? Vemos suas vidas e tudo o que fizeram, e também de onde, segundo seu próprio testemunho, receberam eles a graça e a força, até para os milagres que fizeram depois de mortos. Vemos como os reis e os ricos veneram seus santos ícones. Vemos agora os fiéis levar a vida toda em ação de graças na virtude e na alegria espiritual, e vemos os ricos irritados e tentados muito mais do que os ascetas e os pobres. Podemos assim esperar que a virtude seja realmente a melhor coisa que existe.

 

Consideremos então como os infiéis, que ignoram a Deus, celebram no entanto a virtude, ainda que o homem que a pratica lhes pareça estrangeiro. Mesmo o adversário sabe respeitar a virtude. Pois se cremos que a virtude é boa, está claro que Deus, que criou a virtude e a deu a os homens, é bom. E se ele é bom, é também justo. Pois a justiça é uma virtude e por isso ela é boa. E, se Deus é bom e justo, certamente é por pura bondade que ele faz o que faz e o faz sempre, mesmo que isto não aparece aos maus. Nada entenebrece tanto quanto a malícia. Deus se revela na simplicidade e na humildade, não nos esforços, ele não se manifesta como pensam alguns que não têm experiência, mas pela contemplação dos seres, que são suas criaturas, e pela revelação dos mistérios nas sagradas Escrituras.

 

Esta é a recompensa da hesíquia e das outras ações no século presente, na espera de que no século futuro seja dado o que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao coração do homem, aquilo que Deus preparou para os que o amam[75], para os que abandonaram suas vontades por meio da paciência e da esperança nos bens futuros que almejamos descobrir pela graça e o amor pelo homem de nosso Senhor Jesus Cristo, a ele a glória, honra e poder pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Sétimo Discurso

 

Sétima dentre as letras é o Eta.

O presente discurso versa sobre a impassibilidade.

Esta nasce da esperança,

Ela é a fuga do mundo inteiro.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

A ausência de paixões provém da esperança. Pois quem espera alcançar a riqueza eterna não faz mal em desprezar aquela que tem à mão, ainda que esta riqueza passageira possa lhe assegurar todo o conforto. Se a vida é dura e dolorosa, quem jamais será capaz de persuadir o homem racional a preferi-la ao invés do amor a Deus, que concede aos que o amam as coisas do tempo e da eternidade? Isto é não ser cego. A falta de fé, a má intenção, os maus hábitos, não poderão nos impedir de ver. Se crermos, seremos iluminados. Se a fé correta permitir ao homem receber um pouco da luz do conhecimento, ele se esforçará por destruir até o pior de seus hábitos. Se ele puser isto na sua alma, a graça agirá nele e com ele combaterá.

 

Pois disse o Senhor: “Poucos serão os salvos[76]”. Pois as coisas visíveis parecem doces, mesmo que sejam amargas. O cão ferido que lambe sua ferida experimenta tamanha doçura que já não sente a dor, mesmo que esteja bebendo seu próprio sangue. Da mesma forma, o guloso que come o que prejudica sua alma e seu corpo não se dá conta do mal que faz a si mesmo. Todos os que estão submetidos às paixões sofrem assim de insensibilidade. Eles podem se corrigir, mas novamente são atraídos pelo hábito. Por isso o Senhor disse: “O Reino de Deus se obtém à força[77]”, não naturalmente, mas superando o costume das paixões. Pois se o Reino fosse forçado naturalmente, ninguém entraria nele.

 

Mas para quem o escolhe, o jugo do Senhor é doce e a carga é leve[78]. Para os outros, os que não o escolhem, a porta é estreita, a via dolorosa[79] e o Reino tem que ser forçado[80]. Pois o Reino está próximo dos primeiros, está neles, eles o querem, eles querem desde já alcançar a impassibilidade. A vontade realiza ou impede a salvação, e nada além. Se você quer algo de bom, faça-o. Se não puder, decida-se por isto, e logo o terá, mesmo que não o tenha ainda. É assim que pouco a pouco o hábito trabalha por si só, seja para o bem, seja para o mal. Se não fosse assim, nenhum ladrão poderia jamais se salvar, mas na verdade, ao contrário, conhecemos inúmeros ladrões que foram cumulados de luz. Veja como é longo o caminho que separa o ladrão do santo. Mas onde o hábito nada pode, a decisão é mais forte.

 

Aquele que, pela graça de Deus, se dedica à piedade, ou aquele que é monge – o que o impede de se tornar como os ladrões? Eles estavam longe, ele está próximo. Com o auxílio da graça, ele já fez a maior parte do caminho. Por vias naturais, ou por causa de seus pais, ele herdou a veneração a Deus e a piedade. Mas não é estranho que ladrões e profanadores de túmulos se tornem santos, e que monges sejam condenados? Pobre de mim! A confusão cobre meu rosto[81]. Os reis se tornam pobres, como Joasaf e outros semelhantes a ele. E o pobre já não pode seguir seu antigo caminho e entrar sem esforço no Reino dos céus por meio da impassibilidade nas coisas que ele não recebeu por herança de seus pais. Quando ele disse: “Eu renuncio”, ele de fato renunciou àquilo que ele não possuía (pois outro possui o mundo e o que está no mundo, enquanto ele próprio só tinha o poder de desejar). E quando ele renunciou, foi levado a possuir muitas coisas. Ele disse: “Eu não posso permanecer pobre nem suportar as tribulações”. Quais, digam-me? As prisões e os jugos que ele sofria antes de se tornar príncipe? Mas os que têm o poder e as riquezas também suportam estas coisas. Então quais? A privação das coisas necessárias, o despojamento, e as outras coisas que oprimem?

 

Mas não quero me alongar entrando em detalhes, nem denunciar os que já estão cobertos de opróbrio. Pois basta que tenhamos paixão por uma dessas coisas visíveis às quais renunciamos, para que nos cubramos de confusão e vergonha no século futuro, como Giezi e Judas[82]. Pois um desejou o que não possuía, e recebeu ao mesmo tempo a lepra e a queda para longe de Deus. O outro rejeitou o que tinha, depois tentou retomá-lo e herdou a perdição.

 

O que tem o monge de mais, se não é virgem nem pobre? Pois, quanto aos demais mandamentos, todos os homens devem segui-los. Eles são claros. Amar a Deus e ao próximo, suportar as tribulações, usar as coisas com naturalidade e se abster das más obras, é o que devemos fazer mesmo que não o queiramos. Sem guardar estes mandamentos, ninguém, no século presente, pode encontrar o repouso. Pois as próprias leis castigam os que falham, e os príncipes forçam para manter a virtude, segundo o Apóstolo. “Não é em vão, disse ele, que ele traz a espada[83]”. E também: “Você quer não temer a autoridade? Faça o bem, e ela o louvará[84]”.

 

Todos fazem e querem estas coisas, e quando não as imploram, pois elas são naturais. Mas a parte do monge é sobrenatural, por que ele combate por Cristo. É por isso que ele só pode descobrir sua glória se provar seus sofrimentos. Esta é, de resto, uma lei da natureza, da qual as coisas humanas dão testemunho. Não glorificamos os soldados do rei por aquilo que eles sofrem com ele? Não é cada um louvado neste mundo na medida de seu sofrimento? E não somos confundidos na mesma medida de nossa incapacidade? Não é aquele que está mais próximo do rei que usa as vestes mais parecidas com as dele? Do mesmo modo, não é quanto mais diferente a roupa que mais estranho ao rei é a pessoa? É assim que devemos ver as coisas, no que se refere ao nosso próprio Rei. Quanto mais sofremos com Cristo e imitamos sua pobreza, experimentando os sofrimentos e as injúrias que ele recebeu antes de ser crucificado por nós e sepultado, mais nos aproximamos dele e comunicamos com sua glória, conforme disse o Apóstolo: “Se sofremos com ele, seremos glorificados com ele[85]”.

 

Como podemos ignorar que tanto os soldados como os ladrões aguentam o mal e sofrem, apenas por pão? E que os viajantes e os marinheiros vivem tão longe de suas casas? E as penas que suportam outros homens, que não possuem a esperança do Reino dos céus? Muitas vezes eles sequer alcançam o objetivo pelo qual penaram. E nós, que pelo Reino dos céus e pelos bens eternos, recusamos o menor sofrimento? Sendo que esta busca nem chega a ser penosa, se a intenção é boa! Devemos considerar que a aquisição das virtudes não é pesada nem insuportável, mas sim uma alegria e um repouso por meio da esperança e da ausência de cuidados, e que uma involuntária honra se segue à virtude, pois mesmo o adversário sabe respeitá-la e admirá-la. Ela culmina na felicidade e na exultação. Mais ainda, é nela que a impassibilidade se mistura com a alegria, do mesmo modo como a vida material vivida em meio às paixões da infâmia é triste e pesada. Possamos nos livrar desta última e descobrir a vida imaterial e eterna pela impassibilidade que faz morrer o corpo para si mesmo em Jesus Cristo nosso Senhor, a quem devemos toda glória, honra e adoração, pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Oitavo Discurso.

 

Oitavo é este discurso, a letra Teta.

A impassibilidade engendra a morte das paixões.

Se um homem não chegou até aí por suas penas,

Ele não se libertou das paixões.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Por meio da contemplação, a impassibilidade está sempre atenta a Deus. Pois diante do sensível a impassibilidade suscita a contemplação do inteligível, não a contemplação dos seres aqui de baixo, mas a visão das coisas terríveis que precedem e se seguem à morte. A graça ensina o impassível. Ela o faz morrer às paixões por meio do luto, para que ele atinja a doçura dos pensamentos quando chegar o tempo propício.

 

Da fé nasce o temor, e do temor a piedade, ou seja, a temperança, a paciência do luto, a doçura, a fome e a sede de justiça e de todas as virtudes, a misericórdia de que falam as Beatitudes do Senhor[86], a impassibilidade que faz morrer o corpo nos longos gemidos e nas lágrimas amargas do arrependimento e da tristeza, por meio dos quais a alma rejeita a alegria do mundo e o agitação dos alimentos. Pois ela começa a ver suas próprias faltas como a areia do mar. Este é o começo da iluminação da alma, o sinal de sua saúde. Pois enquanto não chegarmos neste ponto, as lágrimas, os pensamentos aparentemente divinos, a compunção e as coisas análogas podem muito bem fazer de nós motivo de riso e nos tornar presa dos demônios, sobretudo quando vivemos no meio dos homens e das distrações, por pequenas que sejam estas. Pois não é possível, a quem ainda experimenta as coisas sensíveis, superar as paixões.

 

E se respondermos a isto dizendo que os antigos tinham as duas coisas, tenhamos em mente que de fato as tinham, mas que a nada usavam com paixão. Quando tomavam suas mulheres e não as conheciam senão depois de muitos anos, como está escrito no Antigo Testamento a respeito da genealogia dos homens, fica claro que tê-las ou não tê-las não lhes fazia diferença alguma. O mesmo acontece com Jó e os outros justos. Também Davi era rei e profeta. E Salomão, durante um tempo. Ele próprio dizia que Deus concedeu aos filhos dos homens a má tentação de se distraírem com a vaidade[87], para que eles não se inclinem para o pior. É o que nos ensina a própria natureza das coisas. Pois se alguns, jogados às miríades das distrações, encontram ocasião de fazer o que é injusto, quanto mais não fariam se nossa vida não fosse distraída! Que este homem, assim, viva na distração. Pois mais vale ser atirado às más distrações, ser privado das coisas e dos pensamentos divinos, do que fazer outras coisas más piores ainda do que estas.

 

Aquele que, pela graça de Deus, alcançou um conhecimento parcial e pode conceber as coisas terríveis que precedem e se seguem à morte, suscitadas pela desobediência, não deve abandonar tais pensamentos nem as obras que o conduzem à total hesíquia e à ausência de cuidados. Ele não deve se deixar distrair na vaidade. Pois, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade[88]”. E João Damasceno acrescenta: “Verdadeiramente o universo é vaidade, a vida é sombra e sonho. Todo homem se agita em vão[89], diz a Escritura. É evidente: que maior vaidade existe do que este fim na podridão e no pó?”.

 

É por isso que a impassibilidade faz morrer, não o intelecto, mas o corpo, longe de seu movimento inicial em direção às delícias e ao repouso. Pois a vontade da carne é o repouso, por pequeno que seja. e a alma se entristece com isto, se percebe em si mesma uma obra ou um conhecimento espiritual. Mas se ela própria é carne, o Espírito de Deus não permanece nela[90]. A partir daí ela não se satisfaz com nenhuma boa obra, mas se esforça por cumprir as vontades do corpo e das paixões que nelas residem e, recebendo com isto trevas sobre trevas, apressa-se cada vez mais em viver na mais total ignorância. Mas quem tem em si luz suficiente para distinguir suas próprias faltas não cessa de se lamentar por si mesmo e por todos os homens, percebe a imensa paciência de Deus e também quantas faltas, pobres de nós, cometemos desde o começo e continuamos a cometer sempre e sempre. Este homem se torna grato e já não ousa condenar a ninguém, confundido que se vê diante de quantidade das benesses de Deus e das nossas faltas. A partir daí ele abandona com alegria toda vontade própria e tudo o que não provém da graça de Deus e passa a vigiar seus sentidos para que ele não façam nada contra o necessário uso das coisas, como disse o Profeta: “Senhor, meu coração não se inflou, meus olhos não se levantaram[91]”.

 

Este homem deve se manter atento, depois de haver atingido semelhante altura, para que não ocorra a ele, por negligência ou autossuficiência, aquilo que aconteceu ao profeta, para que não venha a se arrepender como ele. Pois mesmo os mais justos são presa do pecado. Mas o arrependimento não está ao alcance de todos. Com efeito, a morte está próxima e antes dela o desespero. É melhor não cair, e, caindo, é melhor se levantar. Se nos acontecer cairmos, convém não desesperar, não se subtrair ao amor do Mestre pelos homens. Pois se ele quiser, terá piedade além de nossa própria fraqueza. Não o deixemos. Não nos atormentemos se formos forçados pelos mandamentos, nem nos desencorajemos se não chegarmos a lugar algum. Aprendamos que mil anos são como um dia diante do Senhor, e que um dia é como mil anos[92]. Não nos apressemos, não nos dobremos, mas recomecemos sempre. Se você caiu, levante-se; se caiu de novo, levante-se novamente[93]. Mas não abandone o médico. Pior do que um suicida, você será condenado pelo desespero. Permaneça próximo dele e ele lhe terá misericórdia, seja por meio do retorno, por meio da tentação, ou por qualquer outro caminho da providência que você hoje ignora.

 

Pois o diabo costuma dominar a alma quando nela encontra a alegria e a presunção, a tristeza e o desespero, a depressão, a total inércia, ou coisas e pensamentos que inoportunos e contra o bom uso, ou a cegueira e a aversão irrefletida por todos os seres. Numa palavra, qualquer que seja a matéria que ele encontra em cada alma, ele dela se apodera de tal maneira que ela já não presta para nada, ainda que ela seja boa e agrade a Deus se for bem conduzida pelos que são capazes de julgar as coisas e encontrar o objetivo oculto de Deus no meio das seis paixões que o cercam, as de cima e de baixo, da direita e da esquerda, de fora e de dentro. Pois a ação em conformidade com Deus, assim como o conhecimento, possui um objetivo bom no coração das seis paixões que lhe são contrárias.

 

É por isso que, como nos pede santo Antônio[94], em todas as coisas devemos consultar, não qualquer pessoa, mas apenas aquelas que possuem o carisma do discernimento. Se faltar a experiência a ambos, cairão ambos na fossa[95] como no exemplo do Evangelho. Pois sem o discernimento nada se faz de bom. Pois se uma coisa parece boa aos ignorantes, eles não veem se ela foi feita contra o bom uso, ou inoportunamente, ou desmesuradamente, ou à força pelo homem, ou sem seu conhecimento, ou por qualquer necessidade outra. Quem possui o carisma do discernimento o recebeu por sua humildade. É por isso que a tudo ele conhece por sua graça, e, chegado o momento, ele adquire a clarividência.

 

O luto e a paciência engendram assim tanto a esperança como a impassibilidade, por meio das quais morremos para o mundo. E se perseverarmos como se deve, se não desesperarmos vendo por toda parte os tormentos e a morte, se soubermos que tudo são provas e iluminação, se não tivermos a audácia de pensar que alcançamos a justa medida, se tivermos sempre nos olhos as lágrimas da tristeza, então conseguiremos ver com clareza os santos sofrimentos do Senhor, recebendo dele um grande consolo e poderemos nos considerar abaixo de todos os seres. Pois sentiremos em nós todo o bem que pode nos fazer a graça de Deus. A ele a glória e o poder por todos os séculos dos séculos[96]. Amém.

 

 

Nono Discurso.

 

Eis o Iota e o nono discurso,

Sobre os santos sofrimentos de Cristo.

Da lembrança da morte e das faltas

Nascem muitas lágrimas para aqueles que trabalham.

E por meio das lágrimas podemos trazer no intelecto

A Paixão de Cristo e de seus santos.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Para que ninguém pense estar fazendo uma grande coisa ao se dedicar à ascese, com todos os seus gemidos e todas as lágrimas de seu corpo, nos foi dado o conhecimento dos sofrimentos de Cristo e de todos os santos. Quem os concebe se sente derrubado, ao mesmo tempo em que se maravilha e se despoja a si próprio na ascese, reconhecendo sua própria fraqueza ao contemplar tantas e tão incontáveis provações. Como suportaram os santos com alegria tais tormentos? E quantos sofrimentos não conheceu por nós o Senhor?

 

Assim se ilumina o homem no conhecimento daquilo que viveu e daquilo que disse Cristo. Assim ele compreende agora todas as palavras do Evangelho. E tanto ele se lamenta amargamente em sua tristeza, quanto se alegra em espírito em ação de graças, não por considerar que sejam boas as suas obras – pois isto seria presunção – mas por se saber grande pecador, a quem foi concedida tamanha contemplação. Daqui para frente ele se humilha por palavras e obras, por meio das sete ações de que falamos, pela ação moral que é a obra da alma, e pela guarda dos cinco sentidos e dos mandamentos do Senhor. Ele não vê nisto nenhuma boa obra, nada que mereça recompensa. Antes, vê uma dívida que não tem esperança alguma de poder quitar, tantos e tais conhecimentos lhe foram concedidos.

 

Pois ele fica como quem é transportado pelo arrebatamento do sentido das palavras que lê e canta. Levado por este prazer, ele esquece, apesar de si mesmo, seus pecados, e começa a chorar de alegria, provando a doçura do mel. Mas logo ele se recolhe, por medo de se enganar e de se deixar levar inoportunamente. Ele se lembra de como vivia antes e derrama lágrimas amargas. Assim ele avança, entre a doçura e o amargor de suas lágrimas, se estiver atento, se em tudo receber o conselho de alguém experiente, se se prosternar diante de Deus inteiramente mergulhado na prece pura que convém ao monge ativo, recolhendo seu intelecto na lembrança de Deus, longe de tudo o que sabe ou ouviu, e se buscar apenas uma coisa: que se faça a vontade de Deus[97] em todas as suas ações e em todos os seus pensamentos.

 

Mas se ele imaginar que vai contemplar a aparição de um santo, de um anjo ou do próprio Cristo, cairá na ilusão. Pois ele ignora que aquele que busca ver a Cristo não deve procurá-lo do lado de fora, mas em si mesmo, imitando sua vida no mundo e guardando seu corpo e sua alma longe do pecado, como o fez Cristo. Seu intelecto deve pensar todo o tempo em Cristo. Ter em espírito uma forma, uma cor, ou qualquer outro pensamento, durante a oração, não é bom. Para falar a verdade, é prejudicial. Pois o intelecto deve se colocar no lugar de Deus, como afirma são Nilo[98] citando o Salmista que diz: “Seu lugar é a paz”. A paz é a ausência de pensamentos, sejam bons ou maus. Pois, dizia ele, se o intelecto percebe o que é sensível, ele não está apenas em Deus, mas está em si mesmo[99]. É evidente: o divino é infinito, sem limite, sem forma nem cor. Quem afirma estar diante de Deus, e só dele, não pode ter em si nem forma, nem cor, nem figura, nem nada que possa distraí-lo. Fora disto, tudo é ilusão demoníaca. Por isso devemos estar atentos a não termos em nós nenhum pensamento, seja bom ou mau, sem interrogar os que têm experiência, por que ignoramos tanto um quanto outro. De fato, os demônios tomam todas as formas que quiserem, todas as aparências que o intelecto humano deseja ver, e mesmo este de transforma e se colore à imagem das coisas que recebe. Os demônios fazem isto para nos levar ao erro. E nosso intelecto se perde no projeto insensato de atingir por si só a perfeição.

 

Tanto quanto possível, devemos levar o intelecto a se aplicar às coisas de Deus. Esta é a obra das sete ações do corpo e das oito contemplações do intelecto, que são os conhecimentos. As três primeiras, conforme vimos, lembram os santos sofrimentos do Senhor, aos quais devemos nos ligar sempre e chorar por sua alma e as dos irmãos, lembrando as infelicidades nas quais desde a origem mergulhamos por nossa transgressão, todos os sofrimentos diante dos quais a natureza desabou. Cada um deve aqui suas próprias faltas e as tentações que lhe são oferecidas para que se corrija. A seguir, cada um deve ver a morte e as coisas terríveis que aguardam os pecadores depois dela. Assim arrasada, a alma se volta para o luto. Ela clama, ela se humilha para não ser levada ao desespero por todas estas visões aterrorizantes, mas também para não pensar que alcançou a obra espiritual, para, sim, permanecer no temor e na esperança, neste estado a que chamamos também de doçura dos pensamentos. Esta doçura, esta mansidão, conduz o intelecto ao conhecimento e ao discernimento. É o que disse o Profeta: “Ele conduzirá os mansos ao julgamento[100]”, ou antes, ao discernimento, àquilo que o Profeta denomina conhecimento e piedade[101].

 

Mas assim como o simples nome de piedade abarca numerosas obras, também o conhecimento, que não tem senão um nome, é na realidade um conjunto de conhecimentos e contemplações. Com efeito, o princípio da ação corporal reside no conhecimento. Sem o conhecimento, ninguém tem como fazer o bem. Até o final da adoção, ou seja, até a ascensão do intelecto aos céus em Cristo, o conhecimento também se chama contemplação. Mas esta vem antes do esforço, para levar a obra ao bom final; o outro vem depois da fé, a fim de se guardar, como por um muro, pelo temor. E ainda: o conhecimento e a obra das virtudes da alma têm como objetivo preparar e cultivar as plantas do Paraíso.

 

Possam assim o conhecimento do intelecto e sua obra espiritual – sua atenção e a conduta da alma – fazer com que o operário dos mandamentos trabalhe e vele ciosamente. Pois é por meio deles que cuidamos das plantas, e por meio deles age a providência divina. Eles são como o sol, a chuva, o vento, o crescimento, sem os quais todo o esforço do trabalhador é vão, ainda que ele aja com a razão. Pois sem o impulso do alto, é impossível fazer o que quer que seja de bom. Nem o impulso nem a graça descem sobre aquele que não está resoluto, disse o divino Crisóstomo[102]. Com efeito, todas as coisas desta vida são duplas: ação e conhecimento, resolução e graça, temor e esperança, combate e recompensa. Mas não é possível alcançar as segundas sem antes passar pelas primeiras. Aquelas podem até nos aparecer, mas são ilusórias. Se alguém, ignorante das coisas da natureza, vê uma flor e a toma por um fruto, tentará logo colhê-la. Mas não sabe que, ao colher o que lhe aparece primeiro, ele perderá o fruto. O mesmo acontece aqui. Não é a presunção que faz ser aquilo que presumimos, disse são Nilo[103]. E é por isso que devemos sempre permanecer em Deus, e fazer tudo com discernimento.

 

O discernimento vem quando interrogamos com humildade, acusando a nós próprios e envergonhados daquilo que pensamos e fazemos. Pois o diabo tem a forma de um anjo de luz[104]. Não devemos nos espantar: mesmo os pensamentos que nos vêm dele parecem sempre visões de justiça aos que não têm experiência. A humildade é a porta da impassibilidade, disse João Clímaco[105]. E a matéria da impassibilidade é a mansidão, segundo o grande Basílio. Pois a mansidão torna o homem sempre igual a si mesmo, tanto na dificuldade quanto na facilidade das coisas e dos pensamentos. Nem a honra, nem a desonra o alcançam. Ele recebe com alegria o agradável e o desagradável, e não se perturba, como a virgem de quem falou santo Antônio: “Um dia, em que me encontrava sentado junto do abba N., um virgem veio dizer ao ancião: ‘Eu jejuo seis dias por semana e a cada dia eu leio o Antigo e o Novo Testamento’. O ancião lhe respondeu: ‘A pobreza e a abundância são para você a mesma coisa?’. Ela disse: ‘Não’. – ‘A desonra e os elogios?’ – ‘Não, abba.’ – ‘Os inimigos e os amigos?’ – ‘Não.’ Então o sábio ancião lhe disse: ‘Vá. Trabalhe. Você ainda não tem nada’[106]”. Ele tinha razão. Se ela jejuava tanto, ao ponto de não comer mais do que um dia por semana, e ainda assim bem pouco, não deveria ela considerar a pobreza igual à abundância? Como lia ela todos os dias o Antigo e o Novo Testamento, e não aprendera ainda a humildade? Não possuindo nada nesta vida, não deveria ela amar a todos os homens? Se ela tivesse inimigos, não deveria ter aprendido, depois de tantas penas a vê-los como seus amigos? O ancião fez, portanto, bem ao dizer-lhe: “Você não tem nada”.

 

Mas a partir do momento em que não encontra o que busca, a alma se expõe a uma grande condenação. É o que disse João Crisóstomo a respeito das cinco virgens tolas[107]: elas tiveram força para viver a mais pesada ascese, a virgindade sobrenatural, mas não puderam guardar a compaixão, que era muito mais leve, coisa que mesmo os gregos e os infiéis fazem com naturalidade até hoje. Quem não sabe o que buscar se esforça em vão. “Vocês devem fazer isto, disse o Senhor, sem esquecer o resto[108]”. A ascese é boa, mas é preciso que o objetivo seja justo. Devemos considera-la não como uma obra, mas como a preparação para uma obra, não como o fruto, mas como a terra que pode, com o tempo, o esforço e Deus, nutrir as plantas das quais advirá o fruto, a purificação do intelecto e a união com Deus. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém[109].

 

 

Décimo Discurso.

 

Eis a décima letra, Kapa, e o discurso

Sobre a humildade de Cristo.

Não ter cuidado algum por nada,

Mas apenas trabalhar sobre si mesmo,

É o que deve sempre fazer a alma

Com toda a sua força.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Ainda que todo o mundo o combata e o ultraje, no fundo o humilde não cessa de condenar a si próprio, a fim de não só ser salvo mesmo não querendo, como os que têm paciência, mas também para se encaminhar voluntariamente para os sofrimentos de Cristo. É por meio destes que este homem aprende a maior de todas as virtudes, na qual habita o Espírito Santo. Pois ela é a porta do Reino, a porta para a impassibilidade. Quem passa por ela chega até Deus. Sem ela, o esforço é vão e o caminho difícil. Mas ela traz repouso a quem a tem em seu coração, pois então é Cristo que habita nele. Por meio dela permanece a graça e são guardados os carismas. Ela nasce de muitas virtudes: da obediência, da paciência, da despossessão, da pobreza, do temor a Deus, do conhecimento e de muitas outras, e, em especial do discernimento, que ilumina as fronteiras do intelecto.

 

Mas que ninguém pensa que é possível se tornar humilde sem mais aquela. A humildade é coisa sobrenatural. Podemos dizer que o carisma é grande na mesma medida em que a dificuldade é profunda. Ele exige muita prudência e paciência diante das tentações e dos demônios que nos são contrários. Pois a humildade supera todas as suas armadilhas. A humildade provém do conhecimento, e este vem das tentações. A quem se conhece, é dado o conhecimento de tudo. A quem se submete a Deus, tudo está submetido[110], uma vez que a humildade reina em seus membros.

 

Pois é justamente por intermédio das tentações, e pela paciência com que as suportamos, que adquirimos experiência. A partir daí podemos conhecer nossa própria fraqueza e o poder de Deus. Compreendendo nossa própria fraqueza e nossa ignorância, entendemos também que sabemos agora o que antes ignorávamos. Pois assim como antes ignorávamos estas coisas sem saber que as ignorávamos, também hoje existem muitas outras coisas cujo conhecimento poderemos obter a partir de agora. É o que disse o grande Basílio: “Se não experimentamos determinada coisa, não podemos saber do que estamos sendo privados. Mas quem provou do conhecimento sabe em parte que ignora. O conhecimento se torna assim para ele uma fonte de humildade”. E também: “Quem conhece a si mesmo e sabe que é uma criatura mutável, não se orgulha mais de nada”. Tudo o que ele possuir, pertencerá Àquele que o criou. Ninguém elogia um instrumento por se fazer a si mesmo com perícia, mas elogiamos a quem o fez. E se o instrumento se perde culpamos a quem o perdeu, não ao artesão que o fez.

 

E se o instrumento for dotado de razão, é preciso que ele seja livre. Para tudo o que é do bem, o Criador é responsável pela criação; mas no que tange à queda e à perdição, é da escolha da criatura livre. Assim como é cumulado de louvor pela graça aquele que permanece imutável, também é condenado quem recolhe em si a malícia da serpente. Pois o louvor não vai para quem recebe os dons, mas deve ser dirigido com ação de graças àquele que os concedeu. Quem é louvado pode sê-lo pela graça, por ter em sua resolução recebido o que não possuía, mas também, o que é mais comum, por se mostrar reconhecido para com seu Benfeitor. E se não for assim, não apenas ele será desqualificado do louvor como ainda será condenado por sua ingratidão. Portanto, que ninguém, com impudência, ouse dizer que não recebeu gratuitamente. E quando, por malícia, alguém rouba o elogio, quando se vangloria de ter atingido a hesíquia, quando condena aos que aparentemente não fazem como ele, é ele próprio quem oferece a si mesmo a riqueza que crê possuir, mas que não recebeu pela graça.

 

 

 

E se este homem dá graças ao Doador, mas o faz como o fariseu[111], dizendo a si mesmo: “Eu lhe dou graças por que sou isto ou aquilo”, o Evangelista, ou melhor, Deus, que conhece os corações, tem boa razão em dizer que ele falava para si mesmo e não para Deus, embora com sua boca ele parecesse falar a Deus. Ora, Aquele que conhece sua alma orgulhosa afirma que ele não falava a Deus, mas que, em pé, o fariseu falava consigo mesmo. Quando a Escritura diz estas coisas, e muitas outras semelhantes, não é, declara João Crisóstomo, para colocar uma palavra em lugar de outra ou para tagarelar, mas para que a palavra se imprima nos corações dos que a ouvem. Em seu desejo, o Salmista não queria se deixar perder pelas palavras, como os que não provaram de sua doçura e chegam até a sapatear com todo seu desagrado para se liberar de sua carga. Trarão jamais estes homens em si o bom fruto das divinas Escrituras, ou apenas a condenação e a cegueira do intelecto por terem aberto a porta aos demônios que os combatem? O Senhor disse: “Se isto é feito aos ramos verdes, que sucederá aos ramos secos?[112]”. E: “Se o justo pena para ser salvo, em que situação ficará o ímpio e o iníquo?[113]”. Quando vemos os demônios combatendo os que têm todo seu intelecto voltado para a memória de Deus, além de toda matéria e de toda forma, e que se não vier Deus em seu auxílio para que se mostrem humildes, suas preces não conseguem se elevar e se tornam vazias, que faremos nós então, infelizes que com nossas bocas sequer falamos ao espaço, para que Deus, no final de sua misericórdia e vendo nosso reconhecimento, se incline sobre nossa ignorância e nossa fraqueza?

 

A respeito do fato de que os demônios combatem também os perfeitos, escutemos o que disse são Macário: ninguém é perfeito no século presente, uma vez que o que recebemos aqui não são garantias. Ele cita o exemplo de um irmão que orava com os demais quando foi arrebatado em seu intelecto ao céu, onde viu a Jerusalém celeste e as moradas dos santos. Ao descer, porém, ele caiu da virtude e foi reduzido à total perdição, por se ter vangloriado do que lhe acontecera, ao invés de considerar que daí por diante se tornara ainda mais devedor por ter sido considerado digno de atingir tamanha altura, ele que era indigno e pó por natureza[114].

 

O mesmo disse ainda: “Eu conheci muitos homens e eu próprio tive a experiência das coisas de Deus. Eu estive lá. E sei perfeitamente que aqui em baixo ninguém é perfeito. Ainda que alguém se torne totalmente imaterial, ainda que praticamente se uma a Deus, o pecado estará sempre por perto, e não desaparecerá inteiramente jamais antes da morte[115]”.

 

Referindo-se a um irmão, são Nilo disse: “Ele orava, mas, para seu bem e o bem de muitos outros, Deus permitiu que ele fosse entregue aos demônios. Estes o tomaram pelas mãos e os pés, o atiraram ao espaço, e o amparavam sobre seu lençol quando caía, para não ferir seu corpo. Eles fizeram isto muitas vezes, mas não foram capazes de fazer descer dos céus seu intelecto[116]”. Um homem como este, percebe ele o alimento? Terá ele necessidade da salmodia e da leitura? Nós, ao contrário, precisamos de tudo isso por causa da fraqueza de nosso intelecto, mesmo que não o queiramos admitir. Se tamanho santo foi combatido, como podemos nós negligenciar o combate? Os santos, com sua humildade, se protegem das armadilhas do diabo, enquanto nós nos vangloriamos de nossa ignorância. Grande é a ignorância, de fato, quando nos vangloriamos daquilo que não somos. “Que possui você, está dito, que não tenha recebido gratuitamente de Deus ou pelas orações de outros? E, se você o recebeu, por que se vangloria como se não tivesse recebido, como se o tivesse feito por si próprio?”, disse o abade Cassiano[117].

 

Assim é que a humildade nasce do conhecimento. E este engendra o discernimento, do qual provém a clarividência, à qual o Profeta chama de conselho[118], que vê as coisas em sua natureza. Então o intelecto morre para o mundo, pela contemplação das criaturas de Deus. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém[119].

 

 

Décimo-primeiro Discurso

 

Onze são os discursos, e o décimo primeiro é o Lambda.

A humildade engendra o discernimento

Da natureza das criaturas sensíveis.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

É sempre bom perguntar, em tudo; mas é preciso perguntar a quem tem experiência. O contrário é perigoso. Pois quem não tem experiência não tem discernimento. O discernimento conhece o tempo, os usos, o estado do homem, a medida, o poder, o conhecimento e a intenção daquele que interroga, além do objetivo de Deus e ainda cada palavra da Escritura, e muitas outras coisas. Quem não tem discernimento pode eventualmente ser muito esforçado, mas dificilmente tem sucesso em algo. Mas se encontrar alguém que de fato possui o discernimento, esta pessoa será para ele um guia na escuridão, uma luz para quem está nas trevas[120]. Devemos nos remeter a ela em todas as coisas, e acolher o que vem dela, mesmo que eventualmente, por falta de experiência, não a vejamos como gostaríamos.

 

Entretanto, podemos reconhecer o que tem experiência por que ele consegue fazer entender àqueles que se recusam ou que não querem. Pois o espírito sonda, e as coisas divinas se revelam. Elas então podem forçar a crer o intelecto que não o deseja, como aconteceu com Jonas, Zacarias e Davi o ladrão, a quem o Anjo impediu de falar fora do canto litúrgico. Talvez não houvesse então ninguém daquela geração que estivesse em condição de discernir, por que faltava a esta a humidade que gera o discernimento. Segundo o Apóstolo, devemos nos esforçar para orar por cada um de nossos gestos[121]. Se nossas mãos não são santas, se não temos a pureza da alma e do corpo, esforcemo-nos para no mínimo sermos sem ressentimentos e sem maus pensamentos. É o que disse o Apóstolo: precisamos erguer aos céus mãos santas, sem cóleras nem disputas[122]. Se acharmos que determinada coisa é dedicada a Deus, façamo-la sem paixão. Mesmo que ela não nos pareça especialmente boa, a graça, por causa da nossa ignorância e do objetivo de Deus, a tornará boa quando a realizarmos. Sofremos mas fazemos a vontade de Deus, é o que está escrito. E isto, necessariamente, só pela bondade de Deus.

 

Mas onde está a vontade própria e não a vontade divina, onde reside o orgulho, Deus não abençoa nem revela seu conselho, para que não sejamos condenados por antecipação por conhecermos e não praticarmos. Pois aquilo que Deus nos dá e aquilo que ele guarda de nós, ele o faz pelo nosso bem, mesmo que, como crianças, o ignoremos. Ele não envia seu Espírito Santo a quem não purificou a si mesmo das paixões por meio das ações do corpo e das ações morais, a fim de que não receba o Espírito Santo quem ainda é culpado por sua inclinação habitual às paixões. Mas quando perseveramos na ascese, quando começamos por purificar o corpo de todos os pecados ativos – tantos os maiores como os menores –, quando a seguir purificamos nossa alma de toda concupiscência, de todo arrebatamento, quando engajamos toda nossa vida nos bons hábitos, sem fazer nada que passe pelos cinco sentidos e que vá contra a vontade do intelecto, quando não consentimos em nada disto no homem interior e conseguimos nos submeter a nós mesmos, então também Deus submete tudo a nós, pela graça do Espírito Santo, por meio da impassibilidade.

 

Pois em primeiro lugar é necessário que o homem se submeta à lei de Deus. Ser racional, ele deve submeter o que tem à mão, de modo a que o intelecto possa reinar tal como foi feito no começo, e que ele se torne assim um reino sábio e casto, viril e justo. Pela doçura do desejo ele aplaca o ardor, enquanto apazigua o desejo pela rudeza do ardor. Ele sabe ser rei, um rei que conduz todos os seus membros segundo a ordem de Deus, e que já não é como antes presa do esquecimento e da ignorância. A partir daí, consagrado a Deus, ele se torna clarividente, começa a prever as armadilhas que o diabo lhe prepara, as coisas que ele esconde e trama para perdê-lo.

 

Ele ainda não vê o porvir, como os Profetas, pois isto é sobrenatural e concedido apenas para o bem comum. A própria clarividência é sobrenatural. Sob o império das paixões ela aparece como que coberta de trevas, ainda que o intelecto esteja purificado. Por meio da humildade, a graça vem abrir os olhos da alma que o diabo cegara. Assim o homem começa a ver as coisas na sua natureza. Ele já não é seduzido como antes pela visão exterior. Este homem vê sem paixão o ouro, a prata e as pedras preciosas, ele já não se perde, já não faz comparações apaixonadas, mas sabe que essas coisas provêm da terra como qualquer outra matéria do mundo, como dizem os Padres. Ele vê o homem, e sabe que ele veio da terra e retornará para a terra[123], mas não se detém neste pensamento. Pois todos os homens sabem disto por experiência, mas são tiranizados pelas paixões e pelas coisas que elas arrastam consigo.

 

Se, por presunção, alguém crê poder ver as coisas na sua natureza sem antes passar pelas penas e pelas virtudes, isto não é de espantar. Pois a presunção torna cegos os que imaginam ver e leva os insensatos a se vangloriar em vão. Pois se fosse fácil ver as coisas em sua natureza apenas pelo pensamento, o luto e a purificação que este engendra seriam supérfluos, o mesmo acontecendo com as inúmeras formas de ascese, com a humildade, com a graça que vem do alto e com a impassibilidade. Ora, não é isto que acontece, senão o contrário. Muitas vezes a facilidade é concedida aos que são mais simples, àqueles que possuem um intelecto livre das coisas e malícias do mundo, assim que são submetidos a um Pai espiritual experiente. Ela também pode ser concedida, segundo os antigos, por uma economia da graça, antes mesmo que eles saibam qual a sua direita e qual a sua esquerda, como disse Salomão[124]. Mas é impossível sujeitar as paixões desde a tenra idade, combater resolutamente pela ascese toda malícia e toda fraude, libertar-se dos males e adquirir a visão, sem esforço e tempo, e sem a graça de Deus.

 

Enquanto aguardamos, devemos amar a aquisição das virtudes e a ela nos agarrarmos ardentemente por palavras e obras. Mesmo então, muitas vezes nossos esforços de nada servem. Pois ou bem não suportamos as tentações até o fim, ou bem ignoramos o caminho e o objetivo, por preguiça, por infidelidade ou por tantas outras coisas inumeráveis. Isto posto, se depois de tanto tempo ainda resvalamos em coisas que ultrapassam as medidas, como ousamos dizer que alcançamos a beleza original? Não estamos mergulhados no erro pela própria autocomplacência e perdição secreta? Pois assim como a vergonha de si mesmo constitui um progresso oculto que nos leva ao bom caminho e do qual não temos consciência, também a presunção e a autocomplacência constituem uma perdição secreta, por que voltamos a traz sem nos darmos conta. É evidente: numa alma vã, as paixões purificadas pela graça retornam sempre. É o que diz o Senhor: “Quando o espírito impuro se vai[125]”, etc. Por quê? Por que o lugar de onde ele saiu não tinha nem obra espiritual nem humildade. Quando outros males afluem de novo, ele retorna toda da sujeição que o segurava e refaz sua morada. Que aquele que possa compreender, compreenda.

 

A palavra de Deus não pretende atirar todas as coisas na claridade, nem tudo abandonar na obscuridade: ela simplesmente faz o que é bom. É uma grande coisa que Deus nos faz, diz João Crisóstomo, que certas passagens da Escritura sejam claras e outras obscuras. Por meio de umas chegamos à fé e ao fervor, quando uma total ignorância poderia nos fazer cair na descrença e na indiferença. Por meio das outras nos aturamos às buscas e ao esforço, nos libertamos do desespero e encontramos a humildade, por não as podermos compreender por nós mesmos.

 

Se assim tomamos consciência daquilo que nos é dado, recolhemos os frutos tanto de umas como de outras: a humildade e o desejo de Deus. A quinta contemplação, de que se trata aqui, nos dá esta certeza: a obra pode nos fazer ver as criaturas sensíveis, o discernimento pode nos revelar os pensamentos, e nenhuma ilusão pode nos deixar na ignorância. Mesmo sendo passionais como somos, nada mais podemos contra o objetivo divino, nem podemos consentir nos pensamentos. Ainda que estivéssemos à morte, pelas palavras e obras não nos afastaríamos do objetivo divino. Isto é o que é afirmado a respeito da finalidade do conhecimento.

 

Quanto ao início, o discípulo está necessariamente longe de tudo. Ele foi vencido, senão pela obra, ao menos pelo hábito. Ele logo escorrega pisando em falso, Deus permitindo, mas se ergue em seguida com mais humildade. Dali a pouco toma uma atitude orgulhosa, por pura presunção. Ele tem que aprender que a graça que o instrui[126] o ensina a se humilhar, a conhecer de onde ele recebe a força e a ciência que nos impedem de persuadir a nós mesmos, como está dito, e nos confiar Àquele que nos levanta[127].

 

Isto é o que acontece aqui. Se perseverarmos sem orgulho, sem nos desviarmos da virtude, nos liberaremos da morte do corpo e das coisas para penetrarmos no conhecimento dos seres. Pois então, como disse o Apóstolo, o homem é crucificado[128]. Ele é crucificado em seu corpo pelas ações do corpo, e em sua alma pelo trabalho da alma.

 

Possa ele ser assim sepultado[129] pela morte dos sentidos e do conhecimento natural e ressuscitar em seu intelecto pela impassibilidade em Cristo Jesus nosso Senhor[130]. A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém[131].

 

 

Décimo-segundo Discurso

 

A letra é Mu, e o décimo-segundo é este discurso.

Ele mostra assim a experiência das criaturas sensíveis

E de sua contemplação, a fim de que ninguém busque em vão.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Enquanto o intelecto não morre para as paixões, ele não deve entrar na contemplação do sensível. Se ele se distrai, se não se aplica ao estudo das divinas Escrituras com conhecimento e hesíquia, o homem está cego pelo esquecimento e se cobre insensivelmente de ignorância, ainda que tenha alcançado o conhecimento do intelecto, e ainda mais se este conhecimento não lhe tenha vindo pela graça – coisa que ele não tem como saber –, se ele apenas aprendeu sobre tais mistérios lendo e ouvindo aqueles que têm experiência.

 

Assim como a terra se cobre de florestas, sobretudo se for boa, quando o cultivador não a trabalha, do mesmo modo, se não se aplicar à prece e à leitura, se não fizer seu trabalho, o intelecto se torna pesado e cai na ignorância. E assim como de nada serve ao cultivados que a terra seja úmida e banhada de sol se ele não a semear e cultivar, também é impossível ao intelecto possuir o conhecimento sem uma obra moral, ainda que tenha recebido da graça tudo o que tem. Por pouco que ele se volte, por negligência, às paixões, ele se perderá. E se, de algum modo, ele se deixar levar pela presunção, a graça o abandonará. É por isso que os Padres, mesmo quando a velhice e a doença os forçavam a restringir as ações do corpo, jamais relaxavam as da alma. Pois em lugar das ações do corpo eles possuíam a enfermidade, que podia preparar sua pobre carne; mas fora da obra moral, é impossível conservar a alma sem pecado, para que o intelecto venha a ser iluminado. Pois o cultivador deve trocar seus utensílios com frequência, ou repará-los sempre, jamais deixando a terra inculta, sem semear nem plantar, ou sem proteger a colheita, se quiser comer seus frutos[132].

 

E se um ladrão, um assaltante, não quiser entrar por esta porta e pular por outra parte, como diz o Senhor[133], as ovelhas (ou seja, os pensamentos divinos, segundo são Máximo[134]) não o escutarão. O ladrão não entra senão para roubar por aquilo que ele deixa ouvir e para imolar pela alegoria, pois ele não pode rejeitar a Escritura. Em sua presunção, por seu falso conhecimento, ele perde a si mesmo, e, consigo, seus pensamentos. O pastor sofre junto com seus pensamentos. Por Cristo, ele luta o bom combate[135] de que fala o Apóstolo, guardando os pensamentos divinos. Ele entra pela porta estreita[136], a humildade, que conduz à impassibilidade. Antes mesmo que lhe tenha sido dada a graça do alto ele se dedica a escutar tudo, a aprender tudo. Toda vez que chega um lobo em pele de cordeiro[137] ele o expulsa por vergonha de si mesmo, dizendo: “Eu não sei quem é você, mas Deus sabe”. E quando um pensamento lhe vem impudentemente e pede para ser recebido, dizendo: “Se você não guarda os pensamentos, se você não discerne as coisas, você não tem fé, você é ignorante”, ele responde: “Talvez eu seja louco como você diz, mas eu sei, com o divino Crisóstomo, que quem é louco neste mundo, é sábio”. O Apóstolo o disse[138].

 

E o Senhor afirma que os filhos deste século são mais prudentes nesta geração do que os filhos do Reino dos céus[139]. É evidente. Uns desejam dominar, enriquecer, ter razão, ser glorificados, ter o poder e tudo antecipadamente, mesmo que seja provável fracassarem e que seu esforço seja vão, por que eles se agarram às coisas mesmo além daquilo que podem. Mas os outros querem tudo ao contrário. E com isso eles muitas vezes recebem desde agora as garantias da beatitude do além, Eles aplicam sua inteligência, ainda que contra si próprios, em receber da graça a liberdade. Assim o intelecto pode ter a memória sem esquecimento e, ou bem conhecer os pensamentos, desde que atestados pelas divinas Escrituras e pelos que têm experiência do conhecimento espiritual, ou bem, na falta de um grande conhecimento, ignorá-los permanecendo na expectativa, sabendo que os pensamentos que vinham até então eram tentações que experimentavam a liberdade.

 

A partir daí o humilde retorna de si mesmo e cessa de acreditar no seu próprio pensamento e no seu próprio objetivo. Ao contrário, ele teme e interroga, chorando muito. Ele foge para a humildade e condena a si próprio, e considera o conhecimento e os carismas como um grande prejuízo. Mas o orgulhoso corre a promover seus próprios pensamentos. Ele não escuta João Clímaco que diz para não buscar antes do tempo as coisas que virão a seu tempo[140]. Ele também não escuta a santo Isaac, que ensina a não penetrar impudentemente o interior, mas a render graças em silêncio[141]; nem João Crisóstomo, que, ensinado pelo Apóstolo, diz: “Eu não sei”; nem João Damasceno que, a propósito de Adão, disse que ainda não era chegado o tempo de se engajar na contemplação do inteligível[142]. Pois os sentidos das crianças não podem suportar o alimento sólido. Elas precisam de leite, disse o Apóstolo[143].

 

Por isso não devemos buscar a contemplação quando não é tempo de contemplação, mas devemos primeiro adquirir em nós mesmos as mães das virtudes, e o conhecimento virá por si só pela graça de Cristo. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Décimo-terceiro Discurso.

 

A letra é o Nu, e o décimo-terceiro discurso

Fala agora do conhecimento dos seres inteligíveis,

Ou seja, das ordens das Inteligências incorpóreas.

Aquele que vê as reconhece pelo sensível.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

O conhecimento do inteligível vem depois que aprendemos o costume de contemplar o sensível. Mas não é um anjo que será dado ver àquele que conhece. Como pode um homem, que não vê sua própria alma, ver uma coisa imaterial que só é conhecida pelo Criador? Foi para o bem comum e pela providência de Deus que os anjos se revelaram numa forma muitas vezes aos nossos pais. Mas isto já não nos acontece, pois queremos por presunção, não pelo cuidado com o bem comum, e nossas provações não são divinas. É por isso que aquele que pede uma visão destas deseja na realidade ver um demônio, o qual, disse o Apóstolo, se disfarça em anjo de luz[144]. Ao contrário, é quando não pensamos nestas coisas, quando chegamos até a duvidar que elas possam acontecer, é que elas acontecem, se acaso as recebermos para o bem de todos.

 

Assim é que o conhecimento passa por aí: não querer, ainda que em sonhos, receber tal visão, não a tomar se nos for dada, mas permanecer como que ignorantes do estado em que nos encontramos. Pois o verdadeiro anjo recebeu de Deus o poder de apaziguar mesmo o intelecto que não o deseja, para que este o acolha. Mas o demônio não pode fazê-lo. Se ele vê o intelecto pronto a recebê-lo, lhe é permitido manifestar-se. Senão ele se vai, expulso pelo anjo que, desde o batismo divino, protege o intelecto para que este não traia a liberdade.

 

Assim são as coisas. Mas devemos agora falar da única contemplação das ordens superiores, que são nove, segundo o grande Denis[145], e que encontramos por toda a Escritura. Estas ordens são denominadas segundo sua natureza e sua energia. Nós as chamamos incorpóreas, por que são imateriais; inteligentes, por que são inteligências; exércitos[146], por que são os espíritos que servem ao Rei do universo[147]. Elas têm ainda muitos outros nomes que lhes são comuns ou que lhes são próprios. Assim é que as chamamos Potências[148] e Anjos[149], sendo Anjos também o nome de uma ordem, enquanto que em sua ação as chamamos Potências, pois elas podem cumprir todas as vontades divinas.

 

“Anjos” é, portanto, o nome próprio de uma única ordem, a primeira a partir de nós e a nona a partir do Trono inacessível. Mas no campo da ação chamamos de anjos todos os que anunciam aos homens os mandamentos divinos[150]. Salomão diz que em Jó[151] foi um outro anjo que veio, que não pertencia à ordem dos Santos Anjos. João Crisóstomo diz que ele foi deixado só, e que ele veio anunciar. A divina Escritura prediz em diversas passagens que o próprio Senhor virá como um anjo[152]. Está escrito que Abrahão recebeu anjos[153]. E João Damasceno disse à Mãe de Deus que o Senhor estava além da carne: “Na tenda de Abrahão foi revelado o mistério que está em você, ó Mãe de Deus. Pois ele recebeu seu Filho além da carne, etc.”. Também na fornalha, era ele que estava com as Crianças[154]. Por todas estas ações ele é chamado de Anjo. O profeta Isaías o chama de Anjo do grande conselho[155]. E o próprio Senhor disse: “Eu lhes anuncio o que ouvi de meu Pai[156]”.

 

A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Décimo-quarto Discurso.

 

O presente discurso traz a letra Xi

E fala genericamente da verdadeira impassibilidade.

Agora já são catorze capítulo

Resumidos pela graça de Deus.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

A impassibilidade é uma coisa estranha e paradoxal. Se chegarmos a superar o estado passional, ela pode nos conduzir à imitação de Deus, tanto quanto isto é possível a um homem.

 

Quando sofre, quando é combatido por demônios ou por salteadores, o impassível a tudo suporta como se estivesse em outro corpo, tal como fizeram os santos apóstolos e os mártires. Glorificado, ele não se orgulha disto. Ultrajado, não se aflige. Pois ele considera que as coisas agradáveis são uma graça e um socorro de Deus que ultrapassam seus méritos, e que as coisas difíceis são provas. Umas nos são dadas pela graça aqui em baixo para nossa consolação, as outras para a humildade e a boa esperança no século futuro. Seu discernimento o torna insensível em meio a tantas sensações dolorosas.

 

Pois a impassibilidade não é uma única virtude. Ela é o nome de todas as virtudes. Assim como o homem não é um só membro, mas todos os membros do corpo se manifestam – e não apenas eles mas também a alma – também a impassibilidade é a reunião de muitas virtudes, e ela tem por alma o Espírito Santo. Pois tudo o que denominamos obras espirituais é sem alma se não possuem o Espírito Santo por meio do qual o homem a quem chamamos espiritual recebe este nome. Se a alma não rejeita as paixões, o Espírito Santo não virá a ela. Mas sem ele, esta virtude abarcante ainda se chama impassibilidade. Porém, sem o Espírito Santo, o homem impassível é apenas insensível. É por isso que os gregos, que ignoravam estas coisas, diziam: “não seja impassível como quem não tem alma, nem passional como quem não tem razão”. Ao dizer “impassível como quem não tem alma”, eles falavam daquilo que conheciam, mas eles não conheciam o Espírito Santo. Que o homem passional é desprovido de razão, isto também dizemos nós; mas não foi deles que aprendemos isto. Pois nisto não há nem conhecimento, nem experiência. Nós aprendemos de onde vêm os sofrimentos por termos experimentado a tirania das paixões. E é por termos aprendido dos santos Padres aos quais foi dada a impassibilidade, que escrevemos sobre como adquirir as virtudes. Com efeito, eles dizem que o homem passional, inteiramente transtornado pelo amor às paixões, está como que prisioneiro e insensível. Tanto ele se deixa tomar pela concupiscência, como uma besta sem razão, como é levado pelo ardor que submete o desejo e, como uma fera, ele range os dentes contra seus semelhantes.

 

É assim pelo perfeito amor a Deus que o homem impassível acaba por nada sentir. Ora ele fala com Deus, ora contempla suas maravilhas e medita uma palavra das divinas Escrituras. “Ainda que ele estivesse no meio da turba, em pleno mercado, diz são Nilo, seu intelecto permanece só”. Este estado provém da guarda dos divinos mandamentos de Cristo, A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Décimo-quinto Discurso.

 

A guarda dos mandamentos divinos

É o sinal do amor a Deus e ao próximo.

Este discurso fala, portanto, do amor.

Ele tem por letra o Ômicrom, que é a décima-quinta letra,

Pois o amor é a origem e o fim da lei.[157]

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Quem quer falar de amor ousa falar de Deus. Com efeito, João o Teólogo disse: “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus[158]”. Que maravilha!

 

Esta virtude fundamental dentre todas é natural. É por isso que a Lei a chama “a primeira”: “Amar ao Senhor seu Deus[159]”, etc. Mas quando ouvimos dizer que devemos amá-lo com toda nossa alma, ficamos fora de nós e já não precisamos de outras palavras. Com toda nossa alma significa “com a razão, o ardor e o desejo”. Pois a alma traz em si estas três coisas. O intelecto considera sempre as coisas divinas. O desejo não busca nada além de Deus, nunca outra coisa, por que a Lei diz: “Com toda a sua alma”. E o ardor age natural e unicamente contra o que impede tal desejo. João o Teólogo disse com toda razão que Deus é amor[160].

 

A partir do momento em que Deus vê as três potências da alma voltadas para ele e não tendo senão um desejo, conforme ele próprio ordenou, ele, necessariamente e em sua bondade não apenas amará, como virá e habitará nele[161], como ele disse, por meio da descida do Espírito. O corpo, que não aceita e não quer – por que ele não possui razão – acabará por se submeter à palavra de Deus e, a partir daí, a carne já não desejará mais contra o Espírito[162], como disse o Apóstolo.

 

Mas, assim como o sol e a lua que, embora não tenham alma, venham por ordem de Deus iluminar o mundo terrestre, também o corpo, pela vontade da alma, realiza as obras da luz. Do mesmo modo como a cada marcha do oriente para o ocidente o sol engendra um novo dia, e a sua ausência cria a noite, também cada virtude que o homem realiza ilumina sua alma, e sua ausência cria a paixão e as trevas, até que este home adquira novamente a virtude e a luz retorne. Assim como o sol se levanta do fundo do oriente e leva pouco a pouco sua irradiação luminosa até a outra extremidade do céu, realizando assim o tempo, também o homem cresce pouco a pouco desde a origem das virtudes até se tornar impassível. Assim como a cada mês a lua cresce e decresce, também todos os dias cada virtude aumenta ou diminui, até que o homem as traga em si plenamente. Ora ele se aflige diante de Deus, ora se regozija e dá graças, indigno que é de trazer em si estas virtudes. Tanto ele se vê na luz quanto se perde nas trevas, até que tenha terminado seu caminho. A providência envia estas coisas. Umas chegam pela elevação, outras pelo desespero. Assim como no século presente o sol opera suas revoluções, que a lua cresce e decresce, e que no século futuro a luz será constante para os justos e as trevas para os injustos como eu, também agora, antes do amor perfeito e da contemplação divina, a alma está cheia de mudanças e o intelecto pleno de trevas, e as mudanças e a escuridão se misturam com as virtudes e os conhecimentos, até que ao homem seja dada a obra do século futuro, por meio do amor perfeito que é o fruto de todos os seus esforços.

 

Com efeito, é por meio do amor que aquele que vive na submissão escuta o que lhe é ordenado. É por amor que aquele que era rico e livre se fez pobre e servidor, a fim de dar o que tinha e a si mesmo aos que necessitam. É também por amor que jejuamos, para que outros possam ter o alimento com o qual nos alimentaríamos. Toda obra é feita, assim, por amor a Deus e por amor ao próximo. As coisas de que falamos e outras semelhantes são feitas por amor ao próximo. Mas a vigília, a salmodia e outras que tais são feitas por amor a Deus. A ele a glória, honra e poder pelos séculos[163]. Amém.

 

Décimo-sexto Discurso.

 

A letra Pi é o décimo-sexto discurso

Sobre o conhecimento de Deus, brevemente.

Pois de teologia muitos falaram

Por numerosos cânones e discursos.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Tudo que Deus fez teve um começo. E, se for sua vontade, terá um fim. Pois tudo foi criado do nada. Mas Deus não teve começo nem terá fim, assim como suas virtudes, pois ele jamais existiu sem elas. Ele é sempre infinitamente bom, justo, totalmente sábio, todo-poderoso, invencível, impassível, infinito, sem limite, insondável, inconcebível, sem termo, eterno, incriado, imóvel, imutável, verdadeiro, simples, invisível, intocável, inapreensível, perfeito, mais alto que o ser, inexprimível, incompreensível, compassivo, transbordante de amor e misericórdia, dominando a tudo, vendo tudo. E não é por que existem virtudes, como disse o grande Denis, que ele seja obrigado a trabalhar cada uma, como os homens virtuosos. Mas ele realiza cada virtude por que quer, e em seu poder ele se serve livremente delas como de utensílios.

 

Os anjos e os homens virtuosos receberam dele, por sua graça, junto com seu ser, as virtudes pelas quais eles o imitaram e se tornaram justos, bons e sábios. Mas eles são suas criaturas e têm necessidade da assistência e do impulso d’Aquele que domina o universo, sem o qual eles não poderiam ter nem virtude, nem sabedoria. Pois as criaturas trazem em si a mudança, e são chamadas “compostas”, por serem formadas de diferentes elementos. Mas Deus é incorpóreo, simples, sem começo, o Deus único, adorado e glorificado por toda a Criação no Pai, no Filho e no Espírito Santo. E aquele que o imita não tem senão uma única vontade. Este já não é composto de múltiplas vontades. Seu intelecto é simples: ele se aplica sempre àquilo que não possui forma, tanto quanto pode, e, sem que o perceba, passa providencialmente do que é sem forma para a contemplação da Escritura ou das criaturas.

 

E para não ser condenado ele provê seu corpo, não por que deseje engendrar a vida por que lhe agrade, mas para que ele não seja totalmente inútil. Senão, ele seria condenado. Com efeito, assim como o intelecto não rejeita as paixões que o cercam, mas se serve delas com naturalidade, também a alma não rejeita o corpo, mas se serve dele para as boas obras. E assim como o intelecto domina os impulsos irracionais das paixões e dirige cada uma delas para a vontade divina, também o homem domina os membros do corpo para que eles se tornem uma só vontade, e não muitas. Ele não deixa nenhum dos quatro elementos do corpo nem nenhum de seus membros fazer o que quiserem. Tampouco ele deixa as três potências da alma pensar ou colocar o corpo em movimento sem reflexão e sem ordem, mas supervisionando a tudo com sabedoria espiritual, ele torna indivisível a vontade das três potências.

 

Esta sabedoria tem quatro formas: a prudência, a castidade, a coragem e a justiça. Gregório o Teólogo escreveu a respeito delas uma obra muito elevada[164], em Jesus Cristo nosso Senhor. A ele o poder e a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Décimo-sétimo Discurso.

 

Eis agora o décimo-sétimo discurso,

Que fala de uma das virtudes gerais.

Chegamos à letra Ro.

A prudência é a primeira das quatro virtudes.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Tudo o que diz respeito às quatro virtudes gerais pode ser facilmente aprendido por aqueles que querem aprender com o Teólogo. Falaremos um pouco de cada uma delas aqui.

 

Cada virtude necessita de todas as quatro. E toda ação necessita da primeira, a prudência. Nada se faz sem ela. Como é possível que algo seja feito sem a prudência? Ela nasce do pensamento. Ela é um meio termo entre a habilidade, que é uma das formas do orgulho, e a inépcia. Uma atrai para cima a prudência para usá-la mal e ferir as almas daqueles que têm esta virtude e que ela consegue tocar. A outra torna a inteligência insensível e vã, e não permite que ela se aplique nem às coisas divinas, nem a nada que possa ajudar à alma ou ao próximo. Uma se parece com uma alta montanha, a outra com um abismo.

 

Aquele que faz seu caminho pela planície entre uma e outra é prudente. Mas quem se afasta do caminho, ou bem cai no abismo, ou bem tenta subir ao cume e, não encontrando passagem, tomba contra a vontade e não consegue se erguer, pois não quer se desligar das alturas da montanha para se voltar para a prudência, por meio do arrependimento. Mas quando caímos no abismo imploramos humildemente por Aquele que pode nos reconduzir ao caminho real da virtude. Quanto ao homem prudente, ele não se eleva para se orgulhar e tentar fazer mal aos demais. Ele tampouco desce sem razão, e ninguém lhe faz mal. Recolhendo o que há de melhor, ele se protege em Cristo nosso Senhor. A ele a glória e o poder por todos os séculos dos séculos. Amém.

 

Décimo-oitavo Discurso.

 

Sigma é a décima-oitava letra.

Este discurso fala da castidade.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

A castidade é um sentimento integral, sem nenhuma falha. Ela não permite a quem a possui cair nem no deboche nem na inércia. Mas ela guarda os bens que recolhe da prudência, rejeita todos os males, reúne em si os pensamentos, e através dela os remete a Deus. Como o bom pastor, ela guarda no interior as ovelhas, vale dizer, os pensamentos divinos. E, abstendo-se de tudo o que possa prejudicar, ela mata o deboche como cães raivosos e expulsa a inércia como o lobo selvagem. Ela não deixa que as ovelhas sejam devoradas na solidão, e não cessa de vigiar e denunciar à razão, para que o lobo não possa se esconder na obscuridade e se misturar aos pensamentos.

 

Ela mesma nasce do desejo da alma. Sem ela não podemos guardar nada de bom, seja lá o que for que tivermos adquirido. Pois se não temos a castidade, ou bem erguemos alto demais as três partes da alma, ou bem as rebaixamos, aplicando-as, seja à inércia, seja ao deboche. O deboche de que eu falo não está ligado apenas à gula e à prostituição, mas a toda paixão e todo pensamento que não se dirija voluntariamente a Deus. Pois a castidade poda todas estas coisas. Ela detém os impulsos irracionais da alma e do corpo e os conduz a Deus. A ele a glória por todos os séculos. Amém.

 

 

Décimo-nono Discurso.

 

A letra é Tau, e o discurso fala da coragem.

É, portanto, o décimo-nono.

A coragem nasce do ardor.

Ela é um meio termo entre a arrogância e a preguiça.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

É próprio a coragem não vencer e oprimir o próximo. Isto vem da arrogância, que visa além da coragem. Também é da coragem não fugir, por temor às tentações, para longe das obras e das virtudes dedicadas a Deus. Aí reside a preguiça, que voa baixo. O que caracteriza a coragem é perseverar em toda boa obra e vencer as paixões da alma e do corpo. Pois não lutamos contra a carne e o sangue, ou seja, contra homens, como outrora fizeram os judeus. Naquela ocasião, aquele que triunfava sobre outros povos nos combates achava estar fazendo a obra de Deus. Mas nós lutamos contra os Principados, contra as Potestades, ou seja, contra os demônios invisíveis[165]. Agora a vitória será do intelecto, ou seremos vencidos pelas paixões.

 

O combate contra os homens era uma imagem do nosso próprio combate. Pois estas duas paixões – a arrogância e a preguiça – mesmo parecendo contrárias, são ambas postas em movimento pela fraqueza. A arrogância empurra para cima: ela pretende causar medo e derrubar os outros, como um urso impotente. E a preguiça foge como um cão corrido. Pois quem possui uma destas duas paixões jamais espera no Senhor. Este é incapaz de combater, pois nem a arrogância, nem a preguiça o ajudam. Mas o justo é como um leão[166]. Ele se confia a Jesus Cristo nosso Senhor. A ele o poder e a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

 

Vigésimo Discurso.

 

O vigésimo discurso tem por letra o Ípsilon,

E fala da justiça de todas as virtudes.

Esta faz uma partilha igualitária

E renasce dentro do intelecto.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Deus é igualmente celebrado pela justiça, disse o grande Denis[167]. E com razão, pois, sem ela, tudo é iníquo. Sem ela, nada se mantém. Nós a chamamos discernimento. Ela faz em toda obra uma partilha igualitária, para que em nada haja falta, por indigência, ou excesso, por abundância. Mesmo que pareçam contrários, falta e excesso empurram uma parte de nós mesmos para a iniquidade.

 

Se for curva ou circular, a linha não leva direto ao objetivo. Também o lado sobre o qual pesa o jugo prevalece sobre o outro. Quem é capaz de trazer consigo a justiça não cai. A demência e o deboche, a preguiça e a concupiscência não o arrastam para baixo, como a serpente que se arrasta sobre o ventre, comendo a poeira e apedrejada pelas paixões da desonra. A habilidade e a insolência, a inércia e a indigência tampouco o levantam alto, onde ele se orgulharia maliciosamente além de seus méritos. Ao contrário, seu pensamento é casto[168]. Ele suporta com humildade, sabendo que tudo o que possui recebeu por graça[169], como diz o Apóstolo, e assim ele nada recusa. Pois ele seria injusto para consigo e com seu próximo, e sobretudo para com Deus, se atribuísse a si mesmo suas boas ações. Se ele pensa ter em si qualquer coisa de bom, aquilo que ele pensa ter lhe será tirado[170], diz o Senhor. A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Vigésimo-primeiro Discurso.

 

A letra do vigésimo-primeiro discurso é Fi,

E fala da perfeita paz dos pensamentos,

Tal como os discípulos receberam do Senhor.

Pois por Deus ela foi concedida.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

O Senhor disse aos apóstolos: “Eu lhes dou a minha paz”. E acrescentou: “Não como o mundo dá[171]”. Isto significa que ele não a deu simplesmente como os homens deste país, quando se saúdam uns aos outros dizendo: “Esteja em paz”. Nem como disse a Sunamita: “Paz a você[172]”. Também Eliseu disse a Giezi: “Você lhe dirá: paz a você[173]”. Ou seja: “Paz ao seu marido, paz ao seu filho”. Mas Deus concede a paz que ultrapassa toda inteligência[174]. Ele a concede aos que o amam de toda sua alma, para os combates que sustentaram e os perigos que enfrentaram antes de possuí-la.

 

É por isso que o Senhor disse ainda: “Vocês têm em mim a paz”. E acrescentou: “Vocês conhecerão as aflições do mundo. Mas tenham coragem. Eu venci o mundo[175]”. Por numerosas que sejam as aflições que nos assaltam, por numerosos que sejam os perigos em que nos colocam os demônios e os homens, quem traz em si a paz do Senhor considera tudo isto como nada. E diz: “Estejam em paz uns com os outros[176]”.

 

O Senhor lhes anunciou todas essas coisas, pois eles deveriam combater e sofrer aflições por ele. Cada um de nós, fiéis, durante o tempo de nossa formação, devemos também enfrentar as paixões que combatem e escandalizam. Mas se estivermos em paz com Deus e com o próximo, seremos capazes de dominar a tudo. Pois essas paixões são o mundo ao qual João o Teólogo ordenou odiar[177]. Não que devamos odiar as criaturas: ele nos ordenou rejeitar as concupiscências deste mundo[178]. A alma está em paz com Deus quando ela está em paz consigo mesma e se entrega inteiramente a Deus. O mesmo fruto é colhido quando ela está em paz com os homens, quaisquer que sejam os males que estes a façam sofrer. Ignorando o mal ela não se perturba com nada, mas abarca a tudo[179], deseja o bem de todos, ama a todos os seres através de Deus e da natureza. Ela chora pelos descrentes, por causa de sua perdição, como fizeram o Senhor e os apóstolos. Mas ela também chora e sofre pelos fiéis. Assim ela recebe a paz dos pensamentos e conduz o intelecto à contemplação e à prece pura voltadas para Deus. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

 

 

Vigésimo-segundo Discurso.

 

A letra é Qui e o vigésimo-segundo discurso

Diz como a alegria nasce da paz.

Falaremos pouco disto, pois

A alegria é espiritual, e de outro gênero.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

“Regozijem-se no Senhor[180]”, disse o Apóstolo. Ele disse bem: “no Senhor”. Pois se a alegria não for no Senhor, não apenas não estaremos nos alegrando, como não nos regozijaremos jamais. Jó, contemplando a vida humana, achou que ela trazia consigo toda a aflição[181]. Também o grande Basílio. Gregório de Nice falou que os pássaros e outros animais se regozijavam em sua insensibilidade, enquanto que o homem, que possui a razão e conhece o luto, nunca é conduzido à alegria. Pois, dizia ele, não nos foi dado possuir o conhecimento dos bens dos quais decaímos. A natureza nos ensina a chorar, na medida em que a vida é pesada de sofrimentos e de penas, e na medida em que o exílio é carregado de pecados.

 

Mas se guardamos continuamente em nós a lembrança de Deus, estamos alegres. Como diz o Salmista: “Eu me lembrei de Deus, e me alegrei[182]”. O intelecto que se regozija com a memória de Deus esquece as aflições do mundo. A lembrança de Deus o cumula de esperanças nele. Então o intelecto se liberta de todas as suas preocupações e a ausência delas o torna alegre, dispondo-o a dar graças. A ação de graças reconhecida aumenta os dons e os carismas. E, quanto mais se multiplicam as benesses, mais crescem a ação de graças e a prece pura, misturada com lágrimas de alegria, mais se acalmam as lágrimas de tristeza e diminuem as paixões. O homem escapa das paixões. Possa ele alcançar assim a felicidade espiritual.

 

Nas doçuras ele descobre a humildade e dá graças. Nas tentações confirma-se nele a esperança no século futuro. Ele se regozija com ambas as coisas. Ele ama a Deus e a todos os seres como sendo seus benfeitores. Ele não encontra na criação nada que possa prejudicá-lo. Iluminado pelo conhecimento de Deus, admirando sua atenção pelas criaturas, delas ele extrai sua alegria no Senhor. Tendo alcançado o conhecimento espiritual ele não apenas se maravilha com as coisas admiráveis que se apresentam diante de seus olhos, mas fica pasmo ao sentir as relações necessárias que não aparecem aos que não têm experiência. Ele não admira apenas o dia pela sua luz, mas também a noite. Pois a noite é proveitosa a todos: ela dá aos ativos o repouso e a disponibilidade, leva aos que choram a memória da morte e do inferno, dispõe os que alcançaram a vida ética a meditar mais rigorosamente, aprofundando as benfeitorias e mantendo as condutas. Como diz o Salmista: “O que vocês dizem em seus corações, recolham-no às suas camas[183]”, ou seja, recolham-no no repouso da noite, lembrando-se das quedas durante a confusão do dia, exortando-se mutuamente com hinos e odes espirituais[184]. Aprendam a viver entre preces e salmodias, na meditação e na leitura atenta, pois é assim que se chega com sucesso à ação moral. É preciso velar sobre as coisas do dia e delas tomar consciência no repouso da noite, para poder chorar as faltas.

 

Quando a graça leva um homem como este ao progresso e ele descobre que, por obras e palavras em conformidade com os mandamentos de Cristo, surgem nele os atos característicos da ética da alma e do corpo, ele rende graças com temor e humildade e se esforça por meio da oração e muitas lágrimas diante de Deus para manter sempre esta boa conduta, ele exorta a si mesmo para se lembrar sempre disto, a fim de não afundar outra vez no esquecimento e na perda de si mesmo. Pois é preciso tempo para obter em si com sucesso a boa conduta. E quando se chega lá, depois de muitos esforços e tempo, ainda assim pode-se por tudo a perder num piscar de olhos.

 

Isto vale para os ativos. Quanto aos contemplativos, a noite também lhes traz muitas contemplações, como disse o Grande Basílio[185]. Ela lembra a eles ao mesmo tempo a fundação do mundo, quando toda a criação estava em seu princípio coberta de trevas. Ela lhes permite ver como o céu estava então vazio e sem astros, coberto por nuvens hoje desaparecidas. Ao entrar na sua cela e não ver senão obscuridade, ele recorda esta treva que pairava sobre o abismo[186]. Mas logo o céu se torna claro novamente. De pé fora de sua cela o monge se maravilha por ver o mundo do alto e louva a Deus, como foi dito em Jó dos anjos que viram os astros[187]. Ele também contempla a terra informe e vazia[188], tal como era então, e os homens mergulhados no sono como se não existissem. Ele se sente como Adão, e canta ao Criador do mundo, neste conhecimento que ele partilha com os anjos. Diante dos raios e das trovoadas, ele imagina o que será o dia do Juízo; diante da voz dos pássaros, ele sente que será esta a voz da trombeta[189]. Quando se ergue a estrela da manhã e a luz da aurora, ele pensa na revelação da cruz venerável e vivificante[190]. Quando os homens despertam de seu sono, ele reconhece a ressurreição. Ele vê no sol a vinda do Senhor. Ele considera o modo como uns vão ao seu encontro pela salmodia, como irão então os santos sobre as nuvens[191] e como outros são negligentes e continuam a dormir, como os que serão julgados. Uns, pela glorificação, a contemplação, a prece e outras virtudes, serão cumulados de alegria durante o dia, passando seu tempo na luz do conhecimento, como então farão os justos. Mas outros permanecerão nas paixões e nas trevas da ignorância, como farão naquela hora os pecadores.

 

Resumindo, quem possui o conhecimento encontra em cada coisa um auxílio para a salvação da alma e a glória de Deus. Pois por intermédio do conhecimento tudo provém do Senhor e do Deus de todo o conhecer, como disse a mãe do profeta Samuel[192]: “Que o sábio não se glorifique de sua sabedoria”, etc. Ao contrário, quem se glorifica, que o faça por compreender e conhecer o Senhor[193]. Vale dizer: por conhecer em toda consciência o Senhor em suas criaturas e por imitá-lo tanto quanto possível por meio da guarda de seus divinos mandamentos. Pois é por meio deles que ele o conhece e pode, como ele, cumprir o julgamento e a justiça na terra[194].

 

Com estas palavras a mãe de Samuel profetizou a crucificação e a ressurreição do Senhor. Ela anunciou que o homem deveria sofrer com ele adquirindo as virtudes e ser glorificado com ele pela impassibilidade e o conhecimento, e nele ter sua glorificação, pois a ele foi concedido, malgrado sua indignidade, ser o servidor de tamanho mestre e de imitar sua humildade.

 

“Então o louvor virá do Senhor[195]”, disse o Apóstolo. Então, no sentido de depois. Mas quando? Quando ele disser aos que estarão à sua direita: “Venham, os benditos, herdeiros do Reino[196]”. Possamos todos nós sermos considerados dignos disto, por sua graça e seu amor pelo homem. A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém[197].

 

 

Vigésimo-terceiro Discurso

 

Das Escrituras fala o vigésimo-terceiro discurso[198]

A fim de que não haja nenhum desacordo

Naqueles que as quiserem sondar

Mas que eles saibam, como convém,

Compreender tudo o que está escrito.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

“Cantem com toda sua inteligência[199]” disse o Profeta. E “sondem as Escrituras[200]” disse o Senhor. Quem ouve isto está sob a luz; mas quem não escuta está nas trevas. Pois se não estamos atentos ao que querem dizer as divinas Escrituras não podemos recolher seus frutos, ainda que as cantemos e leiamos frequentemente.

 

Foi dito: “Parem e conheçam[201]”. Com efeito, o repouso recolhe o intelecto. Por pouco atento que pretendamos ser, conheceremos ao menos em parte[202], segundo o Apóstolo, ainda mais se nos abrirmos à ação moral, que dá ao intelecto que luta contra as paixões uma grande experiência. Porém não são os mistérios ocultos em cada palavra da Escritura que conhecemos de Deus, mas aquilo que a pureza do intelecto pode receber da graça. Acontece muitas vezes conhecermos teoricamente uma palavra escrita e alcançarmos um ou dois sentidos desta palavra. Mas depois de um tempo, o intelecto pode se tornar mais puro, e lhe é concedido outro conhecimento mais elevado do que o primeiro. A partir daí, em sua pobreza, maravilhado ante a graça de Deus e sua inefável sabedoria, ele começa a fremir e tremer diante do Deus dos conhecimentos, como disse a profetiza Ana: “o Senhor é Deus dos conhecimentos[203]”.

 

Mas eu não falo aqui daquilo que se pode compreender de uma Escritura ou de um homem. Não é aí que se encontram a pureza do intelecto e a revelação. Nós as encontramos quando conhecemos e desconfiamos de nós mesmos, até que sejamos capazes de descobrir que a divina Escritura, ou um dos Santos, dão testemunho pelo conhecimento que vem por si mesma da palavra da Escritura ou da coisa sensível ou inteligível. E ainda que encontremos ou entendamos na divina Escritura ou entre os santos Padres muitos sentidos ao invés de um só, devemos manter a confiança neles e não imaginar que exista aí alguma discordância. Pois uma mesma coisa pode possuir numerosos sentidos. É como a vestimenta: um diz que aquece, outro que orna, outro que cobre, e os três falam a verdade. Pois a veste serve para aquecer, para ornar e para cobrir. Cada um dos três encontrou o objetivo divino assinalado à vestimenta. A divina Escritura e a natureza das coisas lhes dão testemunho. Mas se alguém, por ser voraz e ladrão, põe na cabeça que as vestes servem para ser subtraídas e roubadas, este está mentido de um modo ou de outro. Pois nem a Escritura nem a natureza das coisas testemunham que as vestes foram feitas para isto. E as leis castigam tal atitude.

 

O mesmo acontece para todas as coisas sensíveis e inteligíveis, e para cada palavra da divina Escritura. Pois os Santos nem conhecem todos os objetivos de Deus em cada coisa ou cada palavra escrita, nem tampouco escrevem de uma vez por todas tudo aquilo que sabem delas. Com efeito, de um lado Deus é incompreensível e a sabedoria não é finita ao ponto de que um anjo ou um homem a possa conter. É o que afirma João Crisóstomo a respeito de certo tipo de contemplação: nós mesmos dizemos dela apenas o que devemos dizer nesta ocasião. Mas além do que dizemos, Deus conhece outras coisas incompreensíveis. Por outro lado, não é bom que os próprios santos digam tudo o que sabem, por causa da fraqueza dos homens e a fim de que seus discursos não se tornem longuíssimos e insuportáveis ou incompreensíveis em razão da confusão. Ao contrário, segundo Gregório o Teólogo, tudo o que eles dizem deve sê-lo feito comedidamente.

 

É por isso que o mesmo homem pode falar de uma coisa hoje e amanhã tratar diferentemente a mesma coisa. Não existe discordância aí, se quem o ouvir tiver conhecimento ou experiência daquilo que é dito. E também: uma pessoa pode dizer certas coisas e outra dizer coisas diferentes a respeito da mesma palavra da sagrada Escritura. Pois a graça divina muitas vezes concede algumas coisas a umas pessoas e outras a outras, conforme sejam os homens e os tempos. É apenas isto que deve ser buscado. Que tudo seja feito e dito com vistas ao objetivo divino, e que tudo seja atestado pelas santas Escrituras. Que não ouçamos do Apóstolo: “Seja anátema, ainda que for um anjo[204]”, por anunciarmos outro evangelho contra o objetivo divino e contra a natureza das coisas. É o que dizem também o grande Denis, Antônio e Máximo o Confessor. E João Crisóstomo acrescenta: “Não foram os filhos dos gregos que nos transmitiram estas coisas, mas a santa Escritura. A Escritura não se contradiz quando diz de um homem que ele não viu a Babilônia no cativeiro e em outra parte que ele foi enviado à Babilônia junto com os demais. Se lermos atentamente veremos com efeito em outra passagem da Escritura que aquele homem estava cego e que foi levado ao cativeiro. Assim, ele foi levado para a Babilônia e ao mesmo tempo não a viu, como afirmam as duas passagens citadas[205]”.

 

E mais: alguns dizem por ignorância que a epístola aos Hebreus não é do apóstolo Paulo, ou que determinada palavra de Denis o Areopagita não tem relação com suas outras palavras. Mas quando prestamos atenção a estas palavras, descobrimos a verdade: dado que a coisa nasce da clarividência, ou seja, do conhecimento natural, da contemplação dos seres (portanto, das criaturas) concedida à pureza do intelecto, os santos dizem com precisão qual o objetivo de Deus. Os que sondam as Escrituras, diz João Crisóstomo, são como quem pretende encontrar ouro nas minas da terra. Eles vão buscar nos veios mais finos, a fim de que sequer um iota ou um traço caiam[206], como disse o Senhor. O iota é a décima letra, e o traço é aquilo que chamamos de sílaba longa; sem eles, não é possível escrever corretamente.

 

Isto, quanto às coisas naturais. Mas quando a coisa sensível ou inteligível ultrapassa a natureza, é pela visão original e a revelação que os santos conhecem a palavra escrita, pois o conhecimento disto lhes foi concedido pelo Espírito Santo. Se ele não lhes tivesse sido concedido, se, para seu benefício, a coisa se mantivesse incompreensível para eles, eles não teriam vergonha em dizer a verdade e confessar a fraqueza humana, afirmando como o Apóstolo: “Eu não o sei, Deus o sabe[207]”. Ou como Salomão: “Três coisas eu ignoro, e uma quarta eu desconheço[208]”. Ou ainda, como João Crisóstomo: “Eu não sei e, se os hereges me chamam descrente, que me tratem também por louco”. Simplesmente, estes homens, que possuíam a dupla sabedoria, preferiram a sabedoria do alto. Eles se serviram sábia e comedidamente da educação profana, segundo a regra do Apóstolo de não se glorificar fora de propósito[209], como os egípcios que se riram das palavras toscas do apóstolo Barnabé e ignoraram que sua predicação continha palavras de vida eterna[210], como dizem os escritos de Clemente. A maior parte de nós faz a mesma coisa rindo ao ouvir alguém dizer palavras estrangeiras, quando na verdade podemos estar diante de um sábio capaz de expor terríveis mistérios em sua própria língua. Tudo isto provém da ignorância.

 

Mas os próprios Padres sempre escreveram coisas simples segundo os tempos e os homens a quem eles escreviam. São Gregório de Nice louva assim santo Efrém, que era um sábio, por haver escrito coisas simples. Ele admira sua grande experiência dos dogmas e conta como ele soube encurralar os artigos dos livros malditos de um herético pueril, e como este, não podendo suportar a vergonha, morreu de orgulho[211]. Pois a santa humildade é sobrenatural, e o descrente é incapaz de obtê-la. Ele a considera contra a natureza, como diz o grande Denis, quando escreve a são Timóteo a propósito destes homens: “A ressurreição parece aos antigos como sendo contra a natureza. Mas para você e eu, na verdade, ela não é contra a natureza, mas sobrenatural[212]”. Isto, para nós, por que para Deus ela não ultrapassa sua natureza – ela é natural. Pois a ordem de Deus é a sua natureza. Os Padres dão testemunho de sua humildade em suas obras e em suas palavras, como aquele que escreveu o Gerontikon, embora tenha sido bispo e exilado por Cristo[213]. Ele dizia a respeito da vestimenta de uma virgem: “Eu a considerei um ser abençoado”. Os santos Padres Doroteu e Cassiano, que eram sábios, também escreveram coisas simples.

 

Tudo isto foi dito para que não se pense que alguns escreveram coisas extraordinárias por orgulho, e outros, coisas simples por serem simples. Pois a inteligência de uns e de outros era a mesma, dada pelo mesmo Espírito Santo. E seu objetivo era o benefício de todos. Pois se todos tivessem escrito coisas simples, ninguém poderia tirar proveito das coisas extraordinárias. Ficaríamos limitados às palavras comuns, e acabaríamos por considerá-las como nada. Ao mesmo tempo, os mais simples não receberiam nenhum benefício se todos houvessem escrito apenas coisas extraordinárias cujo alcance eles não conseguiriam entender. Um, que tem a experiência da contemplação das Escrituras sabe que a inteligência contida na palavra mais simples da Bíblia, assim como aquela contida na mais profunda, é única e só tende a salvar o homem. Outro, desprovido desta experiência, se escandaliza às vezes, por ignorar tudo o que pode trazer a educação daqui de baixo quando se torna o veículo da sabedoria do alto, a sabedoria do Espírito. Pois a educação daqui de baixo confere sentidos claros e a sabedoria do alto o poder da palavra, desde que a prudência seja constante e a castidade se mostre diante das festas, desde que se tema a loucura e o orgulho, desde que estejamos revestidos de sentimentos modestos, como quer o Apóstolo[214].

 

Assim como o Amém de que fala em verdade o Evangelho de são Lucas[215] é a palavra firme que confirma tudo o que foi dito, também a reflexão é a firme inteligência das coisas que a verdade pode guardar. Com efeito, é no Amém que reside a nova graça. Não o encontramos plenamente no Antigo Testamento: ele aí só aparece figuradamente. Mas a nova graça não cessa de dizê-lo. Pois ele habita na eternidade, pelos séculos dos séculos.

 

 

Vigésimo-quarto discurso

 

O Ômega é a vigésima-quarta letra

E o presente discurso permite ao coração sentir,

A fim de que cada um saiba o que é bom para si.

Assim sendo, ó Pai, abençoa este início.

 

Oh, quantas lágrimas quisera eu derramar, quando olho a mim mesmo. Pois, se eu não peco, cresce o orgulho em mim; e se eu peco e me vejo pecando, em minha indigência perco a coragem e caio em desespero. Se me refugio na esperança, volta o orgulho. Se choro arrisco cair em presunção; e se não choro, as paixões retornam. Minha vida é uma morte e, com o temor do castigo, a morte me parece ainda pior. Minha prece se torna uma tentação para mim e a desatenção me toma. Aquele que toma sobre si o conhecimento se cobre de dor[216], disse Salomão.

 

Incerto, fora de mim, não sei o que fazer. Se conheço e não ajo, o conhecimento me condena. Que fazer? Em minha ignorância, todas as coisas me parecem contraditórias e não consigo conciliá-las. Não encontro a virtude oculta nem a sabedoria nas tentações, pois não tenho paciência. Deixo a hesíquia em meio aos pensamentos. Por meio dos sentidos, descubro as paixões além das tentações. Se desejo jejuar e velar, a presunção e o relaxamento me impedem. Se como e durmo sem me preocupar, caio em pecado malgrado minha intenção. Estou oprimido de todos os lados. Fujo por temor do pecado, mas a acídia me derruba.

 

No entanto, vejo que nestes combates e tentações muitos recebem as coroas, pois sua fé é segura. Ela lhes fornece o temor a Deus, e com este temor eles conseguem ser bem sucedidos nas demais virtudes. Se eu também tivesse fé como eles, encontraria o temor. Disse o profeta que foi por meio do temor que eles receberam a piedade e o conhecimento, de onde vieram até eles força e o conselho, a compreensão e a sabedoria[217] que o Espírito concedem aos que permanecem em Deus sem preocupações e na meditação paciente das divinas Escrituras, que torna semelhantes as coisas de baixo com as coisas de cima. Com efeito, quando uma paixão se transforma em virtude o tempo e a experiência o mostram claramente. Mas quando a virtude tende à paixão o tempo e a experiência normalmente as separam por meio da paciência. Se esta não nasce na alma por intermédio da fé, torna-se impossível possuir qualquer outra virtude. “Com sua paciência vocês salvarão suas almas[218]” disse o Senhor, que formou o coração de cada um dos homens[219], conforme canta o Salmista, Com isto ele quer dizer que o coração de cada qual – ou seja, o intelecto – se forma através da paciência nas tribulações.

 

Quando aquele que crê que outro dirige invisivelmente sua vida se deixará persuadir por seu próprio pensamento que lhe diz: quero ou quero isto, tal coisa é boa ou má? Se neste mundo temos alguém que nos guie, devemos interrogá-lo em todas as coisas, ouvir sua resposta e fazer o que ele diz. E se não tivermos ninguém, temos a Cristo, como disse o Eucaíta[220]. Devemos interrogá-lo por meio da prece do coração e esperar com fé sua resposta em atos e palavras, para que Satanás, que não pode ficar sem fazer nada, não responda ser ele próprio o guia, não tome a sua forma, e não leve à perdição aqueles que não têm paciência. Em sua ignorância, eles se esforçam por tomar o que jamais lhes foi dado, a saber, que um dia aos olhos do Senhor são como mil anos e que mil anos são como um dia[221].

 

Mas aquele que por sua paciência obteve a experiência dos truques do inimigo não cessa de agir como pediu o Apóstolo, de lutar, de correr sem descanso para derrubá-lo[222] e poder dizer: nós não ignoramos seus pensamentos[223], ou seja, suas armadilhas enrustidas, ignoradas pela maioria. Pois foi dito que ele se transforma em anjo de luz[224]. E não há nada de espantoso nisto. Os pensamentos que ele manifesta no coração parecem ser pensamentos de justiça aos que não têm experiência. Por isto é sempre bom dizer: “eu não sei”, a fim de não faltar com a fé diante das palavras do Anjo, nem crer no que diz o inimigo em suas armadilhas. Devemos evitar com paciência ambos os abismos, e esperar os anos que forem necessários, contra nossa vontade e sem nada sabermos, que a resposta surja – como dissemos a respeito da contemplação dos seres, das criaturas de Deus –, até que cheguemos a algum porto, ou seja, à contemplação ativa. E é preciso ainda ver a esta por longos anos para aprendermos que de fato fomos ouvidos e que recebemos invisivelmente uma resposta. Então oramos pela vitória dos que combatem e já não ouvimos nenhuma palavra nem vemos forma alguma que sejam ilusórias. Aconteça o que for durante o sonho ou no mundo sensível, não cremos em nada. Depois de alguns anos, vemos que o combate foi vitorioso pela graça. Chegam pensamentos que conduzem nosso intelecto para a humildade e o conhecimento de nossa própria fraqueza. Mas ainda não cremos. Ainda esperamos por longos anos, temendo sermos presa do demônio. João Crisóstomo o disse a respeito dos apóstolos: o Senhor lhes anunciou as aflições que iriam conhecer, e acrescentou: “Quem perseverar até o fim, este será salvo[225]”. Pois eles jamais deveriam cair na negligência. Era preciso que o temor os levasse a combater. De fato, as demais virtudes de nada servem, ainda que vivamos no céu, se tivermos o orgulho por cuja causa o diabo, Adão e tantos outros caíram.

 

Jamais devemos rejeitar o temor enquanto não houvermos atingido o porto do amor perfeito[226], enquanto não estivermos fora do mundo, fora do corpo. Pois não é por si só que um homem abandona o temor: é preciso uma grande fé para desembaraçar o intelecto dos cuidados da vida e para com a morte do corpo. Então ele pode atingir o temor puro[227], o temor do amor de que fala o grande Atanásio aos perfeitos: “Não temam a Deus como um mestre todo-poderoso, mas temam-no em razão de seu amor”. Tema não apenas pecar, mas também ser amado e não amar, e ser indigno dos bens que você recebe. A partir daí será o temor deste bem que irá levar a alma a amar, a se tornar digna das benesses que recebe e receberá, em seu reconhecimento para com seu Benfeitor. E do temor puro pelo amor, alcançaremos a humildade sobrenatural.

 

Quaisquer que sejam os bens que experimente ou as infelicidades que suporte, este homem não pensará nunca possuir em si a força ou a arte de perseverar ou de bem conduzir sua alma e seu corpo. Ele recebeu da humildade o discernimento que lhe permite saber que ele é uma criatura de Deus, e que nada pode fazer de bom por si mesmo, nem guardar o que lhe concedeu a graça, nem eliminar as tentações, nem perseverar por sua própria coragem ou por sua própria prudência. Do discernimento ele passa ao conhecimento parcial das coisas e começa a ver todos os seres com o intelecto. Mas, ignorando suas razões, ele deseja o Mestre. Mas não o encontra, por que ele é invisível. Ele já não recebe nenhuma forma ou pensamento que já não tenha atestado, como lhe ensinou o discernimento, e assim permanece na expectativa.

 

A partir daí ele considera como nada tudo o que fez por si mesmo, tudo o que lhe ensinaram. Diante de si ele vê inúmeros homens que caíram depois de tantos suores, de Adão até todos os que o seguiram. Quando ele escuta sem compreender determinada passagem das Escrituras, este conhecimento o faz chorar. Pois ele sabe que não conhece verdadeiramente como deveria e, coisa espantosa, sabe que quem crê saber é por que nada sabe[228] e que aquilo que ele sabe lhe será tirado[229], como disse o Senhor. Pois ele pensa possuir, mas não possui. Um homem assim é insensato, falta-lhe a inteligência. Ele é fraco e ignorante. Ele chora e se lamenta quando, em seu reconhecimento, crê receber mesmo o que ele não tem. Pois a humildade nasce de diversas virtudes, mas ela própria é que engendra as mais perfeitas. Do mesmo modo o conhecimento, a ação de graças, a prece e o amor. Pois estas virtudes jamais cessam de crescer. A partir do momento em que nos humilhamos e nos lamentamos por nos sabermos pecadores, nos tornamos temperantes, suportamos as aflições que nos acontecem, desejadas ou não, suportamos pela ascese o que nos vem dos demônios e pela prova da fé o que nos vem dos homens, para que apareça aquilo em que colocamos nossa esperança, se em Deus ou em um homem, ou em nossa própria força e nossa própria prudência. E quando, experimentados pela paciência[230], abandonamos tudo a Deus, recebemos a grande fé de que fala o Senhor: “Quando vier o Filho do homem, encontrará ele a fé[231]”?

 

É por meio desta fé que obtemos a vitória sobre aqueles que nos combatem. Se a trazemos em nós, recebemos o poder de Deus e da sabedoria que dele adquirimos, o conhecimento de nossa própria fraqueza e de nossa própria ignorância. Começamos a render graças na humildade da alma e a tremer sob o temor de cair novamente, como já caímos por desobedecermos a Deus. É a partir deste temor puro[232], desembaraçado do pecado, e da ação de graças. Da paciência e da humildade concedidas pelo conhecimento, que esperamos receber a compaixão que só a graça nos traz. Mas a experiência das benesses que recebemos em Deus nos leva também à expectativa e ao temor de sermos considerados indignos de tais dons da parte de Deus. A partir daí a humildade cresce e a prece do coração se torna mais intensa. Estas aumentam com a ação de graças, e então recebemos um conhecimento mais forte. Assim, indo do conhecimento ao temor e do temor à ação de graças, alcançamos um conhecimento que ultrapassa os primeiros dons. A partir daí, amamos o Benfeitor naturalmente e é com alegria que desejamos servi-lo. Pois somos devedores deste conhecimento, cujo crescimento agora carregamos.

 

Depois das benesses particulares contemplamos as benesses universais pelas quais somos incapazes de dar graças, e então nos vemos enlutados. Mas admirando outra vez a graça de Deus, por ele clamamos. Ora choramos de dor, ora o amor nos faz verter lágrimas mais doces que o mel. Somos cumulados da alegria espiritual que provém de uma inefável humildade. Então desejamos em verdade toda a vontade de Deus, desprezamos todas as honras e confortos, colocamo-nos abaixo de tudo, não considerando mais que sejamos alguma coisa, por pequena que seja. Somos devedores de Deus e também dos homens, tanto quanto dele. Consideramos um grande benefício as tentações e aflições, e como um grave prejuízo a alegria e o conforto. As primeiras, desejamo-las com toda a alma, venham de onde vierem. E tememos as últimas, ainda que venham de Deus para nos provar.

 

Em meio a todas essas lágrimas, o intelecto começa a receber a pureza e alcança seu primitivo estado, ou seja, o conhecimento natural que lhe faz perder o amor às paixões. Alguns chamam a este conhecimento “prudência”, pois o intelecto vê as coisas tais como são em sua natureza. Outros o chamam “clarividência”, pois então conhecemos em parte aquilo que nos é dado ver dos mistérios ocultos, ou seja, o objetivo de Deus tal como se encontra nas santas Escrituras e em todas as criaturas. A própria clarividência nasce do discernimento: ela pode compreender as razões das coisas sensíveis e inteligíveis. É por isso que a chamamos também de contemplação dos seres, portanto das criaturas. Esta contemplação é natural e provém da pureza do intelecto. Mas se for dado a alguém, para o  bem comum, alcançar a visão profética, isto já é sobrenatural. Pois somente Deus conhece previamente tudo em todos e sabe o motivo pelo qual faz cada coisa ou diz cada palavra da santa Escritura, e por qual motivo ele concede o conhecimento aos que dele são dignos. A contemplação das criaturas sensíveis e inteligíveis, a que chamamos prudência, é assim uma clarividência e um conhecimento natural, pois ela pré-existia na natureza, mas, tendo o intelecto sido entenebrecido pelas paixões, se Deus não as destruísse por meio da virtude ativa, não a poderíamos ver. O mesmo não acontece com a visão profética, que é uma graça, e é sobrenatural. Entretanto, a primeira clarividência, embora natural, não é independente de Deus.

 

Os gregos foram capazes de conceber muitas coisas. Mas eles jamais encontraram o objetivo de Deus nas criaturas, disse o grande Basílio, e jamais puderam encontrar o próprio Deus. Pois eles não possuíam a humildade e a fé de Abrahão. Somos chamados de fiéis desde o momento em que acreditamos nas coisas invisíveis a partir das visíveis. Mas acreditar nas coisas que nos aparecem não equivale a crer n’Aquele que nos ensina ou nos prega. É por isso, para provar nossa fé, que as tentações são aparentes, mas a concepção das coisas é oculta. Quando se livra da tentação, o fiel, por sua paciência, encontra o conhecimento. Daí em diante ele sabe que é ignorante e que recebeu um bem. Ele traz em si o fruto da humildade e do amor a Deus seu Benfeitor, e pelo próximo por meio do serviço a Deus. Ele considera com naturalidade ser devedor e assim deseja guardar os mandamentos. Ele odeia as paixões como a seus inimigos, ele despreza o corpo, ao qual considera como um obstáculo à impassibilidade e ao conhecimento de Deus, à sabedoria oculta[233].

 

E ela é verdadeiramente oculta. Pois alguém pode amar a sabedoria do mundo, que tem no mundo sua suficiência, suas delícias, seu conforto e sua glória. Mas é bem o contrário que busca em seu combate aquele que ama a sabedoria de Deus, que se dedica às penas e à temperança e que, pelo Reino dos céus, traz em si toda a aflição e desonra. Um deseja se aproximar dos bens aparentes, dos ensinamentos e dos reinos aqui de baixo, e acaba por receber muitos sofrimentos vindos deles. O outro sofre com Cristo. Um tem suas esperanças aqui em baixo, se é que as tem, pois elas passam com o tempo e são difíceis de serem atendidas. O outro está oculto aqui em baixo aos olhos dos insensatos[234], diz a divina Escritura, mas se revelará no século futuro, quando os segredos serão revelados. Mais ainda, este conhecimento dos segredos, ou seja, a contemplação das divinas Escrituras e das criaturas, é dada, segundo João Crisóstomo, aos que estão enlutados aqui em baixo. Pois da fé nasce o temor, do qual provém o luto que engendra a humildade, que traz o discernimento, de onde procede a clarividência ou, pela graça, a visão profética.

 

Aquele que conhece não deve jamais se agarrar a seus próprios pensamentos, mas apelar sempre para o testemunho das divinas Escrituras e da natureza das coisas. Sem este testemunho não existe conhecimento verdadeiro. Tudo é malícia e ilusão, como disse o grande Basílio a respeito dos astros[235]. Com efeito, a divina Escritura nomeia poucas coisas, enquanto os gregos, ao contrário, em sua ilusão dão numerosos nomes. Pois o objetivo da divina Escritura está no que pode salvar a alma e revelar alguns dos mistérios da palavra de Deus e as razões dos seres, ou seja, a finalidade de cada coisa, para que o intelecto seja esclarecido no amor de Deus e possa conhecer sua grandeza, sua sabedoria inefável e a providência por meio da qual ele cuida de suas criaturas.

 

Este conhecimento leva tal homem a temer a transgressão dos mandamentos de Deus, a conhecer sua própria fraqueza e sua própria ignorância. Ele é humilde aqui em baixo, ele ama a Deus, não desdenha de seus mandamentos como o fazem aqueles que são privados de seu conhecimento ativo. E Deus mantém longe dele alguns mistérios, para que ele permaneça cheio de desejo e não de desgosto, como Adão. Por que, senão, o inimigo expulso o atrairia com sua perversidade. Assim as coisas acontecem com os virtuosos. Quanto aos ignorantes, Deus lhes envia o temor por meio das tentações, para que eles se afastem do pecado, e, por meio das benesses corpóreas, ele os conforta para que não se desesperem.

 

Tudo isto Deus faz todo o tempo em sua infinita bondade para nos salvar e nos livrar das armadilhas do diabo, seja concedendo-nos as benesses e os conhecimentos, seja mantendo-os afastados de nós. Ele concede seus carismas e o sentido das coisas em função do reconhecimento de cada um. Da mesma forma, para seu benefício, ele esconde ou revela a alguns a divina Escritura, conforme a resolução daquele que lê. Mas o objetivo dos filósofos profanos é bem diverso: cada qual se esforça por vencer o outro e parecer mais sábio. Por isso ele nunca encontram o Senhor, assim como não o encontram os que os seguem, ainda que se esforcem muito. Pois não é nas penas, disse João Clímaco, mas na humildade e na simplicidade[236], que Deus se revela pela fé, ou seja, pela contemplação das Escrituras e das criaturas. O Senhor o disse: “Como podem vocês crer, vocês que extraem sua glória uns dos outros?[237]”.

 

Esta é a grande fé: ela é capaz de remeter a Deus todas as preocupações. O Apóstolo a chama de fundamento; João Clímaco, de mãe da hesíquia[238]; e santo Isaac, fé da contemplação e porta dos mistérios[239]. Aquele que a possui não tem mais nenhuma inquietude, como todos os santos cujos próprios nomes, assim como os dos antigos justos, correspondiam exatamente ao que eles eram. Pedro levava o nome da firmeza, e Paulo o do repouso. Tiago era “aquele que suplanta”, pois ele suplantou o diabo. Estevão significa a coroa eterna. Atanásio, a imortalidade; Basílio, o Reino; Gregório, o despertar da sabedoria, vale dizer, da teologia; João Crisóstomo, o bem mais precioso e a graça desejada; Isaac, o perdão. Os nomes no Novo Testamento estão assim bem de acordo com os homens, assim como no Antigo Testamento. De fato, Adão (ADAM) é o nome dos quatro pontos cardeais: A, de Anatólia, o oriente; D, de dysis, o Ocidente; A, de arktos, o norte; M, de mesembria, o sul. O homem, tal como era então chamado em siríaco, significa também o fogo, pois ele é como a natureza. O mundo todo proveio de um só homem, assim como uma única lâmpada acende outras, tantas quantas se queiram, e a primeira ainda permanece inesgotável.

 

Mas depois da confusão das línguas, uma fornece etimologias tiradas do esquecimento em que caíram os homens; outra as descobre em suas próprias pesquisas, que são diferentes. A Grécia faz derivar a etimologia do homem – anthropos – do verbo ano athrein: olhar para cima. Mas a natureza fundamental do homem é a razão – o logos – e é por isso que se diz que ele é dotado de razão – logikos – pois ele é o único a possuí-la propriamente. Todos os outros nomes que designam o homem, ele os partilha com as outras criaturas. Por isso devemos deixar tudo e, como somos dotados de razão, escolher a razão e oferecer pela razão – o logos – nossas palavras – logoi – a Deus o Verbo – o Logos – a fim de que em lugar de nossas palavras nos seja dado receber as palavras do Espírito Santo desde já, conforme foi dito: “Conceda a oração ao que ora[240]”. Ao que bem ora a oração do corpo, Deus concede a prece do intelecto. Quem se aplica a esta prece recebe do temor puro[241] a Deus aquilo que não possui nem figura nem forma. Quem traz em si este temor recebe a contemplação das criaturas. Enfim, aquele que se recolhe para longe de tudo e não se contenta com apenas ouvir, recebe da contemplação o arrebatamento do intelecto que lhe abre a teologia e as benesses do século futuro.

 

Assim é que o conhecimento é um bem se conduz aquele que o possui, mesmo contra a vontade, da confusão à humildade, e se este o possui independentemente de qualquer mérito e humildemente o recusa como se fosse um perigo, segundo as palavras de João Clímaco[242], ainda que ele lhe tenha sido dado por Deus. E que infelicidade se ele conduzir à sorte daquele homem que foi derrubado pelos tridentes dos demônios! Ele era renomado e amado pelos homens, tendo todos chorado sua morte considerando uma grande perda serem privados dele. Mas ele trazia dentro de si um orgulho escondido. E quem relatou estas coisas ouviu uma voz do alto que dizia: “Não lhe deem repouso! Pois nem por um instante ele me deixou repousar!”. Aquele a quem todos consideravam como santo, e de cujas orações muitos esperavam um alívio para suas tentações, teve tal fim por causa de seu orgulho. A causa foi, de fato, o orgulho. É claro: se ele tivesse outro pecado, ele não poderia enganar todo mundo, nem cometer este pecado todo o tempo. Mas ele estava em estado de heresia, e o herético provoca a cólera de Deus a todo o momento com sua blasfêmia em pensamento. No entanto, a blasfêmia não é um segredo total. Mas a providência de Deus a torna manifesta para corrigir aquele que a traz em si, desde que ele queira se converter. Se não, ao menos esta manifestação pode proteger outros homens. É por isso que somente o orgulho, em sua autossuficiência, é capaz de enganar todo mundo, inclusive o próprio orgulhoso, na medida em que ele não admite que possa cair nas tentações que permitem à alma se corrigir e conhecer sua própria fraqueza e sua ignorância. O Espírito Santo não tinha assim o menor instante de repouso nesta alma miserável que voltava sempre ao mesmo pensamento regozijando-se nele como se fosse um ato glorioso, mas que foi coberta de trevas como os demônios. Não deixando transparecer nenhuma falta, ele alimentava esta única paixão em lugar de todo o resto, e isto bastava aos demônios, pois sozinha ela o amarrava sem precisar dos demais vícios, como dizia João Clímaco[243].

 

Eu mesmo não vi nem discerni nada disto, mas escrevo o que o santo Ancião me permitiu entender[244]. Com efeito, ele disse a respeito de são Paulo o Simples, que um demônio se recusava a sair depois que o grande Antônio lhe havia pedido: “Padre Paulo, expulse o demônio desta jovem”. Ora, Paulo não se inclinou imediatamente para obedecer. De certo modo, ele resistiu, dizendo: “Por que não o faz você?”. Ele só obedeceu quando o grande Antônio lhe respondeu que ele próprio não tinha tempo. É por isso, dizia o bem-aventurado Ancião, que o demônio não saiu logo, mas somente depois de muito esforço, e isto foi justo, pois não apenas devemos crer no Ancião por que ele é um homem de Deus, mas seu testemunho é ainda atestado pela lavagem dos pés[245] e pelas respostas de Moisés[246] e do profeta que buscava alguém que lhe batesse. Nós relatamos esta última história, mas não a comentamos. Vamos fazê-lo aqui[247].

 

Os Paralipômenos contam que um rei governava com tamanha rudeza seu reino que Deus, em seu amor pelo homem e não suportando mais a tirania, ordenou ao profeta que fosse acusar o rei. Mas o profeta, que conhecia a crueldade do rei, não quis ir, por medo de que este, ao vê-lo de longe e sabendo o porquê de sua presença, o expulsasse sem que ele pudesse acusá-lo. Ele temia ainda que o rei não desse atenção ás suas palavras, se ele começasse por dizer: “Eu fui enviado por meu Deus por causa da sua crueldade”. Ele imaginou então se deixar ferir por alguém e ir ensanguentado queixar-se ao rei, a fim de enganá-lo com este artifício e fazê-lo ouvir o que ele tinha a dizer. Encontrando no caminho um homem que trazia um machado, ele lhe disse: “O Senhor disse: tome este machado e fira-me na cabeça”. O outro, que venerava a Deus, respondeu: “Jamais, meu senhor. Eu pertenço a Deus e não levantarei minha mão contra um ungido do Senhor”. Então o profeta replicou: “O Senhor diz: como você não quer escutar a voz do Senhor, que um leão saia da mata e o devore”. Ele não estava encolerizado. Mas o que aconteceu a seguir iria servir de lição a muitos. Pois este homem bom se tornou digno de não morrer simplesmente como o resto dos homens, mas de ser devorado pela fera conforme a palavra do Senhor e assim receber a coroa do martírio por esta morte amarga. O Gerontikon[248]lembra este episódio a propósito dos quatro padres que adormeceram em Cristo que pediam em coro que seu servidor, que caíra na prostituição, fosse devorado pelos leões. Mas o Senhor não lhes deu ouvidos e aceitou a prece do hesiquiasta que pedia que o leão se afastasse do servidor. Depois o profeta encontrou outro servo daquele rei e lhe disse: “O Senhor disse: tome este machado e fira-me na cabeça”. Este último, ouvindo o que o Senhor dizia, feriu a cabeça do profeta com seu machado. E o profeta, assim como Moisés fizera outrora[249], lhe disse: “Que a bênção do Senhor esteja sobre você, pois você ouviu a voz do Senhor”. Assim é que o primeiro, em sua grande bondade respeitou o profeta e não o obedeceu, como Pedro na lavagem dos pés[250]. E o segundo obedeceu cegamente, como o povo obedeceu a Moisés quando se imolaram entre si[251].

 

Aparentemente, aquele que ouviu a vontade de Deus fez o melhor. A ordem sobrenatural do Mestre da natureza foi para ele mais sábia e mais justa do que o conhecimento natural. E aquele que desobedeceu fez menos, pois ficou naquilo que lhe pareceu mais justo do que as coisas de Deus. Mas secretamente as coisas não foram assim. A obediência ou a desobediência são julgadas segundo seu objetivo. Quem tem por objetivo agradar a Deus faz o melhor. Aparentemente Deus se irrita contra o que desobedece e abençoa o que escuta. Mas secretamente a coisa muda. Pois ambos tinham uma visão natural. Os dois eram bons, pois seu objetivo estava em Deus. E é assim que as coisas são.

 

O profeta foi então ao encontro do rei e, diante dele, disse: “Faça-me justiça, ó Rei. No caminho para cá, quando vinha vê-lo, alguém me bateu e feriu-me a testa”. O rei, vendo o sangue e o ferimento, ficou irritado como era seu costume, mas não contra aquele que apelava por sua justiça. Acreditando julgar a outro e não a si mesmo, ele condenou duramente a quem fizera aquilo. O Profeta, que esperava esta resposta, disse então: “Você falou bem, ó rei. Eis aqui então o que disse o Senhor: eu o arrancarei de seu trono e o tirarei de seus filhos, pois foi você quem fez isto”. Assim, o profeta anunciou o oráculo, como queria. E com habilidade fez o rei compreender o que ele tinha a lhe dizer. Depois, ele saiu, glorificando a Deus.

 

Assim eram pois as almas dos profetas. Elas amavam a Deus, conheciam-no e se deixavam sofrer por sua vontade. Esta era a justiça. Quem conhece com precisão um caminho ou uma ciência, percorre-o com todo seu coração e sem nenhuma dificuldade, e mostra aos outros, com toda certeza, o caminho, os mistérios e as concepções de sua arte, ainda que ele próprio seja jovem ou simples e os demais anciãos e sábios em outras matérias. Pois os profetas, os apóstolos e os mártires não aprenderam o conhecimento e a sabedoria de Deus por ouvir falar, como nós. Eles deram seu sangue e receberam o Espírito, como diziam os antigos: “Dê seu sangue e receba o Espírito”. É por isso que os Padres, ao invés do martírio sensível, portavam o martírio da consciência, e em lugar da morte do corpo a intenção da morte, a fim de que o intelecto fosse mais forte do que as vontades da carne e que nele reinasse Jesus Cristo nosso Senhor. A ele a honra, o poder, a glória e a adoração, agora e para sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.

 

A Deus a graça.

 



[1] A escada santa XV, 79, citando Colossenses 4: 7.
[2] Obras espirituais, pg. 187.
[3] Sentenças dos Padres do Deserto, Antônio 3.
[4] Cf. Números 22: 28-30.
[5] A escada santa XXVI, 12.
[6] Cf. Mateus 24: 14.
[7] Romanos 11: 36.
[8] Cf. Colossenses 1: 23.
[9] Cf. Colossenses 1: 23; Tiago 2: 22.
[10] Cf. Gálatas 2: 16; 3: 2.
[11] Mateus 17: 20.
[12] Para o conjunto deste parágrafo, ver Isaac o Sírio, Obras Espirituais, pg. 125.
[13] Cf. Deuteronômio 1: 12.
[14] Cf. Hebreus 13: 5.
[15] Cf. Salmo 54 (55): 23.
[16] Lucas 12: 4-5.
[17] Cf. I Timóteo 2: 4.
[18] Cf. Tiago 2: 19.
[19] Cf. João 12: 50.
[20] Cf. Provérbios 1: 17.
[21] Sentenças dos Padres do Deserto, Poêmio 54.
[22] Cf. Efésios 2: 14.
[23] Salmo 17 (18): 30.
[24] Cf. Jeremias 23: 23.
[25] Cf. Filipenses 3: 12.
[26] Cf. I Coríntios 9: 26.
[27] Cf. Colossenses 3: 1.
[28] Cf. Marcos 16: 17.
[29] Cf. Salmo 83 (84): 6.
[30] Apocalipse 5: 13.
[31] Lucas 16: 25.
[32] Provérbios 15: 27.
[33] Salmo 33 (34): 12.
[34] Instruções espirituais IV § 47.
[35] Salmo 33 (34): 15.
[36] Salmo 18 (19): 10.
[37] Cf. II Samuel 11-12; Salmo 50 (51)
[38] Cf. I Reis 11: 1-10.
[39] I Coríntios 10: 12.
[40] Cf. I João 4: 18.
[41] Salmo 111 (112): 1.
[42] Cf. I João 4: 18.
[43] Cf. Isaías 11: 2-3.
[44] Cf. Gênesis 2: 15.
[45] Êxodo 23: 21; Deuteronômio 15: 9.
[46] Homilia sobre In illud “Attende tibi ipsi”.
[47] Cf. João 9: 40.
[48] Sabedoria 4: 15.
[49] Efésios 5: 11.
[50] Salmo 18 (19): 10.
[51] Cf. Salmo 88 (89): 48.
[52] Cf. Gênesis 3: 19.
[53] 25: 6.
[54] Romanos 11: 36.
[55] Mateus 10: 22.
[56] Lucas 9: 62.
[57] Cf. Mateus 26: 75; 27: 5.
[58] Sentenças dos Padres do Deserto, anônimo 1050.
[59] Cf. Jó 1: 22; Tiago 5: 11.
[60] Carta XLII, 2.
[61] Cf. Lucas 9: 62.
[62] Deuteronômio 20: 8.
[63] Cf. Daniel 13, 22.44-60.
[64] Cf. Salmo 118 (119): 110.
[65] Sentenças dos Padres do Deserto, Antônio 4.
[66] Cf. I Pedro 5: 7.
[67] Apocalipse 5: 13.
[68] Em grego, jogo de palavras entre o nome da letra Zeta e o verbo zètein, buscar.
[69] Cf. Hebreus 12: 1.
[70] Cf. Lucas 18: 1.
[71] Cf. II Coríntios 5: 7.
[72] Cf. Mateus 18: 24.
[73] Salmo 4: 9.
[74] Hebreus 11: 40.
[75] Cf. I Coríntios 2: 9.
[76] Lucas 13: 23.
[77] Mateus 11: 12.
[78] Cf. Mateus 11: 30.
[79] Cf. Mateus 7: 14.
[80] Cf. Mateus 11: 12.
[81] Cf. Salmo 43 (44): 16.
[82] Cf. II Reis 5: 26 e Mateus 26: 15.
[83] Romanos 13: 4.
[84] Romanos 13: 13.
[85] Romanos 8: 17.
[86] Cf. Mateus 5: 3-12.
[87] Cf. Eclesiastes 1: 13.
[88] Eclesiastes 1: 2.
[89] Salmo 38 (39): 12.
[90] Cf. Gênesis 6: 3.
[91] Salmo 130 (131): 1.
[92] Cf. II Pedro 3: 8.
[93] Cf. Provérbios 24: 16; Miquéias 7: 8; Sentenças dos Padres do Deserto, Sisoés, 38.
[94] Sentenças dos Padres do Deserto, Antônio, 37.
[95] Cf. Mateus 15: 14.
[96] II Pedro 4: 11.
[97] CF. Mateus 6: 10.
[98] Evagro, Sobre a Oração, citando o Salmo 75 (76): 3.
[99] Ibid., 120.
[100] Salmo 24 (25): 9.
[101] Cf. Isaías 11: 2.
[102] Homilias sobre são Mateus LXXXII, 4.
[103] Trata-se na realidade de uma citação bastante livre de Máximo o Confessor, Sobre o Amor III, 81.
[104] Cf. II Coríntios 11: 14.
[105] A Escada Santa IV, 78.
[106] Sentenças dos Padres do Deserto, anônimo 1518.
[107] Homilias sobre são Mateus LXXXVIII, 1.
[108] Mateus 23: 23.
[109] Romanos 11: 36.
[110] Cf. I Coríntios 15: 28.
[111] Cf. Lucas 18: 9-14.
[112] Lucas 23: 31.
[113] Provérbios 11: 31; I Pedro 4: 18.
[114] Macário o Egípcio, Paráfrase 82.
[115] Ibid. 95.
[116] Evagro, Sobre a Oração 111.
[117] Sobre os oito pensamentos de malícia, 8.
[118] Cf. Isaías 11: 2.
[119] Romanos 11: 36.
[120] Cf. Romanos 2: 19.
[121] Cf. Tiago 5: 16 (referência não encontrada).
[122] Cf. I Timóteo 2: 8.
[123] Cf. Gênesis 3: 19.
[124] Cf. I Reis 3: 7.
[125] Mateus 12: 43.
[126] Cf. Tito 2: 11-12.
[127] Cf. II Coríntios 1: 9.
[128] Cf. Romanos 6: 6.
[129] Cf. Romanos 6: 4.
[130] Ver Máximo o Confessor, Sobre a Teologia I, 67.
[131] I Pedro 4: 11.
[132] Cf. II Timóteo 2: 6.
[133] Cf. João 10: 1.
[134] Sobre o amor II, 35.
[135] Cf. II Timóteo 2: 3.
[136] Cf. Mateus 7: 13.
[137] Cf. Mateus 7: 15.
[138] Homilias sobre I Coríntios 10.
[139] Cf. Lucas 16: 8.
[140] A Escada Santa IV, 129 e VII, 63.
[141] Obras Espirituais, pg. 157.
[142] A Fé Ortodoxa II, 11.
[143] Cf. I Coríntios 3: 2; Hebreus 5: 12-13.
[144] Cf. II Coríntios 11: 14.
[145] Hierarquia Celeste VI, 2.
[146] Cf. Lucas 2: 13.
[147] Cf. Hebreus 1: 14.
[148] Cf. Efésios 1: 21; I Pedro 3: 22.
[149] Cf. Mateus 1: 20.
[150] A palavra grega angelos significa, de fato, “mensageiro”.
[151] Cf. 1: 13-14.
[152] Cf. Isaías 9: 5.
[153] Cf. Hebreus 13: 2; Gênesis 18: 2.
[154] Cf. Daniel 3: 25-29.
[155] Isaías 9: 5.
[156] João 8: 26.
[157] Cf. Romanos 13: 10.
[158] I João 4: 16.
[159] Deuteronômio 6: 5.
[160] Cf. I João 4: 8.16.
[161] Cf. Levítico 26: 11-13; II Coríntios 6: 16.
[162] Cf. Gálatas 5: 17.
[163] I Pedro 4:11.
[164] Poemas 1, 2, 34.
[165] Cf. Efésios 6: 12.
[166] Cf. Provérbios 28: 1.
[167] Nomes Divinos VIII, 7.
[168] Cf. Romanos 12: 3.
[169] Cf. I Coríntios 4: 7.
[170] Cf. Mateus 13: 12.
[171] João 14: 27.
[172] II Reis 4: 23.
[173] II Reis 4: 26.
[174] Cf. Filipenses 4: 7.
[175] João 16: 33.
[176] Cf. I Tessalonicenses 5: 13.
[177] Cf. I João 2: 15.
[178] Cf. Tito 2: 12.
[179] Cf. I Coríntios 11: 36.
[180] Filipenses 3: 1.
[181] Cf. 7: 1.
[182] Salmo 76 (77) LXX.
[183] Salmo 4: 5.
[184] Cf. Colossenses 3: 16.
[185] Carta II, 6.
[186] Cf. Gênesis 1: 2.
[187] Cf. , 38: 7.
[188] Cf. Gênesis 1: 2.
[189] Cf. I Coríntios 15: 52; I Tessalonicenses 4: 16.
[190] Cf. Mateus 24: 30.
[191] Cf. I Tessalonicenses 4: 17.
[192] Cf. I Samuel 2: 3.
[193] Cf. Provérbios 3: 7; Romanos 12: 16; I Coríntios 1: 31; II Coríntios 10: 17.
[194] Cf. I Samuel 2: 10.
[195] I Coríntios 4: 5.
[196] Mateus 25: 34.
[197] I Pedro 4: 11.
[198] A letra Psi, vigésima-terceira letra do alfabeto grego e inicial deste discurso, não é mencionada no texto de abertura,
[199] Salmo 46 (47): 8.
[200] João 5: 32.
[201] Salmo 45 (46): 11.
[202] Cf. I Coríntios 13: 12.
[203] I Samuel 2: 3.
[204] Gálatas 1: 8.
[205] Homilia ao povo de Antioquia XIX, 3, citando II Reis 25: 7; Ezequiel 12: 13; Jeremias 52: 11.
[206] Cf. Mateus 5: 18.
[207] II Coríntios 12: 22.
[208] Provérbios 30: 18.
[209] Cf. II Coríntios 10: 13.
[210] Cf. João 6: 68.
[211] Vida de santo Efrém o Sírio.
[212] Hierarquia eclesiástica VII, 1.
[213] Trata-se sem dúvida de Paládio, autor da História lausíaca, uma história dos Padres do deserto, monge no Egito de 388 a 400, depois bispo de Helenópolis na Bitínia. Discípulo de Evagro, ele foi acusado de origenismo e exilado no Alto Egito.
[214] Cf. Romanos 12: 3.
[215] Muitos manuscritos terminam o Evangelho segundo são Lucas, no versículo 24: 53, com um Amém.
[216] Eclesiastes 1: 18.
[217] Cf. Isaías 11: 2.
[218] Lucas 11: 9.
[219] Cf. Salmo 32 (33): 15.
[220] São Teodoro de Tiro, originário da cidade de Eucaíta na Trácia.
[221] Cf. II Pedro 3:8.
[222] Cf. I Coríntios 9: 26; Filipenses 3: 12.
[223] Cf. II Coríntios 2: 11.
[224] Cf. II Coríntios 11: 14.
[225] Homilias sobre são Mateus, citando Mateus 10: 22.
[226] Cf. I João 4: 18.
[227] Cf. Salmo 18 (19): 10.
[228] Cf. I Coríntios 8: 2.
[229] Cf. Mateus 13: 12.
[230] Cf. Tiago 1: 12.
[231] Lucas 18: 8.
[232] Cf. Salmo 18 (19): 10.
[233] Cf. I Coríntios 2: 7.
[234] Cf. Sabedoria 3: 2.
[235] Homilias sobre o Hexameron IV.
[236] A Escada Santa XXIV, 18.
[237] João 5: 44.
[238] A Escada Santa XXVII, 74.
[239] Obras espirituais, pg. 126 e 365.
[240] I Samuel 2: 9.
[241] Cf. Salmo 18 (19): 10.
[242] A Escada Santa VII, 62. “Afastem para longe, com verdadeiro espírito de humildade, toda alegria estranha, como indigna de vocês; e não cessem de temer que, pelas armadilhas do demônio, venham a receber um lobo devorador ao invés do pastor de suas almas.”
[243] A Escada Santa XXII, 5; XXVI, 45.
[244] Cf. Paládio, História Lausíaca XXII, 9-10.
[245] Cf. João 13: 5.
[246] Cf. Êxodo 4: 10.
[247] Ver o relato em I Reis 21: 35-42.
[248] Sentenças dos Padres do Deserto, anônimo 1597.
[249] Cf. Êxodo 32: 29.
[250] Cf. João 13: 6-9.
[251] Cf. Êxodo 32: 26-29.

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