A
PRECE DE JESUS
Metropolita
Antoine de Souroge
Aqueles que
leram os Relatos de um Peregrino Russo
estão familiarizados com a expressão “Prece de Jesus”. Ela se refere a uma
oração curta, cujas palavras são: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem
piedade de mim, pecador”, que deve ser repetida constantemente. Os Relatos de
um Peregrino contam a história de um homem que desejava aprender a orar sem
cessar[1].
Como o personagem cuja experiência é descrita no livro é um peregrino, a maior
parte de suas características psicológicas, bem como o modo pelo qual ele
aprendeu a prece, estão condicionadas pelo seu modo de viver, o que torna a
aplicação do conteúdo do livro menos universal do que poderia; mesmo assim ele
é a melhor introdução possível para essa prece, que constitui um dos grandes
tesouros da Igreja Ortodoxa.
A prece está
profundamente enraizada no espírito do Evangelho, e não foi em vão que os
maiores mestres da Ortodoxia sempre insistiram no fato de que a Prece de Jesus
é o sumo do Evangelho como um todo. É por esta razão que a Prece de Jesus só
adquire seu sentido pleno se for usada por uma pessoa que entenda esta sua
relação evangélica, uma pessoa que seja um membro da Igreja de Cristo.
Todas as
mensagens do Evangelho e, mais do que as mensagens, a própria realidade do
Evangelho, está contida no Nome e na Pessoa de Jesus. Se você tomar a primeira
metade da prece você verá de que modo ela expressa nossa fé no Senhor: “Senhor
Jesus Cristo, Filho de Deus”. No centro está o nome de Jesus, este nome diante
do qual todo joelho se dobrará[2],
e quando o pronunciamos estamos afirmando o evento histórico da Encarnação.
Estamos afirmando que Deus, o Verbo de Deus, coeterno com o Pai, se tornou
homem, e que a plenitude da Divindade habitou entre nós[3]
corporalmente na sua Pessoa.
Para vermos
no homem da Galileia, no profeta de Israel, o Verbo encarnado de Deus, Deus
feito homem, devemos ser guiados pelo espírito, porque foi o Espírito de Deus
quem revelou a nós tanto a Encarnação como a Realeza de Cristo. Nós o chamamos
de Cristo, e com isso afirmamos que nele se realizaram as profecias do Antigo
Testamento. Afirmar que Jesus é Cristo implica que toda a história do Antigo
Testamento é nossa, que a aceitamos como a verdade de Deus. Nós o chamamos de
Filho de Deus, porque sabemos que o Messias esperado pelos Judeus, o homem que
seria chamado de “Filho de Davi” por Bartimeu[4],
é o Filho de Deus encarnado. Essas palavras contêm tudo o que sabemos, tudo em
que acreditamos a respeito de Jesus Cristo, do Velho Testamento ao Novo, e da
experiência da Igreja através dos séculos. Em pouquíssimas palavras fazemos uma
completa e perfeita profissão de fé.
Mas isso
ainda não é o bastante para compor essa profissão de fé; não é suficiente
acreditar. Também o demônio crê e treme[5].
A fé não é suficiente para operar a salvação, ela apenas deve conduzir a um
correto relacionamento com Deus; e assim, tendo professado, em toda
integridade, direta e claramente, nossa fé na Realeza e na Pessoa, na historicidade
e na divindade de Cristo, podemos nos colocar face a face com ele, num correto estado
de alma: “tem piedade de mim, pecador”.
Estas palavras
“tem piedade” são utilizadas em todas as Igrejas Cristãs, e, na Ortodoxia,
constituem a resposta do povo a todas as petições sugeridas pelo sacerdote. Mas
nossa tradução “tem piedade” é limitada e insuficiente. A palavra grega que
encontramos no Evangelho e nas liturgias antigas é eleison. Esta palavra eleison
tem a mesma raiz de elaion, que denomina
a oliveira e o azeite extraído dela. Se olharmos no Velho e no Novo Testamentos
à procura das passagens conectadas com essa ideia básica, vamos encontrá-la
descrita em diversas parábolas e eventos que nos permitirão formar um conceito
completo do significado dessa palavra. Encontramos, por exemplo, a oliveira no
Gênesis: depois do dilúvio Noé enviou pássaros, um após outro, para descobrir
onde haveria terra seca, e um destes, uma pomba – e é significativo que tenha
sido uma pomba – trouxe de volta um pequeno ramo de oliveira. Este ramo
convenceu Noé e todos os que estavam com ele na arca de que a ira de Deus cessara,
e que Deus agora oferecia ao homem uma nova oportunidade. Todos os que se
encontravam na arca puderam habitar a terra firme e começar uma nova vida, e
talvez até, nunca mais cair sob a ira de Deus.
No Novo
Testamento, na parábola do bom Samaritano, o azeite de oliva é usado para
aliviar e curar. Na unção dos reis e sacerdotes no Velho Testamento, mais uma
vez o azeite era derramado sobre a cabeça como uma imagem da graça de Deus que
descia para ungi-los[6],
dando a eles um novo poder para cumprir aquilo que estava além das capacidades
humanas. O rei deveria permanecer no umbral entre a vontade dos homens e a
vontade de Deus, e era chamado a liderar seu povo no cumprimento do desejo de Deus;
também o sacerdote permanece num umbral, para proclamar a vontade de Deus e,
mais do que isso, para agir por Deus, para pronunciar os decretos divinos e
aplicar as decisões de Deus.
O azeite nos
fala primeiramente do fim da ira de Deus, da paz que Deus oferece ao povo que o
ofendeu; depois ele nos conta como Deus nos cura para que sejamos capazes de
viver e nos tornarmos aquilo que somos chamados a ser; e como ele sabe que não
somos capazes, com nossas próprias forças, de cumprir tanto com sua vontade
como com as leis de nossa própria natureza criada, ele derrama sua graça
abundantemente sobre nós[7].
Ele nos dá a força para fazer aquilo que de outro modo seríamos incapazes de
fazer.
As palavras milost e pomiluy em Eslavônico possuem as mesmas raízes das que expressam
ternura, amabilidade, e assim, quando usamos os termos eleison, “tem piedade”, pomiluy,
não estamos pedindo a Deus que nos salve de sua ira, mas estamos pedindo por
seu amor.
Voltando às palavras
da Prece de Jesus, “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim,
pecador”, vemos que as primeiras palavras expressam com exatidão e integridade
a fé evangélica em Cristo, a Encarnação histórica do Verbo de Deus; e o final
da prece expressa todas as complexas e ricas relações de amor que existem entre
Deus e suas criaturas.
A Prece de
Jesus é conhecida por inúmeros Ortodoxos, tanto como uma regra de oração ou,
adicionalmente, como uma forma de devoção, um curto ponto focal que pode ser
empregado a qualquer momento, em qualquer situação.
Muitos escritores
mencionaram os aspectos físicos da prece, os exercícios respiratórios, a
atenção que deve ser dada às batidas do coração e outros fatores secundários. A
Filocalia é cheia de instruções detalhadas sobre a prece do coração, até com
referências a técnicas Sufis. Os Padres antigos e modernos trataram desse assunto,
chegando sempre à mesma conclusão: nunca se deve tentar esses exercícios sem a orientação
de um pai espiritual.
O que é de
uso geral e irrestrito, com a ajuda de Deus, é a prece atualizada, a repetição
das palavras, sem nenhum esforço físico – nem mesmo movimentos da língua – e que
pode ser utilizada de forma sistemática para adquirir uma transformação interior.
Mais do que qualquer outra prece, a Prece de Jesus nos auxilia a permanecer
diante da presença de Deus sem outro pensamento senão o milagre de estarmos
diante dele e de que Deus esteja conosco, porque na Prece de Jesus não existe
nada nem ninguém além de Deus e nós.
O uso da
prece é dual, trata-se de um ato de adoração como toda prece, e, num nível
ascético, ela é o foco que permite manter nossa atenção longamente na presença
de Deus.
É uma prece
que nos acompanha sempre, uma prece amistosa, sempre à mão e muito individual,
apesar de sua monótona repetição. Quer estejamos tristes ou alegres, ela é,
quando se torna habitual, um impulso para a alma, uma resposta a qualquer
chamado de Deus. As palavras de São Simeão o Novo Teólogo, se aplicam a todos
os possíveis efeitos que ela possa ter sobre nós: “Não se preocupe com o que
virá depois, você descobrirá quando acontecer”.
[1]
Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
[2]
Isaías 45: 3.
[3]
Colossenses 2: 9.
[4]
Marcos 10: 47-48.
[5]
Tiago 2: 19.
[6]
Salmo 133: 2.
[7]
Romanos 5: 20.
É PRECISO ORAR SEM CESSAR
A vida deve ser uma prece
Eu gostaria de propor alguns pontos sobre o tema: “É preciso orar sem
cessar”. Espero que vocês estejam de acordo, numa certa medida, e também em
suficiente desacordo para provocar o encadeamento de uma discussão.
Em primeiro lugar, ao dizer esta frase: “É preciso orar sem cessar”, é
importante sublinhar o que ela significa e o que ela não significa. Com toda
evidência, ela não significa uma obrigação universal de estar constantemente na
igreja, nem de utilizar uma prece vocal ou manifestada de modo exterior. Isto
só é possível em circunstâncias bem particulares e definidas.
Poderíamos encontrar uma primeira aproximação a essa proposta numa
frase de um asceta do século VI, um homem que vivia no deserto da Síria,
chamado Efraim. Em um dos seus escritos, ele disse: “Não aprisione sua prece
somente em palavras, mas faça de sua vida inteira uma obra de Deus, um serviço
a Deus, uma oferenda a Deus”. Este é um dos aspectos aos quais iremos retornar,
pois, na época atual, existe uma forte tendência a sublinhar o fato de que a
prece não é apenas vocal ou litúrgica, que ela não está apenas no pensamento e
no coração, mas que ela pode igualmente se encontrar nas mãos, nas obras corporais
que realizamos.
Fome de Deus
Outro aspecto da prece me parece importante: trata-se da sede, da
fome, do amor a Deus percebidos com a mesma acuidade e permanência, com a mesma
constância com que percebemos a fome, a sede ou a ternura. Todos sabemos, por
exemplo, qualquer que seja nossa experiência de vida, que existem momentos de
grande dor ou de grande alegria que nos colorem todo um dia. Qualquer que seja
nossa ocupação, seja ela intelectual ou física, nos encontramos de repente na
luz dessa alegria ou na sombra dessa dor. E nenhum esforço é preciso para ter
consciência disso. Encontramos nas Sagradas Escrituras uma multitude de
imagens: a noiva do Cordeiro, o amigo do Esposo. Vemos que a ligação que une a
noiva, que une o amigo ao Esposo, é a ternura, o amor e, nos momentos de
ausência e distanciamento, é o desejo de estar juntos, aquilo que os ingleses
chamam de longing, os alemães sehnsucht, aquilo a que chamamos de
saudade, esta maneira de suspirar pelo ausente. Tampouco isso constitui um
exercício premeditado, que demanda um esforço, mas é algo que existe em nós,
que não podemos evitar, assim como a dor, o sofrimento e a alegria. E no
entanto esse aspecto da prece que é um grito para Deus, um grito de quem
percebe sua ausência e que já não a pode suportar com o coração leve, este
grito é completamente consciente. Quando estamos de luto ou quando uma grande
alegria nos envolve, é preciso muita coisa para que esses sentimentos de
tristeza ou de felicidade sejam deslocados pelos acontecimentos da vida. A
razão pela qual a prece se vê deslocada não reside no fato de que ela deveria
ser um exercício, mas está em que ela não se encontra suficientemente
fundamentada numa relação com Deus, e que em muito pouco tempo perdemos este
contato: podemos nos colocar numa distância quase infinita sem perceber. E é
nisto que reside o problema, não no exercício da prece.
O reencontro com Deus
Um segundo ponto: na origem, em lugar da prece, do conhecimento de
Deus e do conjunto de coisas que constituem nossa vida espiritual, existe um
primeiro encontro, uma primeira experiência. Fora de uma experiência vivida, de
um encontro real, não podemos sentir o desejo da prece, sequer podemos nos
voltar para Deus como para alguém nos dirigimos e sem o qual não podemos viver,
porque não podemos nos voltar para uma noção, para uma pessoa de quem nada
sabemos senão pelo relato de outros. Por conseguinte, deve haver, na base, uma
experiência vivida. Se ela não acontecer, a prece deve ser utilizada ou buscada
de um modo diferente, pois não podemos falar de uma prece constante ou
permanente endereçada a um ausente do qual não sabemos nada, e que de modo
algum nos toca o coração.
Em seguida, depois desse primeiro encontro, existe um retorno, podemos
dizer, uma “recaída” ao nível da fé. São Macário do Egito tem uma passagem
notável em que nos diz que quando um homem encontra a Deus face a face num
instante de êxtase ou de aprofundamento, ele é inteiramente absorvido por este
encontro, e este encontro lhe bastará completamente: ele não precisará de outra
coisa senão desta presença divina. Mas Deus, diz São Macário, cuida não apenas
do santo que o tenha encontrado, mas dos pecadores que precisam de um
testemunho. E ele se retira dele, como o mar se retira da praia deixando-a
seca. Nesse instante, ele se vê exatamente na situação descrita na epístola aos
Hebreus como a definição da fé: a certeza de algo infinito[1].
É uma certeza, porque no momento anterior ele viveu esse encontro e ele sabe
ter encontrado aquele que é o Deus vivo. Mas, por outro lado, este Deus vivo se
retira e se torna invisível, não mais a Presença soberana.
Assim é que existe um duplo elemento: de um lado, uma certeza, de
outro a perda de vista. Daí provém esse grito da alma, o grito de uma alma que
se sente despossuída da única coisa que preenchia sua insondável profundeza, um
grito fundamentado numa certeza de que será ouvido e que exprime a angústia
complexa do órfão abandonado, uma angústia profunda de si. Nos momentos em que
encontramos a Deus, seja no maravilhamento, seja na angústia que se segue ao
encontro e que é por ele determinada, a prece é fácil...
É nos intervalos, quando a intensidade da emoção ou da realidade
vivida se esvai, que a prece se torna ascese, um esforço consciente, um
exercício sistemático. Mas a que se destina ele? Pois bem, esse esforço
sistemático se destina a uma educação, uma educação para a descoberta de Deus
de uma parte, e para a sua percepção, de outra. Procura e descoberta de Deus,
da fé, da prece. Podemos utilizar a prece para essa busca, pois cada ciência,
cada passo da humanidade tem seus métodos e a prece é um dos métodos que nos
permite buscar e encontrar a Deus.
Diferentes aspectos da prece se apresentam então. Um dos fundadores do
Movimento dos Estudantes Cristãos na Rússia, em 1905, era ateu. Entretanto, ele
sentia em si este “vazio da forma divina” de que falava o arcebispo de
Canterbury. E ele sentia que nada poderia preenchê-lo, salvo a presença de
Deus. Ele se retirou para a Finlândia por todo um ano e nos contou que
percorria as florestas, gritando: “Senhor, se você existe, revele-se!”. E num
dado instante, subitamente, ele teve a sensação da presença de Deus. Esta é uma
das maneiras como a prece pode ser uma busca e uma descoberta de Deus. Mas na
maior parte do tempo, creio eu, vamos tateando, num passo tímido de nosso
coração, de nosso intelecto e de todo nosso ser, às cegas, o que faz que
busquemos como quem procura na escuridão, com as mãos estendidas, na esperança
de que essas mãos encontrem aquilo que elas tanto desejam encontrar. Este
tatear, esta busca, esta caminhada cega, aonde nos conduzirão elas?
Em primeiro lugar, para nossas próprias profundezas. Quero aqui
insistir num fato: não se trata aqui de profundidades psicológicas, mas
daquelas que ultrapassam toda profundeza humana e que nos permitem encontrar,
no mais fundo de nós mesmos, uma porta aberta para o próprio Deus.
A prece espontânea e a prece formal
Outro elemento: a educação da percepção, a revitalização da chama que
por um instante se acendeu no momento de nosso encontro com Deus. E para
começar, a prece espontânea que deve brotar no instante mesmo em que esta chama
se acende e que deve nos alimentar hora após hora, dia após dia, enquanto puder
manter viva e espontânea essa experiência natural espontânea da resposta da
alma ante a presença e o encontro com Deus. Prece espontânea, enraizada no
maravilhamento com que somos tomados no instante do encontro, ou ao contrário
no sentido trágico que nos resta no momento em que já não existe o encontro,
mas a certeza, a lembrança indubitável de que este encontro existiu, mas
cessou. Enquanto durar essa prece espontânea, enquanto existir suficiente maravilhamento
em nosso coração ou suficiente angústia em nossa alma, essa prece espontânea
continuará viva e vigorosa; mas num dado instante, rápido ou não, chegamos a um
período no qual perdemos essa intensidade interior. Então a prece espontânea
deve se transformar naquilo que eu chamarei, na falta de uma expressão melhor,
numa prece de convicção. Esta prece consiste na certeza intelectual que nos
resta quando o fogo que nos abrasava originalmente parece se extinguir em nós.
Frequentemente, sabemos ter a fé, sabemos que em alguma parte de nós
tivemos uma experiência, mas ela parece haver descido tão profundamente em nós
que já não somos capazes de alcançá-la. Então, é preciso orar, com uma prece da
vontade, uma prece de convicção. É preciso também avivar aquela chama por meio
da meditação, e por uma dupla meditação: de um lado, uma lembrança sóbria e
precisa daquilo que aconteceu – porque esquecemos com demasiada facilidade
mesmo os mais preciosos bens que foram depositados em algum lugar de nossa alma
– daquilo que foi e que no entanto deixou de ser uma experiência vivida; e de
outro lado, a meditação das próprias preces que utilizamos. Muitas vezes, de
fato, essas preces já não surtem efeito sobre nós, já não causam impacto em
nossa alma, porque as palavras que empregamos são pobres, não por natureza, mas
em relação a nós. São palavras sobre as quais jamais refletimos, cuja
substância jamais expressamos por nós mesmos, cujo sentido espiritual se
reduziu ao uso que fazíamos dela a cada dia pelas ruas, enquanto que na verdade
elas possuíam uma riqueza, uma textura profunda, que deixamos escapar por não
termos prestado atenção nelas. Isto também acontece porque as palavras que
utilizamos, que eventualmente poderiam possuir ressonâncias emocionais
extremamente ricas que nos teriam permitido enfeixar todo um mundo de
experiências vividas, não o fazem porque nunca notamos essa riqueza de
cristalização contida nelas. Assim, existe aí uma necessidade viva.
Prece e vida
Enfim, como último elemento importante, a prece que dirigimos a Deus
estará morta de não for provada e sustentada por uma experiência de vida. Se, ao
final de nossa jornada, fizermos a Deus discursos sentimentais que contradizem
nossas ações, pouco a pouco, quanto mais rezarmos, mais essas palavras se
tornarão mortas, porque somente a sua aplicação e sua integração à vida podem
lhes dar substância e intensidade.
Orar enquanto viver
Um outro problema prático se coloca agora: quanto tempo dedicar à
prece? Responderei brevemente. Se é verdade que a prece é uma das mais elevadas
formas de nossa consciência de Deus, de nossa vida em Deus, se ela é a fome, a
sede, o ardor, o amor, é preciso orar tanto quanto se vive, tanto quanto se
ama, tanto quanto se tem um cuidado ativo com o destino, de si, dos outros, do
mundo e de Deus.
Para poder fazê-lo, duas coisas são importantes. Primeiro, é preciso
saber encontrar tempo para orar e, para isto, é preciso resgatar o tempo.
Resgatar o tempo consiste em fazer uso do tempo perdido. Existe tanto tempo
inútil ao longo do dia que, se dermos a Deus apenas o tempo que jogamos ao
vento, teremos mais ocasiões de orar do que seremos capazes de preencher, dado
o estado espiritual em que nos encontramos. É preciso também resgatar o tempo
vivido, ou seja, integrar a vida e a prece de tal modo que as duas, vida e
prece, se tornem dois fios perpendiculares de uma mesma trama, enriquecendo-se
mutuamente. De outro lado, devemos aprender algo que constitui uma ciência
rara, ao que me parece, em função das reações que tenho encontrado: é a ciência
de dominar o tempo. O tempo parece fugir: é preciso aprender a impedi-lo de
fugir, segurá-lo nas mãos, possuí-lo e fazer com que esse tempo contenha a
eternidade.
Prece e ação
Uma última palavra: eu assinalei no início destas considerações a
frase de Efraim o Sírio que estabelece o tema da prece e da ação. Ela levanta
alguns problemas. A trama da vida é feita de contemplação e de ação, de prece e
de ação: estas são o direito e o inverso de uma mesma realidade interior. Elas
estão ligadas pela caridade e unidas na caridade. Se nossa prece não for
fundamentada na caridade, também nossa ação será vazia de caridade. Se uma e
outra são a expressão de um estado único, que é nossa caridade e nossa
capacidade de amar a Deus e ao nosso próximo, então as duas coincidem
necessariamente, porque a vida é feita de angústia, do sentido trágico e do
maravilhamento da Presença de Deus.
Mas agora se coloca a questão da primazia da ação. Uma profunda
intencionalidade é bastante a si mesma? Ela pode bastar ou não. Mas, qualquer
que seja a resposta que dermos – e logo mais diremos alguma coisa a respeito –
qualquer que seja a realidade da coisa, não deixa de ser verdadeiro que todos
temos uma necessidade de retorno à fonte. Não podemos simplesmente, por termos
feito um ato de fé ou uma experiência de Deus uma vez na vida, viver o resto de
nossos dias numa ação separada de Deus, sem retornar a ele incessantemente e
sem renovar nossa consciência, nossa sede, nossa fé e nosso amor a Deus. Para
que possamos falar de prece, é necessário que ela constitua uma consciência
ativa, sem a qual podemos cair numa dimensão social sem Deus em nome do próprio
Deus, em ações que são neutras em si, porque dividir o pão é um ato em si
neutro, que não implica uma caridade sobrenatural nem uma relação com Deus, e
todas as obras sociais que podemos realizar se encontram no mesmo plano: elas
contêm a Deus, não pelo fato de que sejam realizadas, mas pelo fato de que nós
estamos em Deus, ou fora de Deus: que Deus obtenha de nós uma espécie de
cidadania em nossa ação, ou que ele seja simplesmente supérfluo, sempre terá
partido dele o impulso que a originou.
Obstáculos à prece
Para terminar, gostaria de citar algumas coisas que, acredito, impedem
de rezar. Não se trata do trabalho, nem do tumulto, nem da tentação: trata-se
da superficialidade de nossas vidas. Só é possível orar com profundidade,
quando estamos abertos a este elemento de profundidade. Se nossa vida
transcorre à flor da pele, à flor da terra, não será possível que nela caiba a
oração. Não existe prece na facilidade: quando a vida está muito fácil e não
apresenta nenhum problema, não há nada a que nos possamos agarrar. A prece
tenta se prender às asperezas da vida, mas elas não existem; não há sobre quê
formular uma prece de petição; não há ninguém para interceder; não há sequer o
que agradecer a Deus, e não resta nenhum ponto de contato com ele.
Existe ainda o fato de que atualmente a maioria das pessoas,
incluindo-se aí os cristãos, vive num mundo que se parece a um mundo de coisas.
Mesmo nosso próximo pode ser uma coisa, até que encontremos nele a profundidade
de um destino e o significado real de sua presença. Se vivemos num mundo de
coisas, iremos buscar a Deus nas coisas... e não o encontraremos lá. Deus não
está situado no meio dos objetos que nos cercam; tampouco está situado em nosso
próximo do modo como seu pensamento e suas ideias coincidem com sua presença no
espaço: ele está situado numa profundidade que é metafísica e espiritual. É
isto que eu chamo de ausência de uma dimensão trágica, do sentido do destino.
Enfim, existem duas qualidades que são absolutamente necessárias, e
sem as quais, creio, nenhuma relação com Deus é possível, e que em muitos casos
são destruídas pelo empalidecimento e a secularização de duas noções: a do amor
e a da beleza. Estas duas noções foram profanadas, arrancadas do mundo divino,
quando deveriam permanecer nos umbrais deste mundo e de sua descoberta. Creio
que uma pessoa que não aprendeu a reconhecer a beleza nem a saber o que é o
amor – não a caridade desencarnada que atribuímos aos santos, sem saber o que
ele são em realidade – mas o amor vivo, o amor cheio de ternura e de realidade
humana, quem não aprendeu essas coisas não tem esperanças de alcançar o amor
sobrenatural. Devemos primeiro ser homens, para só então crescermos até a
medida do divino.
Uma questão se coloca concretamente: como cada um de nós poderá
retornar à fonte? O que fazer? Quando temos um aparelho aquecedor por
acumulação, sabemos exatamente como ele funciona: ele armazena eletricidade
durante o dia para que forneça calor à noite. E nós, como o faremos?
PRECE E VIDA
É uma alegria poder testemunhar aquilo que me toca, aquilo que vai
direto ao meu coração, aquilo que, de modo às vezes fulgurante, por um instante
e para sempre, nos impressiona no contexto e das situações vividas. Este
testemunho daquilo que nossos olhos viram, do que nossas mãos tocaram, do que
nossos ouvidos escutaram, o testemunho destas coisas que iluminaram nosso
entendimento, aprofundou nosso coração, deu uma direção à nossa vontade e
chegaram até o nosso corpo, tornando-o mais obediente à graça.
É da prece e da ação que pretendo falar, mas é sobretudo a respeito da
prece que desejo conversar; ou melhor, é dessa situação complexa que é a um
tempo prece e ação, que se manifesta constantemente numa reflexão eficaz, numa
vida sustentada por um pensamento tão profundo quanto possível e numa
compreensão tão lúcida quanto possível das situações nas quais vivemos.
A ligação entre a prece e a vida
Em primeiro lugar, quero dizer algumas palavras sobre a relação que
existe, não em termos gerais, mas de modo preciso, entre a vida e a prece, de
um ponto de vista que não foi abordado até o presente. Frequentemente, a vida
que levamos se coloca em testemunho contrário à prece que fazemos, e é somente
se conseguirmos harmonizar os termos de nossa prece com nosso modo de vida que
nossa prece adquirirá a força, o brilho e a eficácia que esperamos dela.
É muito comum nos dirigirmos ao Senhor esperando que ele faça aquilo
que deveríamos nós fazer em seu nome e a seu serviço. Muitas vezes nossas
preces são discursos polidos, bem preparados, empregados por séculos, que oferecemos
dia após dia ao Senhor, como se bastasse repetir, ano após ano, com um coração
frio, uma inteligência preguiçosa, sem que nossa vontade esteja comprometida,
as palavras de fogo que nasceram nos desertos e nas solidões, em meio aos
maiores sofrimentos humanos, nas situações mais intensas que a humanidade
jamais conheceu.
Repetimos as preces que trazem os nomes dos grandes heróis da
espiritualidade, e acreditamos que Deus as escura, que ele leva em conta seu
valor, enquanto que a única coisa que importa ao Senhor é o coração daquele que
fala, é a vontade dirigida ao cumprimento de Sua vontade.
Dizemos: “Não nos deixes cair em tentação”, e em seguida, num passo
rápido, ávidos, cheios de esperança, corremos para onde nos chama a tentação.
Ou clamamos: “Senhor, meu coração está pronto!”. Sim, mas para quê? Se o Senhor
nos perguntasse isso ao anoitecer, quando, antes de nos deitarmos, pronunciamos
estas palavras, não deveríamos talvez lhe responder: “...para terminar o
capítulo recém começado deste romance policial...”? Pois naquele momento esta é
a única coisa para a qual nosso coração está pronto. E existem tantas ocasiões
em que nossas preces são letras mortas, e, mais do que isso, são palavras que
matam, porque cada vez que permitimos que nossa prece seja morta, cada vez que
impedimos que ela nos torne vivos, cada vez que recusamos que ela nos mostre a
intensidade intrínseca que ela possui, nos tornamos menos e menos sensíveis á
sua “mordida”, ao seu impacto, e vamos nos tornando progressivamente mais
incapazes de viver a prece que pronunciamos.
Existe assim um problema que deve ser resolvido na vida de cada um:
devemos fazer de cada termo de nossa prece uma regra de vida. Se dissermos ao
Senhor que lhe pedimos socorro para escaparmos das tentações, devemos, com toda
a energia de nossa alma, com toda a força que nos foi dada, evitar toda ocasião
de tentação. Se dissermos ao Senhor que nosso coração se parte diante do
pensamento da fome, da sede ou da solidão de tal ou tal pessoa, devemos escutar
a voz do Senhor que nos responde: “A quem poderei enviar?”, e nos levantar
diante dele, dizendo: “Eis-me aqui, Senhor!”, colocando-nos em movimento
imediatamente. É preciso jamais dar tempo para nos permitirmos um pensamento
supérfluo se encaixar entre a nossa boa intenção, entre a injunção de Deus e o
ato que propusemos, porque o pensamento que se coloca neste interim, qual uma
serpente, nos dirá de imediato: “Mais tarde”, ou “Será mesmo necessário?”, ou
“Deus não terá alguém com mais tempo livre para realizar sua vontade?”. E,
enquanto tergiversamos, a energia que nos havia sido comunicada pela prece e a
resposta divina diminuirão e acabarão por morrer em nós.
Existe assim algo de essencial, uma ligação que devemos estabelecer
entre a vida e a prece por um ato de vontade, um ato que nós mesmos nos
propomos, que não se coloca sozinho, mas que pode transformar nossa vida de uma
maneira profunda. Leiam as preces que lhes são dadas nos ofícios da manhã e da
tarde. Escolham uma prece qualquer e façam dela um programa de vida, e vocês
verão que esta prece jamais se tornará fatigante, que ela não se esgotará
jamais, porque a cada dia ela estará sendo afiada, limada pela própria vida.
Quando você pedir a Deus que o proteja ao longo de todo o dia contra tal ou tal
necessidade, tal tentação, tal problema, tendo você cumprido seu dever de lutar
na medida de suas possibilidades humanas, de sua fraqueza humana, com todo o
seu ser cheio como uma vela do sopro e do poder divino, ao anoitecer,
apresentando-se diante de Deus, você terá muita coisa a lhe dizer. Você
agradecerá a ajuda recebida ou se arrependerá do modo como a utilizou, você
poderá cantar de alegria porque ele lhe permitiu fazer, com sua mãos fracas e
trêmulas, sua pobres mãos humanas, Sua vontade, você agradecerá por ter sido
Seu olho que viu, Seu ouvido que escutou, Seu passo, Sua caridade, Sua
compaixão encarnada, viva e criadora. E isto ninguém pode fazer por nós senão
nós mesmos, e, sem o fazer, a prece e a vida se dissociam. Por um tempo a vida
seguirá seu cainho e a prece continuará seu ronronar cada vez menos claro, cada
vez menos inquietante para nossa consciência, e sua insistência se
enfraquecerá. E como a vida tem tantas exigências, enquanto que a prece vem de
Deus, de um Deus tímido, um Deus amoroso, que nos chama, mas que jamais de
impõe por uma violência brutal, é a p0rece quem morre. Então dizemos, para nos
consolarmos, que agora encarnamos nossa prece na ação, e que é a obra de nossas
mãos que representa nossa adoração.
Não é essa a atitude que temos em relação aos nossos amigos, nossos
parentes, em relação às pessoas que amamos. É certo que às vezes, talvez
sempre, fazemos tudo o que devemos fazer por eles; mas não implica isso que
jamais os esqueçamos de coração, que jamais nosso pensamento se desvie deles?
Com certeza não! Será que só Deus tem o privilégio de ser servido sem que
jamais olhemos para ele, sem que jamais nosso coração se aqueça e se sinta
amoroso ao ouvir seu Nome? Somente Deus pode ser servido com indiferença?
Existe aí alguma coisa a aprender, e também alguma coisa a fazer.
A integração da prece com a vida
Existe ainda outro aspecto dessa prece ligada à vida: é a integração
da prece com a própria vida. A cada instante existem situações que nos
ultrapassam. Se aplicássemos a prece a estas situações, teríamos a cada dia e a
cada hora mais ocasiões do que suspeitamos para que a nossa prece se torne
contínua. Será que nos lembramos suficientemente de que nossa vocação humana
ultrapassa todas as possibilidades humanas? Não somos nós chamados a ser os
membros vivos do Corpo de Cristo, a sermos de certo modo todos juntos, mas
também cada qual pessoalmente, uma extensão da presença encarnada de Cristo no
tempo em que vivemos? Não somos nós chamados a sermos os templos do Espírito
Santo? Não está nossa vocação no Filho único, em sermos o Cristo total, mas
também filhos de Deus? Não somos nós chamados a nos tornarmos partícipes da
natureza divina?
Essa é a nossa vocação humana, expressa do modo mais central, e além
disso nossa vocação se estende tão longe quanto a vontade e a ação de Deus.
Somos chamados a estar na presença do Deus vivo no mundo inteiro que ele criou.
Podemos nós fazer qualquer coisa neste sentido sem que Deus a faça em nós e por
nós? Com certeza não. Como poderíamos nos tornar membros vivos do Corpo de
Cristo? Como poderíamos, sem ser destruídos pelo fogo divino, receber o
Espírito Santo como um templo no qual ele possa habitar? Como poderíamos nos
tornar verdadeiramente partícipes dessa natureza divina? E como poderíamos nós,
pecadores que somos, fazer a obra da caridade, a obra do amor divino para a qual
somos chamados? Aí não existe somente uma razão permanente de prece, não existe
apenas uma progressão ou uma exigência de acentuar cada prece, mas é preciso
sermos enxertados à vinha vivificante. Senão, que vida possuímos, que frutos
podemos dar, que poderemos fazer?
Uma coisa nos toca em primeiro lugar: se quisermos que nossa prece e
nossa vida não se dissociem, que nossa prece não se dissolva pouco a pouco,
destruída pelas exigências de uma vida dura, cruel, por causa dos esforços do
Príncipe deste mundo, é preciso integrarmos nossa prece a tudo o que faz nossa
vida, que a atiremos como uma medida de fermento nesta massa que é no9ssa vida
em sua totalidade. Se pela manhã nos levantamos e nos apresentamos ao Senhor,
dizendo: “Senhor, abençoe-me e abençoe este dia que está começando”, e se nos
damos conta de que estamos entrando num novo dia da criação, um dia que jamais
existiu antes de nós, um dia que se levanta como uma possibilidade inexplorada
e infinitamente profunda! Se nos damos conta com as bênçãos de Deus de que
entramos neste dia para trabalharmos como cristãos com a força e a glória
implicadas na palavra “cristão”, com que respeito, com que seriedade, com que
alegria contida e com que esperança e ternura não nos sentiremos durante o
desenvolvimento progressivo deste dia? A cada hora o receberemos como um dom de
Deus: toda circunstância que se apresentar a nós, nós a receberemos como vinda
da mão do Senhor; nenhum encontro será fortuito, cada pessoa que cruzar nosso
caminho, cada interpelação que nos for feita será um chamado a ser respondido,
não do modo como antes o fazíamos, sobre um plano puramente humano, mas com
toda a profundidade de nossa fé, com toda a profundidade desse coração profundo
de homem, no fundo do qual se encontra o reino de Deus e o próprio Deus.
E ao longo desta jornada caminharemos com o sentido do sagrado, com a
sensação de fazer o caminho com o Senhor, e a cada instante nos encontraremos
cara a cara com novas situações. Quando demandarem sabedoria, pediremos por
ela; se demandarem força, pediremos ao Senhor que no-la dê; e existem as que
demandam o perdão de Deus por termos nós agido mal; e as que exigem de nós um
impulso de reconhecimento, porque, malgrado nossa indignidade, nossa cegueira,
nossa frieza, nos foi concedido fazer de alguma maneira coisas que não
poderíamos fazer com nossas próprias forças. Poderíamos multiplicar os
exemplos, mas o sentido do problema é claro. E assim nos damos conta de que a
vida jamais nos impedirá de rezar, jamais, porque a própria vida é a substância
viva na qual mergulhamos esta medida vivificante de fermento que é nossa prece,
que é nossa presença, na medida em que nós mesmos estamos em Deus e Deus está
em nós, ou, ao menos, na medida em que nos voltamos para ele enquanto ele se
inclina para nós.
Tantas vezes poderíamos tê-lo feito, mas duas coisas nos retêm: a
primeira é que não estamos habituados ao esforço da prece. Se não fazemos este
esforço de modo contínuo, se não nos preparamos pouco a pouco para fazer
esforços mais e mais estáveis, mais e mais constantes, mais e mais prolongados,
ao cabo de alguns dias nossa energia espiritual, nossa energia mental, nossa
capacidade de atenção, nossa capacidade de respondermos com o coração aos
eventos que surgem e às pessoas que se apresentam, tudo isso morre em nós. É
preciso saber fazer uso, nesse aprendizado da prece constante e sustentada pela
vida, da sobriedade que os Padres recomendam: caminhar passo a passo,
lembrar-se que existe uma ascese no repouso tanto quanto uma ascese no esforço,
que existe uma sabedoria que se aplica ao corpo, ao intelecto e à vontade, e
que não podemos manter uma tensão incessante com todas as forças voltadas para
um objetivo.
Talvez vocês se lembrem desta passagem da vida de São João
Evangelista. Conta-se que um caçador, tendo ouvido dizer que o discípulo
bem-amado de Cristo habitava numa das montanhas próximas a Éfeso, se pôs a
caminho para encontrá-lo. Ele chegou a uma clareira e viu um ancião de quatro
sobre a grama verde, brincando com uma galinha. Ele se aproximou e lhe
perguntou se já ouvira falar de João, e se sabia como encontrá-lo. João lhe
respondeu: “Sou eu”. O caçador riu na sua cara: “João, você? Como é possível?
Ele, que escreveu essas epístolas maravilhosas, apresentando-se sob o aspecto
de um velho que brinca com uma galinha?”. E o ancião lhe respondeu: “Vejo pelo
seu uniforme que você é caçador. Quando você está na floresta, você permanece
todo o tempo com o arco retesado e a flecha pronta para disparar caso veja
surgir algum animal?”. O caçador riu novamente e disse: “Eu bem vi que você é
louco. Quem caminharia assim pela floresta? Se eu retesasse o arco sem cessar,
no instante em que precisasse dele, a corda iria se partir”. “O mesmo acontece
comigo, lhe respondeu João, pois se eu tensionar sem descanso todas as forças
de minha alma e de meu corpo, no instante em que Deus se aproximar, eles se
quebrariam num esforço que seriam incapazes de sustentar”.
É preciso saber, com sobriedade, com sabedoria, tomar um necessário
repouso com vistas a agir com toda intensidade, com toda a força que não é
apenas nossa , mas que nos é dada pela graça divina. Pois a graça nos é dada na
fragilidade de nossos corpos, na fragilidade de nossas inteligências, de nossas
vontades, de nossos corações.
O obstáculo: a falta de fé
Existem algumas dificuldades que se apresentam: uma delas é a falta de
fé. Qualquer que seja a vestimenta que usamos, a profissão que exercemos,
sempre existirá em nós um instante de hesitação, uma falta de fé profunda.
Muitas vezes nos dizemos: “A prece de intercessão, a prece de pedido é uma
forma inferior de prece. A prece do monge, a prece do cristão que atingiu uma
certa maturidade, é a ação de graças e o louvor”. Está certo, no final de
contas é lá que chegaremos. Ao final de uma longa vida de ascese espiritual e
corporal, quando estivermos completamente desligados de tudo, quando estivermos
prontos para tudo receber da mão de Deus como um dom precioso, não nos restará
senão agradecer e louvar. Mas estamos nós lá? Não é mais fácil agradecer ao
Senhor pelo que ele nos faz e louvá-lo pelo que ele é, em particular nos
momentos em que nosso coração se abrasa sob o toque da graça? Não é mais fácil
agradecê-lo e louvá-lo do q eu lhe pedir com fé a realização de tal ou tal
demanda?
É frequente que pessoas que estão em perfeito estado de louvar a
agradecer ao Senhor não sejam capazes de fazer um ato de fé completo, com um
coração indiviso, com uma inteligência que não vacila, com uma vontade
inteiramente voltada para ele, porque se apresenta uma dúvida: “E se por acaso
ele não responder?”. Não é mais simples dizer: “Faça-se a sua vontade”? Ora,
tudo será para melhor, porque a vontade de Deus será feita de qualquer maneira,
e é melhor estar no interior desta vontade divina. Mas muitas vezes, tantas vezes,
a exigência é diferente. Ela o é justamente em relação à vida ativa entendida
do modo como usamos esta palavra no Ocidente, ou seja, em relação a uma vida
voltada para situações que nos são exteriores. Basta que uma doença atinja alguém que nos é
caro, que a fome atinja o país. Desejaríamos pedir o socorro de Deus, mas com
frequência o fazemos com tal negligência que, seja o que for que aconteça,
nossa prece pode se adequar à situação dada. Encontrando os termos, encontramos
os polos: a vontade de Deus será feita ao final de contas, e nós estaremos
satisfeitos: mas fizemos nós um ato de fé? Existe aí um problema para todos os
que estão engajados na vida ativa e que acreditam na ação eficaz da prece e da
passividade eficaz.
Se quisermos agir junto com Deus, não basta deixar o campo livre e
dizer: “Senhor, de qualquer modo você fará o que quer; faça-o então, sem que eu
o atrapalhe”. É preciso aprender a discernir a vontade de Deus, é preciso penetrar
no desígnio de Deus, mas também é preciso saber que às vezes os desígnios de
Deus se ocultam.
Lembrem-se da mulher Cananeia[1].
A evidência, que saltava aos olhos e atingia o ouvido, consistia numa recusa, e,
no entanto, a intensidade de sua fé e a sutileza de seu ouvido espiritual
perceberam algo diferente e ela soube insistir contra a aparente vontade de
Deus em favor da vontade real do Senhor. É preciso saber ver, é preciso saber
se colocar à procura da pegada invisível do Senhor. O Senhor é como uma tecelã
que tece uma tapeçaria; mas, como já foi dito, nós só conseguimos ver o
reverso, pois o lado direito está voltado para Deus. E o problema da vida,
desta visão que fará com que nossa prece será feita não em oposição, mas em
conformidade com a vontade de Deus e em harmonia com ela, consiste em observar
longamente o reverso as tapeçaria até conseguir perceber o lado direito, até
observar como Deus constrói a história, como ele dirige a vida, como aprofunda
uma situação, como cria um sistema de relações, e assim agir não contra ele,
não independentemente, mas com ele, deixando-o agir, permitindo-lhe agir conosco
e em nós. E neste caso haverá uma continuidade entre a atenção e a contemplação,
a menos que aceitemos uma ação dessacralizada, uma ação da qual Deus está
ausente, uma ação que seja puramente humana e sustentada por energias humanas,
nossas próprias energias. Mas isto não será nem uma ação crista, nem uma prece
cristã. No cerne da situação do homem ativo que deseja que sua ação se constitua
na continuidade da obra de Deus, que deseja que a ação da Igreja e que sua
própria ação, enquanto membro vivo deste Cristo total que é a Igreja, seja um
ato de Cristo, ato do Deus vivo, palavra do Deus vivo, está o aprendizado de
uma forma de contemplação, de uma maneira de ser contemplativo que nos revele
qual é verdadeiramente a vontade de Deus. Fora disto, toda ação será um ato
lançado ao acaso.
O papel da contemplação
Procura da visão das coisas tais
como Deus as vê
Mas então, no que consiste essa contemplação? Ela é a função, a
situação contínua, incessante, do cristão em qualquer posição em que se encontre,
quer esteja numa ordem contemplativa ou em qualquer outra ordem, seja ele
simplesmente um leigo duplamente engajado, engajado em relação a Deus e, por
isso mesmo, engajado totalmente em relação ao resto do mundo criado, homens e
coisas. Existe um primeiro fato: essa contemplação é um olhar colocado, um olhar
atento, com uma inteligência lúcida, que se aplica às coisas, às pessoas e aos
acontecimentos, às suas realidades estáticas e ao seu dinamismo. É um olhar que
se prende inteiramente ao objeto sobre o qual se coloca, junto com um ouvido
voltado inteiramente para o que escuta, para aquilo que lhe vem de fora.
Para que isso aconteça existe toda uma ascese indispensável, pois é
preciso saber se desligar de si para ver e ouvir. Na medida em que estamos
centrados em nós mesmos, não vemos mais do que um reflexo de nós próprios em
tudo o que nos rodeia, ou um reflexo daquilo que nos rodeia nas águas confusas
e agitadas de nossa consciência. É preciso saber se calar para ouvir, é preciso
saber olhar longamente antes de acreditar que se viu. É preciso estar ao mesmo
tempo livre de si e abandonado a Deus e ao objeto de suas contemplações. Somente
assim poderemos ver as coisas em sua realidade objetiva, somente então
poderemos nos colocar a questão essencial: o que Deus pretende com esta
realidade que se apresenta a nós?
Pois este mundo no qual evoluímos sem cessar, nós o criamos pela
imaginação, por preguiça intelectual, por egoísmo, porque não cremos no centro
das coisas uma vez que nos tornamos totalmente periféricos. Neste mundo irreal
Deus nada pode, simplesmente porque este mundo não existe. Não há um mundo de
irrealidades onde Deus possa agir, mas no mundo da realidade ele é o mestre. E
a realidade mais pesada, mais odiosa, mais infame, a mais distante e estranha
ao Reino, pode se tornar o Reino, com a condição de que lhe outorguemos sua
qualidade de realidade. Uma miragem não pode se transfigurar, mas um pecador
pode se tornar santo.
Creio que é essencial buscarmos esse tipo de contemplação, que possui
um significado universal, que não se liga a nenhum papel que tenhamos assumido
na vida, e que se constitui simplesmente
numa busca atenta por meio da reflexão, da prece, do silêncio e do
aprofundamento da visão das coisas tais como Deus as vê.
Diz-se que a prece começa no momento em que Deus fala. É este o
objetivo para o qual devemos nos voltar. Esta contemplação não é exclusiva do
cristão, ela é a contemplação universal. Não existe um único espírito humano
que não esteja orientado deste modo para as realidades exteriores, a diferença
entre nós e o ateu – aquele que não crê senão nas coisas que o cercam e que não
vê nelas nenhuma profundidade de eternidade, de imensidão, de relação com Deus –
a única diferença, é que o ateu observa os fenômenos, enquanto que nós estamos
na escuta da palavra de Deus que nos fornecerá a chave. É pouco, mas é tudo. Porque,
se desta maneira pudermos adquirir a inteligência de Cristo, se pudermos ser
guiados como os apóstolos (de uma maneira que o tempo não esgotou), se pudermos
ser guiados pelo Espírito Santo que nos ordena ir e agir, falar a calar,
estaremos na condição de cristãos, nada além disso.
O problema do engajamento das
ordens contemplativas
Evidentemente, existe na experiência cristã tal como ela é vivida, o
aspecto contemplativo, no sentido técnico do termo (as ordens contemplativas). Existe
um grande problema neste sentido. As ordens contemplativas são duramente
atacadas, mas serão estes ataques tão injustos quanto elas imaginam? Falam-nos
da credibilidade ou da falta de credibilidade da mensagem, tal como nos é
trazida pela vida cristã, pelas estruturas e pela situação histórica da Igreja.
Houve um tempo em que o sentido da contemplação, o sentido do sagrado, o
sentido do Deus vivo – não apenas presente, mas transcendente – era verdadeiramente
intenso e a sociedade cristã via alguns de seus membros viverem apenas da
contemplação, da prece contemplativa, do silêncio, da presença divina, como uma
parte da função total da Igreja.
Mas o mesmo não acontece atualmente. O povo cristão, no seu conjunto,
já não se sente sempre solidário com essa busca de contemplação radical, e
devemos encarar o problema não apenas educando o povo cristão, mas tomando
consciência do problema que nós mesmos criamos, problema que foi agravado
especialmente pelo fato de que as ordens contemplativas não podem existir a
menos que existam pessoas ativas. De um modo ou de outro os contemplativos
vivem da caridade daqueles que não contemplam. E quando a massa das pessoas que
trabalham arduamente não reconhece nesse grupo particular uma expressão de sua
própria vida, nem enxerga neles uma existência limitada e especializada, essa
massa recusa a eles sua simpatia e seu sustento.
Creio que existe aí alguma coisa muito importante, porque o mundo em
que estamos parece aceitar com facilidade, por exemplo, a vida contemplativa
dos ascetas da Índia. Nosso mundo aceita facilmente a vida socialmente inútil
de um artista, aceita de bom grado pessoas que se dissociam e se afastam do
grupo essencial, mas com uma condição: que essas pessoas paguem o preço por sua
dissociação. O que convence, por exemplo, quando se trata de um asceta da
Índia, é que ele vive uma vida tão dura quanto as circunstâncias que o criaram.
E o que muitas vezes não convence em nossas ordens contemplativas, é que nós
queremos contemplar, mas também queremos ser alimentados e aquecidos, queremos
um teto e um jardim, e toda essa espécie de coisas. E essas coisas deveriam nos
ser fornecidas por pessoas que estão privadas deste conforto que é a
contemplação. Existe aí um verdadeiro problema para a consciência, não dos que
não são cristãos, mas dos cristãos. Pensemos nos votos muitas vezes ilusórios
que pronunciamos: abandonamos família, pai, mãe, parentes, e recriamos outra
família que é bem mais segura, em primeiro lugar porque ela não morre. Pais,
mães, irmãos, mesmo filhos podem morrer antes de nós. Mas a ordem em que você
está não morrerá antes de você, a menos que você verdadeiramente a destrua. Fazemos
voto de pobreza; evidentemente não possuímos recursos pessoais, mas nunca nos
falta o essencial: jamais teremos que encarar a insegurança social de um
proletário. Pois não é a falta de dinheiro, a falta de vestimentas, que
constitui o problema: é a insegurança radical em que se encontra aquele que não
sabe o que lhe acontecerá amanhã. Eu poderia citar muitos aspectos dessa vida
contemplativa que fazem com que mais pessoas do que imaginamos a procurem. Muitas
compreendem a contemplação, muitas vivem da contemplação, oram de modo
profundo, escutam a voz do Deus vivo, seguem os mandamentos, vivem não apenas
de pão mas de cada palavra de Deus, mas não se pode entender porque esses
grupos humanos, esses especialistas, não assumem a responsabilidade por seu
engajamento: uns se engajam, e outros pagam para eles.
A verdadeira mensagem da
contemplação sobre Deus e sobre os homens
Por fim, quero atrair sua atenção para outro aspecto desse momento contemplativo:
quando falamos de contemplação, somos tentados a não pensar senão nos monges ou
nos contemplativos que pertencem a religiões não cristãs. Não nos damos conta
do grau de contemplação que existe no mundo entre pessoas que, simplesmente,
face à situação atual em que se colocam problemas de base, não se contentam
apenas em observar o modo como as coisas se desenrolam de modo a enfrentar
esses problemas, mas se fazem perguntas.
Vejam os jovens e os adultos de hoje, mesmo aqueles que não estão
integrados à Igreja; vejam com que atenção, com que profundidade, às vezes com
quanta fulguração da inteligência, com que visão, eles tentam compreender. Eles
se colocam a questão de Deus, do homem, do ser material que nos cerca. Algumas vezes
eles se voltam para nós na esperança de obter uma resposta que não seja um “slogan”,
uma resposta que traga a intensidade de uma vida ao problema diante do qual
eles se encontram: eles sabem olhar, escutar, eles sabem desembaraçar situações
nas quais somos os elementos constitutivos, mas o que eles não conseguem fazer
é enfeixá-los como em um buquê; o que eles não têm condição de fazer é possuir
a chave e a cifra, que lhes permitiria ler a “loucura” da economia da salvação,
a vontade ativa, profunda, completa do Deus vivo, inteiramente engajada na
história do mundo.
Isso até poderíamos fazer, mas é esta a contemplação à qual nos
dedicamos? Deus se revela sem cessar no Antigo e no Novo Testamentos , mas
também sem cessar novos aspectos dessa revelação podem nos atingir. Conseguiremos
nós ver o suficiente? A experiência russa é instrutiva: tantos Russos, antes da
Revolução, conheciam o Deus das catedrais e das estruturas da “Igreja
estabelecida”! Quando eles se viram desprovidos de tudo e não lhes restou mais
do que somente Deus num desnudamento absoluto – quantos não descobriram aquele
a quem podemos chamar de o Deus das profundezas, este Deus que aceitou uma
solidariedade completa, ilimitada, uma solidariedade total e para sempre, não
somente com aqueles que estavam desprovidos de tudo, mas com os que, segundo a
visão humana, haviam sido rejeitados do Reino de Deus.
Esse Deus vulnerável, sem defesa, aparentemente vencido e por isso detestável,
esse Deus que não tem vergonha de nós porque se fez como um de nós, e de quem
não precisamos ter vergonha porque ele é nosso semelhante por um ato de
inacreditável solidariedade, teremos nós realmente o descoberto? É certo,
falamos dele, pregamo-lo, e, no entanto, sem cessar, tentamos escapar deste
Deus para reintegrá-lo na dimensão humana de uma fé estruturada e de uma igreja
harmonizada com as noções de grandeza, brilho e beleza terrestres. É verdade
que tudo isso tem seu lugar. Mas que pensa deixarmos escapar esse Deus que é
compreensível aos milhões de pessoas para as quais nossas catedrais e nossas
liturgias permanecem opacas. Quantas pessoas poderiam encontra a Deus se nós
não o escondêssemos! E não apenas os desprovidos, os famintos e os humilhados
desse mundo, mas também aqueles para os quais, segundo nos parece, Deus sequer
se volta.
Não podemos perceber essa inacreditável solidariedade para com alguém
que tenha perdido a Deus, com alguém que está desprovido de Deus, como quando
Cristo disse na cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”? Existirá
algum ateu no mundo que jamais tenha podido avaliar a perda de Deus, a ausência
de Deus que fere como feriu o Filho do Homem e o Filho de Deus sobre a cruz?
Será que nos damos conta, quando dizemos no símbolo dos apóstolos: “Ele desceu
aos infernos”, que os infernos não são o lugar de tormentos do folclore cristão,
que o inferno do Antigo testamento é o lugar onde Deus não está, e que é para
lá que Cristo foi encontrar seus irmãos num ato de solidariedade que deu
continuidade à sua solidão sobre a cruz? Não refletimos então, que, se
observarmos a Cristo e ao mundo que nos cerca, teremos uma imagem vibrante, uma
mensagem brilhante aplicada a Deus e ao homem, e a todo o mundo criado na atual
condição da ciência e da tecnologia em que nos encontramos?
Possuímos nós uma teologia da matéria capaz de se opor ao
materialismo? Que direito temos nós de não termos uma teologia da matéria,
quando dizemos, não apenas que o Filho de Deus se tornou o Filho do Homem, ou
seja, que ele entrou no coração da história, mas também que o Verbo se fez
carne, que o próprio Deus se uniu à materialidade desse mundo? Não temos na
Encarnação essa primeira indicação, e na Transfiguração uma visão daquilo em
que a matéria pode se transformar quando ele é penetrada pela presença divina? Não
nos diz o Evangelho que o Corpo de Cristo, suas vestes e tudo o que o cercava
se tornaram luminosos diante do brilho eterno? Não sabemos nós que na Ascensão
o próprio Cristo, revestido de uma carne humana, vale dizer, levando consigo ao
coração da divindade a matéria do mundo, transportou nosso mundo criado para as
profundezas do divino?
Isso não passa de indicações, e não existe aí com que fazer-se uma
teologia da matéria que possa colocar essas questões e tentar respondê-las, que
possa interpor exigências sobre os planos da indústria e da tecnologia, e
modificar nossa atitude mental e voluntária em relação àquilo que estamos
fazendo neste mundo? Não somos chamados a ser simultaneamente mestres e
servidores? Devemos dominar o mundo, sim, mas com vistas conduzi-lo a ser
plenamente em Deus, e essa contemplação deve prosseguir sem cessar. Esse é o
problema do homem, do técnico, o problema das pessoas que exigem respostas de
nós e que só recebem de nós platitudes. E é justamente aí que poderíamos unir a
ação a essa contemplação, a essa visão aprofundada, iluminada pela fé, cheia de
sentido do sagrado. Poderíamos associar a ação e a contemplação em todos os
domínios, não apenas na ação privada, pessoal, mas na grande ação que agora
sacode a humanidade como um todo. O homem é o ponto de encontro entre o crente
e o descente, porque, se Marx tinha razão ao dizer que o proletariado nada tinha
para fazer com Deus, por ser o homem seu próprio Deus, também nós dizemos que o
Homem é nosso Deus, o Homem Jesus Cristo, com todas as implicações de sua
Encarnação e de sua divindade.
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