A necessidade
de oração do homem que crê não deixa dúvidas. Quanto mais forte é a fé de
alguém, também maior é sua necessidade de orar. Por outro lado, a fé de uma
pessoa é sustentada pela fé de outras pessoas. Nisto fica evidente a
importância da Liturgia e de todo culto público. Mas na sociedade de hoje em
dia constatamos um enfraquecimento da fé. Por conseguinte, surge uma espécie de
indiferença em relação à prece. Talvez o conceito de sociedade secularizada não
indique uma sociedade totalmente descrente, mas apenas uma sociedade na qual a
maior parte dos membros não pratica a prece senão raramente, em momentos
excepcionais.
Para quem
deseja manter o vigor de sua fé por meio da prece, coloca-se hoje um duplo
problema: defender sua fé contra a influência debilitante de um meio
enfraquecido na fé, e defender a prática da fé no contexto de uma sociedade que
perdeu em grande parte o uso da prece. Enquanto que o homem de outrora
encontrava no meio social um fator por meio do qual ele fortalecia sua fé e sua
prática da oração, atualmente este meio constitui um fator de resfriamento, um
fator contra o qual aquele que pretende manter sua fé e sua prece deve se
defender continuamente.
Hoje em dia o
homem que crê deve buscar numa grande medida por si mesmo as razões que possam
sustentar sua fé e sua prática da prece. E justamente isso pode tornar sua fé
mais profunda e sua prece mais calorosa, dado que essas coisas já não são
sustentadas em grande parte pelo meio social. Consequentemente, o homem que tem
sucesso em fortalecer sua fé e sua prece por meio de razões pessoalmente
refletidas, pode se tornar ele próprio um cadinho para o reforço da fé e a
renovação da prece em seu meio social. Com isso ele pode ajudar a sociedade a
sair da vida superficial, saturada do desânimo que causa o enfraquecimento da
fé e da prece; em outras palavras, ele pode ajudar a reencontrar um conteúdo
mais substancial, a sanar suas raízes abismadas mergulhando-as novamente numa
profundidade ainda maior de vida, sem a qual a existência humana se torna de
uma uniformidade monótona e desprovida de razão.
A
prece e a Sagrada Escritura
Os Padres
espirituais da ortodoxia encontraram um meio de fortalecer a prece na meditação
das palavras da Sagrada Escritura e de outros livros espirituais. Santo Isaac o
Sírio dizia que “a leitura das Escrituras divinas fortalece o espírito e
refresca a prece... porque elas são uma luz para a inteligência, conduzindo-a
pelo caminho reto e semeando na prece o conteúdo da contemplação, contribuindo
para dar ao espírito sutileza e sabedoria[1]”.
As palavras da
Sagrada Escritura têm um poder sobre nós, quando as sentimos como palavras de
Deus, que faz com que nos dirijamos a ele no momento da leitura. Então, através
delas, encontramos o próprio Deus, sentimo-nos atraídos por seu chamado,
conforme as circunstâncias e o nível espiritual de cada qual. E descobrimos
nessas palavras um grande poder e um sentido sempre renovado. Desta forma a
leitura se unifica à prece. É preciso pedir a Deus que nos abra o interior das
palavras, tornando-se ele próprio transparente e presente para que o sintamos
nelas. É por isso que o mesmo Isaac o Sírio recomenda: “Esteja atento ao que
você lê. Pois se você não lutar, não encontrará. E se você não se bater com
ardor e não vigiar incessantemente à porta, você não será escutado[2]”.
“Por causa disso foi escrito que a alma é auxiliada pela leitura na prece e é
iluminada pela prece na leitura[3]”.
Se a meditação
faz com que sejamos capazes de descobrir a Deus nas palavras da Escritura, ela
nos faz descobri-lo também nas coisas do mundo. Pois as palavras da Escritura
não nos falam apenas de Deus em si, mas de sua relação para conosco através das
coisas do mundo e através de nosso próximo; deste modo as palavras da Escritura
nos falam das coisas do mundo, elas no-lo revelam como criaturas de Deus que
ele não cessa de sustentar. As palavras da Escritura e as coisas do mundo,
incluindo-se aí as pessoas, nossos próximos e nossa própria pessoa, com seus
pensamentos e seus problemas [que são também nossos pensamentos e nossos
problemas], encontram-se indissoluvelmente ligadas entre si e a Deus: todas
estão de certo modo dirigidas à nossa consciência e entregues a ela como dons e
chamados de Deus, e desta forma as circunstâncias sempre mutáveis nos pedem
para mostrar nossa maneira de viver segundo a vontade de Deus.
Assim somos
chamados a amadurecer nosso ser, a crescer espiritualmente em direção a uma
compreensão sempre mais plena da riqueza do pensamento divino e da profundidade
do amor de Deus para conosco; e assim somos chamados a um amor sempre maior em
relação a ele, e chamados a nos unir a ele. Pois a complexidade das
circunstâncias e dos problemas coloca em relevo o caráter inesgotável e o
significado infinito das coisas e das pessoas que se enraízam na infinitude de
Deus. Aprofundando mais e mais o sentido das coisas e das pessoas, podemos
descobrir um sentido sempre mais profundo na Escritura e inversamente.
Aprofundando sem cessar esses dois tipos de revelações, progredimos na
percepção do amor infinito de Deus, que nos toca até as lágrimas. Santo Isaac
disse: “Leia os Evangelhos, eles foram dados por Deus para o conhecimento da
criação inteira, para que sua inteligência se torna consciente de sua
Providência... e para que ela mergulhe das coisas maravilhosas de Deus[4]”.
E quando a graça começar a abrir seus olhos para sentir e ver as coisas em sua
verdade, eles começarão a verter torrentes de lágrimas[5]”
(...).
Oferecer
as pessoas e o mundo a Deus
O amor de Deus
adquire em nós uma força purificadora, por nossas relações com as coisas e as
demais pessoas, porque Deus não pode ser encerrado por nenhuma fronteira
estreita de modo a servir a apenas uma pessoa; ao contrário, ele só se dá na medida
em cada um o recebe em comunhão com todos. Assim, aproximar-se de Deus e
abrir-se para ele significa implica uma purificação, porque em Deus vemos as
coisas e as pessoas além de suas limitações, em mútua união, e vemos a nós
mesmos em comunhão com elas. É por isso que São Marcos o Asceta recomendava,
como meio de adquirir um verdadeiro olhar sobre as coisas, oferecer como
sacrifício a Cristo a representação de cada coisa no exato momento em que ela
aparece em nosso pensamento. Essa oferenda a Cristo das representações das
coisas se identifica com sua entrada na profundeza mais interior e mais
sensível de nosso ser. É aí que Cristo de fato habita em nós desde o batismo[6].
Devemos assim realizar uma postura que comporta três aspectos: pensar de uma
maneira verdadeira, portanto desinteressada, em cada coisa, oferece-la a Cristo
e, por ele, a todos a quem ele ama, buscar nosso centro mais central e
atualizá-lo cada vez que pensamos em algo, ou seja, definitivamente, de maneira
ininterrupta (...).
Oferecer a
representação de cada coisa ou pessoa que vemos ou nas quais pensamos,
significa agradecer a Deus por esta coisa ou esta pessoa, ou glorificá-lo ou
pedir seu auxílio para realizar o serviço que se espera de nós.
Os Padres
chamaram cada gesto, cada ato de “prece”, ou mesmo “liturgia”. Essa liturgia
pode se tornar incessante. Assim podemos adquirir o hábito de fazer de cada
representação, de cada encontro, a oportunidade para uma prece ininterrupta.
Esse encontro com as coisas e os seres é um caminho para alcançar um estado de
oração e mesmo de liturgia pessoal incessante, unida à prece contínua de
Cristo, nosso Grande Sacerdote, que a tudo santificou e deseja a tudo
santificar incessantemente para nós recebendo nossos sacrifícios e
oferecendo-os ao Pai, juntamente com seu próprio sacrifício. E essa forma de
prece tem um efeito purificador pelo amor que está contido nela. “A prece é a
purificação do intelecto”, são palavras de São Gregório de Nazianze retomadas
por Santo Isaac o Sírio[7].
A
purificação na oferenda de si a Deus
Para São
Cirilo de Alexandria ninguém pode ser salvo senão pelo ato de se oferecer a
Deus numa doação integral de si mesmo. Mas ninguém pode se se oferecer como
sacrifício puro de outro modo que pela união com Cristo, que se oferece continuamente
por nós como sacrifício puro e total ao Pai. É de Cristo que recebemos o poder
de nos purificar e de nos oferecer, unindo-nos a ele numa ato único de
sacrifício. Este é o tema único da obra de São Cirilo, “A adoração em espírito
e verdade” (PG 68). Aquele que se oferece a Deus se oferece com todos os seus
atos e todos os seus pensamentos. Este vive totalmente em Deus.
A ênfase
direta que São Cirilo coloca, em primeiro lugar, sobre a oferenda de sua
própria pessoa, não é desprovida de importância. Não podemos purificar nosso
olhar, e portanto as imagens das coisas e das pessoas, bem como nossas relações
com elas, se não purificarmos nossa própria pessoa. Não podemos entregar as
coisas a Deus se não nos entregamos a nós mesmos. É uma coisa de primeira
importância que enxerguemos a nós mesmos, em tudo o que fazemos, em referência
a Deus, e estarmos sempre conscientes dessa dimensão profunda e misteriosa de
nossa pessoa. E aqui o próprio Deus vem em nosso socorro, ele que se tornou
próximo a nós assumindo a humanidade e entregando-a ao Pai (...).
Se devemos
oferecer a Cristo a representação de cada coisa e também nossa própria pessoa,
é natural que ofereçamos também nossa relação com os outros. E novamente isso
tem uma grande importância, não apenas para nossa purificação, mas também para
aprimorar nossas relações com os demais. É uma grande coisa nada pensar de mal
em relação aos outros. Isto implica pensar no outro e comungar com ele sempre
com amor e compreensão por seus defeitos, que não definem sua essência, com um
sentimento de perdão, com o sentimento de comunicar com um mistério. O fato de
que alguém cometeu uma falta contra mim ou contra outro não deve diminuir aos
meus olhos o valor e o sentido incomensurável de seu mistério, este dom inesgotável
para mim, este dom absolutamente superior em relação às coisas, dado que o
outro representa, em seu encontro comigo, uma reserva infinita de mistério.
Santo Isaac dizia: “Você não deve distinguir o digno do indigno, mas considerar
que todos os homens são iguais para você em sua bondade. Pois neste mundo você
também poderá atrair o bem para os indignos. O Senhor sentou-se à mesa com
publicanos e prostitutas e jamais se separou dos indignos, para atrair os
homens ao temor de Deus e para os atrair, dos bens materiais, aos Bens
espirituais[8]”
(...).
Meus próximos
me colocam os problemas mais complicados; seus encontros comigo produzem
circunstâncias sempre novas e em tudo isso eu devo enxergar o chamado de Deus
para que eu cresça no amor. Ao responder ao seu chamado, eu aceito o diálogo
continuamente renovado entre Deus e eu. Ao colocar em ligação com Deus a
representação de meu próximo, em todas as situações, eu respondo a Deus não
apenas agradecendo pelo fato de ele ter me concedido este próximo para meu crescimento
espiritual, mas ainda pedindo a ele seu auxílio para responder às novas
necessidades de meu próximo, não apenas para meu crescimento espiritual como
para o crescimento dele. Por outro lado, eu oro para que meu próximo seja
ajudado em cada nova situação para realizar o sentido de sua existência.
A
prece: lançar uma ponte para o próximo
O segundo
ponto que deve ser encarado nesta exposição consiste em saber se minha oração
pode ter um efeito salutar sobre o plano das relações sociais, na sociedade
secularizada de hoje.
Um traço
característico dessa sociedade é que o homem se sente nela muito mais solitário
do que na sociedade de antigamente, na qual não faltava a preocupação com Deus.
O fiel sente hoje a necessidade de orar, talvez mais até do que no passado,
porque por meio da prece ele se salva da solidão tão difícil de suportar. Na
prece ele obtém um meio de estar em comunicação com Deus. E na prece o próprio
Deus dialoga com ele através de todas as coisas e ele próprio vê e escuta a
Deus em todas elas. Quem ora toma consciência de suas raízes na realidade
pessoal infinita de Deus e não é atirado às ondas superficiais da vida, de uma
vida encerrada num único horizonte terrestre. Ele se torna capaz de preencher
sua vida com um conteúdo infinito.
Aquele que ora
lança também para os próximos pontes mais consistentes do que as frágeis e
superficiais pontes que encontramos numa sociedade secularizada. No fundo,
todos os homens de hoje desejam essas pontes, mais do que nunca, mas eles não
sabem que elas não podem ser descobertas senão pela prece. Segundo nossa
convicção, os que oram podem não apenas lançar, oferecer tais pontes, como
também abrir o coração dos outros para que eles recebam e respondam à
comunicação de amor daqueles que oram, pela comunicação de seu próprio amor.
Santo Isaac o
Sírio dizia: “Apresse-se, ao encontrar seu próximo, em honrá-lo além de toda
medida. Beije seus pés e mãos e louve-o, mesmo por virtudes que ele não
possua”. “Ame os pecadores... e não os despreze por suas faltas”. “Por estas e
outras ações semelhantes, você poderá atrair o bem para eles[9]”
(...).
Responder
ao próximo, responder a Deus
A ligação de
cada homem a outro por intermédio da palavra é tão absoluta que devo responder
ao seu chamado incondicionalmente e devo também chamá-lo incondicionalmente.
Ninguém pode evitar responder ao chamado de outrem. E se minha resposta for
negativa, eu não poderei escapar da inquietação. Esse caráter absoluto de nossa
ligação pela palavra significa que somos ligados pela palavra no próprio Deus o
Verbo. Ele próprio me chama por meio do chamado de meu próximo e eu devo
responder a meu próximo como responderia ao próprio Deus. Foi Deus quem colocou
o próximo na situação de me chamar e me colocou diante dele, com o dever de
responder-lhe e de chamar por ele. E a alegria que produzimos com a resposta
positiva de um ao outro é uma alegria que nos vem e que distribuímos da parte
de Deus também. Nossa ligação pela palavra exige, assim, nosso aperfeiçoamento
no amor. o próximo constitui a palavra ontológica viva e vivificadora de Deus
para comigo, e por meu turno sou a palavra viva e vivificadora de Deus para com
meu próximo (...).
Se penso em
Deus quando meu próximo me chama, quando vejo que ele precisa de mim, quando me
regozijo com sua presença e sua atenção, estou escutando um mandamento de Deus
e devo agradecer a Deus pelo dom e pela palavra que ele me dirige através
daquela pessoa. Meu diálogo com o próximo é ao mesmo tempo meu diálogo com Deus
e o diálogo dele com Deus. Mas esse diálogo não se realiza de maneira perfeita,
tanto entre nós os homens, como entre cada um de nós e Deus, senão na forma da
prece, ou seja, quando eu escuto o chamado do outro e respondo a ele em
espírito de oração, orando no ambiente deste diálogo e buscando uma
possibilidade de servir. Na prece eu me sensibilizo plenamente com o outro,
como exige o diálogo.
O diálogo é,
assim, perfeito em espírito de oração e deve acontecer não somente por meio das
palavras ditas, mas também pelas palavras incorporadas nas obras de auxílio
mútuo e, quando necessário, mas obras de misericórdia. Pelas obras nós nos
oferecemos ainda mais um ao outro e a Deus. Por isso a prece pelo outro deve
ser unificada com a obra por ele, e quando necessário com a misericórdia.
Santo Isaac o
Sírio disse: “Nada aproxima tanto o homem de Deus como a misericórdia”. E: “Se
num dia você tiver mais do que o que necessita, dê aos pobres, depois venha e
faça suas orações com coragem[10]”.
E: “Que a medida da misericórdia cresça em você até que você sinta a
misericórdia de Deus para com o mundo[11]”
(...).
Mesmo a prece
para o outro deve ser feita de tal maneira com ele que você possa sentir a sua
dor como se fosse sua própria dor. Desta maneira você se apresenta a Deus
trazendo o outro em si, e assim você pode se aproximar de Deus. Deus não pode
ser encontrado no seu amor ao outro a menos que este amor chegue até a
apropriação de sua dor por você, pois, se Deus é amor, ele não pode ser vivido
senão no estado de seu amor pelo outro. Nisto reside o sacerdócio universal dos
leigos, que faz com que eles orem uns pelos outros. Então podemos compreender a
prece do sacerdote da comunidade por todos os fiéis de sua paróquia (...).
A prece plena
pelo outro é aquela que é acompanhada pela dor por ele, ou pelo sacrifício, ou
pelo dom de sua obra. É somente nesse estado de sacrifício que se pode penetrar
em Deus, junto com Cristo, de quem emprestamos seu poder de sacrifício. Devo
fundir-me no amor e na misericórdia pelo outro em Deus e no outro, para
participar deste Deus que é misericórdia e amor.
É apenas pela
sensibilidade do sacrifício e da misericórdia para com o outro que eu penetro
como um perfume na zona divina, que é, ela também, um perfume penetrante de
amor e misericórdia (...).
[1] Santo
Isaac o Sírio, Obras Espirituais,
Sermão 29, pg. 123.
[2] Ibid.
Sermão 23, pg. 102.
[3] Ibid.
Sermão 23, pg. 98.
[4] Ibid.
Sermão 23, pg. 95.
[5] Ibid.
Sermão 23, pg. 96.
[6]
São Marcos o Asceta, Sobre o batismo.
[7]
Santo Isaac o Sírio, Obras Espirituais,
Sermão 32, pg.140.
[8]. Ibid.
Sermão 23, pg. 99.
[9] Ibid.
Sermão 6, pg. 30.
[10] Ibid.
Sermão 23, pg. 99.
[11] Ibid.
Sermão 34, pg. 151.
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