Padre José o Hesiquiasta (1897-1959) foi
uma das figuras mais importantes da espiritualidade Ortodoxa no século XX.
Apesar de ter levado uma existência discreta no Monte Athos, tornou-se, na
realidade, um dos principais restauradores do modo de vida hesiquiasta, e, em
especial, da “prece de Jesus”, ou “prece do coração”. Após sua morte, seus
discípulos levaram seus ensinamentos a todo o Monte Athos, à Grécia e Chipre,
chegando até a América do Norte. As duas cartas a seguir são apresentadas a nós
por um discípulo seu, que se assina simplesmente como “um filho do Padre José”.
Introdução
Algumas palavras
introdutórias serão úteis para estas duas cartas do Padre José o Hesiquiasta referentes
à prece de Jesus.
“A prece
interior para mim é como a arte de cada um...”: é assim que no Padre José
descreve sua relação com a prece do coração, pretendendo desta maneira mostrar
que ele recebeu seu aprendizado junto a um mestre, da mesma forma como um jovem
aprendiz se coloca na escola de um artesão para aprender a arte de seu ofício. Ora,
depois de muitos anos na ascese da prece do coração, o Padre José se tornou,
por sua vez, um mestre. Por “mestre” não se deve entender que ele adquiriu o “domínio”
da prece interior, mas sim que ele acabou por dominar os movimentos de seu
espírito.
O Padre José
não foi um teórico dentre muitos outros que escreveram sobre a prece de Jesus. Embora
muitas de suas cartas sejam verdadeiros tratados sobre a prece do coração,
dignos de se igualar aos Padres Népticos, o Padre José se revelou mais um guia
seguro do que um teólogo para aqueles que desejam aprender a orar a prece de
Jesus. “Deus, diz ele numa carta, é a origem e o todo” da prece interior. E se
alguém achar que ele insiste sobre a técnica, poderá observar que o Padre José
simplificou-lhe a forma, mas que a intenção fundamental não foi alterada:
alcançar, pela prece de Jesus, um estado no qual a graça desça sobre o coração:
“Pois o objetivo da prece interior é a descida da graça”. Ora, quando a graça
se apossa do coração, ela não apenas o renova, mas o transforma num Templo vivo
onde a Santíssima Trindade possa vir habitar. A partir daí já não estamos
submetidos a nós mesmos, mas à prece de Jesus. Bem-aventurado é aquele em quem
reine a prece interior, pois ele sentirá uma alegria e uma paz permanentes! “Ó
alegria, ó alegria!, que preenche nosso ser modelado do barro!”. Em certos
momentos, sentimos nas cartas a impotência do Padre José em encontrar palavras,
ou em inventá-las, para expressar esta felicidade que por sua natureza
transcende toda expressão.
O Padre José
considera – e isto pode surpreender algumas pessoas – que a prece de Jesus é a
única que assegura sem falhas a guarda do coração contra a imaginação, enquanto
que as outras formas de prece, mesmo sendo boas, não são impermeáveis ao
devaneio do espírito. “Como é aterrorizante a desorientação do espírito!”. Por essa
razão, ele coloca acima de tudo o valor seguro da prece interior: “A prece
circular do coração não teme a desorientação”.
Carta
1: a um jovem que pergunta sobre a maneira de se aplicar à prece do coração.
Bem-amado em
Cristo.
Eu espero que
você esteja bem. Recebi sua carta ainda hoje, e estou agora respondendo às
coisas que você me escreveu. As informações que você me pede não exigem nem
tempo nem dificuldade de minha parte para dá-las a você.
A prece
interior para mim é como a arte de cada um, assim como eu a exerço há mais de
trinta anos. Quando cheguei à Montanha Santa, logo me pus à procura de eremitas
que se dedicassem à prece[1].
Naquele tempo, eles eram numerosos, antes dos quarenta anos, e cheios de vida.
Homens de virtude, pais espirituais experimentados. Escolhemos um dentre eles,
mas os tínhamos a todos como nossos guias.
Quanto à
prece, sua atividade (praxis)
consiste em violentar-se continuamente para repeti-la sem relaxar com a boca.
De início rapidamente, para não dar tempo ao espírito (nous) de formar qualquer ideia de grandeza. Cuide simplesmente de
aplicar toda sua atenção às palavras: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”.
Depois de um longo tempo nessa atividade, o espírito acabará por se habituar e
recitará essas palavras sem esforço. Ele sentirá prazer e as provará como mel. Então
ele tentará praticar continuamente. Se ele a abandonará, sentir-se-á pesaroso.
Depois que o
espírito se habitua e se sacia – assimilando bem o método – ele envia a prece ao
coração. Pois o espírito é o fornecedor do coração e seu trabalho principal
consiste em levar até ele tudo o que ele encontra de bom e de mau; pois o
coração é o centro do poder espiritual e corporal do homem, o trono do espírito.
Assim, quando aquele que ora guarda seu espírito longe de qualquer imaginação,
e aplica sua atenção às palavras da prece, respirando levemente com um certo
esforço e com sua própria vontade, ele empurra seu espírito em direção ao
coração e o mantém apertado, retendo seu sopro e dizendo no ritmo da prece: “Senhor
Jesus Cristo, tem piedade de mim”.
De início, ele
repetirá a prece muitas vezes antes de tomar fôlego. Depois, quando o espírito
se acostumar a se manter no coração, ele pronunciará a cada inspiração a prece “Senhor
Jesus Cristo” e a cada expiração “tem piedade de mim”. Este procedimento durará
até que a graça desça até a alma e se ative. Depois virá a contemplação (theoria).
A prece é
assim recitada em qualquer lugar e em diferentes posturas: sentado, deitado, em
pé, parado ou caminhando. “Orai sem cessar e dai graças em todas as circunstâncias”,
disse o Apóstolo[2].
Não basta simplesmente orar deitado, no leito. É preciso lutar. Em pé ou
sentado. Quando você se cansar, sente-se. Depois se levante. E não ceda ao
sono.
Todos esses
exercícios têm o nome de praxis. Desta
maneira você mostrará a Deus sua disposição interior; pois o resultado depende
dele. É dele que provém a força necessária. Deus é a origem e o fim da prece do
coração. Sua graça opera tudo, ele é a força motriz.
Ora, o amor
aparece e opera em quem guarda os mandamentos: quando você se levanta à noite
para orar, quando você é movido de compaixão por um enfermo, quando você se
mostra misericordioso para com uma viúva, os órfãos ou os anciãos, nestas horas
Deus o ama. E você, por sua vez, lhe mostra seu amor. Mas foi ele quem o amou primeiro
e lhe derramou sua graça. Quanto a nós, lhe entregamos “o que lhe pertence, o
que é seu”. Quando você busca a Deus apenas com a prece, não deixe escapar um
sopro de sua boca sem associá-lo a ela. Tente sempre manter seu espírito longe
de quimeras. Pois o divino é sem forma, sem figura e sem cor. Ele é mais do que
perfeito. Ele rejeita todo formato de silogismo. Ele opera e age como uma brisa
leve sobre nosso espírito. Quanto à compunção, ela chega quando você medita
sobre as coisas que entristeceram a Deus. Pense o quanto ele é bom, doce,
misericordioso, como ele é o bem e a plenitude do amor, e como ele foi
crucificado e suportou todos os sofrimentos; se você meditar sobre todas essas
coisas e muitas outras ainda, seu coração se encherá de compunção.
E se você
puder, aplique-se à prece em voz alta e incessantemente. Em dois ou três meses
você se habituará. A graça o cobrirá e refrescará. E quando o espírito receber
a prece, você não mais a dirá com a boca. Você terá um repouso. Mas quando o
espírito o abandonar, sua língua retomará a prece. A violência contra si mesmo deve
incluir o esforço vocal de dizer a prece até que o costume se instale. Depois disso,
o espírito pronunciará a prece sem dificuldade por toda a vida.
Quando você
vier à Montanha Santa, como nos anunciou, venha nos ver. Então falaremos de
outras coisas. Você não terá tempo para a prece. Você não a poderá manter sem
realizar a paz (hesíquia) em seu espírito. Aqui, visitando os mosteiros, seu
espírito estará ocupado em escutar e ver.
No entanto,
estou certo de que você terá sucesso em se formar na prece. Não o duvide. Apenas
bata à porta da divina misericórdia e o Senhor abrirá. Ame-o muito, para
receber muito. Pois é conforme o grau de amor que lhe mostrarmos, que
receberemos menos ou mais.
Carta
2: ao mesmo, ainda sobre a prece e muitos outros assuntos.
Estou feliz em
constatar seu ardor que só trará benefícios à sua alma. De minha parte, tenho
sede de ser útil a cada irmão que deseja ser salvo. Então, bem-amado e mais do
que querido irmão, abra bem os seus ouvidos. A predestinação do homem, desde
que ele nasce para esta vida, é de encontrar a Deus. Ele não pode chegar até aí
se Deus não o buscar primeiro. “Nele vivemos e nele morremos”, mas as paixões
nos fecharam os olhos da alma e nos impedem de ver. Quando o Deus mais do que bom
volta seu olhar sobre nós, despertamos como de um sonho e começamos a buscar
nossa salvação.
Quanto à sua
primeira questão: Deus já o viu, já o iluminou e o está guiando. Trabalhe para
fazer sua vontade onde quer que esteja. Diga sem descanso a prece, com a boca e
com o espírito. Quando sua boca se cansar à força de dizer a prece, o espírito
tomará a frente. E novamente, quando o espírito lacear, a boca recomeçará. Apenas
não se detenha. Faça muitas metanias. Vele à noite, tanto quanto sua força
permitir. Quando uma chama se iluminar em seu coração, quando este se sentir
abrasado por uma amor a Deus, quando você encontrar a hesíquia por já não poder
permanecer encerrado neste mundo – porque a prece queima em seu foro interior –
quando você experimentar todas essas coisas, escreva-me e eu lhe direi o que
fazer. Mas se acaso a graça não se ativar dessa maneira, mesmo você não
relaxando seu zelo e praticando os mandamentos do Senhor em relação a seu próximo,
então encontre nisso seu repouso, porque você estará bem do modo como você é. Não
procure receber mais... Sobre o sentido da diferença entre os trinta os
sessenta e os cem, você lerá no Evergetinos.
Ali você encontrará muitas outras coisas úteis.
Resposta às
outras questões: em princípio a prece deveria ser praticada mentalmente. Mas porque
de início o espírito ainda não está habituado, ele esquece. É por isso que é
preciso alternar entre recitar a prece tanto com a boca como com o espírito até
que este se sinta saciado e que aprece se torne atividade (energia).
Chamamos de
atividade a sensação de alegria e contentamento que você experimenta no seu
interior durante a prece. Assim, quando o espírito entra “na posse” da prece,
esta se torna a emoção de alegria de que falei e diz a si mesma continuamente
sem esforço de sua parte. Damos a este estado o nome de sensação – atividade (energia) – porque a graça opera sem
concurso da vontade do homem. Quem atinge este estado, caminha, dorme, desperta
e mantém em seu interior a prece incessante. Este está cheio de paz e alegria.
No que diz
respeito às horas da prece, como você vive no mundo e tem muitas preocupações,
quando você tiver algum tempo livre, dedique-se à prece. Violente-se para nunca
negligenciá-la. Quanto à contemplação, é uma coisa muito difícil por ela exige
uma paz interior absoluta.
A condição
espiritual se divide em três estados segundo a atividade da graça em cada
homem. O primeiro estado é o da purificação, quando a graça purifica o homem; é
neste estado que você se encontra. Cada impulso que você sente pelas coisas
espirituais é tributário dela. Nenhuma iniciativa neste estado cabe a você; a
graça opera misticamente tudo. Esta graça, portanto, quando você se violenta,
faz morada em você por um certo número de anos. E quando o homem progride na
prece interior, ele recebe outra forma de graça, bem diferente da anterior.
Então, o
primeiro estágio se chama sensação-energia e é idêntico à graça purificadora,
pois o orante sente no interior de si mesmo um impulso-energia divino.
O segundo
estágio corresponde à iluminação; pois nele recebemos a luz do conhecimento que
conduz à contemplação de Deus. Não devemos confundi-lo com “as luzes”, as
fantasias, as diferentes representações. Mas ela ilumina o espírito, tornando-o
límpido e luminoso, opera a purificação dos pensamentos e abre a inteligência
aos pensamentos elevados. Para adquirir esta graça, o orante deve estar num
estado de perfeita paz interior (hesíquia) e possuir um guia experiente.
O terceiro
estágio – a descida propriamente dita da graça (no coração) – é aquele da graça
perfeita que constitui um grande dom. não lhe escrevi antes a respeito porque
não era necessário. Mas se você quiser ler a respeito, eu escrevi, malgrado
minha ignorância, sobre as energias operantes da graça, uma obra intitulada “Trombeta
espiritual”. Tente encontrá-la. Adquira também os escritos de São Macário com o
editor Schinias, e os do abade Isaac (Santo Isaac o Sírio), dos quais extrairá
muitos benefícios. Escreva-me sobre as transformações (espirituais) que você
experimentar e eu lhe responderei prontamente.
Nestes tempos,
não deixo de responder às cartas que recebo. Neste ano, algumas pessoas vieram
da Alemanha com o único objetivo de conhecer a prece do coração. Eu recebi cartas
da América que requerem pressa, assim como de Paris, e, em todas, seus autores
perguntam pela prece interior. Mas aqui, entre nós acontece o contrário. Será
muito trabalho invocar sem cessar o nome de Jesus para atrair sobre nós sua misericórdia?
Para encerrar,
uma ideia errônea que provém do maligno, predomina: a saber, que ao praticar a
prece caímos no erro – quando é exatamente o contrário. Quem sentir o desejo
pela prece, dedique-se a ela. E quando a atividade da prece tiver durado o
suficiente, ele se tornará um paraíso por si só. O homem se libertará das
paixões e se transformará em homem novo. E se a pessoa que se dedica à prece
viver no mundo, ela receberá muito mais benefícios do que aqueles que
escolheram o deserto.
“Ó homem! Aprenda a humildade de Cristo, e o
Senhor lhe permitirá provar da doçura da prece. Se você busca a prece pura,
seja humilde, seja sóbrio, confesse-se sinceramente e a prece o amará. Seja obediente,
submeta-se de bom grado às autoridades, esteja contente com tudo, e assim seu
espírito se purificará dos pensamentos vãos. Lembre-se de que o Senhor o vê e
tema ferir seu irmão; não julgue, não o faça sofrer, ainda que somente com a
expressão do seu olhar – e assim o Espírito Santo o amará e o auxiliará em tudo”. (São Silouane o Atonita)
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