segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Padre José o Hesiquiasta - Duas cartas sobre a Prece de Jesus



 Padre José o Hesiquiasta (1897-1959) foi uma das figuras mais importantes da espiritualidade Ortodoxa no século XX. Apesar de ter levado uma existência discreta no Monte Athos, tornou-se, na realidade, um dos principais restauradores do modo de vida hesiquiasta, e, em especial, da “prece de Jesus”, ou “prece do coração”. Após sua morte, seus discípulos levaram seus ensinamentos a todo o Monte Athos, à Grécia e Chipre, chegando até a América do Norte. As duas cartas a seguir são apresentadas a nós por um discípulo seu, que se assina simplesmente como “um filho do Padre José”.

Introdução

Algumas palavras introdutórias serão úteis para estas duas cartas do Padre José o Hesiquiasta referentes à prece de Jesus.

“A prece interior para mim é como a arte de cada um...”: é assim que no Padre José descreve sua relação com a prece do coração, pretendendo desta maneira mostrar que ele recebeu seu aprendizado junto a um mestre, da mesma forma como um jovem aprendiz se coloca na escola de um artesão para aprender a arte de seu ofício. Ora, depois de muitos anos na ascese da prece do coração, o Padre José se tornou, por sua vez, um mestre. Por “mestre” não se deve entender que ele adquiriu o “domínio” da prece interior, mas sim que ele acabou por dominar os movimentos de seu espírito.

O Padre José não foi um teórico dentre muitos outros que escreveram sobre a prece de Jesus. Embora muitas de suas cartas sejam verdadeiros tratados sobre a prece do coração, dignos de se igualar aos Padres Népticos, o Padre José se revelou mais um guia seguro do que um teólogo para aqueles que desejam aprender a orar a prece de Jesus. “Deus, diz ele numa carta, é a origem e o todo” da prece interior. E se alguém achar que ele insiste sobre a técnica, poderá observar que o Padre José simplificou-lhe a forma, mas que a intenção fundamental não foi alterada: alcançar, pela prece de Jesus, um estado no qual a graça desça sobre o coração: “Pois o objetivo da prece interior é a descida da graça”. Ora, quando a graça se apossa do coração, ela não apenas o renova, mas o transforma num Templo vivo onde a Santíssima Trindade possa vir habitar. A partir daí já não estamos submetidos a nós mesmos, mas à prece de Jesus. Bem-aventurado é aquele em quem reine a prece interior, pois ele sentirá uma alegria e uma paz permanentes! “Ó alegria, ó alegria!, que preenche nosso ser modelado do barro!”. Em certos momentos, sentimos nas cartas a impotência do Padre José em encontrar palavras, ou em inventá-las, para expressar esta felicidade que por sua natureza transcende toda expressão.

O Padre José considera – e isto pode surpreender algumas pessoas – que a prece de Jesus é a única que assegura sem falhas a guarda do coração contra a imaginação, enquanto que as outras formas de prece, mesmo sendo boas, não são impermeáveis ao devaneio do espírito. “Como é aterrorizante a desorientação do espírito!”. Por essa razão, ele coloca acima de tudo o valor seguro da prece interior: “A prece circular do coração não teme a desorientação”.

Carta 1: a um jovem que pergunta sobre a maneira de se aplicar à prece do coração.

Bem-amado em Cristo.

Eu espero que você esteja bem. Recebi sua carta ainda hoje, e estou agora respondendo às coisas que você me escreveu. As informações que você me pede não exigem nem tempo nem dificuldade de minha parte para dá-las a você.

A prece interior para mim é como a arte de cada um, assim como eu a exerço há mais de trinta anos. Quando cheguei à Montanha Santa, logo me pus à procura de eremitas que se dedicassem à prece[1]. Naquele tempo, eles eram numerosos, antes dos quarenta anos, e cheios de vida. Homens de virtude, pais espirituais experimentados. Escolhemos um dentre eles, mas os tínhamos a todos como nossos guias.

Quanto à prece, sua atividade (praxis) consiste em violentar-se continuamente para repeti-la sem relaxar com a boca. De início rapidamente, para não dar tempo ao espírito (nous) de formar qualquer ideia de grandeza. Cuide simplesmente de aplicar toda sua atenção às palavras: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”. Depois de um longo tempo nessa atividade, o espírito acabará por se habituar e recitará essas palavras sem esforço. Ele sentirá prazer e as provará como mel. Então ele tentará praticar continuamente. Se ele a abandonará, sentir-se-á pesaroso.

Depois que o espírito se habitua e se sacia – assimilando bem o método – ele envia a prece ao coração. Pois o espírito é o fornecedor do coração e seu trabalho principal consiste em levar até ele tudo o que ele encontra de bom e de mau; pois o coração é o centro do poder espiritual e corporal do homem, o trono do espírito. Assim, quando aquele que ora guarda seu espírito longe de qualquer imaginação, e aplica sua atenção às palavras da prece, respirando levemente com um certo esforço e com sua própria vontade, ele empurra seu espírito em direção ao coração e o mantém apertado, retendo seu sopro e dizendo no ritmo da prece: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”.

De início, ele repetirá a prece muitas vezes antes de tomar fôlego. Depois, quando o espírito se acostumar a se manter no coração, ele pronunciará a cada inspiração a prece “Senhor Jesus Cristo” e a cada expiração “tem piedade de mim”. Este procedimento durará até que a graça desça até a alma e se ative. Depois virá a contemplação (theoria).

A prece é assim recitada em qualquer lugar e em diferentes posturas: sentado, deitado, em pé, parado ou caminhando. “Orai sem cessar e dai graças em todas as circunstâncias”, disse o Apóstolo[2]. Não basta simplesmente orar deitado, no leito. É preciso lutar. Em pé ou sentado. Quando você se cansar, sente-se. Depois se levante. E não ceda ao sono.

Todos esses exercícios têm o nome de praxis. Desta maneira você mostrará a Deus sua disposição interior; pois o resultado depende dele. É dele que provém a força necessária. Deus é a origem e o fim da prece do coração. Sua graça opera tudo, ele é a força motriz.

Ora, o amor aparece e opera em quem guarda os mandamentos: quando você se levanta à noite para orar, quando você é movido de compaixão por um enfermo, quando você se mostra misericordioso para com uma viúva, os órfãos ou os anciãos, nestas horas Deus o ama. E você, por sua vez, lhe mostra seu amor. Mas foi ele quem o amou primeiro e lhe derramou sua graça. Quanto a nós, lhe entregamos “o que lhe pertence, o que é seu”. Quando você busca a Deus apenas com a prece, não deixe escapar um sopro de sua boca sem associá-lo a ela. Tente sempre manter seu espírito longe de quimeras. Pois o divino é sem forma, sem figura e sem cor. Ele é mais do que perfeito. Ele rejeita todo formato de silogismo. Ele opera e age como uma brisa leve sobre nosso espírito. Quanto à compunção, ela chega quando você medita sobre as coisas que entristeceram a Deus. Pense o quanto ele é bom, doce, misericordioso, como ele é o bem e a plenitude do amor, e como ele foi crucificado e suportou todos os sofrimentos; se você meditar sobre todas essas coisas e muitas outras ainda, seu coração se encherá de compunção.

E se você puder, aplique-se à prece em voz alta e incessantemente. Em dois ou três meses você se habituará. A graça o cobrirá e refrescará. E quando o espírito receber a prece, você não mais a dirá com a boca. Você terá um repouso. Mas quando o espírito o abandonar, sua língua retomará a prece. A violência contra si mesmo deve incluir o esforço vocal de dizer a prece até que o costume se instale. Depois disso, o espírito pronunciará a prece sem dificuldade por toda a vida.

Quando você vier à Montanha Santa, como nos anunciou, venha nos ver. Então falaremos de outras coisas. Você não terá tempo para a prece. Você não a poderá manter sem realizar a paz (hesíquia) em seu espírito. Aqui, visitando os mosteiros, seu espírito estará ocupado em escutar e ver.

No entanto, estou certo de que você terá sucesso em se formar na prece. Não o duvide. Apenas bata à porta da divina misericórdia e o Senhor abrirá. Ame-o muito, para receber muito. Pois é conforme o grau de amor que lhe mostrarmos, que receberemos menos ou mais.

Carta 2: ao mesmo, ainda sobre a prece e muitos outros assuntos.

Estou feliz em constatar seu ardor que só trará benefícios à sua alma. De minha parte, tenho sede de ser útil a cada irmão que deseja ser salvo. Então, bem-amado e mais do que querido irmão, abra bem os seus ouvidos. A predestinação do homem, desde que ele nasce para esta vida, é de encontrar a Deus. Ele não pode chegar até aí se Deus não o buscar primeiro. “Nele vivemos e nele morremos”, mas as paixões nos fecharam os olhos da alma e nos impedem de ver. Quando o Deus mais do que bom volta seu olhar sobre nós, despertamos como de um sonho e começamos a buscar nossa salvação.

Quanto à sua primeira questão: Deus já o viu, já o iluminou e o está guiando. Trabalhe para fazer sua vontade onde quer que esteja. Diga sem descanso a prece, com a boca e com o espírito. Quando sua boca se cansar à força de dizer a prece, o espírito tomará a frente. E novamente, quando o espírito lacear, a boca recomeçará. Apenas não se detenha. Faça muitas metanias. Vele à noite, tanto quanto sua força permitir. Quando uma chama se iluminar em seu coração, quando este se sentir abrasado por uma amor a Deus, quando você encontrar a hesíquia por já não poder permanecer encerrado neste mundo – porque a prece queima em seu foro interior – quando você experimentar todas essas coisas, escreva-me e eu lhe direi o que fazer. Mas se acaso a graça não se ativar dessa maneira, mesmo você não relaxando seu zelo e praticando os mandamentos do Senhor em relação a seu próximo, então encontre nisso seu repouso, porque você estará bem do modo como você é. Não procure receber mais... Sobre o sentido da diferença entre os trinta os sessenta e os cem, você lerá no Evergetinos. Ali você encontrará muitas outras coisas úteis.

Resposta às outras questões: em princípio a prece deveria ser praticada mentalmente. Mas porque de início o espírito ainda não está habituado, ele esquece. É por isso que é preciso alternar entre recitar a prece tanto com a boca como com o espírito até que este se sinta saciado e que aprece se torne atividade (energia).

Chamamos de atividade a sensação de alegria e contentamento que você experimenta no seu interior durante a prece. Assim, quando o espírito entra “na posse” da prece, esta se torna a emoção de alegria de que falei e diz a si mesma continuamente sem esforço de sua parte. Damos a este estado o nome de sensação – atividade (energia) – porque a graça opera sem concurso da vontade do homem. Quem atinge este estado, caminha, dorme, desperta e mantém em seu interior a prece incessante. Este está cheio de paz e alegria.

No que diz respeito às horas da prece, como você vive no mundo e tem muitas preocupações, quando você tiver algum tempo livre, dedique-se à prece. Violente-se para nunca negligenciá-la. Quanto à contemplação, é uma coisa muito difícil por ela exige uma paz interior absoluta.

A condição espiritual se divide em três estados segundo a atividade da graça em cada homem. O primeiro estado é o da purificação, quando a graça purifica o homem; é neste estado que você se encontra. Cada impulso que você sente pelas coisas espirituais é tributário dela. Nenhuma iniciativa neste estado cabe a você; a graça opera misticamente tudo. Esta graça, portanto, quando você se violenta, faz morada em você por um certo número de anos. E quando o homem progride na prece interior, ele recebe outra forma de graça, bem diferente da anterior.

Então, o primeiro estágio se chama sensação-energia e é idêntico à graça purificadora, pois o orante sente no interior de si mesmo um impulso-energia divino.

O segundo estágio corresponde à iluminação; pois nele recebemos a luz do conhecimento que conduz à contemplação de Deus. Não devemos confundi-lo com “as luzes”, as fantasias, as diferentes representações. Mas ela ilumina o espírito, tornando-o límpido e luminoso, opera a purificação dos pensamentos e abre a inteligência aos pensamentos elevados. Para adquirir esta graça, o orante deve estar num estado de perfeita paz interior (hesíquia) e possuir um guia experiente.

O terceiro estágio – a descida propriamente dita da graça (no coração) – é aquele da graça perfeita que constitui um grande dom. não lhe escrevi antes a respeito porque não era necessário. Mas se você quiser ler a respeito, eu escrevi, malgrado minha ignorância, sobre as energias operantes da graça, uma obra intitulada “Trombeta espiritual”. Tente encontrá-la. Adquira também os escritos de São Macário com o editor Schinias, e os do abade Isaac (Santo Isaac o Sírio), dos quais extrairá muitos benefícios. Escreva-me sobre as transformações (espirituais) que você experimentar e eu lhe responderei prontamente.

Nestes tempos, não deixo de responder às cartas que recebo. Neste ano, algumas pessoas vieram da Alemanha com o único objetivo de conhecer a prece do coração. Eu recebi cartas da América que requerem pressa, assim como de Paris, e, em todas, seus autores perguntam pela prece interior. Mas aqui, entre nós acontece o contrário. Será muito trabalho invocar sem cessar o nome de Jesus para atrair sobre nós sua misericórdia?

Para encerrar, uma ideia errônea que provém do maligno, predomina: a saber, que ao praticar a prece caímos no erro – quando é exatamente o contrário. Quem sentir o desejo pela prece, dedique-se a ela. E quando a atividade da prece tiver durado o suficiente, ele se tornará um paraíso por si só. O homem se libertará das paixões e se transformará em homem novo. E se a pessoa que se dedica à prece viver no mundo, ela receberá muito mais benefícios do que aqueles que escolheram o deserto.

Ó homem! Aprenda a humildade de Cristo, e o Senhor lhe permitirá provar da doçura da prece. Se você busca a prece pura, seja humilde, seja sóbrio, confesse-se sinceramente e a prece o amará. Seja obediente, submeta-se de bom grado às autoridades, esteja contente com tudo, e assim seu espírito se purificará dos pensamentos vãos. Lembre-se de que o Senhor o vê e tema ferir seu irmão; não julgue, não o faça sofrer, ainda que somente com a expressão do seu olhar – e assim o Espírito Santo o amará e o auxiliará em tudo”.  (São Silouane o Atonita)



[1] Nessas cartas, “a prece” significa sempre a prece interior ou do coração.
[2] I Tessalonicenses 5: 17-18.

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