segunda-feira, 24 de agosto de 2015

São Serafim de Sarov - Uma revelação maravilhosa para o mundo

São Serafim de Sarov  
Uma revelação maravilhosa para o mundo

A descoberta do manuscrito de Motovilov é quase um milagre. Por cerca de setenta anos, este valiosíssimo manuscrito permaneceu em completo esquecimento e correu o risco de ser destruído, pois foi atirado fora no meio do lixo num porão sob um galinheiro. Ele foi milagrosamente encontrado por S. A. Nilus o autor de 'Multum in Parvo'. Buscando por excertos da vida de São Serafim, Nilus procurava neste porão e já quase desistira quando um pequeno caderno de exercícios indistintamente escrito chamou-lhe a atenção. Eram as memórias de Motovilov, e foi assim que elas vieram a ser dadas ao mundo. O achado se deu em 1902, e o livrinho foi editado em 1903, juntamente com uma exposição de relíquias de São Serafim.


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Diálogo de São Serafim de Sarov (1754-1833) com Nikolai Motovilov (1809-1879)


Esta revelação possui indubitavelmente uma significância universal. É verdade que não há nela nada que seja essencialmente novo, porque a totalidade da revelação foi dada aos Apóstolos a partir do próprio dia do Pentecostes. Mas nos dias de hoje as pessoas esqueceram-se das verdades fundamentais do Cristianismo, e se encontram imersas nas trevas do materialismo ou na rotina exterior e performática dos “exercícios ascéticos”; é neste contexto que a revelação do Padre Serafim se mostra verdadeiramente extraordinária, conforme ele próprio a designa.

“Não é apenas a você que é dado entender isto, disse o Padre Serafim ao final da revelação, mas, através de você, ela deve alcançar o mundo todo”.

Como um flash de luz esta conversação maravilhosa ilumina todo o mundo que estivera imerso na morte e na letargia espiritual, menos de um século depois da guerra contra a Cristandade na Rússia e num momento em que a fé Cristã atinge seu ponto mais baixo no Ocidente.

É neste momento que o Santo de Deus surge diante de nós de um modo que em nada fica a dever aos grandes profetas através dos quais falou o Espírito Santo.

Reportamos aqui a conversação, palavra por palavra, sem adicionar palavra alguma de nossa própria interpretação.


Conversação com São Serafim de Sarov (N. A. Motovilov)

Era uma terça-feira de tempo sombrio. Havia uma camada de neve com vinte centímetros de espessura lá fora e os flocos de neve miúdos caíam do céu, quando o Padre Serafim começou sua conversação comigo, num campo próximo ao seu eremitério, junto ao rio Sarovka e ao pé da colina que se elevava a partir da margem. Eu me sentei sobre um toco de árvore que ele havia cortado, e ele acocorou-se diante de mim.

“O Senhor me revelou, disse o ancião, que em sua infância você mostrou um grande desejo de abraçar nossa vida cristã, e que buscou respostas em muitas pessoas espirituais a este respeito”.
De fato, desde os meus doze anos este pensamento ocupou minha mente. E, de fato, eu me aproximei de muitos clérigos buscando respostas a este respeito; mas suas palavras nunca me satisfizeram. O ancião não sabia disto.

“Mas ninguém, continuou o Padre Serafim, lhe deu uma resposta precisa. Eles lhe disseram: ‘Vá à igreja, ore a Deus, sega seus mandamentos, seja bom – estes são os objetivos de uma vida cristã’. Alguns devem ter ficado indignados por você ter uma curiosidade profana, e lhe disseram: ‘Não procure coisas que estão além de você’. Mas eles não falaram com propriedade. E agora o pobre Serafim vai lhe explicar no que consiste realmente este objetivo da vida cristã”.

“Orar, jejuar, fazer vigílias e outras atividades cristãs, por melhor que sejam em si, não constituem a finalidade da vida cristã, embora possam servir como meios indispensáveis para alcançar este fim. O verdadeiro objetivo de nossa vida cristã consiste na obtenção do Espírito Santo de Deus. Assim sendo, os jejuns, as vigílias, a oração, a esmola e todas as boas ações feitas em nome de Cristo, não passam de meios para se adquirir o Espírito Santo de Deus. Mas lembre-se, filho meu, somente as ações feitas em nome de Cristo poderão nos trazer os frutos do Espírito Santo. Tudo o que não é feito em nome de Cristo, por melhor que seja, não nos trará as recompensas na vida futura nem a graça de Deus nesta vida. É por isso que nosso Senhor Jesus Cristo disse: ‘Quem não recolhe comigo, dispersa[1]’. Não que uma boa ação possa ser outra coisa senão uma colheita, e mesmo que não seja feita em nome de Cristo ela permanece boa. A Escritura diz: ‘Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, seja qual for a nação a que pertença[2]’”.

“Como vemos pela narrativa sagrada, o homem que trabalha corretamente é tão agradável a Deus que o Anjo do Senhor apareceu no momento da oração a Cornelius, o centurião direito e temente a Deus, e disse: ‘Envie Simão o curtidor a Joppa; lá ele encontrará a Pedro que lhe dirá palavras de vida eterna, de modo que ele e toda sua casa serão salvos’. Assim usou o Senhor de seus divinos meios para dar àquele homem, em retribuição ao seu trabalho, uma oportunidade de não perder a recompensa na vida futura. Mas para tanto devemos começar agora com a correta fé em nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, que veio a este mundo para salvar os pecadores e que, por meio daquilo que adquirimos da graça do Espírito Santo, leva o Reino de Deus aos nossos corações e abre para nós o caminho para que recebamos as bênçãos da vida futura. Mas a aceitação por parte de Deus das boas ações que não são realizadas em nome de Cristo se resume a isto: o Criador provê os meios para que a vida continue[3]. É por isso que o Senhor disse aos judeus: “Se vocês fossem cegos, não teriam nenhum pecado. Mas como vocês dizem: ‘Nós vemos’, o pecado de vocês permanece”. Se um homem  como Cornelius desfruta do favor de Deus por suas ações, ainda que não tenham sido feitas em nome de Cristo, mas crê em Seu Filho, estas ações serão imputadas a ele como se tivessem sido feitas em nome de Cristo apenas por sua fé nele. Mas no caso contrário o  homem não tem o direito de reclamar que sua boa ação tenha sido inútil. Todas as ações são inúteis, exceto quando feitas em nome de Cristo, porque o bem feito em seu nome não apenas merecem a coroa do direito no reino futuro, mas ainda cumulam com a graça do Espírito Santo nesta vida. Como foi dito: ‘Deus concede o Espírito sem medida. O Pai ama o Filho, e entregou tudo em sua mão’[4]”.

“É isto, Bem-Amado. É na aquisição deste Espírito de Deus que consiste o verdadeiro objetivo de nossa vida cristã, enquanto que a oração, a vigília, o jejum, a esmola e outras boas ações feitas em nome de Cristo são apenas meios para se adquirir o Espírito de Deus”.

“O que você quer dizer com aquisição? Não entendo o significado disto”, disse eu ao Padre Serafim.

“Adquirir e obter são a mesma coisa, respondeu ele. Você entende, naturalmente, o significado de adquirir dinheiro. Pois adquirir o Espírito de Deus é exatamente a mesma coisa. Você entende perfeitamente o sentido mundano de adquirir, Bem-Amado. O objetivo ordinário da vida mundana é adquirir ou obter dinheiro, e adicionalmente receber honrarias, distinções e outras recompensas pelos serviços prestados, por exemplo, aos governos. A aquisição do Espírito de Deus é como a obtenção de capital, mas é eterna e plena de graças, e é obtida por meios bastante similares, que são quase os mesmos usados para se obter capital monetário, social e temporal”.

“Deus o Verbo, o Homem Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, compara nossa vida com um mercado, e o trabalho de nossa vida na terra ele chama de comércio, e nos diz: ‘Negociem até que eu volte[5], aproveitando o tempo presente, porque os dias são maus[6]’. Isto quer dizer que devemos ocupar o máximo de nosso tempo na obtenção de bênçãos celestiais por meio dos bens terrestres. Os bens terrestres são as boas ações feitas em nome de Cristo, que nos conferem a graça do Santíssimo Espírito”.

“Na parábola das virgens sábias e tolas, quando faltou azeite para as virgens tolas, foi dito a elas: ‘Vão e busquem no mercado’. Mas quando elas retornaram do mercado, a porta da câmara nupcial já estava fechada e elas não puderam entrar. Algumas pessoas dizem que a falta de azeite nas lâmpadas das virgens tolas significa a falta de boas ações em suas vidas, mas esta interpretação não é correta. Por que faltariam as boas ações, uma vez que elas eram virgens, ainda que tolas? A virgindade é uma virtude suprema, um estado angélico, que sozinho supera todas as demais boas ações”.

“Penso que o que lhes faltava era a graça do Espírito Santíssimo de Deus. Estas virgens haviam praticado as virtudes, mas em sua ignorância espiritual imaginaram que a vida cristã consistia simplesmente em fazer boas ações. Ao fazer o bem, pensavam estar fazendo as obras de Deus, mas não se preocuparam em saber se aquilo lhes traria a graça do Espírito de Deus. Este modo de vida baseado apenas em fazer o bem sem verificar se este bem traz a graça do Espírito de Deus, é mencionado nos livros da Patrística: ‘Existe outro modo de fazer o bem, que funciona no princípio, mas que termina no fundo dos infernos’”.

“Antônio o Grande dizia em suas cartas aos monges, a respeito destas virgens: ‘Muitos monges e virgens não têm ideia das diferentes formas de vontade que agem no homem, nem sabem que somos influenciados por três vontades: a primeira é a vontade de Deus, perfeita e salvadora; a segunda é nossa própria vontade humana que, quando não é destrutiva, tampouco é salvadora; e a terceira é a vontade do demônio, que é totalmente destruidora’. Esta terceira forma de vontade ensina o homem tanto a não realizar boas obras – ou a fazê-las apenas por vaidade – quanto a realizá-las em nome da virtude, mas não em nome de Cristo. A segunda forma, nossa própria vontade, nos ensina a tudo fazer para satisfazer nossas paixões, ou  nos ensina, como a outra, a fazer as coisas em nome do bem sem nos preocuparmos com a graça que poderia ser adquirida com isto. Mas a primeira, a vontade salvadora de Deus, consiste em fazer o bem apenas para adquirir o Espírito Santo, como um tesouro eterno e inexaurível cujo valor sequer conseguimos avaliar.  É esta aquisição do Espírito Santo que está representada no azeite que faltou às virgens tolas. Elas são chamadas de tolas porque esqueceram o necessário fruto da virtude, a graça do Espírito Santo, sem a qual ninguém pode ser salvo, pois ‘toda alma é estimulada pelo Espírito Santo e exaltada pela pureza e misticamente iluminada pela Unidade Trinitária’[7].”

“Este é o azeite das lâmpadas das virgens sábias que queima e brilha luminosa e longamente, e são estas virgens com suas lâmpadas acesas que podem penetrar na Câmara Nupcial para encontrar o Noivo, que chegará à meia noite. Mas as virgens tolas, embora tendo corrido ao mercado para comprar azeite quando viram que suas lâmpadas se apagavam, não conseguiram retornar a tempo, e encontraram a porta fechada. O mercado é nossa vida; a porta da Câmara Nupcial que se fechou e barrou a entrada às virgens tolas é a morte humana; as virgens, tolas ou sábias, são as almas cristãs; o azeite é a graça do Espírito Santo que pode ser adquirida por meio das boas obras e que transforma as almas de um estado em outro – ou seja, da corrupção para a incorruptibilidade, da morte espiritual para a vida espiritual, das trevas para a luz, do estábulo de nosso ser (onde as paixões permanecem amarradas como animais estúpidos e bestas selvagens) para o Templo da Divindade, na Câmara luminosa da eterna alegria em Jesus Cristo nosso Senhor, o Criador e Redentor, o eterno Noivo de nossas almas.”

“Quão grande é a compaixão de Deus por nossa miséria, vale dizer, nossa desatenção por seus cuidados para conosco, quando Ele próprio diz: ‘Vejam, eu estou à porta e bato[8]’, significando, com ‘porta’, o curso de nossa vida ainda não fechada pela morte! Oh, como eu gostaria, Bem-Amado, que em sua vida você pudesse estar sempre no Espírito de Deus! ‘Do modo como eu o encontrar, assim você será julgado[9]’, disse o Senhor.”

“Desgraça será a nossa se Ele nos encontrar sobrecarregados com os cuidados e tristezas desta vida! Pois quem poderá suportar sua ira, quem poderá resistir à fúria de seu semblante? Por isso foi dito: ‘Vigiai e orai para não cairdes em tentação[10]’, para que não sejamos despojados do Espírito de Deus, para que vigiemos e oremos para que Ele nos dê a sua graça.”

“Pois bem, se toda boa obra realizada em nome de Cristo nos traz a graça do Espírito Santo, a oração nos é ainda mais benéfica, porque está sempre à mão, como um instrumento para adquirir a graça do Espírito. Por exemplo, você gostaria de ir à igreja, mas não há nenhuma aberta; você gostaria de ajudar um mendigo, mas não encontra nenhum em seu caminho, ou você não tem nada para dar; você gostaria de preservar sua virgindade, mas não tem forças para tanto devido ao seu  temperamento, ou por causa da violência dos engodos do inimigo que se aproveita de sua fraqueza humana para superar sua resistência; você gostaria de fazer alguma outra boa ação em nome de Cristo, mas lhe faltam forças ou lhe falta a oportunidade. Estas coisas certamente não acontecem com a oração. A oração é sempre possível para qualquer um, rico ou pobre, nobre ou humilde, forte ou fraco, saudável ou doente, direito ou pecador.”

“Você pode avaliar quão grande é o poder da oração mesmo para um pecador, quando oferecida de todo coração, pelo exemplo a seguir, extraído da Santa Tradição. Uma mãe desesperada chorava a morte de seu filho único, e uma prostituta a quem ela encontrara, ainda manchada por seus pecados, compadeceu-se de sua dor e clamou ao Senhor: ‘Não em nome desta pecadora que sou eu, mas em nome das lágrimas de uma mãe que chora seu filho e que crê firmemente em Seu amor e em Seu Poder, ó Cristo nosso Deus, devolva a vida ao seu filho, Senhor!’. E o Senhor devolveu a vida à criança.”

“Veja, Bem-Amado! Grande é o poder da oração, e ela traz, mais do que todas as outras coisas, o Espírito de Deus, além de poder ser praticada com mais facilidade por qualquer um. Seremos abençoados se o Senhor Deus nos achar vigilantes e cheios dos bens de seu Santo Espírito. Então poderemos estar certos de que seremos ‘arrebatados e levados às nuvens ao encontro do Senhor nos céus[11], que virá com grande poder e glória[12] para julgar os vivos e os mortos[13] e para retribuir a cada homem de acordo com suas obras[14]’.”

“Ó Bem-Amado, digne-se a pensar que é uma grande alegria falar com o pobre Serafim, e acredite que nem ele está despojado da graça do Senhor. O que diríamos então do próprio Senhor, a infalível fonte de toda espécie de bênçãos, tantos celestiais quanto terrestres? De fato, na oração nos é concedido conversar com ele, o Deus dispensador da vida e de todas as graças e nosso Salvador. Mas mesmo aqui devemos orar a Deus apenas para que o Espírito Santo desça sobre nós na medida de Sua divina graça conhecida por Ele. E quando ele se dignar a nos visitar, devemos parar de pedir a ele, ‘vem e habita em nós, purifica-nos de toda mancha e salva nossas almas, Tu que és bom’, porque na verdade ele já veio até nós que nele acreditamos e que realmente chamamos por seu Santo Nome, que podemos recebê-lo com humildade e amor, a ele o Consolador, na morada de nossas almas, com famintos e sedentos por Sua vinda.”

“Explicarei isto a você, Bem-Amado, por meio de um exemplo. Imagine que você me convidou para visitá-lo, que eu aceitei o convite e vim para conversar consigo. Mas você continua a me convidar, dizendo: ‘Entre, por favor. Entre!’. Então eu serei  obrigado a pensar: ‘Qual é o problema com ele? Estará ele louco?’. O mesmo acontece com nosso Senhor e o Espirito Santo. Por isso foi dito: ‘Rendam-se e conheçam que eu sou Deus; eu devo ser exaltado entre os gentios, eu devo ser exaltado por toda a terra[15]’. Ou seja, ‘Eu virei e continuarei a vir para todos os que acreditam em mim e que me chamam, e conversarei com cada qual como conversei com Adão no Paraíso, com Abrahão e Jacó e com outros servidores meus, com Moisés, Jó e outros como eles’.”

“Muitos explicam que esta paz se refere apenas às matérias terrestres; em outras palavras, que durante sua conversa em oração com Deus você deve estar “em paz” apenas em relação aos negócios do mundo. Mas eu lhe direi em nome de Deus que não apenas é preciso estar morto para estes durante a oração, mas que também, quando pelo onipotente poder da fé e da oração nosso Senhor Deus o Espírito Santo concede visitar-nos, e vem a nós na plenitude de sua indizível bondade, devemos morrer também para a oração”.

“A alma fala e conversa durante a oração, mas no momento da descida do Espírito Santo devemos nos manter em completo silêncio, de modo a escutar nítida e inteligivelmente todas as palavras de vida eterna que ele se dignar a nos comunicar. É preciso uma sobriedade total da alma e do espírito, e uma castidade e pureza do corpo. As mesmas exigências foram feitas aos israelitas no Monte Horeb, quando eles foram proibidos inclusive de tocar suas esposas durante três dias antes da aparição de Deus no Monte Sinai. Pois nosso Deus é um fogo que consome tudo que não estiver limpo, e ninguém que estiver corrompido em corpo ou espírito poderá entrar em comunhão com ele”.

“Sim, Padre, mas e com relação às demais boas obras feitas em nome de Cristo, para adquirir a graça do Espírito Santo? Você só me falou da oração!”.

“Adquira a graça do Espírito Santo também praticando todas as outras virtudes em nome de Cristo. Negocie espiritualmente com elas; comercie com as que lhe trouxerem mais benefícios. Acumule o capital da superabundância da graça de Deus, deposite-o no banco do Deus eterno que lhe devolverá dividendos imateriais, não a quatro ou seis por cento, mas a cem por cento para cada centavo espiritual, e até infinitamente mais do que isto. Por exemplo, se a oração e a vigilância lhe trazem mais graças de Deus, ore e vigie; se for o jejum, jejue; se a esmola, distribua o quanto puder. Pese cada virtude exercida em nome de Deus, à sua maneira”.

“Agora vou lhe falar a respeito do pobre Serafim. Eu vim de uma família de comerciantes em Kursk. Quando ainda não estava no mosteiro, costumávamos comerciar com mercadorias que nos traziam bons lucros. Aja assim, meu filho. E, assim como no comércio o principal não é simplesmente negociar, mas obter o maior lucro possível, nos negócios da vida cristã a questão não é somente orar ou realizar qualquer outra boa obra. Pois o Apóstolo disse: ‘Orai sem cessar[16]’, e, como você deve lembrar, ele acrescentou: ‘eu prefiro dizer cinco palavras com minha consciência do que dez mil palavras apenas com a língua[17]’. E o Senhor disse: ‘nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, será salvo, mas sim aquele que cumpre a vontade de meu Pai[18]’, ou seja, aquele que realiza a obra de Deus, e que, mais do que isto, a cumpre com reverência, pois ‘maldito é o que faz a obra do Senhor com negligência[19]’. E a obra de Deus consiste em crer em Deus e naquele que foi por ele enviado, Jesus Cristo[20]. SE entendermos os mandamentos de Cristo e os Apóstolos corretamente, nossos negócios enquanto cristãos consistirão não apenas em aumentar o número de nossas ações – que são apenas os meios para alcançar os objetivos de nossa vida cristã – mas em extrair delas o máximo proveito, ou seja, obter as mais abundantes dádivas do Espírito Santo”.

“Como eu gostaria, Bem-Amado, que você próprio pudesse adquirir esta fonte inesgotável de graça divina, e que pudesse sempre perguntar a si mesmo: estarei eu com o Espírito de Deus ou não? E, caso você esteja no Espírito, bendito seja Deus!, você não terá nada a temer. Você estará pronto para se apresentar diante do terrível julgamento de Cristo imediatamente. Porque, ‘como Eu o encontrar, assim o julgarei’. Mas, se não estivermos no Espírito, devemos descobrir porquê e por qual razão nosso Senhor e Deus o Espírito Santo preferiu nos abandonar; e devemos buscá-lo novamente, e procurá-lo até encontrá-lo, e trazê-lo a nós através de Sua bondade. E devemos atacar os inimigos que tentam nos desviar dele até que desapareçam, como disse o Profeta Davi: ‘  Persegui e alcancei os meus inimigos, e não voltei sem os ter consumido; eu os derrotei, e não puderam levantar-se; eles caíram debaixo dos meus pés[21]’.”

“É isto, filho meu. É assim que você deve negociar espiritualmente com a virtude. Distribua o presente das graças do Espírito àqueles que necessitam, assim como uma vela que queima com o fogo terrestre ilumina a si própria e acende outras velas para que iluminem outros lugares, sem diminuir sua própria luz. Se isto acontece com o fogo terrestre, o que diremos do fogo da graça do Santíssimo Espírito de Deus? Porque as riquezas terrestres diminuem com a distribuição, mas as riquezas celestiais de Deus, quanto mais são distribuídas, mais aumentam nas mãos daqueles que as distribuem. Por isso o Senhor disse à samaritana: ‘quem beber desta água voltará a ter sede; mas quem quer que beba da água que eu lhe der jamais voltará a ter sede; e esta água que eu lhe darei se tornará nele uma fonte de água que jorrará até a vida eterna[22]’.”

“Padre, disse eu, você fala todo o tempo na aquisição da graça do Espírito Santo como sendo o objetivo da vida cristã. Mas como e onde poderei ver isto? As boas ações são visíveis, mas pode o Espírito Santo ser visto? Como poderei eu saber se ele está comigo ou não?”

“Presentemente, replicou o ancião, devido à nossa quase universal frieza em relação à nossa santa fé em nosso Senhor Jesus Cristo, e à desatenção para com o trabalho de sua Divina Providência para conosco e para com a comunicação do homem com Deus, nos distanciamos tanto que podemos dizer que praticamente abandonamos a verdadeira vida cristã. Os testemunhos da Sagrada Escritura nos parecem estranhos, quando, por exemplo, pela boca de Moisés o Espírito Santo diz: ‘e Adão viu que o Senhor passeava pelo Paraíso[23]’, ou quando lemos as palavras do Apóstolo Paulo: ‘Chegamos a Acaia, e os Espírito de Deus não estava conosco; voltamos para Macedônia, e o Espírito de Deus estava conosco[24]’. Mais de uma vez, em outras passagens da Escritura, o aparecimento de Deus ao homem é mencionado”.

“É por isso que algumas pessoas dizem: ‘Estas passagens são incompreensíveis. Será possível que as pessoas consigam ver a Deus tão abertamente?’. Mas não há nada de incompreensível nisso. A dificuldade em compreender é devido ao fato de que abandonamos a simplicidade do conhecimento original do Cristianismo. Sob o pretexto da educação, conseguimos chegar a tamanha escuridão que, em nossa ignorância, aquilo que era claríssimo aos nossos ancestrais nos parece quase inconcebível[25]. Mesmo numa conversa banal, a ideia de uma aparição de Deus não parecia estranha aos nossos antepassados. Assim é que quando os amigos de Jó o repreenderam por blasfemar Deus, ele lhes respondeu: ‘Como é possível ser assim, se eu sinto o Espírito de Deus em minhas narinas?[26]’. Ou seja, como posso ser blasfemo quando o Espírito de Deus habita em mim? Se eu tivesse blasfemado, o Espírito Santo teria me abandonado, mas eu sinto seu sopro em minhas narinas”.

“Do mesmo modo se diz que Abrahão e Jacó viram a Deus e conversaram com ele, e que Jacó chegou mesmo a lutar com ele. Moisés e todo o povo que estava com ele viram a Deus quando ele recebeu as tábuas da Lei no monte Sinai. Uma coluna de fumaça e uma coluna de fogo, ou, em outras palavras, a graça evidente do Espírito Sant, serviram de guias ao povo de Deus no deserto. As pessoas viram a Deus e viram a graça de seu Espírito Santo, não adormecidas ou em sonhos, ou excitadas por uma imaginação desordenada, mas verdadeira e abertamente”.

“Nós nos tornamos tão desatentos para o trabalho de nossa salvação que interpretamos erradamente muitas outras passagens da Sagrada Escritura, apenas porque não buscamos mais a graça de Deus e, no orgulho de nossas mentes, não permitimos que ela habite em nossas almas. É por isso que perdemos a verdadeira iluminação do Senhor, aquela que ele envia aos corações dos homens que têm, de todo coração, fome e sede da Justiça de Deus”.

 “Muitos explicam que quando a Bíblia diz: ’Deus assoprou o hálito da vida no rosto de Adão , que fora por ele criado do barro do chão’, isto significaria que até então não haveria em Adão nem alma humana nem espírito, mas apenas a carne criada do barro. Mas esta interpretação está errada, porque o Senhor Deus criou Adão do barro do chão com uma constituição que nosso paizinho e santo Apóstolo Paulo descreve: ‘Possa seu espírito, sua alma e seu corpo serem preservados sem mácula até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo[27]’. E estas três partes de nossa natureza foram criadas do barro do chão, e Adão não foi criado morto, mas como um ser vivo ativo como todas as demais criaturas animadas de Deus que viviam na terra. A questão é que se o Senhor Deus não tivesse soprado em seu rosto o sopro da vida (ou seja, a graça de nosso Senhor Deus o Espírito Santo que procede do Pai e perdura no Filho e que foi enviado ao mundo por causa do Filho), Adão teria permanecido sem ter em si o Espírito Santo que o elevou à dignidade divina. Por mais perfeito que ele tivesse sido criado, e por superior que fosse em relação às outras criaturas de Deus, como o coroamento da criação terrestre, ele seria como todas as outras criaturas que, embora tendo um corpo, uma alma e um espírito de acordo com sua espécie, não possuem o Espírito Santo em si. Foi no instante em que o Senhor Deus assoprou no rosto de Adão o sopro da vida que, segundo Moisés, ‘Adão se tornou uma alma vivente[28]’, vale dizer, completamente e em todos os sentidos semelhante a Deus, e, como Ele, para sempre imortal. Adão era a tal ponto imune à ação dos elementos que a água não poderia afogá-lo, o fogo não poderia queimá-lo, a terra não poderia sepultá-lo em seus abismos, nem poderia o ar feri-lo de qualquer maneira que fosse. Tudo estava submetido a ele como amado por Deus que era, como rei e senhor de toda a criação, e tudo olhava para ele, como o perfeito coroamento de todas as criaturas de Deus. Adão foi criado tão sábio por este sopro de vida que recebeu no rosto dos lábios criadores de Deus, o Criador e Regente de todas as coisas, que jamais houve na terra homem mais sábio ou inteligente do que ele, e dificilmente haverá algum dia. Quando o Senhor lhe ordenou que desse nomes a todas as criaturas, ele deu a cada uma um nome que expressava completamente suas qualidades, poderes e propriedades que lhes haviam sido dadas por Deus em sua criação”.

“Devido a este presente da graça sobrenatural de Deus que infundiu nele o sopro da vida, Adão podia ver e ouvir o Senhor caminhar pelo Paraíso, e compreender suas palavras, assim como a conversa com os santos Anjos e a linguagem de todos os animais, pássaros e répteis e tudo o mais que está para nós oculto, criaturas decaídas e pecadoras que somos, mas que era claríssimo a Adão antes da queda. Também a Eva Deus concedeu a mesma sabedoria, força e poder ilimitado, e todas as demais qualidades boas e santas. E ele a criou, não do barro do chão, mas da costela de Adão no Jardim das Delícias, no Paraíso que ele plantara no meio da terra”.

“Para que eles pudessem sempre manter em si as propriedades imortais, divinas e perfeitas deste sopro de vida, Deus plantou no meio do jardim a árvore da vida e dotou seus frutos com toda a essência e a plenitude de seu divino sopro. Se não tivessem pecado, tanto Adão e Eva como toda a sua posteridade poderiam sempre comer do fruto da árvore da vida e teriam mantido para sempre a força impulsionadora da graça divina”.

“Eles poderiam ter inclusive mantido por toda eternidade os plenos poderes de seus corpos, almas e espíritos num estado de imortalidade e juventude permanente, e teriam permanecido neste estado abençoado e imortal para sempre. Atualmente, é claro, e difícil mesmo imaginar tamanha graça”.

“Mas quando, por haver provado do fruto da árvores do conhecimento do bem e do mal – que era prematuro e contrário ao mandamento de Deus – eles aprenderam a diferença entre o bem e o mal e ficaram sujeitos a todas as aflições que se seguiram à transgressão do mandamento de Deus, eles perderam esta graça sem preço do Espírito de Deus, de tal modo que, até a vinda ao mundo do Homem Deus Jesus Cristo, o Espírito de Deus não estava no mundo porque Jesus ainda não havia sido glorificado[29]”.

“Entretanto, isto não significa que o Espírito de Deus não estivesse no mundo para todos, mas que sua presença não era tão aparente como em Adão ou para os cristãos Ortodoxos. Ele se manifestava apenas exteriormente; mas os sinais de sua presença no mundo era conhecidos da humanidade. Assim é que, por exemplo, muitos mistérios relacionados à futura salvação da raça humana foram revelados a Adão e Eva depois da queda. E para Caim, apesar de sua impiedade e de sua transgressão, era fácil escutar a voz que manteve com ele uma conversação suave e divina, embora condenatória. Noé conversou com Deus. Abrahão viu Deus e seu dia e ficou alegre[30]. A graça do Espírito Santo agindo externamente também está refletida em todos os profetas e santos de Israel do Antigo Testamento. Posteriormente os hebreus estabeleceram escolas proféticas nas quais os filhos dos profetas deveriam discernir os sinais da manifestação de Deus ou dos Anjos, bem como distinguir as operações do Espírito Sant dos fenômenos comuns e naturais de nossa vida terrestre desprovida de graça. Simeão, que carregou a Deus em seus braços, os avós de Cristo, Joaquim e Ana, e incontáveis outros servos de Deus receberam abertamente inúmeras aparições divinas, vozes e revelações que se justificaram por meio de eventos milagrosos. A presença do Espírito de Deus também agiu em povos pagãos que não conheciam o Deus verdadeiro, embora sem a mesma força como agiu entre o povo de Deus, porque mesmo entre eles Deus encontrou para si um povo escolhido. É o que aconteceu, por exemplo, com as profetizas virgens chamadas Sibilas, que dedicaram sua virgindade a um deus desconhecido, que era o mesmo Deus o Criador do universo, o todo-poderoso Regente do mundo, tal como podia ser concebido pelos pagãos. Embora os filósofos pagãos procurassem nas trevas da ignorância de Deus, também sua busca pela verdade foi amada por Deus, e por conta disto eles receberam sua parte do Espírito de Deus, pois foi dito que nações que não conheciam a Deus praticavam por natureza os mandamentos da lei e deste modo agradaram a Deus[31]. Ao Senhor tanto agradava a verdade que ele próprio disse por intermédio do Espírito Santo: ‘A verdade brotou da terra, e a justiça olhou desde os céus[32]’.”

“Assim você pode ver, Bem-Amado, tanto no santo povo hebreu, a quem Deus amou, como nos pagãos que não O conheciam, que o conhecimento de Deus foi preservado – e isto, meu filho, é uma compreensão clara e racional sobre o modo pelo qual nosso Senhor e Deus o Espírito Santo age no homem, e por meio de quais sentidos interiores e exteriores a pessoa pode estar certa de que se trata realmente da ação de nosso Senhor e Deus o Espírito Santo e não de uma ilusão do inimigo. É assim que foi desde a queda de Adão até a descida na carne de nosso Senhor Jesus Cristo no mundo”.

“Sem esta realização perceptível das ações do Espírito Santo que sempre esteve preservado na natureza humana, o homem não teria condições de conhecer com certeza que o fruto da semente da mulher, que foi prometido a Adão e Eva, havia chegado ao mundo para esmagar a cabeça da serpente[33].”

“Por fim o Espírito Santo prognosticou a são Simeão, que tinha então sessenta e cinco anos, o mistério da concepção virginal e do nascimento de Cristo da Puríssima e sempre Virgem Maria. Posteriormente, tendo vivido pela graça do Espírito Santíssimo de Deus por trezentos anos, no tricentésimo sexagésimo quinto ano de sua vida ele pode dizer abertamente no Templo do Senhor que havia conhecido com certeza, por uma dádiva do Espírito Santo, que aquele era o verdadeiro Cristo, o Salvador do mundo, cuja concepção sobrenatural e nascimento a partir do Espírito Santo havia sido prognosticado a ele por um Anjo trezentos anos antes”.

“Teve também Santa Ana, profetiza, filha de Fanuel, que em sua viuvez serviu ao Senhor Deus no Templo por oito anos, conhecida como uma viúva respeitável, uma casta serva de Deus, pelos dons especiais da graça que recebeu. Também ela anunciou que Jesus era de fato o Messias que havia sido anunciado ao mundo, o verdadeiro Cristo, Deus e Homem, o Rei de Israel, aquele que viria a salvar Adão e a Humanidade”.

“E quando o Senhor Jesus Cristo condescendeu em cumprir a totalidade da obra de salvação, após sua Ressurreição, ele soprou sobre os Apóstolos, restaurando o sopro de vida perdido por Adão, e concedeu a eles a mesma graça do Santíssimo Espírito de Deus de que desfrutara Adão. Mas isto não foi tudo. Ele também disse a eles que era chegada a hora em que ele deveria ir para o Pai, pois se não o fizesse, o Espírito de Deus não poderia vir a mundo. Mas que quando ele, Cristo, fosse para o Pai, ele o enviaria ao mundo, e ele, o Consolador, guiaria a todos os que seguissem seus ensinamentos em toda verdade e que ele os lembraria de tudo o que Cristo lhes dissera enquanto ainda estava no mundo. E o que foi prometido então foi graça sobre graça[34]”.

“Então, no dia de Pentecostes, ele enviou solenemente até eles, num vento tempestuoso, o Espírito Santo em forma de línguas de fogo que iluminaram cada um, penetraram em cada um e os encheram com uma força ardente de graça divina que desceu como um orvalho e agiu com plena alegria nas almas que partilharam de seu poder e de suas operações[35]. E esta mesma infusão de fogo que foi a graça dada pelo Espírito Santo a todos, a fé em Cristo pelo sacramento do Santo Batismo, é selada pelo sacramento da Crisma nas partes principais de nossos corpos, conforme determina a Santa Igreja, a eterna mantenedora desta graça. Conforme é dito: ‘O selo da dádiva do Espírito Santo’. E onde colocamos nossos selos, Bem-Amado, senão nos vasos que contém nossos tesouros mais preciosos? E o que pode ser mais sublime e mais precioso do que as dádivas do Espírito Santo que foram enviadas para nós a partir do Sacramento do Batismo? Esta graça batismal é tão imensa e tão indispensável, tão vital para o homem, que mesmo um herético não é desprovido dela até sua morte, ou seja, até o final do período apontado desde cima pela Providência de Deus como sendo a duração do homem sobre a terra, para que se veja o que ele é capaz de adquirir (durante este período que lhe é dado por Deus) por meio do poder da graça a ele concedido desde o alto”.

“E se pudéssemos nunca pecar depois do Batismo, permaneceríamos para sempre Santos de Deus, santos, inculpáveis e livres de toda impureza de corpo ou espírito. Mas o problema é que crescemos em estatura, mas não em graça e conhecimento de Deus, como nosso Senhor Jesus Cristo cresceu; ao contrário, gradualmente nos tornamos mais e mais depravados e perdemos a graça do Espírito Santíssimo de Deus, tornando-nos pecadores em diversos níveis, e os mais pecadores de todos.  Mas se um homem é movido e comovido pela sabedoria de Deus que procura nossa salvação e abarca todas as coisas, se ele se decide por sua causa devotar suas primeiras horas a Deus e a esperar para encontrar a salvação eterna, então, em obediência ao seu comando, ele deve se apressar em oferecer um verdadeiro arrependimento por todos os seus pecados e praticar as virtudes opostas aos pecados cometidos. Então, por meio das virtudes praticadas em nome de Cristo ele irá adquirir o Espírito Santo que age em nós e estabelece em nós o Reino de Deus. Não foi em vão que o Verbo de Deus disse:  ‘O Reino de Deus está dentro de vocês[36]’, e também que ‘ele sofrerá violência, e os violentos o tomarão à força[37]’. Isto se refere às pessoas que, apesar dos laços do pecado que as estorvam e que, seja pela violência, seja por incitá-las a novos pecados, as impedem de alcançar a Deus, nosso Salvador, com perfeito arrependimento se obrigam a romper estes laços, desprezando a força de suas ligações com o pecado: estas pessoas ao final se apresentarão diante da face de Deus mais brancas do que a neve, por Sua graça. ‘Venham, disse o Senhor: pois ainda que seus pecados sejam púrpura, eu os tornarei brancos como a neve[38]’.”

“Estas pessoas foram vistas pelo santo Profeta João o Divino como ‘vestidas com roupas brancas’ (ou seja, com as roupas da justificação) e ‘palmas nas mãos’ (como sinal de vitória), e elas cantavam a Deus esta maravilhosa canção: ‘Aleluia’. E ninguém conseguia imitar a beleza de sua canção. Deles disse o Anjo de Deus: ‘Eram eles os que haviam chegado de uma grande tribulação e que haviam lavado suas roupas e as tornado brancas pelo sangue do Cordeiro[39]’. Elas foram lavadas por seus sofrimentos e tornadas brancas pela Comunhão dos imaculados e vivificantes Mistérios do Corpo e Sangue do mais puro e imaculado Cordeiro – Cristo – que foi sacrificado antes de todos os séculos por sua própria vontade pela salvação do mundo, e que continua sendo sacrificado e dividido até agora, sem nunca se exaurir. Através dos Santos Mistérios nos foi concedida nossa eterna e infalível salvação como um viático da vida eterna, como uma resposta aceitável ao Seu temível julgamento e como um substitutivo preciso acima de nossa compreensão para este fruto da árvore da vida, o qual Lúcifer, o inimigo da Humanidade caído dos céus gostaria de despojar a espécie humana. Pois apesar de o inimigo ter seduzido a Eva e feito com que Adão caísse junto com ela, o Senhor não apenas concedeu a eles um Redentor por meio do fruto da semente da mulher, Redentor este que esmagou a morte com a morte, mas ainda concedeu a todos nós por meio da mulher, a Sempre-Virgem Maria Mãe de Deus, que esmagou a cabeça da serpente em si e para toda a raça humana, a infalível mediadora perante seu Filho e nosso Deus, a invencível e insistente intercessora até para os pecadores mais desesperados. É por isso que a Mãe de Deus é chamada de “Flagelo dos Demônios”, pois não é possível a um demônio destruir um homem que possui seu socorro na Mãe de Deus”.

“E eu devo explicar principalmente, Bem-Amado, a diferença entre as operações do Espírito Santo que habita misticamente nos c orações dos que acreditam em nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo e as operações do tenebroso pecado que, pela sugestão e instigação do demônio, age predatoriamente em nós. O Espírito de Deus nos lembra das palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e sempre age triunfantemente junto com Ele, alegrando nosso coração e guiando nossos passos no caminho da paz, enquanto que o espírito falso e diabólico trabalha na direção oposta, e suas ações são sempre no sentido da rebelião, obstinadamente e cheia das paixões da carne, das paixões dos olhos e do orgulho da vida”.

“’E todo aquele que viver e crer em Mim não morrerá jamais[40]’. Aquele que possuir a graça do Espírito Santo em recompensa por sua reta fé em Cristo, mesmo, que levando em conta a fragilidade humana, sua alma deverá morrer por um pecado ou outro, mesmo assim ele não morrerá para sempre, mas será desperto pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo que ‘retira o pecado do mundo[41]’ e distribui graciosamente graça sobre graça. Desta graça, que se manifestou ao mundo todo e à nossa raça pelo Homem Deus, o Evangelho diz: ‘Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens[42]’; e mais: ‘E a luz brilhou nas trevas; e as trevas não a reconheceram[43]’. Isto significa que a graça do Espírito Santo que é concedida no Batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, apesar do homem cair em pecado, apesar da escuridão que envolve nossas almas, não obstante brilha no coração com a luz divina (que existe desde tempos imemoriais) dos inestimáveis méritos de Cristo. No evento da impenitência d pecador, esta luz de Cristo clama ao Pai: ‘Abba, Pai! Não se zangue com esta impenitência até o fim (de sua vida)[44]’. E então, com a conversão do pecador a caminho do arrependimento, apagou-se todo traço dos pecados passados e o pecador foi vestido com trajes de incorrupção tecidos com a graça do Espírito Santo, equivalente à sua aquisição, conforme o objetivo da vida cristã de que eu venho falando desde o princípio, Bem-Amado”.

“Vou lhe dizer algo ainda, para que você possa entender de modo mais claro o que significa a graça de Deus, como reconhecê-la e como se manifesta sua ação, particularmente naqueles que são iluminados por ela. A graça do Espírito Santo é a graça que ilumina o homem. Toda a Santa Escritura fala disto. Nosso Pai Davi disse: ‘Sua Palavra é lâmpada para os meus pés, e a luz do meu caminho[45]’, e: ‘se Sua lei não fosse minha meditação, eu pereceria em humilhação[46]’. Em outras palavras, a graça do Espírito Santo que está expressa na Lei pelas palavras dos mandamentos do Senhor são minha lâmpada e minha luz. E se a graça deste Santo Espírito (que eu tentei adquirir zelosa e cuidadosamente meditando sobre a justiça de seus julgamentos sete vezes ao dia) não me iluminasse em meio às trevas das responsabilidades que são inseparáveis das altas obrigações de minha realeza, onde poderia eu obter uma faísca de luz para iluminar o caminho de minha vida que foi entenebrecido pelas vontades distorcidas de meus inimigos?”.

“E de fato o Senhor frequentemente demonstrou diante de muitas testemunhas o modo pelo qual a graça do Espírito Santo age nas pessoas que Ele santificou e iluminou por meio de sua grande inspiração. Lembre-se de Moisés, depois de sua conversa com Deus no Monte Sinai. Ele brilhava com uma luz tão extraordinária que as pessoas não conseguiam olhá-lo; ele precisou colocar um véu para poder aparecer em público. Lembre-se da Transfiguração do Senhor sobre o Monte Tabor. Uma luz fortíssima o envolveu, ‘e suas vestes começaram a brilhar, mais brancas do que a neve[47]’, e seus discípulos caíram com o rosto ao chão de medo. Mas quando Moisés e Elias apareceram para Ele nesta luz, uma nuvem os envolveu para esconder a irradiação da luz da divina graça que teria cegado os olhos dos discípulos. Assim é que a graça do Espírito Santíssimo de Deus aparece como uma luz inefável para todos a quem Deus revela sua ação”.

“Mas como, perguntei ao Padre Serafim, posso eu saber se estou na graça do Espírito Santo?”.

“É muito simples, Bem-Amado, ele replicou. É por isso que o Senhor disse: ‘Todas as coisas são simples para aqueles que buscam o conhecimento[48]’. O problema é que não buscamos este conhecimento divino que não fumaceira, porque ele não é deste mundo. Este conhecimento que está cheio do amor a Deus e ao próximo conduz todos os homens à salvação. Deste conhecimento disse o Senhor que Deus ‘deseja que todos os homens sejam salvos, e que alcancem o conhecimento da verdade[49]’. E da falta deste conhecimento ele falou aos Apóstolos: ‘Vocês ainda não entenderam?[50]’. Em relação a este entendimento, foi dito a respeito dos Apóstolos no Evangelho: ‘Então se abriu seu entendimento[51]’, e os Apóstolos perceberam quando o Espírito de Deus habitava neles e quando não; e, cheios de entendimento, eles viram a presença do Espírito Santo neles e declararam positivamente que seu trabalho era santo e que agradava ao Senhor Deus. Isto explica o porquê terem escrito em suas Epístolas: ‘Pareceu bom ao Espírito Santo e a nós[52]’. Apenas a partir deste fundamento puderam eles oferecer suas Epístolas como uma verdade imutável para benefício de todos os fiéis. Deste modo os santos Apóstolos estavam conscientemente seguros da presença neles do Espírito de Deus. E você pode ver, Bem-Amado, como isto é simples!”.

“Não obstante, repliquei, eu não compreendo como posso eu estar certo de que estou no Espírito de Deus. Como posso, por mim mesmo, discernir sua verdadeira manifestação em mim?”.

O Padre Serafim respondeu: “Eu já lhe disse, Bem-Amado, que é muito simples e já relatei em detalhes como as pessoas chegaram a estar no Espírito de Deus e o modo pelo qual podemos reconhecer sua presença em nós. O que mais você quer?”.

“Eu quero entender isto direito”, disse eu.

Então o Padre Serafim segurou-me com firmeza pelo ombro e disse: “Nós dois estamos agora no Espírito de Deus, meu filho. Por que você não olha para mim?”.

Eu lhe respondi: “Eu não posso olhar, Padre, porque seus olhos estão brilhando como relâmpagos. Sua face se tornou mais brilhante do que o sol, e meus olhos doem”.

O Padre Serafim disse: “Não fique alarmado, Bem-Amado! Agora você próprio se tornou tão brilhante quanto eu. Você está na plenitude do Espírito de Deus também; de outro modo, você não poderia me ver como eu sou”.

Então, inclinando sua cabeça, ele segredou ao meu ouvido: “Agradeça ao Senhor Deus por sua inexprimível misericórdia por nós! Você viu que eu sequer fiz o sinal da cruz; apenas, em meu coração, eu orei mentalmente ao Senhor Deus e disse interiormente: ‘Senhor, conceda a ele que veja claramente com seus olhos carnais a descida de Seu Espírito, que Você concede aos seus servos quando deseja aparecer na luz de Sua glória magnificente’. E você vê, filho meu, o Senhor imediatamente satisfez o humilde pedido do pobre Serafim. Como não agradecer a Ele por sua indizível dádiva a nós? Mesmo para os maiores eremitas, meu filho, não é sempre que o Senhor mostra sua misericórdia desta maneira. Esta graça de Deus, como uma mãe amorosa, lhe foi concedida para confortar seu coração contrito pela intercessão da própria Mãe de Deus. Mas por que, filho meu, você não olha nos meus olhos? Apenas olhe, e não tenha medo! O Senhor está conosco!”.

Depois destas palavras eu mirei seu rosto e sobreveio-me uma enorme veneração. Imagine no centro do sol, na luz ofuscante dos raios do meio dia, o rosto de um homem falando com você. Você vê os movimentos de seus lábios e as mudanças de expressão de seus olhos, você ouve sua voz, você sente que alguém segura seus ombros; mas você não vê estas mãos, você sequer enxerga a si mesmo ou sua figura, mas apenas uma luz cegante espalhando-se ao redor por muitas dezenas de metros e iluminando com seu halo a neve que cobre o chão da floresta e os flocos que caem sobre tudo e sobre aquele Ancião. Você pode imaginar o estado em que eu fiquei!

“Como você se sente agora?”, perguntou-me o Padre Serafim.

“Extraordinariamente bem”, disse eu.

“Como, exatamente, você se sente?”.

Eu respondi: “Eu sinto uma calma e paz em minha alma, que nenhuma palavra é capaz de expressar”.

“Isto, Bem-Amado, disse o Padre Serafim, é a paz da qual disse o Senhor aos seus discípulos: ‘Eu lhes dou a minha paz; não a paz que o mundo dá, mas a que Eu dou[53]’. ‘Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que é dele; mas porque eu os escolhi fora do mundo, o mundo odiará vocês[54]’. ‘Mas não desanimem: eu venci o mundo[55]’. E para aquelas pessoas a quem o mundo odeia, mas que foram escolhidas pelo Senhor, o Senhor concede esta paz que você sente agora, a paz que, sendo as palavras do Apóstolo, ‘ultrapassa todo entendimento[56]’. O Apóstolo a descreve assim, porque é impossível expressar em palavras o bem-estar espiritual que se produz naqueles em cujos corações o Senhor Deus infundiu esta paz. Cristo o Salvador chama a isto a paz que ele concede por sua própria generosidade e que não é deste mundo, porque nenhuma prosperidade terrestre e temporária pode dar esta paz ao coração humano; ela é concedida desde o alto pelo próprio Senhor Deus, e por isso é chamada de paz de Deus. O que mais você sente?” ,perguntou-me o Padre Serafim.
“Uma doçura extraordinária”, respondi.

Ele prosseguiu: “Esta é a doçura da qual se fala na Sagrada Escritura: ‘Eles ficarão inebriados com a gordura de minha casa; me eu os farei beber da torrente de minhas delícias[57]’. E agora esta doçura inunda nossos corações e corre por nossas veias com inexprimível delícia. Nossos corações se confundem nesta doçura e ambos estamos cheios de uma alegria que a língua não é capaz de contar. O que mais você sente?”.

“Uma extraordinária alegria no coração”.

E o Padre Serafim continuou: “Quando o Espírito de Deus desce até o homem e o cobre com a plenitude de sua inspiração, a alma humana transborda com inexprimível alegria, porque o Espírito de Deus enche de alegria tudo o que toca. É desta alegria que fala o Evangelho: ‘Quando a mulher está para dar à luz, sente angústia, porque chegou a sua hora. Mas quando a criança nasce, ela nem se lembra mais da aflição, porque fica alegre por ter posto um homem no mundo. Agora, vocês também estão angustiados. Mas, quando vocês tornarem a me ver, vocês ficarão alegres, e essa alegria ninguém tirará de vocês[58]’. E por mais reconfortante que seja a alegria que você sente em seu coração, ela não é nada em comparação com aquela que o próprio Senhor mencionou pela boca de seu Apóstolo, descrevendo-a como aquela ‘que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam[59]’. Amostras desta alegria nos são dadas, e se elas enchem nossas almas com tamanha doçura, bem-estar e felicidade, o que diremos da alegria que foi preparada no céu para aqueles que choraram aqui na terra? E você, filho meu, chorou bastante nesta sua vida na terra; e veja com que alegria o Senhor o consola ainda nesta vida! Agora cabe a nós, meu filho, acrescentar trabalho sobre trabalho, de modo a irmos ‘de força em força[60]’, e ‘alcançarmos a medida da estatura da plenitude de Cristo[61]’, de modo a que possamos nos encher com as palavras do Senhor: ‘Aqueles que esperaram pelo Senhor renovaram suas forças; eles cresceram asas como águias; eles correrão e não serão fracos[62]’; ‘eles irão de força em força, e o Deus dos deuses aparecerá para eles em Sião[63]’, na Sião da realização e das visões celestiais. Somente então sua alegria atual (que nos visita pouco e brevemente) surgirá em sua plenitude, e ninguém a tomará de nós, porque estaremos cheios e transbordando de delícias celestiais inexplicáveis. O que mais você sente, Bem-Amado?”.

Eu respondi: “Um calor extraordinário”.

“Como você pode se sentir aquecido, meu filho? Veja, estamos sentados na floresta. É inverno, e a neve cobre nossos pés. Estamos cobertos com uma polegada de neve, e os flocos continuam caindo. Que calor pode haver aqui?”.

Eu respondi: “É como se eu estivesse numa sauna e a água tivesse acabado de ser vertida sobre as pedras quentes, e o vapor tivesse subido neste momento”.

“E o perfume, ele me perguntou, é o mesmo da sauna?”.

"Não, repliquei, não existe nada na terra com esta fragrância. Quando minha mãe estava viva e eu ia a bailes e festas, ela me perfumava com essências caras que ela adquiria nas melhores lojas de Kazan. Mas nenhuma exalava uma fragrância como esta”.

Então o Padre Serafim, sorrindo prazerosamente, disse: “Eu sei bem disto, tanto quanto você sabe, filho meu, mas pergunto para ver até que ponto você sente as mesmas coisas. É absolutamente verdade, Bem-Amado! A mais suave fragrância terrestre não se compara àquela que você sente agora, pois estamos envolvidos na fragrância do Espírito Santo de Deus. O que na terra poderia ser igual? Observe, Bem-Amado, que você disse que ao nosso redor está cálido como numa sauna; e veja, nem sobre você, nem sobre mim, a neve derrete, nem sob nossos pés: porque o calor não está no ar, mas em nós. É sobre este calor que o Espírito Santo nos ordena clamar ao Senhor: ‘Aqueça-me no calor de seu Espírito Santo!’. Por meio dele os eremitas de ambos os sexos foram mantidos aquecidos e não temeram o frio do inverno, cobertos, como se vestissem peles, por um manto de graças tecido pelo Espírito Santo. E, de fato, é assim que acontece, porque a graça de Deus habita em nós, em nosso coração, conforme disse o Senhor: ‘O Reino de Deus está dentro de vocês[64]’. Como ‘Reino de Deus’ devemos entender a graça do Espírito Santo. Este Reino de Deus está agira dentro de nós, e a graça do Espírito Santo brilha sobre nós e nos aquece também por fora. Ela enche o ar ao redor com fragrâncias odoríficas, acaricia nossos sentidos com delícias celestiais e enche nossos corações de uma alegria indizível. Nosso estado atual é aquele a respeito do qual o Apóstolo disse: ‘O Reino de Deus não são comidas e bebidas, mas a justiça, a paz e a alegria do Espírito Santo[65]’. Nossa fé não consiste em palavras plausíveis de uma sabedoria terrena, mas na demonstração do Espírito e de sua força[66]. É neste estado que nos encontramos agora. É dele que o Senhor disse: ‘Existem alguns que aqui estão e que não verão a morte antes que o reino de Deus venha com seu poder[67]’. Veja, meu filho, com que indizível alegria o Senhor nos presenteou! É isto que significa estar na plenitude do Espírito Santo, sobre a qual são Macário do Egito escreveu: ‘Eu próprio estava na plenitude do Espírito Santo’. Com esta plenitude de seu Espírito Santo o Senhor encheu até o transbordamento estas pobres criaturas. Portanto, você não precisa mais perguntar, Bem-Amado, como as pessoas sabiam estar na graça do Espírito Santo. Você se lembrará sempre desta manifestação da inefável misericórdia de Deus que nos visitou?”.

“Eu não sei, Padre, disse eu, se o Senhor me concederá lembrar esta misericórdia de Deus tão vívida e claramente como a sinto agora”.

“Eu penso, respondeu-me o Padre Serafim, que o Senhor o ajudará a reter isto na memória para sempre, ou Sua bondade jamais se inclinaria instantaneamente assim à minha humilde oração, atendendo ao pedido do pobre Serafim; ademais, porque não foi dado apenas a você compreender isto, mas, através de você, o mundo todo, de modo a que você confirme a obra de Deus e seja assim útil a muitos outros. O fato de que eu seja um monge e você um leigo está absolutamente fora da questão. O que Deus nos pede é a fé verdadeira Nele e em seu único Filho. Em troca a graça do Espírito Santo é abundantemente concedida desde o alto. O Senhor procura um coração cheio de transbordante amor por Deus e o próximo; é neste trono que ele deseja sentar-se e no qual Ele aparece na plenitude de Sua glória celestial. ‘Filho, dê-me seu coração’, diz Ele, ‘e o resto lhe será dado em acréscimo[68]’, pois é no coração humano que o Reino de Deus pode ser contido. O Senhor ordenou aos seus discípulos: ‘Busquem primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e o resto lhes será dado em acréscimo; porque o Pai celeste sabe que vocês precisam destas coisas[69]’. O Senhor não nos repreende por possuirmos bens terrestres, porque ele próprio disse a respeito das condições de nossa vida terrestre, que precisamos de todas essas coisas; vale dizer, todas as coisas que tornam a vida humana mais aprazível e pacífica, e que fazem com que nosso caminho para nossa morada celestial mais leve e fácil. É por isso que o santo Apóstolo Paulo disse que em sua opinião nada havia na terra de melhor do que a piedade e a suficiência[70]. E a Santa Igreja ora para que estas coisas nos sejam concedidas pelo Senhor Deus; e embora as perturbações, os infortúnios e as necessidades sejam inseparáveis de nossa vida na terra, o Senhor Deus nunca quis nem quer que não tenhamos senão aflições e adversidades. Assim é que ele nos ordena por meio dos Apóstolos a ‘suportarmos a carga uns dos outros para cumprir a plenitude do mandamento de Cristo[71]’. O Senhor Jesus deu pessoalmente o mandamento que amemos uns aos outros, de modo que, consolando-nos mutuamente com amor, possamos iluminar o caminho doloroso e estreito de nossa jornada até nossa pátria celeste. Não desceu Ele do céu com o propósito de tomar sobre Si nossa pobreza e nos tornar ricos de Sua bondade e indizível generosidade? Ele não veio para ser servido pelos homens, mas para servi-los e dar Sua vida pela salvação de muitos. O mesmo faz você, Bem-Amado, e, tendo visto a misericórdia que Deus manifestou para com você, conte a todos os que desejam a salvação. ‘A colheita é grande, disse o Senhor, e os operários são poucos[72]’. O Senhor Deus nos conduziu em nossa obra e nos presenteou com a dádiva de sua graça de modo que, colhendo as espigas da salvação de nossos irmãos e levando quantos pudermos para o Reino de Deus, possamos apresentar a Ele o fruto – multiplicado por trinta, por sessenta ou por cem. Estejamos vigilantes, filho meu, para que não sejamos condenados juntamente com o servo mau e preguiçoso que enterrou sua moeda, mas para que tentemos imitar aqueles servos bons e fiéis do Senhor que entregaram a seu Mestre quatro moedas ao invés de duas, e dez ao invés de cinco[73]."

“Sobre a misericórdia do Senhor não existe sombra de dúvida. Você viu por si mesmo , Bem-Amado, como as palavras do Senhor ditas pelo Profeta se cumpriram em nós: ‘Eu não sou um Deus distante, mas um Deus próximo[74]’, e ‘a salvação está em minha boca[75]’. Eu sequer tive tempo de fazer o sinal da cruz, mas apenas pedi em meu coração que o Senhor concedesse a você ver Sua bondade em toda sua plenitude, e Ele quis satisfazer e realizar meu desejo. Eu não estou me vangloriando ao falar assim, nem digo isto para mostrar minha importância e levar você a ter inveja, ou para fazê-lo pensar que eu sou um monge e você um mero leigo. Não, Bem-Amado! ‘O Senhor está perto de todos os que o chamam em verdade[76]’, e ‘não existe parcialidade Nele[77]’. Porque o Pai ama o Filho e colocou tudo em Suas mãos[78]. Ah, se pudéssemos apenas amar o Pai, com um amor filial! O Senhor ouve igualmente o monge e o simples leigo, desde que sejam fiéis ortodoxos, e que amem a Deus do fundo de suas almas, e que tenham fé Nele, ainda que do tamanho de um grão de mostarda; e ambos serão capazes de mover montanhas. ‘Um poderá perseguir mil e por em fuga vinte mil[79]’. O próprio Senhor disse: ‘Tudo é possível para aquele que crê’. E o santo Apóstolo Paulo proclama em alta voz: ‘Tudo posso em Cristo que me fortalece’. E nosso Senhor Jesus Cristo fala ainda mais maravilhosamente ainda sobre os que acreditam Nele: ‘Aquele que crê em mim, não apenas  minhas obras, mas outras maiores fará, porque eu vou para o meu Pai. E eu rezarei por vocês para que sua alegria seja completa. Até agora vocês não pediram nada em meu nome. Mas agira peçam...[80]’.”

“Então, filho meu, o que quer que você peça ao Senhor Deus você irá receber, se for para a glória de Deus ou pelo bem de seu próximo, porque o que fazemos pelo bem do próximo é feito por Sua glória. Por Ele disse: “Aquilo que fizerem ao menor deste, a Mim o terão feito[81]’. Assim, não tenha dúvidas de que o Senhor Deus atenderá os seus pedidos, se eles forem para a glória de Deus ou para a edificação e benefício dos seus irmãos. E, mesmo que algo seja necessário para sua necessidade, uso ou benefício, também o Senhor rápida e graciosamente o enviará a você, desde que seja de extrema urgência e necessidade. Porque o Senhor ama aos que o amam. O Senhor é bom para todos os homens; ele dá abundantemente para os que clamam por seu nome, e sua bondade está em todas as Suas obras. Ele atenderá os desejos dos que o temem, ouvirá suas preces e cumprirá com seus projetos. O Senhor atenderá a todos os pedidos[82]. Mas cuidado, Bem-Amado, para não pedir a Deus algo que não seja de urgente necessidade. O Senhor não lhe recusará isto, até por causa de sua fé Ortodoxa em Cristo Salvador, pois o Senhor não apoiará com sua justiça aos pecadores[83], e ele atenderá rapidamente ao desejo de Seu servo Davi; mas Ele cobrará dele por ter sido perturbado sem necessidade, e por ter sido incomodado com algo que poderia ter sido arrumado com facilidade”.

“Assim sendo, Bem-Amado, eu lhe contei e lhe dei uma demonstração prática de tudo o que o Senhor e a Mãe de Deus permitiram que eu dissesse e mostrasse a você por meu intermédio, pobre Serafim. Agora, vá em paz. O Senhor e a Mãe de Deus estejam sempre com você, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém, Vá em paz”.

E durante todo o tempo, desde que o rosto do Padre Serafim começara a brilhar, a iluminação continuou; e tudo o que ele me disse, desde o começo de sua narrativa, ele falou sem se mover de sua posição. O halo inefável de luz que emanava dele, eu o vi com meus olhos. E estou pronto a comprová-lo com meu juramento.

 ***

Transcrevemos abaixo alguns trechos que confirmam a exposição de São Serafim, extraídos da própria Filocalia. Em todos eles, a manifestação da graça é descrita como uma luz brilhante, que chega a cegar aqueles que a contemplam, corroborando a descrição que faz Motovilov de sua experiência com o Padre Serafim.

Simeão o Novo teólogo, Discurso sobre a fé e o ensinamento:

Um homem chamado Jorge, na flor da idade – por volta de uns vinte anos – morava em Constantinopla, em nosso tempo. Ele era muito bonito, e seus movimentos eram tão estudados, que muitos levantavam suspeitas a seu respeito, principalmente aqueles que tinham por hábito não ver senão o exterior das pessoas e que, sem conhecer os segredos de cada um, condenam e julgam sem consideração aos demais. Este jovem soube de um monge que morava em um mosteiro de Constantinopla. Tendo revelado a ele todos os segredos de seu coração, ele acrescentou que desejava a salvação de sua alma e que tinha um grande desejo de abandonar o mundo e se tornar monge. O venerável ancião louvou o seu desejo, deu-lhe os conselhos necessários e confiou a ele o livro de são Marcos o Asceta, para que nele pudesse ler o que o santo dizia da lei espiritual. O jovem recebeu o livro com tanto amor e piedade como se viesse do próprio Deus, com a confiança e a esperança de extrair grandes benefícios dali. Voltando à sua casa, pôs-se a ler o resto do dia com muita atenção. Depois releu, piedosamente, umas três ou quatro vezes. E, como esperava, sentiu-se grandemente confortado. Mas ele reteve principalmente três capítulos, que deixou impressos em seu coração, e tomou a decisão de coloca-los em prática e observá-los atentamente. O primeiro capítulo dizia o seguinte: “Se você busca a cura de sua alma, cuide para que sua consciência não tenha do que acusa-lo. Tudo o que ela lhe mandar fazer faça, e você obterá disto um grande benefício”. O segundo dizia: “Quem procura adquirir os carismas do Espírito Santo antes de praticar os mandamentos de Deus é semelhante ao escravo que, no mesmo instante em que é adquirido por seu senhor, reclama sua liberdade”. O terceiro dizia: “Quem reza apenas com a boca e ainda não adquiriu o conhecimento espiritual nem sabe orar com seu intelecto é semelhante ao cego que clamava: ‘Filho de Davi, tenha piedade de mim’. Mas quem adquiriu o conhecimento espiritual, que ora com seu intelecto e que abriu os olhos de sua alma, é semelhante a este mesmo cego depois que o Senhor o curou de sua cegueira: ele recebeu a luz em seus olhos e viu o Senhor, de maneira que já não diz ‘Filho de Davi’, mas ‘Filho de Deus’, e ele o adora como convém”.

Estes três capítulos agradaram muito ao jovem. Ele ficou maravilhado, e recebeu uma certeza plena em sua alma, e acreditou sem sombra de dúvida que ele obteria um grande benefício em obedecer à sua consciência, como dizia são Marcos, que ele desfrutaria dos carismas do Espírito Santo e de sua energia, se ele observasse os mandamentos de Deus, e que, enfim, pela graça do Espírito Santo, ele se tornaria digno de abrir os olhos da alma e de ver o Senhor com olhos de seu intelecto. Ele esperava contemplar esta indizível beleza do Senhor e foi ferido de tanto amor quanto desejava. Entretanto, ele não fez nada além, como me afirmou mais tarde sob juramento, do que rezar e se prosternar toda noite, antes de ir para cama dormir, conforme o que lhe havia sido recomendado pelo ancião.

Algum tempo depois, numa noite em que ele seguia a regra ditada pelo ancião e sempre atento à sua consciência, ela lhe ordenou que continuasse a rezar e a se prosternar, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”, por tanto tempo quanto pudesse. De bom coração ele obedeceu e logo se pôs, sem a menor hesitação, a fazer o que lhe ordenava sua consciência, persuadido de que era o próprio Deus quem lhe pedia que agisse assim. A partir daí, ele nunca mais se deitou para dormir sem primeiro fazer o que lhe ordenara sua consciência. E, como ele não cessava de escutá-la e ela não cessava de lhe pedir sempre mais, em pouco tempo sua oração da noite se alongou grandemente. De fato, durante o dia ele dirigia a casa de um patrício, ocupando-se de muitos negócios, ia cotidianamente ao Palácio, e quase não lhe restava tempo para orar. Mas à noite, antes de se recolher, ele orava como dissemos. Sem coração se enchia de calor e compunção, e as lágrimas escorriam de seus olhos. Ele multiplicava as prosternações e, gemendo e chorando, rezava também à Mãe de Deus. Parecia-lhe que o Senhor estava em pessoa diante dele, e ele se prosternava a seus pés e lhe pedia que tivesse compaixão de si, como o cego de que fala o Evangelho, e que desse luz aos olhos de sua alma. Assim, a prece que ele fazia alongava-se cada dia mais. Enquanto rezava, ele se mantinha reto como uma coluna, sem mexer os pés ou qualquer membro de seu corpo e sem voltar os olhos para olhar aqui ou ali, e permanecia imóvel, com grande temor e tremor.

Assim, numa noite em que ele orava e dizia em seu intelecto: “Deus, tenha compaixão de mim, pecador”, um esplendor divino brilhou subitamente sobre ele e encheu de luz o quarto. O jovem, extasiado, perdeu a consciência de si mesmo e até esqueceu que estava em uma casa. Pois de todos os lados ele não via senão luz e já não sabia se tinha os pés no chão ou se planava no ar, e em seu intelecto não havia a menor preocupação com seu corpo. Ele esqueceu o mundo inteiro. Ele era uma coisa só com a luz divina, e parecia-lhe ter ele próprio se tornado luz. Ele encheu-se de lágrimas e de uma alegria indizíveis. Então seu intelecto se elevou aos céus e lá ele viu uma luz ainda mais radiante e, junto a esta luz, apareceu-lhe o santo ancião que lhe havia dado o livro do abade Marcos e a regra.

Quando eu ouvi o relato do jovem, eu pensei que a intercessão do ancião foi de um grande auxílio para ele, e que deste modo a providência de Deus lhe tinha mostrado em que altura de virtude se encontrava este santo, permitindo a ele vê-lo junto a tamanha luz.

Passada a contemplação o jovem voltou a si, cheio de alegria e maravilhado. Ele chorou do fundo de seu coração e suas lágrimas foram acompanhadas de uma doçura extrema. Finalmente ele caiu sobre seu leito, e no mesmo instante o galo cantou. Pouco depois, as igrejas soaram as matinais, e ele se levantou para salmodiar conforme seu costume. Durante toda a noite ele não havia dormido, nem sequer cochilado um pouco.

Eis o que aconteceu ao jovem. Como ele próprio me afirmou, ele não fez nada além daquilo que vocês ouviram. Simplesmente – e foi por isto que lhe foi concedida esta contemplação – ele teve uma fé e uma esperança resolutas. E que ninguém diga que ele fez isto para tentar uma experiência, pois conforme me relatou isto jamais lhe passou pela cabeça. Ele não teve mais do que a resolução de sua fé. Ele apenas rejeitou de seu pensamento toda ideia relativa à carne e ao mundo, e tomou tanto cuidado em guardar sua consciência e de seguir bem aquilo que ela lhe dizia, que estava como que insensível a todas as coisas desta vida. Comer e beber lhe eram indiferentes, e muitas vezes ele permanecia em jejum.

Calixto e Inácio Xanthopouloi, Centúria Espiritual:

O que é a graça, e como podemos descobri-la. O que a perturba e o que a purifica.

Mas o que é a graça, como podemos descobri-la, o que a perturba, o que ao contrário a torna pura, isto tudo será revelado a você por aquele cuja alma e cuja língua são mais luminosas do que todo o ouro do mundo, quando ele diz: “Refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nesta mesma imagem[84]”. O que isto significa? É o que ele mostrou com maior clareza ainda ao suscitar a graça dos milagres. Entretanto, a quem possui os olhos da fé, mesmo hoje em dia não é difícil ver coisa semelhante. Pois “ao mesmo tempo em que somos batizados, a alma brilha mais do que o sol, purificada pelo Espírito. E não apenas nós vemos a glória de Deus, como recebemos dela algum esplendor. Da mesma forma, com efeito, que a prata pura brilha quando colocada sob a luz do sol – não só por sua natureza mas porque ela reflete a irradiação solar – também a alma purificada e mais luminosa que toda prata do mundo recebe um raio de glória do Espírito que dela se aproxima para cobri-la de glória[85]”, desta glória que é conforme ao Espírito do Senhor[86].

Percebe você que eu lhe mostro isto da maneira mais sensível, partindo do testemunho dos apóstolos? Lembre-se de Paulo, cujas vestes operavam milagres[87]. Lembre-se de Pedro, cuja simples sombra tinha o mesmo poder[88]. Eles não poderiam fazer isto se não carregassem em si a imagem do Rei, se a luz que saía deles não fosse a luz inacessível, a tal ponto que suas vestes e suas sombras operavam milagres. Pois as vestes do Rei aterrorizam até os ladrões.

Você também quer ver a imagem de Deus irradiar através do corpo? Foi dito: “Contemplando o rosto de Estevão, eles acreditavam ver a face de um anjo[89]”. Mas isto não é nada diante da glória que irradia dentro. Pois aquilo que Moisés tinha em seu rosto[90], revestia sua alma, e muito mais. A transfiguração de Moisés foi mais sensível, mas esta era incorpórea. Assim como os corpos luminosos espalham sua luminosidade sobre aqueles que estão próximos, transmitindo-lhes sua própria claridade, o mesmo acontece com os fiéis. É por isso que aqueles que provaram desta luz se distanciam da terra e se revestem das coisas do céu; mas, ora essa!, é bom estar aqui, e é amargo gemer. Pois nós desfrutamos de uma tal nobreza, e não sabemos o que dizer, tanto se perdem as coisas rapidamente, e por tanto medo que temos do que sentimos. Esta glória misteriosa e terrível, não permanece em nós mais do que um ou dois dias. Nós a extinguimos quando entramos no inverno desta vida, recusando seus raios sob a espessura das nuvens.

Também foi dito: “Os corpos daqueles que agradaram a Deus se revestirão de tamanha glória que será impossível aos olhos da carne enxerga-los. Mas Deus fez com que nos tenham sido dados, no Antigo e Novo Testamentos sinais e traços obscuros destes corpos. Lá o rosto de Moisés irradiava tanta glória que era inacessível aos olhos dos Israelitas. Mas no Novo Testamento o rosto de Cristo brilhava muito mais[91]”.

Ouviu as palavras do Espírito? Compreendeu o poder do mistério? Sabe você por quantas dores surge em nós a nova criação espiritual, perfeita no banho sagrado do batismo, e quais são os frutos, o cumprimento, as recompensas? Depende de nós fazer crescer ou diminuir esta graça sobrenatural, depende de nós manifestá-la ou torná-la obscura, tal como o faz aquilo que nos é peculiar: a tempestade de coisas desta vida, as trevas das paixões engendradas por estas coisas. Elas nos arrastam, de fato, como o inverno ou a torrente selvagem. Elas engolem a alma e não lhe permitem respirar nem contemplar a verdadeira beleza e a verdadeira beatitude, para as quais ela foi feita: as paixões a entenebrecem, ela é sacudida e destroçada sob o ruído e a fumaça dos prazeres, que a afogam nas suas águas. Mas o contrário destas coisas, ou seja, aquilo que nasce dos mandamentos deificantes, é dado aos que caminham não segundo a carne, mas segundo o Espírito. Pois foi dito: “Caminhem conforme o Espírito, e não cedam à concupiscência da carne[92]”. É aí que encontra seu bem e sua salvação aquele que, como a escada, leva consigo o cume e a extremidade dos degraus, o amor, que é Deus[93].

Gregório Palamas, 150 Capítulos Físicos, Teológicos, Éticos e Práticos:

146. O Senhor disse aos seus discípulos que alguns dos que estavam ali não conheceriam a morte antes de ver o Reino de Deus chegar com seu poder[94]. Seis dias depois, ele tomou a Pedro, Tiago e João e subiu ao Monte Tabor. Ele brilhou como o sol e suas vestes se tornaram brancas como a luz[95]. Mas os discípulos não puderam ver imediatamente, ou antes, incapazes de suportar tamanho esplendor, foram atirados à terra[96]. Porém, segundo a promessa do Salvador, eles haviam visto o Reino de Deus, esta luz divina e misteriosa que os grandes Gregório e Basílio chamaram de Divindade. De fato, o grande Basílio diz que essa luz é a beleza de Deus, contemplada apenas pelos santos no poder do Espírito divino. É por isso que ele diz também: “Pedro e o filho do trovão viram no topo da montanha sua beleza, mais luminosa que a radiação solar e assim se tornaram dignos de receber com seus olhos as premissas da parúsia[97]”. O teólogo Damasceno e João da língua de ouro chamaram esta luz de irradiação natural da Divindade. Um – João Damasceno – escrevendo que o Filho nascido do Pai fora de qualquer começo possui independente de qualquer começo a irradiação natural da Divindade, e que a glória da Divindade se tornou a glória do seu corpo[98]. O outro – João Crisóstomo – ao dizer que o Senhor, sobre a montanha, apareceu mais luminoso do que ele próprio, quando a Divindade mostrou sua irradiação luminosa.

147. Esta luz divina e misteriosa – a Divindade e o Reino de Deus, a beleza e o esplendor da natureza divina, a visão e o regozijo dos santos no século infinito, a irradiação e a glória natural da Divindade – dela dizem os heréticos[99] falastrões ser um fantasma e uma criatura. E eles proclamam, caluniando, que os que não blasfemam como eles essa luz divina e que consideram que Deus é incriado em sua essência e em sua energia, são diteístas. Com efeito, a partir do momento em que esta luz divina é incriada, Deus é, para nós, um na Divindade única. Como já mostramos, a essência incriada e a energia incriada – ou seja, a graça divina e sua irradiação – são próprias do Deus uno.

148. Daí que os hereges insensatos que ousaram dizer no Concílio e que tentaram demonstrar que essa luz divina que irradiava do Senhor no Tabor era um fantasma e uma criatura, que foram reprovados por muitos e não se retrataram, foram submetidos à excomunhão escrita a ao anátema. Pois eles blasfemaram contra a economia de Deus na carne, disseram tolamente que a Divindade de Deus é criada, e, ao menos no que lhes concerne, reduziram ao estado de Criaturas o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Pois a Divindade dos três é uma só e mesma Divindade. E, se eles dizem que veneram a Divindade incriada, devem reconhecer que existem duas Divindades de Deus, uma criada e outra incriada. Assim, eles rivalizam com todos os antigos desviados em matéria de erro, e os superam em impiedade.

149. Por outro lado, esforçando-se para dissimular o próprio erro, eles dizem que a luz que brilha sobre o Tabor é incriada, e que ela é a essência de Deus, e, com isto, eles a blasfemam ainda mais. Pois esta luz foi vista pelos Apóstolos: então, nossos adversários pensam que a essência de Deus é visível. Que eles escutem o que foi dito: a ninguém, não apenas dentre os homens, mas também entre os anjos, foi dado ver[100] ou revelar a essência e a natureza de Deus. Pois mesmo os Serafins de seis asas, ao aproximarem este derramamento de esplendor que é a irradiação de Deus no coração do mundo, cobrem seus rostos com as asas[101]. Portanto, como a supra-essencialidade de Deus jamais foi vista por ninguém, quando os heréticos dizem que esta luz é a supra-essencialidade, eles atestam que ela é absolutamente invisível, que não foi ela que os Apóstolos eleitos viram sobre a montanha, e que não falou a verdade aquele que disse: “Vimos sua glória, nós que com ele estávamos sobre a montanha santa”, e “permanecendo despertos, Pedro e os que com ele estavam viram sua glória[102]”. O outro discípulo disse que João, a quem Cristo amava especialmente, viu esta Divindade do Verbo revelada sobre a montanha. Portanto, eles viram, e verdadeiramente viram o esplendor divino incriado, esta luz do Deus invisível que permanece no segredo supra-essencial, mesmo que o tentem apagar os príncipes da heresia[103] e os que pensam como eles.

150. Quando interrogamos estes hereges, que afirmam que esta luz da Divindade é a essência, e que a essência de Deus é visível, eles são obrigados a dissimular a mentira, dizendo que esta luz é a essência, uma vez que é a essência de Deus que é visível nela, e que são as criaturas que veem a essência de Deus. Novamente estes infelizes fazem da luz da transfiguração do Senhor uma criatura. O que as criaturas veem não é a essência, mas a energia criadora de Deus. É, portanto, de modo ímpio, também aí, que eles dizem, em acordo com Eunomo, que a essência de Deus é vista pelas criaturas. É assim que eles colhem da colheita da impiedade. É preciso fugir deles e de sua companhia, como da hidra de muitas cabeças que corrompe a alma, como de um flagelo que, sob tantas e variadas formas, devasta a piedade.

Gregório Palamas, Tomo Hagiorítico:
Quem diz que a luz que brilhou ao redor dos discípulos no Tabor[104] era um fantasma e um símbolo, que apareceu e desapareceu, que ela não existe por si própria e que não ultrapassa todo entendimento, mas que se trata de uma banal projeção do pensamento, está em manifesta contradição com as opiniões dos santos. Estes, com efeito, em seus cantos e seus escritos, a chamam de misteriosa, incriada, eterna, intemporal, inacessível, imensa, infinita, sem limites, invisível aos anjos e aos homens, beleza original e imutável, glória de Deus, glória de Cristo, glória do Espírito, raio da Divindade e outros nomes semelhantes. Esta dito, com efeito, que “a carne foi glorificada pela encarnação de Cristo, e que a glória da Divindade se tornou a glória do corpo. Mas no corpo manifestado a glória não aparece para aqueles que não trazem em si aquilo que mesmo para os anjos é invisível. Cristo se transfigurou, não por assumir o que ele não era, nem por se transformar no que não era, mas manifestando aos discípulos aquilo que ele é, abrindo os seus olhos e tornando videntes a eles que eram cegos. Ao mesmo tempo em que permanecia no mesmo estado no qual antes lhes aparecera, ele então se manifestou e se revelou aos discípulos. Pois ele é em si a verdadeira luz[105], a beleza da glória. Ele brilhou como o sol[106]... A imagem não é justa, mas é impossível representar corretamente o incriado na criação[107]”.

Simeão o Novo Teólogo, Capítulos Práticos:
68. Quem possui dentro de si a luz do Santíssimo Espírito, é como se não conseguisse suportar vê-la; ele cai com o rosto por terra, chama e chora, no paroxismo do temor, a tal ponto transtornado por ver e sentir uma coisa que ultrapassa a natureza, a razão e o entendimento. Ele se torna como alguém cujas entranhas foram incendiadas por um fogo abrasador. Incapaz de suportar a queimação da chama[108] ele fica fora de si e não consegue se dominar e é inundado por lágrimas transbordantes que o refrescam. Ele atiça cada vez mais o fogo de seu desejo e cada vez mais lágrimas correm. Banhado nesta torrente ele próprio brilha com uma luz mais vívida. Depois de inteiramente inflamado ele se torna como que uma luz e então se cumpre o que foi dito: “Deus unido aos deuses e dos deuses conhecido”, ao menos na medida em que ele Deus já se encontra unido àqueles que foram abrasados e se revelou aos que o conheceram.

Simeão o Novo Teólogo, Capítulos Teológicos:
52. Para aqueles que, juntamente com Pedro, progrediram na fé, que, com Tiago, se elevaram na esperança, que com João se tornaram perfeitos no amor, o Senhor se transfigura depois de haver subido a alta montanha da teologia[109]. Pela manifestação e a marca da palavra pura, ele brilha diante deles como o sol. Pelos pensamentos da sabedoria misteriosa ele flameja como luz. O Verbo se revela neles, no meio da Lei e da Profecia, legislando e ensinando as coisas da Lei, e descobrindo os tesouros profundos e escondidos da sabedoria das coisas da Profecia: então ele prevê e prediz. O Espírito os cobre com sua sombra como uma nuvem luminosa, e desta nuvem a voz da teologia mística desce sobre eles, iniciando-os no mistério da Trindade em três Hipóstases, dizendo-lhes: “Eis aqui meu Bem-Amado, o termo da palavra de perfeição, em quem eu me comprazo[110]: tornem-se para mim filhos perfeitos no Espírito perfeito”.

Gregório o Sinaíta, Sentenças diversas:

43. Segundo a lei de Moisés, o Reino dos céus é semelhante a uma tenda construída por Deus e dividida em duas partes pelo véu  do século futuro. Na primeira metade da tenda, todos os que são sacerdotes da graça entrarão. Mas na segunda – a tenda espiritual – somente entrarão aqueles que, desde já, nas trevas da teologia, vivem à perfeição a liturgia hierárquica e trinitária, aqueles para quem Jesus, celebrando os mistérios, é o primeiro hierarca diante da Trindade. Eles entram na tenda que ele fundou e brilham visivelmente com seu próprio esplendor.

Macário o Egípcio, Sobre a elevação do intelecto:

62. Pela glória de Deus que brilhava em sua face e que nenhum homem conseguia fitar[111], o bem-aventurado Moisés ilustrou o modo como os corpos dos santos, na ressurreição dos justos, serão glorificados com esta glória que as almas fiéis dos santos são consideradas dignas de carregar desde hoje no homem interior. Pois até nós, como foi dito, mesmo com o rosto descoberto, mas no homem interior, refletimos a glória do Senhor, transfigurados na mesma imagem, de glória em glória[112]. Também está escrito que Moisés não procurou alimento nem bebida durante quarenta dias e quarenta noites[113]. Esta é uma obra impossível para a natureza humana, a menos que ela comungue com a natureza espiritual, a mesma que os santos já recebem do Espírito.



[1] Lucas 11: 23.
[2] Atos 10:35.
[3] Cf. Hebreus 6:1.
[4] João 3: 34-35.
[5] Lucas 19: 13.
[6] Efésios 5: 16.
[7] Antífona do Rito Bizantino, Tom 4.
[8] Apocalipse 3: 20.
[9] São Justino (Diálogos 47) reporta este “diálogo não escrito” de Cristo. No Islamismo, do mesmo modo, diz-se que o homem “será tomado no estado em que se encontrar” (Ibn Arabi, A sabedoria dos Profetas)
[10] Marcos 14: 38.
[11] I Tessalonicenses 4: 17.
[12] Marcos 13: 26.
[13] I Pedro 4: 5.
[14] Mateus 16: 27.
[15] Salmo 45: 10.
[16] I Tessalonicenses 5: 17.
[17] I Coríntios 14: 13.
[18] Mateus 7: 21.
[19] Jeremias 48: 10.
[20] João 14: 1; 6: 29.
[21] Salmo 17: 37-38.
[22] João 4: 13-14.
[23] Cf. Gênesis 3: 10.
[24] Referência não encontrada.
[25] Talvez uma das razões disto esteja na confusão que é feita atualmente entre o “concebível” e o “imaginável”. Nem todo o concebível pode ser colocado em imagens; ao homem moderno, habituado com um mundo de representações sensíveis, isto torna certas coisas “inconcebíveis”, mas apenas porque são “inimagináveis” (N.T.)
[26] Cf. Jó 27: 3.
[27] I Tessalonicenses 5: 23.
[28] Gênesis 2: 7.
[29] João 7: 39.
[30] Cf. João 8: 56.
[31] Cf. Romanos 2: 14.
[32] Salmo 84: 11.
[33] Gênesis 3: 15.
[34] João 1: 16.
[35] Cf. Atos 2: 1-4.
[36] Lucas 17: 21.
[37] Mateus 11: 12.
[38] Isaías 1: 18.
[39] Apocalipse 7: 91-14.
[40] João 11: 26.
[41] João 1: 29.
[42] João 1: 4.
[43] João 1: 5.
[44] Referência não encontrada.
[45] Salmo 118: 105.
[46] Salmo 118: 92.
[47] Marcos 9: 3.
[48] Provérbios 8: 9, Septuaginta.
[49] I Timóteo 2: 4.
[50] Mateus 15: 16.
[51] Lucas 24: 45.
[52] Atos 15: 28.
[53] João 14: 21.
[54] João 15: 19.
[55] João 16: 33.
[56] Filipenses 4: 7.
[57] Salmo 35: 8.
[58] João 16: 21-22.
[59] I Coríntios 2: 9.
[60] Salmo 83: 7.
[61] Efpesios 4: 13.
[62] Isaías 40: 31.
[63] Salmo 83: 8.
[64] Lucas 17: 21.
[65] Romanos 14: 17.
[66] Cf. I Coríntios 2: 4.
[67] Marcos 9: 1.
[68] Provérbios 23: 26; Mateus 6: 33.
[69] Mateus 6: 32, 33.
[70] Cf. II Coríntios 9: 8; I Timóteo 6: 6.
[71] Gálatas 6: 2.
[72] Lucas 10: 2.
[73] Cf. Mateus 25: 14-30.
[74] Cf. Jeremias 23: 23.
[75] Cf. Deuteronômio 30: 12-14; Romanos 10: 8-13.
[76] Salmo 144: 8.
[77] Efésios 6: 9.
[78] Cf. João 3: 35.
[79] Cf. Deuteronômio 32: 30.
[80] João 14:12, 16; 16: 24.
[81] Cf. Mateus 25: 40.
[82] Cf. Salmo 144: 19; 19: 4,5.
[83] Cf. Salmo 124: 3.
[84] II Coríntios 3: 18.
[85] João Crisósotomo, Homilia sobre II Coríntios, VII, 5.
[86] Cf. II Coríntios 3: 18.
[87] Cf. Atos 19: 12.
[88] Cf. Atos 5: 15.
[89] Atos 6: 15.
[90] Cf. Êxodo 34: 30.
[91] João Crisóstomo, A uma jovem viúva, citando Êxodo 34: 30 e Mateus 17: 2.
[92] Gálatas 5: 16.
[93] Cf. I João 4: 8.
[94] Marcos 9: 1.
[95] Mateus 17: 2.
[96] Mateus 17: 6.
[97] Homilia do Salmo 44.
[98] Homilia da Transfiguração.
[99] Os Acindinistas.
[100] Cf. Jeremias 23: 18.
[101] Cf. Isaías 6: 2.
[102] Cf. Lucas 9: 32.
[103] Barlaam e Acindino.
[104] Cf. Mateus 17: 5.
[105] João 1: 9.
[106] Cf. Mateus 17: 2.
[107] João Damasceno, Hom. In Transf. in Joie de la Transfiguration d’après les Pères d’Orient, SO 39, Bellefontaine 1985, pgs. 199-200.
[108] Cf. Jeremias 20: 9.
[109] Cf. Mateus 17: 1.
[110] Cf. Mateus 17: 5.
[111] Cf. Êxodo 34: 30-31.
[112] Cf. II Coríntios 3: 18.
[113] Cf. Êxodo 34: 28.