São Serafim de Sarov
Uma revelação maravilhosa para o mundo
A descoberta do manuscrito de Motovilov é quase um milagre. Por cerca de setenta anos, este valiosíssimo manuscrito permaneceu em completo esquecimento e correu o risco de ser destruído, pois foi atirado fora no meio do lixo num porão sob um galinheiro. Ele foi milagrosamente encontrado por S. A. Nilus o autor de 'Multum in Parvo'. Buscando por excertos da vida de São Serafim, Nilus procurava neste porão e já quase desistira quando um pequeno caderno de exercícios indistintamente escrito chamou-lhe a atenção. Eram as memórias de Motovilov, e foi assim que elas vieram a ser dadas ao mundo. O achado se deu em 1902, e o livrinho foi editado em 1903, juntamente com uma exposição de relíquias de São Serafim.
Diálogo de São Serafim de Sarov (1754-1833) com Nikolai Motovilov (1809-1879)
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Diálogo de São Serafim de Sarov (1754-1833) com Nikolai Motovilov (1809-1879)
Esta
revelação possui indubitavelmente uma significância universal. É verdade que
não há nela nada que seja essencialmente novo, porque a totalidade da revelação
foi dada aos Apóstolos a partir do próprio dia do Pentecostes. Mas nos dias de
hoje as pessoas esqueceram-se das verdades fundamentais do Cristianismo, e se
encontram imersas nas trevas do materialismo ou na rotina exterior e
performática dos “exercícios ascéticos”; é neste contexto que a revelação do Padre
Serafim se mostra verdadeiramente extraordinária, conforme ele próprio a
designa.
“Não é
apenas a você que é dado entender isto, disse o Padre Serafim ao final da
revelação, mas, através de você, ela deve alcançar o mundo todo”.
Como um
flash de luz esta conversação maravilhosa ilumina todo o mundo que estivera
imerso na morte e na letargia espiritual, menos de um século depois da guerra
contra a Cristandade na Rússia e num momento em que a fé Cristã atinge seu
ponto mais baixo no Ocidente.
É neste
momento que o Santo de Deus surge diante de nós de um modo que em nada fica a
dever aos grandes profetas através dos quais falou o Espírito Santo.
Reportamos
aqui a conversação, palavra por palavra, sem adicionar palavra alguma de nossa
própria interpretação.
Conversação com São Serafim de
Sarov (N. A. Motovilov)
Era uma
terça-feira de tempo sombrio. Havia uma camada de neve com vinte centímetros de
espessura lá fora e os flocos de neve miúdos caíam do céu, quando o Padre
Serafim começou sua conversação comigo, num campo próximo ao seu eremitério,
junto ao rio Sarovka e ao pé da colina que se elevava a partir da margem. Eu me
sentei sobre um toco de árvore que ele havia cortado, e ele acocorou-se diante
de mim.
“O
Senhor me revelou, disse o ancião, que em sua infância você mostrou um grande
desejo de abraçar nossa vida cristã, e que buscou respostas em muitas pessoas
espirituais a este respeito”.
De fato,
desde os meus doze anos este pensamento ocupou minha mente. E, de fato, eu me
aproximei de muitos clérigos buscando respostas a este respeito; mas suas
palavras nunca me satisfizeram. O ancião não sabia disto.
“Mas
ninguém, continuou o Padre Serafim, lhe deu uma resposta precisa. Eles lhe
disseram: ‘Vá à igreja, ore a Deus, sega seus mandamentos, seja bom – estes são
os objetivos de uma vida cristã’. Alguns devem ter ficado indignados por você
ter uma curiosidade profana, e lhe disseram: ‘Não procure coisas que estão além
de você’. Mas eles não falaram com propriedade. E agora o pobre Serafim vai lhe
explicar no que consiste realmente este objetivo da vida cristã”.
“Orar,
jejuar, fazer vigílias e outras atividades cristãs, por melhor que sejam em si,
não constituem a finalidade da vida cristã, embora possam servir como meios
indispensáveis para alcançar este fim. O verdadeiro objetivo de nossa vida
cristã consiste na obtenção do Espírito Santo de Deus. Assim sendo, os jejuns,
as vigílias, a oração, a esmola e todas as boas ações feitas em nome de Cristo,
não passam de meios para se adquirir o Espírito Santo de Deus. Mas lembre-se,
filho meu, somente as ações feitas em nome de Cristo poderão nos trazer os
frutos do Espírito Santo. Tudo o que não é feito em nome de Cristo, por melhor
que seja, não nos trará as recompensas na vida futura nem a graça de Deus nesta
vida. É por isso que nosso Senhor Jesus Cristo disse: ‘Quem não recolhe comigo,
dispersa[1]’.
Não que uma boa ação possa ser outra coisa senão uma colheita, e mesmo que não
seja feita em nome de Cristo ela permanece boa. A Escritura diz: ‘Pelo
contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, seja qual for a nação a
que pertença[2]’”.
“Como
vemos pela narrativa sagrada, o homem que trabalha corretamente é tão agradável
a Deus que o Anjo do Senhor apareceu no momento da oração a Cornelius, o
centurião direito e temente a Deus, e disse: ‘Envie Simão o curtidor a Joppa;
lá ele encontrará a Pedro que lhe dirá palavras de vida eterna, de modo que ele
e toda sua casa serão salvos’. Assim usou o Senhor de seus divinos meios para
dar àquele homem, em retribuição ao seu trabalho, uma oportunidade de não
perder a recompensa na vida futura. Mas para tanto devemos começar agora com a
correta fé em nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, que veio a este mundo
para salvar os pecadores e que, por meio daquilo que adquirimos da graça do
Espírito Santo, leva o Reino de Deus aos nossos corações e abre para nós o
caminho para que recebamos as bênçãos da vida futura. Mas a aceitação por parte
de Deus das boas ações que não são realizadas em nome de Cristo se resume a
isto: o Criador provê os meios para que a vida continue[3]. É
por isso que o Senhor disse aos judeus: “Se vocês fossem cegos, não teriam
nenhum pecado. Mas como vocês dizem: ‘Nós vemos’, o pecado de vocês permanece”.
Se um homem como Cornelius desfruta do
favor de Deus por suas ações, ainda que não tenham sido feitas em nome de
Cristo, mas crê em Seu Filho, estas ações serão imputadas a ele como se
tivessem sido feitas em nome de Cristo apenas por sua fé nele. Mas no caso
contrário o homem não tem o direito de
reclamar que sua boa ação tenha sido inútil. Todas as ações são inúteis, exceto
quando feitas em nome de Cristo, porque o bem feito em seu nome não apenas
merecem a coroa do direito no reino futuro, mas ainda cumulam com a graça do
Espírito Santo nesta vida. Como foi dito: ‘Deus concede o Espírito sem medida.
O Pai ama o Filho, e entregou tudo em sua mão’[4]”.
“É isto,
Bem-Amado. É na aquisição deste Espírito de Deus que consiste o verdadeiro
objetivo de nossa vida cristã, enquanto que a oração, a vigília, o jejum, a
esmola e outras boas ações feitas em nome de Cristo são apenas meios para se
adquirir o Espírito de Deus”.
“O que
você quer dizer com aquisição? Não entendo o significado disto”, disse eu ao
Padre Serafim.
“Adquirir
e obter são a mesma coisa, respondeu ele. Você entende, naturalmente, o
significado de adquirir dinheiro. Pois adquirir o Espírito de Deus é exatamente
a mesma coisa. Você entende perfeitamente o sentido mundano de adquirir,
Bem-Amado. O objetivo ordinário da vida mundana é adquirir ou obter dinheiro, e
adicionalmente receber honrarias, distinções e outras recompensas pelos
serviços prestados, por exemplo, aos governos. A aquisição do Espírito de Deus
é como a obtenção de capital, mas é eterna e plena de graças, e é obtida por
meios bastante similares, que são quase os mesmos usados para se obter capital
monetário, social e temporal”.
“Deus o
Verbo, o Homem Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, compara nossa vida com um
mercado, e o trabalho de nossa vida na terra ele chama de comércio, e nos diz:
‘Negociem até que eu volte[5],
aproveitando o tempo presente, porque os dias são maus[6]’.
Isto quer dizer que devemos ocupar o máximo de nosso tempo na obtenção de
bênçãos celestiais por meio dos bens terrestres. Os bens terrestres são as boas
ações feitas em nome de Cristo, que nos conferem a graça do Santíssimo
Espírito”.
“Na
parábola das virgens sábias e tolas, quando faltou azeite para as virgens
tolas, foi dito a elas: ‘Vão e busquem no mercado’. Mas quando elas retornaram
do mercado, a porta da câmara nupcial já estava fechada e elas não puderam
entrar. Algumas pessoas dizem que a falta de azeite nas lâmpadas das virgens
tolas significa a falta de boas ações em suas vidas, mas esta interpretação não
é correta. Por que faltariam as boas ações, uma vez que elas eram virgens,
ainda que tolas? A virgindade é uma virtude suprema, um estado angélico, que
sozinho supera todas as demais boas ações”.
“Penso
que o que lhes faltava era a graça do Espírito Santíssimo de Deus. Estas
virgens haviam praticado as virtudes, mas em sua ignorância espiritual
imaginaram que a vida cristã consistia simplesmente em fazer boas ações. Ao
fazer o bem, pensavam estar fazendo as obras de Deus, mas não se preocuparam em
saber se aquilo lhes traria a graça do Espírito de Deus. Este modo de vida
baseado apenas em fazer o bem sem verificar se este bem traz a graça do
Espírito de Deus, é mencionado nos livros da Patrística: ‘Existe outro modo de
fazer o bem, que funciona no princípio, mas que termina no fundo dos
infernos’”.
“Antônio
o Grande dizia em suas cartas aos monges, a respeito destas virgens: ‘Muitos
monges e virgens não têm ideia das diferentes formas de vontade que agem no
homem, nem sabem que somos influenciados por três vontades: a primeira é a
vontade de Deus, perfeita e salvadora; a segunda é nossa própria vontade humana
que, quando não é destrutiva, tampouco é salvadora; e a terceira é a vontade do
demônio, que é totalmente destruidora’. Esta terceira forma de vontade ensina o
homem tanto a não realizar boas obras – ou a fazê-las apenas por vaidade –
quanto a realizá-las em nome da virtude, mas não em nome de Cristo. A segunda
forma, nossa própria vontade, nos ensina a tudo fazer para satisfazer nossas
paixões, ou nos ensina, como a outra, a
fazer as coisas em nome do bem sem nos preocuparmos com a graça que poderia ser
adquirida com isto. Mas a primeira, a vontade salvadora de Deus, consiste em
fazer o bem apenas para adquirir o Espírito Santo, como um tesouro eterno e
inexaurível cujo valor sequer conseguimos avaliar. É esta aquisição do Espírito Santo que está
representada no azeite que faltou às virgens tolas. Elas são chamadas de tolas
porque esqueceram o necessário fruto da virtude, a graça do Espírito Santo, sem
a qual ninguém pode ser salvo, pois ‘toda alma é estimulada pelo Espírito Santo
e exaltada pela pureza e misticamente iluminada pela Unidade Trinitária’[7].”
“Este é
o azeite das lâmpadas das virgens sábias que queima e brilha luminosa e
longamente, e são estas virgens com suas lâmpadas acesas que podem penetrar na
Câmara Nupcial para encontrar o Noivo, que chegará à meia noite. Mas as virgens
tolas, embora tendo corrido ao mercado para comprar azeite quando viram que
suas lâmpadas se apagavam, não conseguiram retornar a tempo, e encontraram a
porta fechada. O mercado é nossa vida; a porta da Câmara Nupcial que se fechou
e barrou a entrada às virgens tolas é a morte humana; as virgens, tolas ou
sábias, são as almas cristãs; o azeite é a graça do Espírito Santo que pode ser
adquirida por meio das boas obras e que transforma as almas de um estado em
outro – ou seja, da corrupção para a incorruptibilidade, da morte espiritual
para a vida espiritual, das trevas para a luz, do estábulo de nosso ser (onde
as paixões permanecem amarradas como animais estúpidos e bestas selvagens) para
o Templo da Divindade, na Câmara luminosa da eterna alegria em Jesus Cristo
nosso Senhor, o Criador e Redentor, o eterno Noivo de nossas almas.”
“Quão
grande é a compaixão de Deus por nossa miséria, vale dizer, nossa desatenção
por seus cuidados para conosco, quando Ele próprio diz: ‘Vejam, eu estou à
porta e bato[8]’,
significando, com ‘porta’, o curso de nossa vida ainda não fechada pela morte! Oh,
como eu gostaria, Bem-Amado, que em sua vida você pudesse estar sempre no
Espírito de Deus! ‘Do modo como eu o encontrar, assim você será julgado[9]’,
disse o Senhor.”
“Desgraça
será a nossa se Ele nos encontrar sobrecarregados com os cuidados e tristezas
desta vida! Pois quem poderá suportar sua ira, quem poderá resistir à fúria de
seu semblante? Por isso foi dito: ‘Vigiai e orai para não cairdes em tentação[10]’,
para que não sejamos despojados do Espírito de Deus, para que vigiemos e oremos
para que Ele nos dê a sua graça.”
“Pois
bem, se toda boa obra realizada em nome de Cristo nos traz a graça do Espírito
Santo, a oração nos é ainda mais benéfica, porque está sempre à mão, como um
instrumento para adquirir a graça do Espírito. Por exemplo, você gostaria de ir
à igreja, mas não há nenhuma aberta; você gostaria de ajudar um mendigo, mas
não encontra nenhum em seu caminho, ou você não tem nada para dar; você
gostaria de preservar sua virgindade, mas não tem forças para tanto devido ao
seu temperamento, ou por causa da
violência dos engodos do inimigo que se aproveita de sua fraqueza humana para
superar sua resistência; você gostaria de fazer alguma outra boa ação em nome
de Cristo, mas lhe faltam forças ou lhe falta a oportunidade. Estas coisas
certamente não acontecem com a oração. A oração é sempre possível para qualquer
um, rico ou pobre, nobre ou humilde, forte ou fraco, saudável ou doente,
direito ou pecador.”
“Você
pode avaliar quão grande é o poder da oração mesmo para um pecador, quando
oferecida de todo coração, pelo exemplo a seguir, extraído da Santa Tradição.
Uma mãe desesperada chorava a morte de seu filho único, e uma prostituta a quem
ela encontrara, ainda manchada por seus pecados, compadeceu-se de sua dor e
clamou ao Senhor: ‘Não em nome desta pecadora que sou eu, mas em nome das
lágrimas de uma mãe que chora seu filho e que crê firmemente em Seu amor e em
Seu Poder, ó Cristo nosso Deus, devolva a vida ao seu filho, Senhor!’. E o
Senhor devolveu a vida à criança.”
“Veja,
Bem-Amado! Grande é o poder da oração, e ela traz, mais do que todas as outras
coisas, o Espírito de Deus, além de poder ser praticada com mais facilidade por
qualquer um. Seremos abençoados se o Senhor Deus nos achar vigilantes e cheios
dos bens de seu Santo Espírito. Então poderemos estar certos de que seremos
‘arrebatados e levados às nuvens ao encontro do Senhor nos céus[11],
que virá com grande poder e glória[12]
para julgar os vivos e os mortos[13] e
para retribuir a cada homem de acordo com suas obras[14]’.”
“Ó
Bem-Amado, digne-se a pensar que é uma grande alegria falar com o pobre
Serafim, e acredite que nem ele está despojado da graça do Senhor. O que
diríamos então do próprio Senhor, a infalível fonte de toda espécie de bênçãos,
tantos celestiais quanto terrestres? De fato, na oração nos é concedido
conversar com ele, o Deus dispensador da vida e de todas as graças e nosso
Salvador. Mas mesmo aqui devemos orar a Deus apenas para que o Espírito Santo
desça sobre nós na medida de Sua divina graça conhecida por Ele. E quando ele
se dignar a nos visitar, devemos parar de pedir a ele, ‘vem e habita em nós,
purifica-nos de toda mancha e salva nossas almas, Tu que és bom’, porque na
verdade ele já veio até nós que nele acreditamos e que realmente chamamos por
seu Santo Nome, que podemos recebê-lo com humildade e amor, a ele o Consolador,
na morada de nossas almas, com famintos e sedentos por Sua vinda.”
“Explicarei
isto a você, Bem-Amado, por meio de um exemplo. Imagine que você me convidou
para visitá-lo, que eu aceitei o convite e vim para conversar consigo. Mas você
continua a me convidar, dizendo: ‘Entre, por favor. Entre!’. Então eu
serei obrigado a pensar: ‘Qual é o
problema com ele? Estará ele louco?’. O mesmo acontece com nosso Senhor e o
Espirito Santo. Por isso foi dito: ‘Rendam-se e conheçam que eu sou Deus; eu
devo ser exaltado entre os gentios, eu devo ser exaltado por toda a terra[15]’.
Ou seja, ‘Eu virei e continuarei a vir para todos os que acreditam em mim e que
me chamam, e conversarei com cada qual como conversei com Adão no Paraíso, com
Abrahão e Jacó e com outros servidores meus, com Moisés, Jó e outros como
eles’.”
“Muitos
explicam que esta paz se refere apenas às matérias terrestres; em outras
palavras, que durante sua conversa em oração com Deus você deve estar “em paz”
apenas em relação aos negócios do mundo. Mas eu lhe direi em nome de Deus que
não apenas é preciso estar morto para estes durante a oração, mas que também,
quando pelo onipotente poder da fé e da oração nosso Senhor Deus o Espírito
Santo concede visitar-nos, e vem a nós na plenitude de sua indizível bondade,
devemos morrer também para a oração”.
“A alma
fala e conversa durante a oração, mas no momento da descida do Espírito Santo
devemos nos manter em completo silêncio, de modo a escutar nítida e
inteligivelmente todas as palavras de vida eterna que ele se dignar a nos
comunicar. É preciso uma sobriedade total da alma e do espírito, e uma
castidade e pureza do corpo. As mesmas exigências foram feitas aos israelitas
no Monte Horeb, quando eles foram proibidos inclusive de tocar suas esposas
durante três dias antes da aparição de Deus no Monte Sinai. Pois nosso Deus é
um fogo que consome tudo que não estiver limpo, e ninguém que estiver
corrompido em corpo ou espírito poderá entrar em comunhão com ele”.
“Sim,
Padre, mas e com relação às demais boas obras feitas em nome de Cristo, para
adquirir a graça do Espírito Santo? Você só me falou da oração!”.
“Adquira
a graça do Espírito Santo também praticando todas as outras virtudes em nome de
Cristo. Negocie espiritualmente com elas; comercie com as que lhe trouxerem
mais benefícios. Acumule o capital da superabundância da graça de Deus,
deposite-o no banco do Deus eterno que lhe devolverá dividendos imateriais, não
a quatro ou seis por cento, mas a cem por cento para cada centavo espiritual, e
até infinitamente mais do que isto. Por exemplo, se a oração e a vigilância lhe
trazem mais graças de Deus, ore e vigie; se for o jejum, jejue; se a esmola,
distribua o quanto puder. Pese cada virtude exercida em nome de Deus, à sua
maneira”.
“Agora
vou lhe falar a respeito do pobre Serafim. Eu vim de uma família de
comerciantes em Kursk. Quando ainda não estava no mosteiro, costumávamos
comerciar com mercadorias que nos traziam bons lucros. Aja assim, meu filho. E,
assim como no comércio o principal não é simplesmente negociar, mas obter o
maior lucro possível, nos negócios da vida cristã a questão não é somente orar
ou realizar qualquer outra boa obra. Pois o Apóstolo disse: ‘Orai sem cessar[16]’,
e, como você deve lembrar, ele acrescentou: ‘eu prefiro dizer cinco palavras
com minha consciência do que dez mil palavras apenas com a língua[17]’.
E o Senhor disse: ‘nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, será salvo, mas sim
aquele que cumpre a vontade de meu Pai[18]’,
ou seja, aquele que realiza a obra de Deus, e que, mais do que isto, a cumpre
com reverência, pois ‘maldito é o que faz a obra do Senhor com negligência[19]’.
E a obra de Deus consiste em crer em Deus e naquele que foi por ele enviado,
Jesus Cristo[20].
SE entendermos os mandamentos de Cristo e os Apóstolos corretamente, nossos
negócios enquanto cristãos consistirão não apenas em aumentar o número de
nossas ações – que são apenas os meios para alcançar os objetivos de nossa vida
cristã – mas em extrair delas o máximo proveito, ou seja, obter as mais
abundantes dádivas do Espírito Santo”.
“Como eu
gostaria, Bem-Amado, que você próprio pudesse adquirir esta fonte inesgotável
de graça divina, e que pudesse sempre perguntar a si mesmo: estarei eu com o
Espírito de Deus ou não? E, caso você esteja no Espírito, bendito seja Deus!,
você não terá nada a temer. Você estará pronto para se apresentar diante do
terrível julgamento de Cristo imediatamente. Porque, ‘como Eu o encontrar,
assim o julgarei’. Mas, se não estivermos no Espírito, devemos descobrir porquê
e por qual razão nosso Senhor e Deus o Espírito Santo preferiu nos abandonar; e
devemos buscá-lo novamente, e procurá-lo até encontrá-lo, e trazê-lo a nós
através de Sua bondade. E devemos atacar os inimigos que tentam nos desviar
dele até que desapareçam, como disse o Profeta Davi: ‘ Persegui e alcancei os meus inimigos, e não
voltei sem os ter consumido; eu os derrotei, e não puderam levantar-se; eles
caíram debaixo dos meus pés[21]’.”
“É isto,
filho meu. É assim que você deve negociar espiritualmente com a virtude.
Distribua o presente das graças do Espírito àqueles que necessitam, assim como
uma vela que queima com o fogo terrestre ilumina a si própria e acende outras
velas para que iluminem outros lugares, sem diminuir sua própria luz. Se isto acontece
com o fogo terrestre, o que diremos do fogo da graça do Santíssimo Espírito de
Deus? Porque as riquezas terrestres diminuem com a distribuição, mas as
riquezas celestiais de Deus, quanto mais são distribuídas, mais aumentam nas
mãos daqueles que as distribuem. Por isso o Senhor disse à samaritana: ‘quem
beber desta água voltará a ter sede; mas quem quer que beba da água que eu lhe
der jamais voltará a ter sede; e esta água que eu lhe darei se tornará nele uma
fonte de água que jorrará até a vida eterna[22]’.”
“Padre,
disse eu, você fala todo o tempo na aquisição da graça do Espírito Santo como
sendo o objetivo da vida cristã. Mas como e onde poderei ver isto? As boas
ações são visíveis, mas pode o Espírito Santo ser visto? Como poderei eu saber
se ele está comigo ou não?”
“Presentemente,
replicou o ancião, devido à nossa quase universal frieza em relação à nossa
santa fé em nosso Senhor Jesus Cristo, e à desatenção para com o trabalho de
sua Divina Providência para conosco e para com a comunicação do homem com Deus,
nos distanciamos tanto que podemos dizer que praticamente abandonamos a
verdadeira vida cristã. Os testemunhos da Sagrada Escritura nos parecem
estranhos, quando, por exemplo, pela boca de Moisés o Espírito Santo diz: ‘e
Adão viu que o Senhor passeava pelo Paraíso[23]’,
ou quando lemos as palavras do Apóstolo Paulo: ‘Chegamos a Acaia, e os Espírito
de Deus não estava conosco; voltamos para Macedônia, e o Espírito de Deus
estava conosco[24]’.
Mais de uma vez, em outras passagens da Escritura, o aparecimento de Deus ao
homem é mencionado”.
“É por
isso que algumas pessoas dizem: ‘Estas passagens são incompreensíveis. Será
possível que as pessoas consigam ver a Deus tão abertamente?’. Mas não há nada
de incompreensível nisso. A dificuldade em compreender é devido ao fato de que
abandonamos a simplicidade do conhecimento original do Cristianismo. Sob o
pretexto da educação, conseguimos chegar a tamanha escuridão que, em nossa
ignorância, aquilo que era claríssimo aos nossos ancestrais nos parece quase
inconcebível[25].
Mesmo numa conversa banal, a ideia de uma aparição de Deus não parecia estranha
aos nossos antepassados. Assim é que quando os amigos de Jó o repreenderam por
blasfemar Deus, ele lhes respondeu: ‘Como é possível ser assim, se eu sinto o
Espírito de Deus em minhas narinas?[26]’.
Ou seja, como posso ser blasfemo quando o Espírito de Deus habita em mim? Se eu
tivesse blasfemado, o Espírito Santo teria me abandonado, mas eu sinto seu
sopro em minhas narinas”.
“Do
mesmo modo se diz que Abrahão e Jacó viram a Deus e conversaram com ele, e que
Jacó chegou mesmo a lutar com ele. Moisés e todo o povo que estava com ele
viram a Deus quando ele recebeu as tábuas da Lei no monte Sinai. Uma coluna de
fumaça e uma coluna de fogo, ou, em outras palavras, a graça evidente do
Espírito Sant, serviram de guias ao povo de Deus no deserto. As pessoas viram a
Deus e viram a graça de seu Espírito Santo, não adormecidas ou em sonhos, ou
excitadas por uma imaginação desordenada, mas verdadeira e abertamente”.
“Nós nos
tornamos tão desatentos para o trabalho de nossa salvação que interpretamos
erradamente muitas outras passagens da Sagrada Escritura, apenas porque não
buscamos mais a graça de Deus e, no orgulho de nossas mentes, não permitimos
que ela habite em nossas almas. É por isso que perdemos a verdadeira iluminação
do Senhor, aquela que ele envia aos corações dos homens que têm, de todo
coração, fome e sede da Justiça de Deus”.
“Muitos explicam que quando a Bíblia diz:
’Deus assoprou o hálito da vida no rosto de Adão , que fora por ele criado do
barro do chão’, isto significaria que até então não haveria em Adão nem alma
humana nem espírito, mas apenas a carne criada do barro. Mas esta interpretação
está errada, porque o Senhor Deus criou Adão do barro do chão com uma constituição que
nosso paizinho e santo Apóstolo Paulo descreve: ‘Possa seu espírito, sua alma e
seu corpo serem preservados sem mácula até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo[27]’.
E estas três partes de nossa natureza foram criadas do barro do chão, e Adão
não foi criado morto, mas como um ser vivo ativo como todas as demais criaturas
animadas de Deus que viviam na terra. A questão é que se o Senhor Deus não
tivesse soprado em seu rosto o sopro da vida (ou seja, a graça de nosso Senhor
Deus o Espírito Santo que procede do Pai e perdura no Filho e que foi enviado
ao mundo por causa do Filho), Adão teria permanecido sem ter em si o Espírito
Santo que o elevou à dignidade divina. Por mais perfeito que ele tivesse sido
criado, e por superior que fosse em relação às outras criaturas de Deus, como o
coroamento da criação terrestre, ele seria como todas as outras criaturas que,
embora tendo um corpo, uma alma e um espírito de acordo com sua espécie, não
possuem o Espírito Santo em si. Foi no instante em que o Senhor Deus assoprou
no rosto de Adão o sopro da vida que, segundo Moisés, ‘Adão se tornou uma alma
vivente[28]’,
vale dizer, completamente e em todos os sentidos semelhante a Deus, e, como
Ele, para sempre imortal. Adão era a tal ponto imune à ação dos elementos que a
água não poderia afogá-lo, o fogo não poderia queimá-lo, a terra não poderia
sepultá-lo em seus abismos, nem poderia o ar feri-lo de qualquer maneira que
fosse. Tudo estava submetido a ele como amado por Deus que era, como rei e
senhor de toda a criação, e tudo olhava para ele, como o perfeito coroamento de
todas as criaturas de Deus. Adão foi criado tão sábio por este sopro de vida
que recebeu no rosto dos lábios criadores de Deus, o Criador e Regente de todas
as coisas, que jamais houve na terra homem mais sábio ou inteligente do que
ele, e dificilmente haverá algum dia. Quando o Senhor lhe ordenou que desse
nomes a todas as criaturas, ele deu a cada uma um nome que expressava
completamente suas qualidades, poderes e propriedades que lhes haviam sido
dadas por Deus em sua criação”.
“Devido
a este presente da graça sobrenatural de Deus que infundiu nele o sopro da
vida, Adão podia ver e ouvir o Senhor caminhar pelo Paraíso, e compreender suas
palavras, assim como a conversa com os santos Anjos e a linguagem de todos os
animais, pássaros e répteis e tudo o mais que está para nós oculto, criaturas
decaídas e pecadoras que somos, mas que era claríssimo a Adão antes da queda.
Também a Eva Deus concedeu a mesma sabedoria, força e poder ilimitado, e todas
as demais qualidades boas e santas. E ele a criou, não do barro do chão, mas da
costela de Adão no Jardim das Delícias, no Paraíso que ele plantara no meio da
terra”.
“Para
que eles pudessem sempre manter em si as propriedades imortais, divinas e
perfeitas deste sopro de vida, Deus plantou no meio do jardim a árvore da vida
e dotou seus frutos com toda a essência e a plenitude de seu divino sopro. Se
não tivessem pecado, tanto Adão e Eva como toda a sua posteridade poderiam
sempre comer do fruto da árvore da vida e teriam mantido para sempre a força
impulsionadora da graça divina”.
“Eles
poderiam ter inclusive mantido por toda eternidade os plenos poderes de seus
corpos, almas e espíritos num estado de imortalidade e juventude permanente, e
teriam permanecido neste estado abençoado e imortal para sempre. Atualmente, é
claro, e difícil mesmo imaginar tamanha graça”.
“Mas
quando, por haver provado do fruto da árvores do conhecimento do bem e do mal –
que era prematuro e contrário ao mandamento de Deus – eles aprenderam a diferença
entre o bem e o mal e ficaram sujeitos a todas as aflições que se seguiram à
transgressão do mandamento de Deus, eles perderam esta graça sem preço do
Espírito de Deus, de tal modo que, até a vinda ao mundo do Homem Deus Jesus
Cristo, o Espírito de Deus não estava no mundo porque Jesus ainda não havia
sido glorificado[29]”.
“Entretanto,
isto não significa que o Espírito de Deus não estivesse no mundo para todos,
mas que sua presença não era tão aparente como em Adão ou para os cristãos
Ortodoxos. Ele se manifestava apenas exteriormente; mas os sinais de sua
presença no mundo era conhecidos da humanidade. Assim é que, por exemplo,
muitos mistérios relacionados à futura salvação da raça humana foram revelados
a Adão e Eva depois da queda. E para Caim, apesar de sua impiedade e de sua
transgressão, era fácil escutar a voz que manteve com ele uma conversação suave
e divina, embora condenatória. Noé conversou com Deus. Abrahão viu Deus e seu
dia e ficou alegre[30].
A graça do Espírito Santo agindo externamente também está refletida em todos os
profetas e santos de Israel do Antigo Testamento. Posteriormente os hebreus
estabeleceram escolas proféticas nas quais os filhos dos profetas deveriam
discernir os sinais da manifestação de Deus ou dos Anjos, bem como distinguir
as operações do Espírito Sant dos fenômenos comuns e naturais de nossa vida
terrestre desprovida de graça. Simeão, que carregou a Deus em seus braços, os
avós de Cristo, Joaquim e Ana, e incontáveis outros servos de Deus receberam
abertamente inúmeras aparições divinas, vozes e revelações que se justificaram
por meio de eventos milagrosos. A presença do Espírito de Deus também agiu em
povos pagãos que não conheciam o Deus verdadeiro, embora sem a mesma força como
agiu entre o povo de Deus, porque mesmo entre eles Deus encontrou para si um
povo escolhido. É o que aconteceu, por exemplo, com as profetizas virgens
chamadas Sibilas, que dedicaram sua virgindade a um deus desconhecido, que era
o mesmo Deus o Criador do universo, o todo-poderoso Regente do mundo, tal como
podia ser concebido pelos pagãos. Embora os filósofos pagãos procurassem nas
trevas da ignorância de Deus, também sua busca pela verdade foi amada por Deus,
e por conta disto eles receberam sua parte do Espírito de Deus, pois foi dito
que nações que não conheciam a Deus praticavam por natureza os mandamentos da
lei e deste modo agradaram a Deus[31].
Ao Senhor tanto agradava a verdade que ele próprio disse por intermédio do
Espírito Santo: ‘A verdade brotou da terra, e a justiça olhou desde os céus[32]’.”
“Assim
você pode ver, Bem-Amado, tanto no santo povo hebreu, a quem Deus amou, como
nos pagãos que não O conheciam, que o conhecimento de Deus foi preservado – e
isto, meu filho, é uma compreensão clara e racional sobre o modo pelo qual
nosso Senhor e Deus o Espírito Santo age no homem, e por meio de quais sentidos
interiores e exteriores a pessoa pode estar certa de que se trata realmente da
ação de nosso Senhor e Deus o Espírito Santo e não de uma ilusão do inimigo. É
assim que foi desde a queda de Adão até a descida na carne de nosso Senhor
Jesus Cristo no mundo”.
“Sem
esta realização perceptível das ações do Espírito Santo que sempre esteve
preservado na natureza humana, o homem não teria condições de conhecer com
certeza que o fruto da semente da mulher, que foi prometido a Adão e Eva, havia
chegado ao mundo para esmagar a cabeça da serpente[33].”
“Por fim
o Espírito Santo prognosticou a são Simeão, que tinha então sessenta e cinco
anos, o mistério da concepção virginal e do nascimento de Cristo da Puríssima e
sempre Virgem Maria. Posteriormente, tendo vivido pela graça do Espírito
Santíssimo de Deus por trezentos anos, no tricentésimo sexagésimo quinto ano de
sua vida ele pode dizer abertamente no Templo do Senhor que havia conhecido com
certeza, por uma dádiva do Espírito Santo, que aquele era o verdadeiro Cristo,
o Salvador do mundo, cuja concepção sobrenatural e nascimento a partir do
Espírito Santo havia sido prognosticado a ele por um Anjo trezentos anos
antes”.
“Teve
também Santa Ana, profetiza, filha de Fanuel, que em sua viuvez serviu ao
Senhor Deus no Templo por oito anos, conhecida como uma viúva respeitável, uma
casta serva de Deus, pelos dons especiais da graça que recebeu. Também ela
anunciou que Jesus era de fato o Messias que havia sido anunciado ao mundo, o
verdadeiro Cristo, Deus e Homem, o Rei de Israel, aquele que viria a salvar
Adão e a Humanidade”.
“E
quando o Senhor Jesus Cristo condescendeu em cumprir a totalidade da obra de
salvação, após sua Ressurreição, ele soprou sobre os Apóstolos, restaurando o
sopro de vida perdido por Adão, e concedeu a eles a mesma graça do Santíssimo
Espírito de Deus de que desfrutara Adão. Mas isto não foi tudo. Ele também
disse a eles que era chegada a hora em que ele deveria ir para o Pai, pois se não
o fizesse, o Espírito de Deus não poderia vir a mundo. Mas que quando ele,
Cristo, fosse para o Pai, ele o enviaria ao mundo, e ele, o Consolador, guiaria
a todos os que seguissem seus ensinamentos em toda verdade e que ele os
lembraria de tudo o que Cristo lhes dissera enquanto ainda estava no mundo. E o
que foi prometido então foi graça sobre graça[34]”.
“Então,
no dia de Pentecostes, ele enviou solenemente até eles, num vento tempestuoso,
o Espírito Santo em forma de línguas de fogo que iluminaram cada um, penetraram
em cada um e os encheram com uma força ardente de graça divina que desceu como
um orvalho e agiu com plena alegria nas almas que partilharam de seu poder e de
suas operações[35].
E esta mesma infusão de fogo que foi a graça dada pelo Espírito Santo a todos,
a fé em Cristo pelo sacramento do Santo Batismo, é selada pelo sacramento da
Crisma nas partes principais de nossos corpos, conforme determina a Santa
Igreja, a eterna mantenedora desta graça. Conforme é dito: ‘O selo da dádiva do
Espírito Santo’. E onde colocamos nossos selos, Bem-Amado, senão nos vasos que
contém nossos tesouros mais preciosos? E o que pode ser mais sublime e mais
precioso do que as dádivas do Espírito Santo que foram enviadas para nós a
partir do Sacramento do Batismo? Esta graça batismal é tão imensa e tão
indispensável, tão vital para o homem, que mesmo um herético não é desprovido
dela até sua morte, ou seja, até o final do período apontado desde cima pela
Providência de Deus como sendo a duração do homem sobre a terra, para que se
veja o que ele é capaz de adquirir (durante este período que lhe é dado por
Deus) por meio do poder da graça a ele concedido desde o alto”.
“E se
pudéssemos nunca pecar depois do Batismo, permaneceríamos para sempre Santos de
Deus, santos, inculpáveis e livres de toda impureza de corpo ou espírito. Mas o
problema é que crescemos em estatura, mas não em graça e conhecimento de Deus,
como nosso Senhor Jesus Cristo cresceu; ao contrário, gradualmente nos tornamos
mais e mais depravados e perdemos a graça do Espírito Santíssimo de Deus,
tornando-nos pecadores em diversos níveis, e os mais pecadores de todos. Mas se um homem é movido e comovido pela
sabedoria de Deus que procura nossa salvação e abarca todas as coisas, se ele
se decide por sua causa devotar suas primeiras horas a Deus e a esperar para
encontrar a salvação eterna, então, em obediência ao seu comando, ele deve se
apressar em oferecer um verdadeiro arrependimento por todos os seus pecados e
praticar as virtudes opostas aos pecados cometidos. Então, por meio das
virtudes praticadas em nome de Cristo ele irá adquirir o Espírito Santo que age
em nós e estabelece em nós o Reino de Deus. Não foi em vão que o Verbo de Deus
disse: ‘O Reino de Deus está dentro de
vocês[36]’,
e também que ‘ele sofrerá violência, e os violentos o tomarão à força[37]’.
Isto se refere às pessoas que, apesar dos laços do pecado que as estorvam e
que, seja pela violência, seja por incitá-las a novos pecados, as impedem de
alcançar a Deus, nosso Salvador, com perfeito arrependimento se obrigam a
romper estes laços, desprezando a força de suas ligações com o pecado: estas
pessoas ao final se apresentarão diante da face de Deus mais brancas do que a
neve, por Sua graça. ‘Venham, disse o Senhor: pois ainda que seus pecados sejam
púrpura, eu os tornarei brancos como a neve[38]’.”
“Estas
pessoas foram vistas pelo santo Profeta João o Divino como ‘vestidas com roupas
brancas’ (ou seja, com as roupas da justificação) e ‘palmas nas mãos’ (como
sinal de vitória), e elas cantavam a Deus esta maravilhosa canção: ‘Aleluia’. E
ninguém conseguia imitar a beleza de sua canção. Deles disse o Anjo de Deus:
‘Eram eles os que haviam chegado de uma grande tribulação e que haviam lavado
suas roupas e as tornado brancas pelo sangue do Cordeiro[39]’.
Elas foram lavadas por seus sofrimentos e tornadas brancas pela Comunhão dos
imaculados e vivificantes Mistérios do Corpo e Sangue do mais puro e imaculado
Cordeiro – Cristo – que foi sacrificado antes de todos os séculos por sua
própria vontade pela salvação do mundo, e que continua sendo sacrificado e
dividido até agora, sem nunca se exaurir. Através dos Santos Mistérios nos foi
concedida nossa eterna e infalível salvação como um viático da vida eterna,
como uma resposta aceitável ao Seu temível julgamento e como um substitutivo
preciso acima de nossa compreensão para este fruto da árvore da vida, o qual
Lúcifer, o inimigo da Humanidade caído dos céus gostaria de despojar a espécie
humana. Pois apesar de o inimigo ter seduzido a Eva e feito com que Adão caísse
junto com ela, o Senhor não apenas concedeu a eles um Redentor por meio do
fruto da semente da mulher, Redentor este que esmagou a morte com a morte, mas
ainda concedeu a todos nós por meio da mulher, a Sempre-Virgem Maria Mãe de
Deus, que esmagou a cabeça da serpente em si e para toda a raça humana, a
infalível mediadora perante seu Filho e nosso Deus, a invencível e insistente
intercessora até para os pecadores mais desesperados. É por isso que a Mãe de
Deus é chamada de “Flagelo dos Demônios”, pois não é possível a um demônio
destruir um homem que possui seu socorro na Mãe de Deus”.
“E eu
devo explicar principalmente, Bem-Amado, a diferença entre as operações do
Espírito Santo que habita misticamente nos c orações dos que acreditam em nosso
Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo e as operações do tenebroso pecado que,
pela sugestão e instigação do demônio, age predatoriamente em nós. O Espírito
de Deus nos lembra das palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e sempre age
triunfantemente junto com Ele, alegrando nosso coração e guiando nossos passos
no caminho da paz, enquanto que o espírito falso e diabólico trabalha na
direção oposta, e suas ações são sempre no sentido da rebelião, obstinadamente
e cheia das paixões da carne, das paixões dos olhos e do orgulho da vida”.
“’E todo
aquele que viver e crer em Mim não morrerá jamais[40]’.
Aquele que possuir a graça do Espírito Santo em recompensa por sua reta fé em
Cristo, mesmo, que levando em conta a fragilidade humana, sua alma deverá
morrer por um pecado ou outro, mesmo assim ele não morrerá para sempre, mas
será desperto pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo que ‘retira o pecado do
mundo[41]’
e distribui graciosamente graça sobre graça. Desta graça, que se manifestou ao
mundo todo e à nossa raça pelo Homem Deus, o Evangelho diz: ‘Nele estava a
vida, e a vida era a luz dos homens[42]’;
e mais: ‘E a luz brilhou nas trevas; e as trevas não a reconheceram[43]’.
Isto significa que a graça do Espírito Santo que é concedida no Batismo em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, apesar do homem cair em pecado, apesar da
escuridão que envolve nossas almas, não obstante brilha no coração com a luz
divina (que existe desde tempos imemoriais) dos inestimáveis méritos de Cristo.
No evento da impenitência d pecador, esta luz de Cristo clama ao Pai: ‘Abba,
Pai! Não se zangue com esta impenitência até o fim (de sua vida)[44]’.
E então, com a conversão do pecador a caminho do arrependimento, apagou-se todo
traço dos pecados passados e o pecador foi vestido com trajes de incorrupção
tecidos com a graça do Espírito Santo, equivalente à sua aquisição, conforme o
objetivo da vida cristã de que eu venho falando desde o princípio, Bem-Amado”.
“Vou lhe
dizer algo ainda, para que você possa entender de modo mais claro o que
significa a graça de Deus, como reconhecê-la e como se manifesta sua ação,
particularmente naqueles que são iluminados por ela. A graça do Espírito Santo
é a graça que ilumina o homem. Toda a Santa Escritura fala disto. Nosso Pai
Davi disse: ‘Sua Palavra é lâmpada para os meus pés, e a luz do meu caminho[45]’,
e: ‘se Sua lei não fosse minha meditação, eu pereceria em humilhação[46]’.
Em outras palavras, a graça do Espírito Santo que está expressa na Lei pelas
palavras dos mandamentos do Senhor são minha lâmpada e minha luz. E se a graça
deste Santo Espírito (que eu tentei adquirir zelosa e cuidadosamente meditando
sobre a justiça de seus julgamentos sete vezes ao dia) não me iluminasse em
meio às trevas das responsabilidades que são inseparáveis das altas obrigações
de minha realeza, onde poderia eu obter uma faísca de luz para iluminar o
caminho de minha vida que foi entenebrecido pelas vontades distorcidas de meus
inimigos?”.
“E de
fato o Senhor frequentemente demonstrou diante de muitas testemunhas o modo
pelo qual a graça do Espírito Santo age nas pessoas que Ele santificou e
iluminou por meio de sua grande inspiração. Lembre-se de Moisés, depois de sua
conversa com Deus no Monte Sinai. Ele brilhava com uma luz tão extraordinária
que as pessoas não conseguiam olhá-lo; ele precisou colocar um véu para poder
aparecer em público. Lembre-se da Transfiguração do Senhor sobre o Monte Tabor.
Uma luz fortíssima o envolveu, ‘e suas vestes começaram a brilhar, mais brancas
do que a neve[47]’,
e seus discípulos caíram com o rosto ao chão de medo. Mas quando Moisés e Elias
apareceram para Ele nesta luz, uma nuvem os envolveu para esconder a irradiação
da luz da divina graça que teria cegado os olhos dos discípulos. Assim é que a
graça do Espírito Santíssimo de Deus aparece como uma luz inefável para todos a
quem Deus revela sua ação”.
“Mas
como, perguntei ao Padre Serafim, posso eu saber se estou na graça do Espírito
Santo?”.
“É muito
simples, Bem-Amado, ele replicou. É por isso que o Senhor disse: ‘Todas as
coisas são simples para aqueles que buscam o conhecimento[48]’.
O problema é que não buscamos este conhecimento divino que não fumaceira,
porque ele não é deste mundo. Este conhecimento que está cheio do amor a Deus e
ao próximo conduz todos os homens à salvação. Deste conhecimento disse o Senhor
que Deus ‘deseja que todos os homens sejam salvos, e que alcancem o
conhecimento da verdade[49]’.
E da falta deste conhecimento ele falou aos Apóstolos: ‘Vocês ainda não
entenderam?[50]’.
Em relação a este entendimento, foi dito a respeito dos Apóstolos no Evangelho:
‘Então se abriu seu entendimento[51]’,
e os Apóstolos perceberam quando o Espírito de Deus habitava neles e quando
não; e, cheios de entendimento, eles viram a presença do Espírito Santo neles e
declararam positivamente que seu trabalho era santo e que agradava ao Senhor
Deus. Isto explica o porquê terem escrito em suas Epístolas: ‘Pareceu bom ao
Espírito Santo e a nós[52]’.
Apenas a partir deste fundamento puderam eles oferecer suas Epístolas como uma
verdade imutável para benefício de todos os fiéis. Deste modo os santos
Apóstolos estavam conscientemente seguros da presença neles do Espírito de
Deus. E você pode ver, Bem-Amado, como isto é simples!”.
“Não
obstante, repliquei, eu não compreendo como posso eu estar certo de que estou
no Espírito de Deus. Como posso, por mim mesmo, discernir sua verdadeira
manifestação em mim?”.
O Padre
Serafim respondeu: “Eu já lhe disse, Bem-Amado, que é muito simples e já
relatei em detalhes como as pessoas chegaram a estar no Espírito de Deus e o
modo pelo qual podemos reconhecer sua presença em nós. O que mais você quer?”.
“Eu
quero entender isto direito”, disse eu.
Então o
Padre Serafim segurou-me com firmeza pelo ombro e disse: “Nós dois estamos
agora no Espírito de Deus, meu filho. Por que você não olha para mim?”.
Eu lhe
respondi: “Eu não posso olhar, Padre, porque seus olhos estão brilhando como
relâmpagos. Sua face se tornou mais brilhante do que o sol, e meus olhos doem”.
O Padre
Serafim disse: “Não fique alarmado, Bem-Amado! Agora você próprio se tornou tão
brilhante quanto eu. Você está na plenitude do Espírito de Deus também; de
outro modo, você não poderia me ver como eu sou”.
Então,
inclinando sua cabeça, ele segredou ao meu ouvido: “Agradeça ao Senhor Deus por
sua inexprimível misericórdia por nós! Você viu que eu sequer fiz o sinal da
cruz; apenas, em meu coração, eu orei mentalmente ao Senhor Deus e disse interiormente:
‘Senhor, conceda a ele que veja claramente com seus olhos carnais a descida de
Seu Espírito, que Você concede aos seus servos quando deseja aparecer na luz de
Sua glória magnificente’. E você vê, filho meu, o Senhor imediatamente satisfez
o humilde pedido do pobre Serafim. Como não agradecer a Ele por sua indizível
dádiva a nós? Mesmo para os maiores eremitas, meu filho, não é sempre que o
Senhor mostra sua misericórdia desta maneira. Esta graça de Deus, como uma mãe
amorosa, lhe foi concedida para confortar seu coração contrito pela intercessão
da própria Mãe de Deus. Mas por que, filho meu, você não olha nos meus olhos?
Apenas olhe, e não tenha medo! O Senhor está conosco!”.
Depois
destas palavras eu mirei seu rosto e sobreveio-me uma enorme veneração. Imagine
no centro do sol, na luz ofuscante dos raios do meio dia, o rosto de um homem
falando com você. Você vê os movimentos de seus lábios e as mudanças de
expressão de seus olhos, você ouve sua voz, você sente que alguém segura seus
ombros; mas você não vê estas mãos, você sequer enxerga a si mesmo ou sua
figura, mas apenas uma luz cegante espalhando-se ao redor por muitas dezenas de
metros e iluminando com seu halo a neve que cobre o chão da floresta e os
flocos que caem sobre tudo e sobre aquele Ancião. Você pode imaginar o estado
em que eu fiquei!
“Como
você se sente agora?”, perguntou-me o Padre Serafim.
“Extraordinariamente
bem”, disse eu.
“Como,
exatamente, você se sente?”.
Eu
respondi: “Eu sinto uma calma e paz em minha alma, que nenhuma palavra é capaz
de expressar”.
“Isto,
Bem-Amado, disse o Padre Serafim, é a paz da qual disse o Senhor aos seus
discípulos: ‘Eu lhes dou a minha paz; não a paz que o mundo dá, mas a que Eu
dou[53]’.
‘Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que é dele; mas porque eu os
escolhi fora do mundo, o mundo odiará vocês[54]’.
‘Mas não desanimem: eu venci o mundo[55]’.
E para aquelas pessoas a quem o mundo odeia, mas que foram escolhidas pelo
Senhor, o Senhor concede esta paz que você sente agora, a paz que, sendo as
palavras do Apóstolo, ‘ultrapassa todo entendimento[56]’.
O Apóstolo a descreve assim, porque é impossível expressar em palavras o
bem-estar espiritual que se produz naqueles em cujos corações o Senhor Deus
infundiu esta paz. Cristo o Salvador chama a isto a paz que ele concede por sua
própria generosidade e que não é deste mundo, porque nenhuma prosperidade terrestre
e temporária pode dar esta paz ao coração humano; ela é concedida desde o alto
pelo próprio Senhor Deus, e por isso é chamada de paz de Deus. O que mais você
sente?” ,perguntou-me o Padre Serafim.
“Uma
doçura extraordinária”, respondi.
Ele
prosseguiu: “Esta é a doçura da qual se fala na Sagrada Escritura: ‘Eles
ficarão inebriados com a gordura de minha casa; me eu os farei beber da
torrente de minhas delícias[57]’.
E agora esta doçura inunda nossos corações e corre por nossas veias com
inexprimível delícia. Nossos corações se confundem nesta doçura e ambos estamos
cheios de uma alegria que a língua não é capaz de contar. O que mais você
sente?”.
“Uma
extraordinária alegria no coração”.
E o
Padre Serafim continuou: “Quando o Espírito de Deus desce até o homem e o cobre
com a plenitude de sua inspiração, a alma humana transborda com inexprimível
alegria, porque o Espírito de Deus enche de alegria tudo o que toca. É desta
alegria que fala o Evangelho: ‘Quando a mulher está para dar à luz, sente
angústia, porque chegou a sua hora. Mas quando a criança nasce, ela nem se
lembra mais da aflição, porque fica alegre por ter posto um homem no mundo. Agora,
vocês também estão angustiados. Mas, quando vocês tornarem a me ver, vocês
ficarão alegres, e essa alegria ninguém tirará de vocês[58]’.
E por mais reconfortante que seja a alegria que você sente em seu coração, ela
não é nada em comparação com aquela que o próprio Senhor mencionou pela boca de
seu Apóstolo, descrevendo-a como aquela ‘que os olhos não viram, os ouvidos não
ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para
aqueles que o amam[59]’.
Amostras desta alegria nos são dadas, e se elas enchem nossas almas com tamanha
doçura, bem-estar e felicidade, o que diremos da alegria que foi preparada no
céu para aqueles que choraram aqui na terra? E você, filho meu, chorou bastante
nesta sua vida na terra; e veja com que alegria o Senhor o consola ainda nesta
vida! Agora cabe a nós, meu filho, acrescentar trabalho sobre trabalho, de modo
a irmos ‘de força em força[60]’,
e ‘alcançarmos a medida da estatura da plenitude de Cristo[61]’,
de modo a que possamos nos encher com as palavras do Senhor: ‘Aqueles que
esperaram pelo Senhor renovaram suas forças; eles cresceram asas como águias;
eles correrão e não serão fracos[62]’;
‘eles irão de força em força, e o Deus dos deuses aparecerá para eles em Sião[63]’,
na Sião da realização e das visões celestiais. Somente então sua alegria atual
(que nos visita pouco e brevemente) surgirá em sua plenitude, e ninguém a
tomará de nós, porque estaremos cheios e transbordando de delícias celestiais
inexplicáveis. O que mais você sente, Bem-Amado?”.
Eu
respondi: “Um calor extraordinário”.
“Como
você pode se sentir aquecido, meu filho? Veja, estamos sentados na floresta. É
inverno, e a neve cobre nossos pés. Estamos cobertos com uma polegada de neve,
e os flocos continuam caindo. Que calor pode haver aqui?”.
Eu
respondi: “É como se eu estivesse numa sauna e a água tivesse acabado de ser
vertida sobre as pedras quentes, e o vapor tivesse subido neste momento”.
“E o
perfume, ele me perguntou, é o mesmo da sauna?”.
"Não,
repliquei, não existe nada na terra com esta fragrância. Quando minha mãe
estava viva e eu ia a bailes e festas, ela me perfumava com essências caras que
ela adquiria nas melhores lojas de Kazan. Mas nenhuma exalava uma fragrância
como esta”.
Então o
Padre Serafim, sorrindo prazerosamente, disse: “Eu sei bem disto, tanto quanto
você sabe, filho meu, mas pergunto para ver até que ponto você sente as mesmas
coisas. É absolutamente verdade, Bem-Amado! A mais suave fragrância terrestre
não se compara àquela que você sente agora, pois estamos envolvidos na
fragrância do Espírito Santo de Deus. O que na terra poderia ser igual?
Observe, Bem-Amado, que você disse que ao nosso redor está cálido como numa
sauna; e veja, nem sobre você, nem sobre mim, a neve derrete, nem sob nossos
pés: porque o calor não está no ar, mas em nós. É sobre este calor que o
Espírito Santo nos ordena clamar ao Senhor: ‘Aqueça-me no calor de seu Espírito
Santo!’. Por meio dele os eremitas de ambos os sexos foram mantidos aquecidos e
não temeram o frio do inverno, cobertos, como se vestissem peles, por um manto
de graças tecido pelo Espírito Santo. E, de fato, é assim que acontece, porque
a graça de Deus habita em nós, em nosso coração, conforme disse o Senhor: ‘O
Reino de Deus está dentro de vocês[64]’.
Como ‘Reino de Deus’ devemos entender a graça do Espírito Santo. Este Reino de
Deus está agira dentro de nós, e a graça do Espírito Santo brilha sobre nós e
nos aquece também por fora. Ela enche o ar ao redor com fragrâncias odoríficas,
acaricia nossos sentidos com delícias celestiais e enche nossos corações de uma
alegria indizível. Nosso estado atual é aquele a respeito do qual o Apóstolo
disse: ‘O Reino de Deus não são comidas e bebidas, mas a justiça, a paz e a
alegria do Espírito Santo[65]’.
Nossa fé não consiste em palavras plausíveis de uma sabedoria terrena, mas na
demonstração do Espírito e de sua força[66].
É neste estado que nos encontramos agora. É dele que o Senhor disse: ‘Existem
alguns que aqui estão e que não verão a morte antes que o reino de Deus venha
com seu poder[67]’.
Veja, meu filho, com que indizível alegria o Senhor nos presenteou! É isto que
significa estar na plenitude do Espírito Santo, sobre a qual são Macário do
Egito escreveu: ‘Eu próprio estava na plenitude do Espírito Santo’. Com esta
plenitude de seu Espírito Santo o Senhor encheu até o transbordamento estas
pobres criaturas. Portanto, você não precisa mais perguntar, Bem-Amado, como as
pessoas sabiam estar na graça do Espírito Santo. Você se lembrará sempre desta
manifestação da inefável misericórdia de Deus que nos visitou?”.
“Eu não
sei, Padre, disse eu, se o Senhor me concederá lembrar esta misericórdia de
Deus tão vívida e claramente como a sinto agora”.
“Eu
penso, respondeu-me o Padre Serafim, que o Senhor o ajudará a reter isto na
memória para sempre, ou Sua bondade jamais se inclinaria instantaneamente assim
à minha humilde oração, atendendo ao pedido do pobre Serafim; ademais, porque
não foi dado apenas a você compreender isto, mas, através de você, o mundo
todo, de modo a que você confirme a obra de Deus e seja assim útil a muitos
outros. O fato de que eu seja um monge e você um leigo está absolutamente fora
da questão. O que Deus nos pede é a fé verdadeira Nele e em seu único Filho. Em
troca a graça do Espírito Santo é abundantemente concedida desde o alto. O
Senhor procura um coração cheio de transbordante amor por Deus e o próximo; é
neste trono que ele deseja sentar-se e no qual Ele aparece na plenitude de Sua
glória celestial. ‘Filho, dê-me seu coração’, diz Ele, ‘e o resto lhe será dado
em acréscimo[68]’,
pois é no coração humano que o Reino de Deus pode ser contido. O Senhor ordenou
aos seus discípulos: ‘Busquem primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e o resto
lhes será dado em acréscimo; porque o Pai celeste sabe que vocês precisam destas
coisas[69]’.
O Senhor não nos repreende por possuirmos bens terrestres, porque ele próprio
disse a respeito das condições de nossa vida terrestre, que precisamos de todas
essas coisas; vale dizer, todas as coisas que tornam a vida humana mais
aprazível e pacífica, e que fazem com que nosso caminho para nossa morada
celestial mais leve e fácil. É por isso que o santo Apóstolo Paulo disse que em
sua opinião nada havia na terra de melhor do que a piedade e a suficiência[70].
E a Santa Igreja ora para que estas coisas nos sejam concedidas pelo Senhor
Deus; e embora as perturbações, os infortúnios e as necessidades sejam
inseparáveis de nossa vida na terra, o Senhor Deus nunca quis nem quer que não
tenhamos senão aflições e adversidades. Assim é que ele nos ordena por meio dos
Apóstolos a ‘suportarmos a carga uns dos outros para cumprir a plenitude do
mandamento de Cristo[71]’.
O Senhor Jesus deu pessoalmente o mandamento que amemos uns aos outros, de modo
que, consolando-nos mutuamente com amor, possamos iluminar o caminho doloroso e
estreito de nossa jornada até nossa pátria celeste. Não desceu Ele do céu com o
propósito de tomar sobre Si nossa pobreza e nos tornar ricos de Sua bondade e
indizível generosidade? Ele não veio para ser servido pelos homens, mas para servi-los
e dar Sua vida pela salvação de muitos. O mesmo faz você, Bem-Amado, e, tendo
visto a misericórdia que Deus manifestou para com você, conte a todos os que
desejam a salvação. ‘A colheita é grande, disse o Senhor, e os operários são
poucos[72]’.
O Senhor Deus nos conduziu em nossa obra e nos presenteou com a dádiva de sua
graça de modo que, colhendo as espigas da salvação de nossos irmãos e levando
quantos pudermos para o Reino de Deus, possamos apresentar a Ele o fruto –
multiplicado por trinta, por sessenta ou por cem. Estejamos vigilantes, filho
meu, para que não sejamos condenados juntamente com o servo mau e preguiçoso
que enterrou sua moeda, mas para que tentemos imitar aqueles servos bons e
fiéis do Senhor que entregaram a seu Mestre quatro moedas ao invés de duas, e
dez ao invés de cinco[73]."
“Sobre a
misericórdia do Senhor não existe sombra de dúvida. Você viu por si mesmo ,
Bem-Amado, como as palavras do Senhor ditas pelo Profeta se cumpriram em nós:
‘Eu não sou um Deus distante, mas um Deus próximo[74]’,
e ‘a salvação está em minha boca[75]’.
Eu sequer tive tempo de fazer o sinal da cruz, mas apenas pedi em meu coração
que o Senhor concedesse a você ver Sua bondade em toda sua plenitude, e Ele
quis satisfazer e realizar meu desejo. Eu não estou me vangloriando ao falar
assim, nem digo isto para mostrar minha importância e levar você a ter inveja,
ou para fazê-lo pensar que eu sou um monge e você um mero leigo. Não,
Bem-Amado! ‘O Senhor está perto de todos os que o chamam em verdade[76]’,
e ‘não existe parcialidade Nele[77]’.
Porque o Pai ama o Filho e colocou tudo em Suas mãos[78].
Ah, se pudéssemos apenas amar o Pai, com um amor filial! O Senhor ouve
igualmente o monge e o simples leigo, desde que sejam fiéis ortodoxos, e que
amem a Deus do fundo de suas almas, e que tenham fé Nele, ainda que do tamanho
de um grão de mostarda; e ambos serão capazes de mover montanhas. ‘Um poderá
perseguir mil e por em fuga vinte mil[79]’.
O próprio Senhor disse: ‘Tudo é possível para aquele que crê’. E o santo
Apóstolo Paulo proclama em alta voz: ‘Tudo posso em Cristo que me fortalece’. E
nosso Senhor Jesus Cristo fala ainda mais maravilhosamente ainda sobre os que
acreditam Nele: ‘Aquele que crê em mim, não apenas minhas obras, mas outras maiores fará, porque
eu vou para o meu Pai. E eu rezarei por vocês para que sua alegria seja
completa. Até agora vocês não pediram nada em meu nome. Mas agira peçam...[80]’.”
“Então,
filho meu, o que quer que você peça ao Senhor Deus você irá receber, se for
para a glória de Deus ou pelo bem de seu próximo, porque o que fazemos pelo bem
do próximo é feito por Sua glória. Por Ele disse: “Aquilo que fizerem ao menor
deste, a Mim o terão feito[81]’.
Assim, não tenha dúvidas de que o Senhor Deus atenderá os seus pedidos, se eles
forem para a glória de Deus ou para a edificação e benefício dos seus irmãos.
E, mesmo que algo seja necessário para sua necessidade, uso ou benefício,
também o Senhor rápida e graciosamente o enviará a você, desde que seja de
extrema urgência e necessidade. Porque o Senhor ama aos que o amam. O Senhor é
bom para todos os homens; ele dá abundantemente para os que clamam por seu
nome, e sua bondade está em todas as Suas obras. Ele atenderá os desejos dos
que o temem, ouvirá suas preces e cumprirá com seus projetos. O Senhor atenderá
a todos os pedidos[82].
Mas cuidado, Bem-Amado, para não pedir a Deus algo que não seja de urgente
necessidade. O Senhor não lhe recusará isto, até por causa de sua fé Ortodoxa
em Cristo Salvador, pois o Senhor não apoiará com sua justiça aos pecadores[83],
e ele atenderá rapidamente ao desejo de Seu servo Davi; mas Ele cobrará dele
por ter sido perturbado sem necessidade, e por ter sido incomodado com algo que
poderia ter sido arrumado com facilidade”.
“Assim
sendo, Bem-Amado, eu lhe contei e lhe dei uma demonstração prática de tudo o
que o Senhor e a Mãe de Deus permitiram que eu dissesse e mostrasse a você por
meu intermédio, pobre Serafim. Agora, vá em paz. O Senhor e a Mãe de Deus
estejam sempre com você, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém, Vá em
paz”.
E
durante todo o tempo, desde que o rosto do Padre Serafim começara a brilhar, a
iluminação continuou; e tudo o que ele me disse, desde o começo de sua
narrativa, ele falou sem se mover de sua posição. O halo inefável de luz que
emanava dele, eu o vi com meus olhos. E estou pronto a comprová-lo com meu
juramento.
***
Transcrevemos abaixo alguns
trechos que confirmam a exposição de São Serafim, extraídos da própria
Filocalia. Em todos eles, a manifestação da graça é descrita como uma luz
brilhante, que chega a cegar aqueles que a contemplam, corroborando a descrição
que faz Motovilov de sua experiência com o Padre Serafim.
Simeão o Novo teólogo, Discurso sobre a fé e o ensinamento:
Um homem chamado Jorge, na flor da idade – por
volta de uns vinte anos – morava em Constantinopla, em nosso tempo. Ele era
muito bonito, e seus movimentos eram tão estudados, que muitos levantavam
suspeitas a seu respeito, principalmente aqueles que tinham por hábito não ver
senão o exterior das pessoas e que, sem conhecer os segredos de cada um,
condenam e julgam sem consideração aos demais. Este jovem soube de um monge que
morava em um mosteiro de Constantinopla. Tendo revelado a ele todos os segredos
de seu coração, ele acrescentou que desejava a salvação de sua alma e que tinha
um grande desejo de abandonar o mundo e se tornar monge. O venerável ancião
louvou o seu desejo, deu-lhe os conselhos necessários e confiou a ele o livro
de são Marcos o Asceta, para que nele pudesse ler o que o santo dizia da lei
espiritual. O jovem recebeu o livro com tanto amor e piedade como se viesse do
próprio Deus, com a confiança e a esperança de extrair grandes benefícios dali.
Voltando à sua casa, pôs-se a ler o resto do dia com muita atenção. Depois
releu, piedosamente, umas três ou quatro vezes. E, como esperava, sentiu-se
grandemente confortado. Mas ele reteve principalmente três capítulos, que
deixou impressos em seu coração, e tomou a decisão de coloca-los em prática e
observá-los atentamente. O primeiro capítulo dizia o seguinte: “Se você busca a
cura de sua alma, cuide para que sua consciência não tenha do que acusa-lo.
Tudo o que ela lhe mandar fazer faça, e você obterá disto um grande benefício”.
O segundo dizia: “Quem procura adquirir os carismas do Espírito Santo antes de
praticar os mandamentos de Deus é semelhante ao escravo que, no mesmo instante
em que é adquirido por seu senhor, reclama sua liberdade”. O terceiro dizia:
“Quem reza apenas com a boca e ainda não adquiriu o conhecimento espiritual nem
sabe orar com seu intelecto é semelhante ao cego que clamava: ‘Filho de Davi,
tenha piedade de mim’. Mas quem adquiriu o conhecimento espiritual, que ora com
seu intelecto e que abriu os olhos de sua alma, é semelhante a este mesmo cego
depois que o Senhor o curou de sua cegueira: ele recebeu a luz em seus olhos e
viu o Senhor, de maneira que já não diz ‘Filho de Davi’, mas ‘Filho de Deus’, e
ele o adora como convém”.
Estes três capítulos agradaram muito ao jovem.
Ele ficou maravilhado, e recebeu uma certeza plena em sua alma, e acreditou sem
sombra de dúvida que ele obteria um grande benefício em obedecer à sua
consciência, como dizia são Marcos, que ele desfrutaria dos carismas do
Espírito Santo e de sua energia, se ele observasse os mandamentos de Deus, e
que, enfim, pela graça do Espírito Santo, ele se tornaria digno de abrir os
olhos da alma e de ver o Senhor com olhos de seu intelecto. Ele esperava
contemplar esta indizível beleza do Senhor e foi ferido de tanto amor quanto
desejava. Entretanto, ele não fez nada além, como me afirmou mais tarde sob
juramento, do que rezar e se prosternar toda noite, antes de ir para cama
dormir, conforme o que lhe havia sido recomendado pelo ancião.
Algum tempo depois, numa noite em que ele seguia
a regra ditada pelo ancião e sempre atento à sua consciência, ela lhe ordenou
que continuasse a rezar e a se prosternar, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha
piedade de mim”, por tanto tempo quanto pudesse. De bom coração ele obedeceu e
logo se pôs, sem a menor hesitação, a fazer o que lhe ordenava sua consciência,
persuadido de que era o próprio Deus quem lhe pedia que agisse assim. A partir
daí, ele nunca mais se deitou para dormir sem primeiro fazer o que lhe ordenara
sua consciência. E, como ele não cessava de escutá-la e ela não cessava de lhe
pedir sempre mais, em pouco tempo sua oração da noite se alongou grandemente.
De fato, durante o dia ele dirigia a casa de um patrício, ocupando-se de muitos
negócios, ia cotidianamente ao Palácio, e quase não lhe restava tempo para
orar. Mas à noite, antes de se recolher, ele orava como dissemos. Sem coração
se enchia de calor e compunção, e as lágrimas escorriam de seus olhos. Ele
multiplicava as prosternações e, gemendo e chorando, rezava também à Mãe de
Deus. Parecia-lhe que o Senhor estava em pessoa diante dele, e ele se
prosternava a seus pés e lhe pedia que tivesse compaixão de si, como o cego de
que fala o Evangelho, e que desse luz aos olhos de sua alma. Assim, a prece que
ele fazia alongava-se cada dia mais. Enquanto rezava, ele se mantinha reto como
uma coluna, sem mexer os pés ou qualquer membro de seu corpo e sem voltar os
olhos para olhar aqui ou ali, e permanecia imóvel, com grande temor e tremor.
Assim, numa noite em que ele orava e dizia em
seu intelecto: “Deus, tenha compaixão de mim, pecador”, um esplendor divino
brilhou subitamente sobre ele e encheu de luz o quarto. O jovem, extasiado,
perdeu a consciência de si mesmo e até esqueceu que estava em uma casa. Pois de
todos os lados ele não via senão luz e já não sabia se tinha os pés no chão ou
se planava no ar, e em seu intelecto não havia a menor preocupação com seu
corpo. Ele esqueceu o mundo inteiro. Ele era uma coisa só com a luz divina, e
parecia-lhe ter ele próprio se tornado luz. Ele encheu-se de lágrimas e de uma
alegria indizíveis. Então seu intelecto se elevou aos céus e lá ele viu uma luz
ainda mais radiante e, junto a esta luz, apareceu-lhe o santo ancião que lhe
havia dado o livro do abade Marcos e a regra.
Quando eu ouvi o relato do jovem, eu pensei que
a intercessão do ancião foi de um grande auxílio para ele, e que deste modo a
providência de Deus lhe tinha mostrado em que altura de virtude se encontrava
este santo, permitindo a ele vê-lo junto a tamanha luz.
Passada a contemplação o jovem voltou a si,
cheio de alegria e maravilhado. Ele chorou do fundo de seu coração e suas
lágrimas foram acompanhadas de uma doçura extrema. Finalmente ele caiu sobre
seu leito, e no mesmo instante o galo cantou. Pouco depois, as igrejas soaram
as matinais, e ele se levantou para salmodiar conforme seu costume. Durante
toda a noite ele não havia dormido, nem sequer cochilado um pouco.
Eis o que aconteceu ao jovem. Como ele próprio
me afirmou, ele não fez nada além daquilo que vocês ouviram. Simplesmente – e
foi por isto que lhe foi concedida esta contemplação – ele teve uma fé e uma
esperança resolutas. E que ninguém diga que ele fez isto para tentar uma
experiência, pois conforme me relatou isto jamais lhe passou pela cabeça. Ele
não teve mais do que a resolução de sua fé. Ele apenas rejeitou de seu
pensamento toda ideia relativa à carne e ao mundo, e tomou tanto cuidado em
guardar sua consciência e de seguir bem aquilo que ela lhe dizia, que estava
como que insensível a todas as coisas desta vida. Comer e beber lhe eram
indiferentes, e muitas vezes ele permanecia em jejum.
Calixto e Inácio Xanthopouloi, Centúria Espiritual:
O que é a graça, e como podemos
descobri-la. O que a perturba e o que a purifica.
Mas o que
é a graça, como podemos descobri-la, o que a perturba, o que ao contrário a
torna pura, isto tudo será revelado a você por aquele cuja alma e cuja língua
são mais luminosas do que todo o ouro do mundo, quando ele diz: “Refletindo
como um espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nesta mesma imagem[84]”.
O que isto significa? É o que ele mostrou com maior clareza ainda ao suscitar a
graça dos milagres. Entretanto, a quem possui os olhos da fé, mesmo hoje em dia
não é difícil ver coisa semelhante. Pois “ao mesmo tempo em que somos
batizados, a alma brilha mais do que o sol, purificada pelo Espírito. E não
apenas nós vemos a glória de Deus, como recebemos dela algum esplendor. Da
mesma forma, com efeito, que a prata pura brilha quando colocada sob a luz do
sol – não só por sua natureza mas porque ela reflete a irradiação solar –
também a alma purificada e mais luminosa que toda prata do mundo recebe um raio
de glória do Espírito que dela se aproxima para cobri-la de glória[85]”,
desta glória que é conforme ao Espírito do Senhor[86].
Percebe
você que eu lhe mostro isto da maneira mais sensível, partindo do testemunho
dos apóstolos? Lembre-se de Paulo, cujas vestes operavam milagres[87].
Lembre-se de Pedro, cuja simples sombra tinha o mesmo poder[88].
Eles não poderiam fazer isto se não carregassem em si a imagem do Rei, se a luz
que saía deles não fosse a luz inacessível, a tal ponto que suas vestes e suas
sombras operavam milagres. Pois as vestes do Rei aterrorizam até os ladrões.
Você
também quer ver a imagem de Deus irradiar através do corpo? Foi dito:
“Contemplando o rosto de Estevão, eles acreditavam ver a face de um anjo[89]”.
Mas isto não é nada diante da glória que irradia dentro. Pois aquilo que Moisés
tinha em seu rosto[90],
revestia sua alma, e muito mais. A transfiguração de Moisés foi mais sensível,
mas esta era incorpórea. Assim como os corpos luminosos espalham sua
luminosidade sobre aqueles que estão próximos, transmitindo-lhes sua própria
claridade, o mesmo acontece com os fiéis. É por isso que aqueles que provaram
desta luz se distanciam da terra e se revestem das coisas do céu; mas, ora
essa!, é bom estar aqui, e é amargo gemer. Pois nós desfrutamos de uma tal
nobreza, e não sabemos o que dizer, tanto se perdem as coisas rapidamente, e
por tanto medo que temos do que sentimos. Esta glória misteriosa e terrível,
não permanece em nós mais do que um ou dois dias. Nós a extinguimos quando
entramos no inverno desta vida, recusando seus raios sob a espessura das
nuvens.
Também
foi dito: “Os corpos daqueles que agradaram a Deus se revestirão de tamanha
glória que será impossível aos olhos da carne enxerga-los. Mas Deus fez com que
nos tenham sido dados, no Antigo e Novo Testamentos sinais e traços obscuros
destes corpos. Lá o rosto de Moisés irradiava tanta glória que era inacessível
aos olhos dos Israelitas. Mas no Novo Testamento o rosto de Cristo brilhava
muito mais[91]”.
Ouviu as
palavras do Espírito? Compreendeu o poder do mistério? Sabe você por quantas
dores surge em nós a nova criação espiritual, perfeita no banho sagrado do
batismo, e quais são os frutos, o cumprimento, as recompensas? Depende de nós
fazer crescer ou diminuir esta graça sobrenatural, depende de nós manifestá-la
ou torná-la obscura, tal como o faz aquilo que nos é peculiar: a tempestade de
coisas desta vida, as trevas das paixões engendradas por estas coisas. Elas nos
arrastam, de fato, como o inverno ou a torrente selvagem. Elas engolem a alma e
não lhe permitem respirar nem contemplar a verdadeira beleza e a verdadeira
beatitude, para as quais ela foi feita: as paixões a entenebrecem, ela é
sacudida e destroçada sob o ruído e a fumaça dos prazeres, que a afogam nas
suas águas. Mas o contrário destas coisas, ou seja, aquilo que nasce dos
mandamentos deificantes, é dado aos que caminham não segundo a carne, mas
segundo o Espírito. Pois foi dito: “Caminhem conforme o Espírito, e não cedam à
concupiscência da carne[92]”.
É aí que encontra seu bem e sua salvação aquele que, como a escada, leva
consigo o cume e a extremidade dos degraus, o amor, que é Deus[93].
Gregório Palamas, 150 Capítulos Físicos, Teológicos, Éticos e
Práticos:
146. O Senhor disse aos seus discípulos que alguns dos que estavam ali
não conheceriam a morte antes de ver o Reino de Deus chegar com seu poder[94].
Seis dias depois, ele tomou a Pedro, Tiago e João e subiu ao Monte Tabor. Ele
brilhou como o sol e suas vestes se tornaram brancas como a luz[95].
Mas os discípulos não puderam ver imediatamente, ou antes, incapazes de
suportar tamanho esplendor, foram atirados à terra[96].
Porém, segundo a promessa do Salvador, eles haviam visto o Reino de Deus, esta
luz divina e misteriosa que os grandes Gregório e Basílio chamaram de
Divindade. De fato, o grande Basílio diz que essa luz é a beleza de Deus,
contemplada apenas pelos santos no poder do Espírito divino. É por isso que ele
diz também: “Pedro e o filho do trovão viram no topo da montanha sua beleza,
mais luminosa que a radiação solar e assim se tornaram dignos de receber com
seus olhos as premissas da parúsia[97]”. O
teólogo Damasceno e João da língua de ouro chamaram esta luz de irradiação
natural da Divindade. Um – João Damasceno – escrevendo que o Filho nascido do
Pai fora de qualquer começo possui independente de qualquer começo a irradiação
natural da Divindade, e que a glória da Divindade se tornou a glória do seu
corpo[98].
O outro – João Crisóstomo – ao dizer que o Senhor, sobre a montanha, apareceu
mais luminoso do que ele próprio, quando a Divindade mostrou sua irradiação
luminosa.
147. Esta luz divina e misteriosa – a Divindade e o Reino de Deus, a
beleza e o esplendor da natureza divina, a visão e o regozijo dos santos no
século infinito, a irradiação e a glória natural da Divindade – dela dizem os
heréticos[99] falastrões ser um fantasma e uma criatura. E eles proclamam, caluniando, que os
que não blasfemam como eles essa luz divina e que consideram que Deus é
incriado em sua essência e em sua energia, são diteístas. Com efeito, a partir
do momento em que esta luz divina é incriada, Deus é, para nós, um na Divindade
única. Como já mostramos, a essência incriada e a energia incriada – ou seja, a
graça divina e sua irradiação – são próprias do Deus uno.
148. Daí que os hereges insensatos que ousaram dizer no Concílio e que
tentaram demonstrar que essa luz divina que irradiava do Senhor no Tabor era um
fantasma e uma criatura, que foram reprovados por muitos e não se retrataram,
foram submetidos à excomunhão escrita a ao anátema. Pois eles blasfemaram
contra a economia de Deus na carne, disseram tolamente que a Divindade de Deus
é criada, e, ao menos no que lhes concerne, reduziram ao estado de Criaturas o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. Pois a Divindade dos três é uma só e mesma
Divindade. E, se eles dizem que veneram a Divindade incriada, devem reconhecer
que existem duas Divindades de Deus, uma criada e outra incriada. Assim, eles
rivalizam com todos os antigos desviados em matéria de erro, e os superam em
impiedade.
149. Por outro lado, esforçando-se para dissimular o próprio erro, eles
dizem que a luz que brilha sobre o Tabor é incriada, e que ela é a essência de
Deus, e, com isto, eles a blasfemam ainda mais. Pois esta luz foi vista pelos
Apóstolos: então, nossos adversários pensam que a essência de Deus é visível.
Que eles escutem o que foi dito: a ninguém, não apenas dentre os homens, mas
também entre os anjos, foi dado ver[100] ou
revelar a essência e a natureza de Deus. Pois mesmo os Serafins de seis asas,
ao aproximarem este derramamento de esplendor que é a irradiação de Deus no
coração do mundo, cobrem seus rostos com as asas[101].
Portanto, como a supra-essencialidade de Deus jamais foi vista por ninguém,
quando os heréticos dizem que esta luz é a supra-essencialidade, eles atestam
que ela é absolutamente invisível, que não foi ela que os Apóstolos eleitos
viram sobre a montanha, e que não falou a verdade aquele que disse: “Vimos sua
glória, nós que com ele estávamos sobre a montanha santa”, e “permanecendo
despertos, Pedro e os que com ele estavam viram sua glória[102]”.
O outro discípulo disse que João, a quem Cristo amava especialmente, viu esta
Divindade do Verbo revelada sobre a montanha. Portanto, eles viram, e
verdadeiramente viram o esplendor divino incriado, esta luz do Deus invisível
que permanece no segredo supra-essencial, mesmo que o tentem apagar os
príncipes da heresia[103] e os que pensam como eles.
150. Quando interrogamos estes hereges, que afirmam que esta luz da
Divindade é a essência, e que a essência de Deus é visível, eles são obrigados
a dissimular a mentira, dizendo que esta luz é a essência, uma vez que é a
essência de Deus que é visível nela, e que são as criaturas que veem a essência
de Deus. Novamente estes infelizes fazem da luz da transfiguração do Senhor uma
criatura. O que as criaturas veem não é a essência, mas a energia criadora de
Deus. É, portanto, de modo ímpio, também aí, que eles dizem, em acordo com
Eunomo, que a essência de Deus é vista pelas criaturas. É assim que eles colhem
da colheita da impiedade. É preciso fugir deles e de sua companhia, como da
hidra de muitas cabeças que corrompe a alma, como de um flagelo que, sob tantas
e variadas formas, devasta a piedade.
Gregório Palamas, Tomo Hagiorítico:
Quem diz que a luz que brilhou ao redor dos discípulos no Tabor[104] era um fantasma e um símbolo, que apareceu e desapareceu, que ela não
existe por si própria e que não ultrapassa todo entendimento, mas que se trata
de uma banal projeção do pensamento, está em manifesta contradição com as
opiniões dos santos. Estes, com efeito, em seus cantos e seus escritos, a
chamam de misteriosa, incriada, eterna, intemporal, inacessível, imensa,
infinita, sem limites, invisível aos anjos e aos homens, beleza original e
imutável, glória de Deus, glória de Cristo, glória do Espírito, raio da
Divindade e outros nomes semelhantes. Esta dito, com efeito, que “a carne foi
glorificada pela encarnação de Cristo, e que a glória da Divindade se tornou a
glória do corpo. Mas no corpo manifestado a glória não aparece para aqueles que
não trazem em si aquilo que mesmo para os anjos é invisível. Cristo se
transfigurou, não por assumir o que ele não era, nem por se transformar no que
não era, mas manifestando aos discípulos aquilo que ele é, abrindo os seus
olhos e tornando videntes a eles que eram cegos. Ao mesmo tempo em que
permanecia no mesmo estado no qual antes lhes aparecera, ele então se
manifestou e se revelou aos discípulos. Pois ele é em si a verdadeira luz[105],
a beleza da glória. Ele brilhou como o sol[106]...
A imagem não é justa, mas é impossível representar corretamente o incriado na
criação[107]”.
Simeão o Novo
Teólogo, Capítulos Práticos:
68.
Quem possui dentro de si a luz do Santíssimo Espírito, é como se não
conseguisse suportar vê-la; ele cai com o rosto por terra, chama e chora, no
paroxismo do temor, a tal ponto transtornado por ver e sentir uma coisa que
ultrapassa a natureza, a razão e o entendimento. Ele se torna como alguém cujas
entranhas foram incendiadas por um fogo abrasador. Incapaz de suportar a
queimação da chama[108]
ele fica fora de si e não consegue se dominar e é inundado por lágrimas
transbordantes que o refrescam. Ele atiça cada vez mais o fogo de seu desejo e
cada vez mais lágrimas correm. Banhado nesta torrente ele próprio brilha com
uma luz mais vívida. Depois de inteiramente inflamado ele se torna como que uma
luz e então se cumpre o que foi dito: “Deus unido aos deuses e dos deuses
conhecido”, ao menos na medida em que ele Deus já se encontra unido àqueles que
foram abrasados e se revelou aos que o conheceram.
Simeão o Novo
Teólogo, Capítulos Teológicos:
52.
Para aqueles que, juntamente com Pedro, progrediram na fé, que, com Tiago, se
elevaram na esperança, que com João se tornaram perfeitos no amor, o Senhor se
transfigura depois de haver subido a alta montanha da teologia[109].
Pela manifestação e a marca da palavra pura, ele brilha diante deles como o
sol. Pelos pensamentos da sabedoria misteriosa ele flameja como luz. O Verbo se
revela neles, no meio da Lei e da Profecia, legislando e ensinando as coisas da
Lei, e descobrindo os tesouros profundos e escondidos da sabedoria das coisas
da Profecia: então ele prevê e prediz. O Espírito os cobre com sua sombra como
uma nuvem luminosa, e desta nuvem a voz da teologia mística desce sobre eles,
iniciando-os no mistério da Trindade em três Hipóstases, dizendo-lhes: “Eis
aqui meu Bem-Amado, o termo da palavra de perfeição, em quem eu me comprazo[110]:
tornem-se para mim filhos perfeitos no Espírito perfeito”.
Gregório o Sinaíta,
Sentenças diversas:
43.
Segundo a lei de Moisés, o Reino dos céus é semelhante a uma tenda construída
por Deus e dividida em duas partes pelo véu
do século futuro. Na primeira metade da tenda, todos os que são
sacerdotes da graça entrarão. Mas na segunda – a tenda espiritual – somente
entrarão aqueles que, desde já, nas trevas da teologia, vivem à perfeição a
liturgia hierárquica e trinitária, aqueles para quem Jesus, celebrando os
mistérios, é o primeiro hierarca diante da Trindade. Eles entram na tenda que
ele fundou e brilham visivelmente com seu próprio esplendor.
Macário o Egípcio, Sobre a elevação do intelecto:
62.
Pela glória de Deus que brilhava em sua face e que nenhum homem conseguia fitar[111],
o bem-aventurado Moisés ilustrou o modo como os corpos dos santos, na
ressurreição dos justos, serão glorificados com esta glória que as almas fiéis
dos santos são consideradas dignas de carregar desde hoje no homem interior.
Pois até nós, como foi dito, mesmo com o rosto descoberto, mas no homem
interior, refletimos a glória do Senhor, transfigurados na mesma imagem, de
glória em glória[112].
Também está escrito que Moisés não procurou alimento nem bebida durante
quarenta dias e quarenta noites[113].
Esta é uma obra impossível para a natureza humana, a menos que ela comungue com
a natureza espiritual, a mesma que os santos já recebem do Espírito.
[1]
Lucas 11: 23.
[2]
Atos 10:35.
[3]
Cf. Hebreus 6:1.
[4]
João 3: 34-35.
[5]
Lucas 19: 13.
[6]
Efésios 5: 16.
[7]
Antífona do Rito Bizantino, Tom 4.
[8]
Apocalipse 3: 20.
[9]
São Justino (Diálogos 47) reporta este “diálogo não escrito” de Cristo. No
Islamismo, do mesmo modo, diz-se que o homem “será tomado no estado em que se
encontrar” (Ibn Arabi, A sabedoria dos
Profetas)
[10]
Marcos 14: 38.
[11] I
Tessalonicenses 4: 17.
[12]
Marcos 13: 26.
[13] I
Pedro 4: 5.
[14]
Mateus 16: 27.
[15]
Salmo 45: 10.
[16] I
Tessalonicenses 5: 17.
[17] I
Coríntios 14: 13.
[18]
Mateus 7: 21.
[19]
Jeremias 48: 10.
[20]
João 14: 1; 6: 29.
[21]
Salmo 17: 37-38.
[22]
João 4: 13-14.
[23]
Cf. Gênesis 3: 10.
[24]
Referência não encontrada.
[25]
Talvez uma das razões disto esteja na confusão que é feita atualmente entre o
“concebível” e o “imaginável”. Nem todo o concebível pode ser colocado em
imagens; ao homem moderno, habituado com um mundo de representações sensíveis,
isto torna certas coisas “inconcebíveis”, mas apenas porque são “inimagináveis”
(N.T.)
[26]
Cf. Jó 27: 3.
[27] I
Tessalonicenses 5: 23.
[28]
Gênesis 2: 7.
[29]
João 7: 39.
[30]
Cf. João 8: 56.
[31]
Cf. Romanos 2: 14.
[32]
Salmo 84: 11.
[33]
Gênesis 3: 15.
[34]
João 1: 16.
[35]
Cf. Atos 2: 1-4.
[36]
Lucas 17: 21.
[37]
Mateus 11: 12.
[38]
Isaías 1: 18.
[39]
Apocalipse 7: 91-14.
[40]
João 11: 26.
[41]
João 1: 29.
[42]
João 1: 4.
[43]
João 1: 5.
[44]
Referência não encontrada.
[45]
Salmo 118: 105.
[46]
Salmo 118: 92.
[47]
Marcos 9: 3.
[48]
Provérbios 8: 9, Septuaginta.
[49] I
Timóteo 2: 4.
[50]
Mateus 15: 16.
[51]
Lucas 24: 45.
[52]
Atos 15: 28.
[53]
João 14: 21.
[54]
João 15: 19.
[55]
João 16: 33.
[56]
Filipenses 4: 7.
[57]
Salmo 35: 8.
[58]
João 16: 21-22.
[59] I
Coríntios 2: 9.
[60]
Salmo 83: 7.
[61]
Efpesios 4: 13.
[62]
Isaías 40: 31.
[63]
Salmo 83: 8.
[64]
Lucas 17: 21.
[65]
Romanos 14: 17.
[66]
Cf. I Coríntios 2: 4.
[67]
Marcos 9: 1.
[68]
Provérbios 23: 26; Mateus 6: 33.
[69]
Mateus 6: 32, 33.
[70]
Cf. II Coríntios 9: 8; I Timóteo 6: 6.
[71]
Gálatas 6: 2.
[72]
Lucas 10: 2.
[73]
Cf. Mateus 25: 14-30.
[74]
Cf. Jeremias 23: 23.
[75]
Cf. Deuteronômio 30: 12-14; Romanos 10: 8-13.
[76]
Salmo 144: 8.
[77]
Efésios 6: 9.
[78]
Cf. João 3: 35.
[79]
Cf. Deuteronômio 32: 30.
[80]
João 14:12, 16; 16: 24.
[81]
Cf. Mateus 25: 40.
[82]
Cf. Salmo 144: 19; 19: 4,5.
[83]
Cf. Salmo 124: 3.
[84]
II Coríntios 3: 18.
[85]
João Crisósotomo, Homilia sobre II
Coríntios, VII, 5.
[86]
Cf. II Coríntios 3: 18.
[87]
Cf. Atos 19: 12.
[88]
Cf. Atos 5: 15.
[89] Atos 6: 15.
[90]
Cf. Êxodo 34: 30.
[91]
João Crisóstomo, A uma jovem viúva,
citando Êxodo 34: 30 e Mateus 17: 2.
[92] Gálatas 5: 16.
[93]
Cf. I João 4: 8.
[94] Marcos 9: 1.
[95] Mateus 17: 2.
[96] Mateus 17: 6.
[97] Homilia do Salmo 44.
[98] Homilia da Transfiguração.
[99]
Os Acindinistas.
[100]
Cf. Jeremias 23: 18.
[101]
Cf. Isaías 6: 2.
[102]
Cf. Lucas 9: 32.
[103]
Barlaam e Acindino.
[104]
Cf. Mateus 17: 5.
[105]
João 1: 9.
[106]
Cf. Mateus 17: 2.
[107]
João Damasceno, Hom. In Transf.
in Joie de la Transfiguration d’après les
Pères d’Orient, SO 39, Bellefontaine 1985, pgs. 199-200.
[108]
Cf. Jeremias 20: 9.
[109]
Cf. Mateus 17: 1.
[110]
Cf. Mateus 17: 5.
[111]
Cf. Êxodo 34: 30-31.
[112]
Cf. II Coríntios 3: 18.
[113]
Cf. Êxodo 34: 28.
Somente uma pessoa inspirada pelo Espírito Santo poderia colocar na internet material tão rico e espiritualmente profundo.Sou-lhe profundamente grata.
ResponderExcluirEm linguagem humana muita coisa não pode explicitada, todavia sentida e intuída.Ponto.Grandeza sublime.Ponto final,
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