segunda-feira, 25 de junho de 2018

Orígenes - Tratado sobre os Princípios - Livro III





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O LIVRE ARBÍTRIO


1.       O problema da liberdade e da vontade

Já que na predicação da Igreja está incluída a doutrina do juízo de Deus, que, se acreditarmos ser verdadeiro, incita aos que o ouvem a viver virtuosamente e evitar o pecado custe o que custar, posto que se reconhece evidentemente que as coisas dignas de louvor ou de condenação estão dentro de nosso próprio poder, vamos considerar alguns pontos a respeito da liberdade da vontade, uma das questões mais necessárias de todas. E, para que possamos entender no que consiste a liberdade da vontade, é necessário estudar e declarar com precisão o conceito e o objeto que temos diante de nós.

2.       A fantasia e o instinto dos animais

Das coisas que se movem, algumas contém em si a causa de seu movimento, enquanto que outras só podem ser movidas desde fora. Agora, somente as coisas portáteis são movidas desde fora, como pedaços de madeira, pedras, e toda matéria que se mantém unida segundo sua própria constituição. Deixemos de fora dessas considerações aquilo que se chama de ‘fluxo da mobilidade dos corpos’, já que não é necessário para nosso objetivo presente.

Assim sendo, os animais e as plantas têm a causa de sua mobilidade dentro de si mesmos, e em geral tudo é mantido unido pela natureza e uma alma, a cuja classe, dizem alguns, pertencem também os metais. Ademais desses, o fogo também se move por si só, e talvez também as fontes de água. Porém, das coisas que têm em si a causa de sua mobilidade, algumas são movidas desde fora, outras por si: as coisas sem vida, desde fora, e as coisas animadas, por si mesmas. E, pelo fato de que as coisas animadas são movidas por si mesmas, brota delas uma fantasia que as incita ao esforço. Em certos animais essa fantasia se forma para provocar o esforço, e a natureza da fantasia provoca o esforço de uma maneira ordenada, como na aranha, em quem a fantasia forma a teia, que ela segue na tentativa de tecer; e a natureza dessa fantasia incita de modo ordenado o inseto apenas quanto a isso. Ademais dessa natureza “fantasista”, acredita-se que mais nada pertença ao inseto. Na abelha, forma-se a fantasia de produzir cera.

3.       As incitações da natureza

O animal racional, entretanto, possui a razão adicionalmente à sua natureza “fantasista”. ´por meio da qual ele julga as fantasias e desaprova umas e aceita outras, para que o animal possa se conduzir segundo elas. Portanto, já que na natureza da razão existem auxílios para contemplar a virtude e o vício, selecionamos uma e evitamos o outro, merecendo elogios quando nos entregamos à prática da virtude, e censuras quando fazemos o oposto.

Não obstante, não devemos ignorar que a maior parte da natureza assinalada a todas as coisas vivas varia em quantidade entre os animais, em maior e menor grau; por exemplo, para que o instinto dos cães de caça e dos cavalos de guerra se aproxime, por assim dizer, em alguma medida, da faculdade da razão. Agora, submeter-se a algumas dessas causas externas que movem dentro de nós essa ou aquela fantasia, são coisas que não dependem de nós; mas determinar que utilizaremos essa ocorrência, de tal ou qual modo diferente, é prerrogativa da razão que reside em nós, quando se apresenta a ocasião, despertando esforços que nos incitem ao que é virtuoso, ou a desviarmo-nos ao seu oposto.

4.       O poder de domínio da razão

Mas, se alguém sustentar que essa causa externa é de tal natureza que seja impossível resistira ela quando nos assalta, deixemos que dirija sua atenção aos seus próprios sentimentos e movimentos, e que veja se não existe aprovação, assentimento e inclinação do princípio de controle em relação a algum objeto devido a tal ou qual argumento enganoso. Por exemplo, para ilustrarmos com um caso, se uma mulher aparece diante de um homem que se determinou a ser casto e abster-se de cópula carnal, e o incita a atuar contrariamente ao seu propósito, isso não constitui uma causa absoluta ou total para anular sua determinação. Porque, se estiver totalmente contente com a atração do prazer, e não desejar oferecer-lhe resistência ou manter seu propósito, poderá ele cometer o ato licencioso; enquanto que outro homem, por seu turno, ao lhe acontecer a mesma coisa, mas tendo recebido mais instrução e autodisciplina, topando com encantos e tentações, rechaça a incitação e extingue o desejo, por ter a razão reforçada em seu ponto mais alto, cuidadosamente treinada e confirmada em suas ideias sobre o curso virtuoso a seguir.

5.       Causas externas e liberdade de decisão

Sendo esse o caso, dizer que somos movidos desde fora e retirar de nós a responsabilidade, declarando que somos como um pedaço de madeira ou uma pedra, que são arrastados pelas causas que neles atuam desde fora, não é nem verdadeiro nem conforme à razão, mas é a declaração de alguém que deseja destruir o conceito de livre arbítrio. E se lhe perguntarmos o que é a livre vontade, ele responderia que consiste nisso: que, intencionando fazer alguma coisa, que nenhuma causa externa intervenha para incitar o oposto.

Culpar a mera constituição do corpo é absurdo; porque a razão disciplinadora, quando toma os que são mais imoderados e selvagens (se seguem sua exortação), efetua neles uma transformação, à qual se seguem a alteração e a mudança, e os homens mais licenciosos com frequência se tornam melhores do que aqueles que antes não pareciam ser tais por natureza; e os mais selvagens passam a tal estado de cordura, que os que nunca foram tão selvagens como eles parecem agora mais selvagens em comparação, tamanho grau de gentileza se produz neles.

E vemos a outros homens, os mais firmes e respeitáveis, expulsos de seu estado de constância e respeitabilidade por sua relação com maus costumes, até o ponto de cair em hábitos licenciosos, muitas vezes começando sua maldade na meia idade, afundando na desordem depois de passada a juventude, sendo essa, até onde se refere sua natureza, instável.

A razão, pois, demonstra que os acontecimentos externos não dependem de nós, mas que é nossa responsabilidade utilizá-los de um modo ou de outro, pois recebemos a razão como se fosse um juiz e um investigador sobre o modo como devemos enfrentar os acontecimentos que nos chegam desde fora.

6.       Prova bíblica da livre vontade

Agora, já que é nossa tarefa viver virtuosamente, coisa que Deus pede de nós, não dependemos Dele, nem de ninguém, nem – como pensam alguns – do destino, mas de nosso próprio trabalho, como mostra o profeta Miqueias, ao dizer: “Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de ti: praticar o direito, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o teu Deus[1]”. E Moisés: “Vê, hoje coloquei diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal; porque hoje te ordeno que ames ao Senhor teu Deus, que andes em Seus caminhos, que guardes Seus mandamentos, Seus estatutos e Seus direitos, para que vivas e sejas multiplicado[2]”. Também Isaías: “Se quiseres e escutares, comereis o bem na terra; se não quiseres e fores rebeldes, sereis consumidos a espada; porque a boca do Senhor o disse[3]”. E nos Salmos: “Oh, se me houvesse ouvido meu povo, se em meus caminhos tivesse caminhado Israel! Em um nada eu teria derrubado seus inimigos e colocado minha mão sobre seus adversários![4]”, mostrando que estava no poder de seu povo ouvir e caminhar nos caminhos de Deus.

Também o Salvador, quando ordenou: “[Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!] Mas eu vos digo: não resistais ao mal[5]”. E: “Quem quer que odeie a seu irmão, será culpado no juízo[6]”. E: “Quem olha uma mulher com cobiça, já adulterou com ela em seu coração[7]”. E assim, por qualquer outro mandamento que dê, Ele declara que depende de nós observar aquilo que nos impôs, e que seremos culpados de condenação se transgredirmos.

Ele disse mais: “Quem ouve as minhas palavras e as cumpre, a este eu compararei a um homem prudente, que edificou sua casa sobre a pedra; (...) mas quem ouve essas palavras e não as coloca em prática, eu o compararei a um homem insensato, que edificou sua casa sobre a areia[8]”. E quando disse aos que estão à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, etc., porque eu tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber[9]”. Isso fica manifesto quando Ele faz essa promessa aos que eram dignos de elogio. Ao contrário, aos outros, por serem culpados de censura em comparação com aqueles, disse-lhes: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno[10]”.

Observemos que também Paulo nos trata como sendo dotados de livre vontade, e como responsáveis pela causa de nossa ruína e de nossa salvação. Ele diz: “Ou será que desprezas a riqueza da bondade de Deus, da Sua paciência e generosidade, desconhecendo que a bondade dele convida à tua conversão? Por tua teimosia e a dureza de teu coração, amontoas ira contra ti mesmo para o dia da ira, quando o justo julgamento de Deus vai se revelar, retribuindo a cada um conforme as suas próprias ações: a vida eterna para aqueles que perseveram na prática do bem, buscando a glória, a honra e a imortalidade; pelo contrário, ira e indignação para aqueles que se revoltam e rejeitam a verdade, para obedecerem à injustiça. Haverá tribulação e angústia para todo aquele que pratica o mal, primeiro para o judeu, depois para o grego. Mas haverá glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem, primeiro para o judeu, depois para o grego”. Existem, na realidade, inúmeros textos das Escrituras que estabelecem com sobeja clareza a existência da livre vontade.

7.       Textos bíblicos contrários à livre vontade

Mas já que algumas declarações do Antigo e do Novo Testamento levam à conclusão oposta, a saber, que não depende de nós guardar os mandamentos e ser salvos, ou transgredi-los e nos perdermos, vejamo-las uma a uma, e consideremos a sua explicação, de modo a que, mediante aquilo que aduzimos, qualquer um possa eleger as passagens que parecem negar a livre vontade, e considere o que foi dito deles à guisa de explicação.

As declarações sobre o Faraó preocuparam muitos, pois Deus declara várias vezes: “Endurecerei o coração do Faraó[11]”. Porque, se ele é endurecido por Deus e comete pecados em consequência do endurecimento, não é ele causa de pecado; e, se assim for, o Faraó não possui livre arbítrio.

Alguém poderá dizer, de modo semelhante, que os que se perdem não têm livre arbítrio, e não se perdem porque querem. A declaração de Ezequiel: “Eu lhes darei um coração, e um espírito novo colocarei em suas entranhas; e retirarei o coração de pedra de sua carne, e lhes darei um coração de carne; para que andem segundo meus mandamentos, para que guardem meus juízos e os cumpram[12]”, poderia levar a pensar que é Deus quem dá o poder de seguir Seus mandamentos e guardar Seus preceitos, ao retirar o obstáculo, ou seja, o coração de pedra, e implantar um coração melhor, ou seja, de carne.

Vejamos também a passagem do Evangelho na qual o Salvador responde aos que lhe perguntaram por que se dirigia às multidões através de parábolas: “Para que olhem, mas não vejam, escutem, mas não compreendam, para que não se convertam e não sejam perdoados[13]”. Temos também o texto de Paulo: “Assim, não é do que quer, nem do que corre, mas de Deus que tem a misericórdia[14]”. E outras declarações que dizem: “De fato, é Deus que desperta em vós a vontade e a ação, conforme a Sua benevolência[15]”; “Portanto, Deus usa de misericórdia com quem ele quer, e endurece a quem ele quer. Me direis então: Por que Deus ainda se queixa? Quem pode resistir à Sua vontade dele?[16]”; “Tal influência não vem daquele que vos chama[17]”; “Mas, quem és tu, homem, para discutir com Deus? Por acaso, o vaso de barro diz ao oleiro: Por que me fizeste assim? Por acaso o oleiro não é dono da argila, para fazer com a mesma massa dois vasos, uma para uso nobre e outro para uso comum?[18]”. Essas passagens são suficientes para preocupara massa, como se o homem não possuísse livre arbítrio, e como se você Deus quem salva ou destrói a quem Ele quer.

8.       Resolução do problema

Comecemos, pois, com as palavras que se referiram ao Faraó, que foi endurecido por Deus para que não deixasse sair o povo, e junto com elas examinaremos também a declaração do Apóstolo: “De maneira que Ele tem misericórdia de quem quer, e endurece com quem quer[19]”. E, tão certo quanto é que os que sustentam tais opiniões interpretam mal essas passagens, também é que esses destroem o livre arbítrio ao introduzir naturezas arruinadas incapazes de salvação, e outras que são salvas sem possibilidade de perder-se. O Faraó, dizem, por ser de uma natureza perdida, foi logicamente endurecido por Deus, que tem compaixão pelo espiritual, mas que endurece com o terreno. Vejamos o que querem dar a entender.

Perguntaremos a eles se pensam que o Faraó foi uma natureza terrena; e, quando responderem, lhes diremos que quem é de natureza terrena é totalmente desobediente a Deus. Mas, se ele era desobediente, que necessidade haveria de endurecer seu coração, e não uma vez só, mas várias? A não ser, talvez, que lhe fosse possível obedecer (e em tal caso ele teria certamente obedecido, por não ser terreno depois de ter sido fortemente pressionado pelos sinais e as maravilhas), e que Deus necessitasse que ele fosse desobediente num grau superior, para que pudesse manifestar seus atos poderosos para a salvação do povo, tornando por isso endurecido seu coração. Essa será nossa resposta, em primeiro lugar, de modo a derrubar a suposição de que o Faraó seria de natureza perdida. A mesma resposta pode ser dada no que se refere à declaração do apóstolo. Porque, a quem endurece Deus? Aos que perecem, como se pudessem obedecer sem ser endurecidos, ou, manifestamente, aos que seriam salvos por não possuírem uma natureza perdida? E de quem tem Deus misericórdia? Dos que devem se salvar? E como pode haver necessidade de uma segunda misericórdia para os que foram preparados para a salvação, que já são bem-aventurados de todos os modos devido à sua natureza? A não ser, talvez, que sejam capazes de incorrer em perdição, caso não recebam a misericórdia; obterão a misericórdia para que possam não incorrer na destruição de que são capazes, mas para que possam estar na condição dos que serão salvos. E essa é nossa resposta a tais pessoas.

9.       Deus não pode ser acusado de injustiça

Quanto aos que pensam entender o termo “endurecer”, devemos dirigir a seguinte pergunta: o que querem dizer ao afirmar que Deus, por sua obra, endurece o coração, e com que finalidade Ele faz isso? Mas permitamos que sigam a concepção de um Deus que é em realidade justo e bom; mas, se não nos concederem isso, deixemos que se lhes conceda de momento que Deus é justo; e que nos mostrem eles como o Deus bom e justo, ou apenas o Deus justo, parece justo ao endurecer o coração que perece devido ao seu endurecimento; e como esse Deus justo se converte em causa de destruição e desobediência, quando os homens são castigados por Ele devido à sua dureza e desobediência[20].

E por que encontram uma falta no Faraó, quando diz: “Tu te exaltas contra meu povo, para não deixá-lo ir? (...) Eis que vou matar teu filho, teu primogênito[21]”. “Ferirei a todo primogênito na terra do Egito, tanto dos homens como dos animais[22]”, e em tudo o que se registra como tendo sido dito por Deus ao Faraó mediante a intervenção de Moisés. Porque quem crê que as Escrituras são verdadeiras e que Deus é justo, deve necessariamente tentar, se for honesto, fazer ver que Deus, ao utilizar tais expressões, deve ser entendido claramente como justo[23]. Mas se alguém se levantar, declarando, com a cabeça descoberta, que o Criador do mundo estava inclinado à maldade, nós já não necessitamos mais palavras para contestar-lhe.

10.   A chuva de Deus

Mas, já que eles dizem que consideram a Deus como justo, e nós como justo e bom ao mesmo tempo, vejamos como o Deus bom e justo poderia endurecer o coração do Faraó.

Considere, então, se mediante uma ilustração utilizada pelo Apóstolo na Epístola aos Hebreus, somos capazes de demonstrar que, por meio de uma operação (energeia), Deus tem compaixão de um homem ao mesmo tempo em que endurece a outro, ainda que não tenha tido a intenção de endurecê-lo, mas, tendo um bom propósito, o endurecimento acontece em consequência de um princípio de maldade inerente a tais pessoas, de maneira que podemos dizer que “endurece a quem endurecer”.

“De fato, quando uma terra embebida de chuva abundante produz plantas úteis para quem a cultiva, essa terra tem a bênção de Deus. Mas, se ela produz espinhos e ervas daninhas, não tem nenhum valor, está a um passo da maldição e acabará sendo queimada[24]”. A respeito da chuva existe uma operação (energeia); e quando ocorre a operação da chuva, a terra que é cultivada produz frutos, enquanto que a que é descuidada e abandonada produz espinhos. Ora, poderia parecer profano, em relação Àquele que fez chover, que alguém dissesse: “Eu produzo os frutos, e os espinhos são da terra”; o que, ainda que profano, seria verdadeiro.

Porque se a chuva não caísse não haveria frutos nem espinhos, mas, uma vez que caiu, no tempo propício e com moderação, produz a ambos. A terra, por sua vez, que bebe da chuva que cai sobre ela e mesmo assim produz cardos e espinhos, é rechaçada e quase maldita. A bênção da chuva, pois, desceu sobre a terra inferior, que, por estar descuidada e inculta, produziu cactos e espinhos. Da mesma forma, as obras maravilhosas de Deus são realizadas como se fossem chuva, enquanto que os diferentes propósitos são, como dissemos, a terra cultivada e a terra abandonada – mas sem esquecer que a natureza da terra é a mesma[25].

11.   As advertências de Deus ao Faraó

E se o sol, se pudesse falar, dissesse “liquefaço e seco”, sendo coisas opostas a liquefação e a secura, não estaria falando falsamente quanto ao ponto em questão; a cera se derrete, e a lama seca por causa do mesmo calor; então a mesma operação, que foi realizada por intermédio da instrumentalização de Moisés, provou a dureza do Faraó, de um lado, resultado de sua maldade, e, de outro, sua permissão ao deixar marchar a multidão mista de egípcios que saíram com os hebreus.

A breve declaração de que o coração do Faraó se abrandou quando disse: “Eu vos deixarei ir para que sacrifiqueis ao Senhor vosso Deus no deserto, contanto que não ides muito longe (...) a três dias de marcha[26]”, deixando suas esposas e criações, cedendo pouco a pouco diante dos sinais, prova que as maravilhas causaram alguma impressão nele, ainda que não tenham conseguido obter tudo que poderiam ter obtido.

 Ainda assim, nada teria acontecido, se aquilo que é suposto por muitos – o endurecimento do coração do Faraó – tivesse sido produzido pelo próprio Deus. E não é absurdo amenizar tais expressões segundo o uso comum; porque os bons senhores muitas vezes dizem aos seus servos, quando esses se perdem devido à sua bondade e paciência: “Eu te prejudiquei, sou eu o culpado de tão enormes ofensas”. Porque devemos atender ao caráter e à força da frase, e não discutir por sofismas, distorcendo o significado da expressão[27].

Paulo, por fim, que examinou esses pontos claramente, diz ao pecador: “Ou será que desprezas a riqueza da bondade de Deus, da Sua paciência e generosidade, desconhecendo que a bondade dele convida à conversão?  Por tua teimosia e tua dureza de coração, amontoas a ira contra ti mesmo para o dia da ira, quando o justo julgamento de Deus vai se revelar[28]”. Agora deixemos que isso que o Apóstolo disse ao pecador se aplique ao Faraó, e vejamos que as advertências que lhe foram feitas o foram com propriedade, já que, segundo sua dureza e seu coração impenitente, acumulava ira para o dia da ira, uma vez que sua dureza nunca havia sido demonstrada, nem posta de manifesto, caso não se tivessem realizado os sinais e milagres, em tão grande número e com tal magnificência.

12.   O valor educativo do castigo

Mas se essas narrativas são lentas para assegurar o assentimento, e se foram consideradas forçadas, consideremos também as declarações proféticas, e vejamos o que declaram os profetas quanto aos que, ainda que no princípio tenham experimentado a grande bondade de Deus, não a viveram virtuosamente, mas caíram no pecado. “Por que, ó Senhor, nos fizeste errar teus caminhos, e endureceste nosso coração ao teu temor? Volta-te, por amor de teus servos, pelas tribos da tua herança. Por pouco tempo nossos inimigos se apossaram de teu povo santo e pisotearam teu santuário[29]”. E em Jeremias: “Me seduziste, ó Senhor, e me vejo frustrado; foste mais forte do que eu, e me venceste; sou escarnecido a cada dia; todos se burlam de mim[30]”. Por que a expressão” Por que, ó Senhor, nos fizeste errar teus caminhos, e endureceste nosso coração ao teu temor?”, pronunciada por aqueles que pedem misericórdia, tomada em sentido figurado e moral, quer dizer: por que nos deixaste tanto tempo e não nos visitaste por causa de nossos pecados, mas nos abandonaste até que nossas transgressões chegassem ao limite?

A menos que um cavalo sinta continuamente a espora de seu ginete e tenha sua boca freada pelo bridão, ele se endurece. Uma criança que não seja disciplinada pelo castigo crescerá até se tornar um jovem insolente, pronto para cair de cabeça no vício. Por isso Deus abandona e esquece daqueles que Ele considera indignos de castigo. “Porque o Senhor castiga àqueles a quem ama, e fustiga aos que recebe como filhos[31]”. Daí devemos supor que aqueles que foram admitidos na família e no afeto filial são os que mereceram ser castigados e fustigados pelo Senhor, de maneira a que, suportando as provas, possam dizer: “Quem nos apartará do amor de Cristo? Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada?[32]”. Porque por todas essas coisas se manifesta a resolução de cada qual e a firmeza de sua perseverança, não tanto com relação a Deus, que conhece todas as coisas antes que aconteçam, mas com respeito às virtudes celestes e racionais, que foram obtidas em parte pelo trabalho de procurar a salvação humana, como uma espécie de assistência e ministros de Deus.

Deus deixa a maior parte da humanidade sem castigo, para que os hábitos de cada um possam ser examinados em até que ponto dependem de cada um, e que o virtuoso possa se manifestar em consequência da prova que lhe foi aplicada; enquanto que os outros, que não escapam ao conhecimento de Deus – porque Ele conhece todas as coisas antes que existam – mas que podem obter depois os meios de cura da criação racional e de si mesmos, visto não terem conhecido o benefício de não ter sido condenados.

Por outro lado, quanto aos que ainda não se ofereceram a Deus com constância e afeto, e que não estão preparados para entrar a seu serviço e para preparar suas almas para a prova, desses se diz que foram abandonados por Deus, vale dizer, que não foram instruídos; já que não se prepararam para receber instrução, seu treinamento ou cuidado é indubitavelmente adiado para um tempo posterior. Certamente esses não sabem o que obterão de Deus, a menos que primeiro sintam o desejo de ser provados, o que finalmente acontecerá. Se um homem começa por conhecer a si mesmo e sentir seus defeitos, compreenderá de quem poderá ou deverá obter remédio. Porque quem não conhece de antemão sua debilidade ou enfermidade, não pode buscar o médico; ou, no mínimo, depois de recuperar sua saúde, esse homem não será agradecido ao médico que primeiro lhe fez saber da gravidade de sua doença. A menos que a pessoa seja consciente dos defeitos de sua vida e da má natureza de seus pecados, tornados públicos pela confissão de seus lábios[33], não poderá ser limpo, nem absolvido.

É vantajoso para cada pessoa perceber sua própria natureza específica e a graça de Deus. Porque quem não percebe sua própria fraqueza e o favor divino, ainda que receba um benefício, não tendo provado a si mesmo, imagina que o benefício conferido a ele pela graça de Deus é se próprio mérito. E essa imaginação, produzindo a vaidade, se torna causa de queda; queda essa que entendemos como tendo sido o caso do diabo, que atribuiu a si mesmo a preeminência que possuía quando estava livre do pecado. “Porque quem se exalta será humilhado, e que se humilha será exaltado[34]”.

E observe que por essa razão as coisas divinas foram ocultas do sábio e do prudente, para que, como disse o Apóstolo, “nenhuma carne se glorifique na presença de Deus[35]”, e foram reveladas às crianças, àqueles que depois da infância voltaram à humildade e à simplicidade das crianças, para a partir daí avançar para a perfeição, recordando que não é tanto por seu esforço, mas pela indizível bondade de Deus, que alcançaram um grau maior possível de felicidade.

13.   O tratamento curativo da alma

Não é sem razão, portanto, que quem é abandonado, é abandonado ao juízo divino, e que Deus é paciente com certos pecadores; mas para que, já que é para seu benefício no que diz respeito à imortalidade da alma e ao mundo que não acabará, não seja rapidamente trazido ao estado de salvação, mas que seja conduzido mais devagar, depois de haver experimentado muitos males. Porque, assim como os médicos, que são capazes de curar rapidamente um homem, quando suspeitam de algum veneno oculto no corpo, fazem o contrário dos casos normais de cura, sabendo que é mais saudável retardar o tratamento nos casos de inflamação, deixando fluir os humores malignos para que o paciente possa recuperar sua saúde mais rapidamente, ao invés de realizar uma cura rápida, pois essa poderia causar uma recaída na enfermidade e até a destruição da vida, pois a cura precipitada dura só um momento[36].

Da mesma maneira, Deus, que conhece as coisas secretas do coração, e que prevê todos os acontecimentos futuros, em sua longanimidade, permite que ocorram certos acontecimentos, para que, vindo desde fora sobre o homem, coloquem diante de seus olhos suas paixões e vícios ocultos, para, por meio disso, limpar e curar o mal escondido, que por descuido ou negligência recebeu as sementes do pecado, para que, quando chegarem à superfície, possam ser vomitadas. E ainda que tenha estado profundamente envolvido no mal, possa o homem ser renovado, depois de obter a cura de sua maldade. Porque Deus não governa as almas em relação, digamos a uns cinquenta anos da vida presente, mas com relação a uma idade ilimitada, porque ele fez o princípio pensante – a substância racional – imortal por sua natureza, e semelhante a Ele; e por tanto, a alma, que é imortal, não está excluída, por causa da brevidade da vida presente, dos remédios divinos e das curas[37].

14.   O grande Semeador da humanidade

Vamos agora utilizar a seguinte imagem do Evangelho: existe um determinado solo rochoso, com pouca terra, no qual, quando cai uma semente, brota rapidamente, mas, tão depressa quanto aparece se esgota, já que não possui raízes e o sol a seca e queima[38]. Pois bem, esse solo rochoso é a alma humana, endurecida devido à sua negligência e convertida em pedra por sua maldade, porque ninguém recebe de Deus um coração de pedra, mas o torna assim por causa de sua própria maldade.

Se alguém considera culpado o semeador por não haver semeado mais depressa no solo rochoso, tendo visto que outro solo rochoso recebera a semente rapidamente, o semeador poderá responder: “Vou semear esse terreno lentamente, colocando sementes que sejam capazes de se enraizar; esse método mais lento é melhor para o terreno e mais seguro do que lançar a semente rapidamente, que só atinge a superfície”. Assim fica respondida a questão pelo semeador, com boa razão e trabalhada com habilidade. Da mesma forma, o grande Semeador de toda a natureza posterga os benefícios que poderiam ser prematuros, para que não sejam superficiais. Pois é provável que exista um propósito nisso. Por que algumas sementes caem sobre a terra superficial, sendo a alma algo parecido com uma rocha?

Devemos dizer em resposta a isso, que é melhor para essa alma, que desejava precipitadamente as melhores coisas (e não pelo caminho que conduz a elas), que não obtenha seu desejo, para que, condenando a si própria, possa, depois de um longo tempo, receber a semeadura que seja conforme à sua natureza. Porque as almas são, como dizem alguns, inumeráveis, assim como seus hábitos, propósitos, competências e esforços, dos quais só existe um administrador admirável, que conhece as estações e as ajudas idôneas, as avenidas e os caminhos, vale dizer, Deus Pai de todas as coisas, que conhece inclusive como iria se comportar o Faraó diante de eventos tão grandes, e que seria tragado pelo mar, acontecimento derradeiro que não encerrou o trabalho do superintendente do Faraó. Porque ele não foi aniquilado quando se afogou, já que “nas mãos de Deus estamos nós e nossas palavras, nosso conhecimento e nossas obras[39]”.

Essa é nossa moderada defesa do dito “Deus endureceu o coração do Faraó”. “De maneira que tem misericórdia de quem quer, e endurece a quem quer[40]”.

15.   Deus retira o coração duro, o homem o pede

Vejamos também a declaração de Ezequiel, que diz: “Retirarei deles o coração de pedra de sua carne, e lhes darei um coração de carne; para que andem segundo meus mandamentos, e guardem meus juízos e os cumpram, e sejam para mim um povo, e Eu seja para ele seu Deus[41]”. Porque se Deus, quando quer, retira os corações empedrados e implanta corações de carne para que obedeçam aos seus preceitos e observem seus mandamentos, não está em nosso poder retirar a maldade. Porque retirar os corações de pedra não é outra coisa do que retirar a maldade, por cuja causa a pessoa se torna endurecida. O ato de retirar o coração de pedra e de implantar um coração de carne conforme Ele queira, para que se guarde seus preceitos e se ande segundo seus mandamentos, que outra coisa é, senão tornar-se dócil e não resistente à verdade, tornando-se capaz de praticar suas virtudes?

E, se Deus promete fazer isso, e se antes retira os corações de pedra, é evidente que não depende de nós livramo-nos da maldade. E se não somos nós que fazemos algo para implantar um coração de carne, mas que essa é uma obra divina, não será ato nosso viver conforme a virtude, mas o resultado total da graça divina. Esse seria o argumento de quem, por trás das meras palavras da Escritura, quisesse eliminar o livre arbítrio.

Mas contestemos, dizendo que nós deveríamos entender essa passagem assim:  por exemplo, um homem que seja ignorante e inculto, ao perceber seus próprios defeitos devido à exortação de seu mestre ou de algum outro, espontaneamente se entregaria a quem ele considera capaz de introduzi-lo na educação e na virtude; e assim, ao confiar-se ao instrutor, esse prometerá eliminar sua ignorância e implantar nele a instrução, não como se ele não precisasse contribuir em nada para sua educação e a eliminação de sua ignorância, para cuja cura se entregou, mas porque o instrutor prometeu melhorar a quem deseja a melhora; assim, da mesma maneira, a Palavra de Deus promete retirar a maldade, que é chamada de “coração de pedra”, daqueles que acodem a Deus. Não seria assim se eles estivessem indispostos, mas apenas porque se submetem ao Médico dos enfermos, como nos Evangelhos os enfermos procuravam o Salvador, perguntando, pedindo e obtendo a cura.

E deixem-me dizer, a recuperação da vista do homem cego é, na medida em que este expressou seu pedido, o ato dos que creem que são capazes de se curar; mas quanto à restauração da vista, é obra de nosso Senhor. Assim, pois, a Palavra de Deus promete implantar o conhecimento nos que o buscam, retirando o coração duro e difícil, que é a maldade, para que a pessoa possa andar seguindo os mandamentos divinos e guardando seus preceitos.

16.   O propósito das parábolas para os “de fora”

Encontramos no Evangelho, depois da passagem sobre o semeador, a menção de que o Salvador falava em parábolas para os “de fora” pela seguinte razão: “Para que olhem, mas não vejam, escutem, mas não compreendam, para que não se convertam e não sejam perdoados[42]”. Agora nosso oponente dirá: “Se algumas pessoas são sem dúvida convertidas pelas palavras que escutam com grande clareza, para que sejam dignas da remissão dos pecados, mas se não depende delas ouvir essas palavras com clareza, mas sim daquele que as ensina, e se este, por essa razão, não as anuncia mais claramente, para que vejam mas não entendam, não está neles o poder de ser salvos; e, se assim for, então não possuímos o livre arbítrio quanti à nossa salvação ou condenação”.

Eficaz, de verdade, seria a resposta a tais argumentos, se não fosse por essa adição: “Para que não se convertam e não sejam perdoados”. A saber: o Salvador não desejou que aqueles que não iriam se tornar bons e virtuosos entendessem as partes mais místicas de seu ensinamento, e por esse motivo falou em parábolas; mas agora, devido às palavras: “para que não se convertam e não sejam perdoados”, a defesa é mais difícil.

Em primeiro lugar, pois, devemos notar a passagem em sua aceitação pelos hereges, que buscam as partes do Antigo Testamento onde se expõe, como atrevidamente afirmam eles próprios, a crueldade do Criador do mundo e seu objetivo de vingança e castigo do ímpio (ou por qualquer outro nome que desejem designas tal sentimento), falando assim para dizer apenas que não existe bondade no Criador. Porque não julgam os Evangelhos com a mesma mente e sentimentos, e não observam se declarações desse tipo se encontram no Evangelho, as quais condenam e censuram quando aparecem no Antigo Testamento.


Porque é evidente, segundo o Evangelho, que o Salvador, como eles próprios admitem, não fala claramente, e por uma razão: para que os homens não possam se converter, e, uma vez convertidos, recebam a remissão dos pecados. Agora, se essas palavras forem entendidas apenas segundo a letra, nada menos, certamente, se encontrará nelas do que o que contêm aquelas passagens que eles refutam no Antigo Testamento.

E, se buscam defender o Evangelho de semelhantes expressões, devemos perguntar-lhes se não estão agindo dessa maneira culpável, ao tratar de modo diferente as mesmas questões, e, enquanto não se escandalizam com o Novo Testamento, mas buscam defendê-lo, apresentam uma acusação ao Antigo Testamento em pontos similares, nos quais poderiam oferecer uma linha de defesa semelhante ao que fazem com o Novo.

Portanto nós os obrigaremos, devido às semelhanças, que considerem tudo como Escrituras do mesmo Deus. Vamos, pois, com o melhor de nossa capacidade, oferecer uma resposta à pergunta que eles fizeram.

17.   Os tempos de Deus para a salvação

Já afirmamos, falando do caso do Faraó, que às vezes uma cura rápida não é vantajosa para os que precisam ser curados, sobretudo se a enfermidade está nas partes interiores do corpo. Menosprezar o mal porque parece de cura fácil, e não permanecer de guarda contra um segundo assalto, é ser presa do mesmo outra vez. Portanto, no caso de tais pessoas, Deus, que conhece todas as coisas antes de que existam, em conformidade com sua bondade, retarda sua assistência urgente e, por assim dizer, os ajuda não os ajudando, com vistas ao seu bem.

É provável, então, que aqueles “de fora” de quem falamos, tendo sido previamente conhecidos pelo Salvador, segundo nossa suposição, e que poderiam ser levados a uma rápida conversão ao receber com mais clareza as palavras que lhes eram ditas, tenham sido tratados pelo Senhor de modo a que não escutassem com entendimento as coisas profundas de seu ensinamento, para evitar que, depois de uma conversão rápida e de ter sido sanados, obtendo a remissão de seus pecados, menosprezassem as feridas da maldade, como se se tratasse de algo leve e de fácil remediação, e assim recaíssem neles, nos pecados, com facilidade. Talvez, também, tenham sofrido o castigo por suas transgressões anteriores contra a virtude, cometidos quando se esqueceram dela, e não houvessem ainda completado seu tempo, de forma a que, abandonados pela direção divina, e cheios até ao máximo com os próprios males que semearam, pudessem ser chamados depois a um arrependimento mais estável, evitando ser rapidamente enredados outra vez naqueles males nos quais haviam sido implicados quando trataram com insolência as exigências da virtude e se dedicaram a coisas piores.

Aqueles, pois, de quem se disse serem “de fora” – evidentemente por oposição aos “de dentro” – não estando muito distantes dos “de dentro” – que ouviam claramente – ouviram de modo encoberto, porque se lhes falava em parábolas; mas, não obstante, ouviam.

Outros, mais uma vez, “de fora”, chamados tírios, embora se soubesse há muito tempo que haviam se arrependido vestindo-se de sacos e cobrindo-se de cinzas, caso o Salvador tivesse chegado até suas fronteiras, sequer teriam escutado as palavras ouvidas pelos “de fora”[43]. Por essa razão, creio que a maldade foi mais grave e pior em uns do que em outros, pois alguns “de fora” ouviram a palavra, ainda que em parábolas; e talvez sua cura tenha se retardado para que em outro tempo, depois de ser mais tolerável para eles do que para os que não receberam a palavra (dentre os quais também os tírios foram mencionados), pudessem, ouvindo a palavra num tempo mais apropriado, obter um arrependimento mais duradouro.

Mas observe-se se, além de nosso desejo de investigar a verdade, nos esforçamos por manter uma atitude de piedade em tudo o que se refere a Deus e a Cristo, visto que tratamos de provar por todos os meios que, em assuntos tão grandes e peculiares a respeito da múltipla providência de Deus, Ele supervisiona a alma imortal. E se alguém perguntasse sobre aquelas objeções que nos foram feitas: por que aqueles que viram as maravilhas e ouviram as palavras divinas não se beneficiaram, enquanto que os habitantes de Tiro se arrependeram, e por que o Salvador fez e disse tais coisas àquelas pessoas, para seu próprio prejuízo, considerando sua falta ainda mais grave? A isso devemos dizer, àqueles que justificam as posições dos que encontram falhas na Sua providência (alegando que [os “de fora”] não creram por não ter-lhes sido permitido ver o que outros viram, nem ouvir o que outros ouviram), que, para demonstrar que sua defesa não se fundamenta na razão, Deus concede essas vantagens a eles mesmos que culpam sua administração: para que, depois de obter essas vantagens, tornem-se réus da maior impiedade por não terem sequer renunciado ao benefício, e que possam parar com tal audácia e, sendo livres em relação a esse ponto, possam aprender que às vezes Deus, ao conferir benefícios a certas pessoas, retarda e adia conceder a visão e o entendimento daquelas coisas vistas e ouvidas, que, por serem vistas e ouvidas, teriam tornado o pecado dos incrédulos, depois de maravilhas tão grandes e peculiares, muito mais grave e sério.

18.   “Não depende do que quer, nem do que corre”

Vejamos agora a seguinte passagem: “Não é do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que tem misericórdia[44]”, já que aqueles que encontram erros dizem: “se não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que tem misericórdia”, a salvação não depende de nós, mas do arranjo feito por Aquele que nos fez tal como somos, ou, no mínimo, depende de uma decisão sua mostrar-se misericordioso com quem melhor lhe pareça. Agora, temos que fazer algumas perguntas a essas pessoas: é bom ou vicioso desejar o que é bom? Ou, o desejo de correr até a meta para alcançar o que é bom, é digno de elogio ou de censura? Se responderem que é digno de censura, oferecerão uma resposta absurda, já que todos os santos desejam correr e, manifestamente, ao fazê-lo não fazem nada que seja indigno. Mas se disserem que é virtuoso desejar o bem e correr atrás dele, lhes perguntaremos como uma natureza perdida pode desejar coisas melhores, porque seria como uma árvore má que produzisse bons frutos, já que é um ato virtuoso desejar coisas melhores.

Talvez eles nos ofereçam uma terceira resposta, que o desejo de correr atrás do que é bom é uma coisa indiferente, nem boa, nem má. A isso devemos dizer que se o desejo de correr atrás do que é bom for uma coisa indiferente, então o oposto também será indiferente, a saber, desejar o mal e correr atrás dele. Mas desejar o mal e correr atrás dele não é uma coisa indiferente. Portanto, desejar o bem e persegui-lo tampouco será indiferente. Tal é, pois, a defesa que podemos oferecer quanto à afirmação: “Não é do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que tem misericórdia”.

19.   “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam”

Salomão disse no Livro dos Salmos: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam[45]”. A intenção dessas palavras não é de nos afastar do esforço para edificar, ou de abandonar toda vigilância e cuidado com a cidade que é nossa alma. Estaremos corretos se dissermos que um edifício é obra de Deus, mais do que do construtor, e que a salvaguarda da cidade ante um ataque inimigo é mais obra de Deus do que dos guardas.

Mas quando falamos assim, estamos supondo que o homem tem sua parte naquilo que se leva a cabo, ainda que o atribuamos agradecidos a Deus, que é quem nos garante o êxito. De maneira semelhante, o homem não é capaz de alcançar seu fim por si mesmo. Este só pode ser obtido com a ajuda de Deus, e assim é verdadeiro “que não é do que quer, nem do que corre”. Da mesma maneira, deveríamos dizer aquilo que se diz da agricultura, segundo está escrito: “Eu plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento. Assim, nem o que planta é algo, nem o que rega, mas somente Deus, que dá o crescimento[46]”. Quando um campo produz boas e ricas colheitas maduras, ninguém afirmará piedosa e logicamente que o granjeiro produziu os frutos, mas é forçoso reconhecer-se que esses foram produzidos por Deus; da mesma forma, nossa obra de perfeição não amadurece se ficarmos inativos e ociosos, e no entanto não obteremos a perfeição apenas por nossa própria atividade. Deus é o agente principal para levá-la a cabo. Podemos explicar isso com um exemplo retirado da navegação. Numa navegação feliz, a parte que depende da perícia do piloto é muito pequena se comparada aos influxos dos ventos, do tempo, da visibilidade das estrelas, etc. Os próprios pilotos, normalmente, não se atrevem a atribuir à sua própria diligência a segurança do barco, mas atribuem tudo a Deus. Isso não quer dizer que não tenham dado sua contribuição: mas a providência divina desempenha um papel infinitamente maior do que o que fazemos nós, e, penso, que é por isso que se disse: “Não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deis, que tem misericórdia”. Porque, da maneira como eles explicam, os mandamentos são supérfluos e é em vão que Paulo culpa os que se afastam da verdade e elogia os que permanecem na fé; nem haveria propósito algum em dar certos preceitos e instruções às Igrejas, se fosse vão desejar e lutar pelo bem. Mas é certo que essas coisas não são feitas em vão, e também que os apóstolos não deram instruções em vão, nem o Senhor Suas leis em vão.

Daí segue, pois, que declaremos ser em vão que os hereges falam mal dessas boas declarações.

20.   “Deus é aquele que em vós opera tanto o querer como o fazer”

Ademais dessas, temos a passagem que diz: “Deus é aquele que em vós opera tanto o querer como o fazer, por sua boa vontade[47]”. Se for assim, dizem alguns, Deus é o responsável pela nossa má vontade, e nós não temos verdadeira liberdade; e, por outro lado, dizem, não existe mérito algum em nossa boa vontade e em nossas boas obras, já que o que parece ser nosso é ilusão, sendo na realidade uma imposição da vontade de Deus, sem que nós tenhamos verdadeiramente liberdade.

A isso podemos responder observando que o Apóstolo não diz que o querer o bem ou querer o mal procedem de Deus, senão simplesmente que o querer, em geral, procede de Deus. Assim como nossa existência enquanto animais ou enquanto homens procede de Deus, também nossa faculdade de querer em geral, ou nossa faculdade de nos mover. Como animais, temos a faculdade de mover nossas mãos e nosso pés, mas não seria exato dizer que qualquer movimento específico, como matar, por exemplo, ou destruir, ou roubar, proceda de Deus. A faculdade de nos mover procede Dele, mas nós podemos empregá-la para fins bons ou maus. Da mesma forma, provém de Deus o querer e a capacidade de levar a cabo, mas podemos empregá-la para fins bons ou maus[48].

21.   “Vasos de honra, vasos de desonra”

DE qualquer modo, a declaração do Apóstolo parece nos conduzir à conclusão de que possuímos liberdade de vontade, ao objetar a si mesmo: “Portanto, Deus usa de misericórdia com quem Ele quer, e endurece a quem Ele quer. Direis então: “Por que Deus ainda se queixa? Quem pode resistir à Sua vontade dele?”. Mas, quem és tu, homem, para discutires com Deus? Por acaso, o vaso de barro diz ao oleiro: “Por que me fizeste assim?”. Por acaso o oleiro não é dono da argila, para fazer com a mesma massa dois vasos, uma para uso nobre e outro para uso comum?[49]”.

Se o ceramista faz do mesmo barro vasos de honra e outros de desonra, e se Deus assim forma alguns homens para a salvação e outros para a perdição, então a salvação ou a perdição não dependem de nós, nem nós possuímos livre arbítrio

Agora devemos perguntar a quem interpreta desse modo essas passagens, se é possível conceber que o Apóstolo contradiga a si mesmo. Suponho que ninguém se atreverá a dizê-lo. Assim, se o Apóstolo não se contradiz, como pôde censurar logicamente – segundo quem o entende dessa maneira – o indivíduo de Corinto que cometeu fornicação, ou aos que não se arrependeram de sua impureza e comportamento licencioso? E como pôde bendizer aos que elogiou por terem feito o bem, como fez com a casa de Onesífero com as palavras: “Que o Senhor conceda misericórdia à família de Onesíforo, porque ele muitas vezes me confortou e não se envergonhou de eu estar preso; ao contrário, quando chegou a Roma, ele me procurou com insistência, até me encontrar. Que o Senhor lhe conceda misericórdia junto a Deus naquele Dia[50]”.

Não é consistente para o mesmo Apóstolo culpar, de um lado, o pecador digno de reprovação e elogiar o que fez o bem como merecedor de aprovação, e, por outro lado, dizer, como se nada dependesse de nós, que a causa é o Criador, que teria formado um vaso para a honra e outro para a desonra. E como pode ser correta a declaração: “De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a recompensa daquilo que tiver feito durante a sua vida no corpo, tanto para o bem, como para o mal[51]”?  - já que os que fizeram o mal avançaram para esse abismo de maldade por terem sido criados como vasos de desonra, enquanto que os que viveram virtuosamente terão feito o bem porque foram criados desde o princípio para isso, como vasos de honra.

E mais uma vez: como pode estar em desacordo a afirmação feita em outra parte com a opinião que essas pessoas extraem das palavras citadas (que é culpa do Criador que um vaso seja de honra e outro de desonra), a saber: “Numa casa grande, não há somente vasos de ouro e prata; há também de madeira e barro. Alguns são para uso nobre, outros para uso comum. Aquele que se purificar desses erros será vaso nobre, santificado, útil para o seu dono e preparado para toda boa obra[52]”, porque, se quem purifica a si mesmo se torna vaso de honra, e quem se permite permanecer sujo se torna vaso de desonra, então, nhoque se refere a isso, o Criador não tem culpa alguma.

Porque o Criador não fez vasos de honra e vasos de desonra desde o princípio segundo seu conhecimento prévio, já que Ele não condena nem justifica de antemão, mas torna vasos de honra aos que se purificam, e vasos de desonra aos que se permitem permanecer impuros; assim é o resultado de causas antigas que operam na formação de vasos de honra e desonra.

Mas uma vez que admitimos que havia certas causas antigas operando na formação de um vaso de honra ou de desonra, o que há de absurdo em regressar ao tema da alma e supor que havia uma causa mais antiga para que Jacó fosse amado e Esaú detestado, anterior a que Jacó assumisse um corpo e antes que Esaú fosse concebido no seio de Rebeca?

22.   Causas antecedentes do destino das almas

Ao mesmo tempo, está dito claramente que, no que diz respeito à natureza subjacente, existe um pedaço de argila na mãos do ceramista, de cuja massa são feitos vasos de honra e de desonra; da mesma forma, a natureza de cada alma está nas mãos de Deus e, por assim dizer, sua existência é uma massa de seres racionais, e certas causas de tempo anterior levam alguns seres a ser criados como vasos de honra e outros de desonra.

Mas a linguagem do Apóstolo pressupõe uma censura, quando ele diz: “Quem és tu, para discutires com Deus?”, ensinando-nos que quem tem confiança em Deus é fiel, e viveu virtuosamente, de modo que não ouvirá as palavras “Quem és tu, para discutires com Deus?”, mas, como Moisés, escutará, por exemplo: “Moisés falava, e Deus lhe respondia com uma voz[53]”, da maneira como Deus responde também aos santos. Mas a quem não possui essa confiança, ou porque a perdeu, ou porque investiga esses assuntos não por amor ao conhecimento, mas por um desejo de encontrar falhas, se lhe diz: “Quem és tu, para buscar faltas em Deus?” e “Por que, quem resistiu à Sua vontade?”, e ele terá merecido a linguagem de censura que diz: “Quem és tu, para discutires com Deus?”.

Àqueles que introduzem naturezas diferentes, e que utilizam a declaração do Apóstolo para apoiar suas opiniões, deve-se dar a seguinte resposta. Se sustentarem que os que se perdem e os que se salvam são formados da mesma massa, e que o Criador dos que se salvam é também o Criador dos que se perdem, e se está certo que Ele crie não apenas naturezas espirituais, como também terrenas (pois isso se deduz de sua doutrina), é, não obstante, possível que um, como consequência de certos atos anteriores de justiça, seja feito agora vaso de honra, enquanto outro (depois) que não agiu de maneira similar, nem fez coisas próprias de um vaso de honra, seja convertido em outro mundo em vaso de desonra.

Por outro lado, é possível que quem, devido a causas mais antigas do que as da vida presente, seja aqui um vaso de desonra, possa, depois de se reformar, converter-se na nova criação em “vaso de honra, santificado e útil para o uso do Senhor, preparado para toda boa obra”.

E talvez os que agora são israelitas, não tendo vivido com a dignidade de seus antepassados, sejam privados de seu grau e transformados, por assim dizer, de vasos de honra em vasos de desonra; e muitos dos egípcios presentes, e idumeus, que se aproximam de Israel, quando deem fruto em abundância, entrarão na Igreja do Senhor, já não sendo considerados egípcios ou idumeus, mas israelitas. Assim, de acordo com essa visão, é devido a vários propósitos que alguns avancem de uma condição melhor para outra pior, e outros de uma pior para outra melhor, enquanto que outros ainda perseveram em seu curso virtuoso, ou ascendem do bom para o melhor; e outros, ao contrário, permanecem no curso do mal, ou do mal vão a pior, segundo flua sua maldade.

23.   Reconciliação da vontade divina com a humana

Mas em determinado lugar o Apóstolo não leva em conta o que concerne a Deus no tocante a que resultem vasos de honra ou desonra, mas o atribui a nós mesmos, dizendo: “Se alguém se limpar dessas coisas, será vaso de honra, santificado e útil para o uso do Senhor, preparado para toda boa obra[54]”, enquanto que em outro lugar não leva em conta o que se refere a nós, mas parece atribuir tudo a Deus, dizendo: “Por acaso o oleiro não é dono da argila, para fazer com a mesma massa dois vasos, uma para uso nobre e outro para uso comum?[55]”.

Não pode haver contradição entre essas expressões do mesmo Apóstolo, mas devemos conciliá-las e por meio delas chegar a uma interpretação que tenha pleno sentido.

Nem o que está em nosso poder, está sem o conhecimento de Deus, nem o conhecimento de Deus nos força a avançar se de nossa parte não contribuímos em nada para fazer o bem; nem ninguém se torna digno de honra ou de desonra por si mesmo, sem o conhecimento de Deus e sem ter esgotado aqueles meios que estão ao nosso alcance, nem ninguém se torna digno de honra ou de desonra apenas pela obra de Deus, mas porque oferece como base para essa diferenciação o propósito de sua vontade, que se inclina para o bem ou para o mal.

Que essas observações sejam suficientes sobre o tema do livre arbítrio.



2
AS POTÊNCIAS ADVERSAS

1.       O diabo no Antigo Testamento

Temos que considerar, de acordo com as declarações da Escritura, o modo como as potências adversas, ou o próprio diabo, competem com o ser humano, numa disputa na qual incitam e instigam os homens a pecar.

Em primeiro lugar, no Livro do Gênesis, a serpente é descrita como tendo seduzido a Eva. Na obra intitulada A Ascensão de Moisés (um pequeno tratado que o apóstolo Judas menciona em sua epístola), o arcanjo Miguel, na disputa com o diabo sobre o corpo de Moisés, diz que a serpente, inspirada pelo diabo, foi a causa da transgressão de Adão e Eva.

Alguns também converteram em matéria de investigação o texto onde se diz que um anjo falou a Abrahão desde o céu: “Nesse momento, o anjo do Senhor o chamou do céu e disse: ‘Abrahão, Abrahão!’. Ele respondeu: ‘Aqui estou!’. O anjo continuou: ‘Não estenda a mão contra o menino! Não lhe faça nenhum mal! Agora sei que você teme a Deus, pois não me recusou seu filho único’[56]”. Quem era esse anjo? Evidentemente um anjo que sabia que Abrahão temia a Deus e que não havia recusado seu filho querido, ainda que não se tenha dito que foi por causa de Deus que Abrahão tenha feito isso, mas por causa do que falou: “não me recusaste teu filho”.

Também devemos averiguar quem é aquele de quem se diz no Livro do Êxodo que desejou matar a Moisés: “Durante a viagem, numa hospedaria, Javé foi ao encontro de Moisés e procurava matá-lo[57]”, ao qual depois se chamou de “anjo exterminador”: “Porque Jeová passará ferindo os egípcios[58]”.

O anjo que no Livro do Levítico se chama em grego Apopompeus, isso é, “O que retira”, de quem a Escritura diz: “Uma sorte para Jeová, outra sorte para Azazel[59]”.

No Primeiro Livro de Reis, também se diz que um espírito mau estrangulava Saul: “Outro dia aconteceu que um espírito mau da parte de Deus tomou Saul, e se mostrava em sua casa, com delírios de profeta[60]”, e no Terceiro Livro, o profeta Miqueias diz: “Eu vi Javé sentado em Seu trono, e todo o exército do céu estava em pé, à direita e à esquerda de Javé. E Javé perguntou: ‘Quem poderá enganar Acab, para que ele vá e morra em Ramot de Galaad?’ Uns diziam uma coisa, e outros diziam outra. Então um espírito se aproximou, ficou diante de Javé, e disse: ‘Eu posso enganá-lo’. Javé lhe perguntou: ‘De que modo?’ Ele respondeu: ‘Irei e me transformarei em oráculo falso na boca de todos os profetas’. Javé lhe disse. ‘Você conseguirá enganá-lo. Vá e faça isso’. Como se pode ver, Javé colocou oráculos falsos na boca de todos esses profetas do rei, porque Javé decretou a ruína do rei[61]”. Essa citação mostra claramente que um certo espírito, por sua própria vontade e opção, decidiu enganar a Acab dizendo uma mentira, para que o Senhor, pudesse levar ao rei à morte que ele merceia receber.

No Primeiro Livro de Crônicas, também se diz: “Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi que contasse a Israel[62]”. Nos Salmos, ademais, diz-se que um anjo do mal acossa certas pessoas. No Livro do Eclesiastes, também, Salomão diz: “Se o espírito do príncipe se exaltar contra ti, não deixes teu lugar; porque a mansidão fará cessar grandes ofensas[63]”. Em Zacarias lemos que o diabo estava na mão direita de Josué e lhe resistia: “E me mostrou a Josué, o grande sacerdote, o qual estava diante do anjo de Jeová; e Satanás estava em sua mão direita para ser-lhe adversário[64]”. Isaías diz que a espada do Senhor se levanta contra o dragão, a serpente retorcida: “Naquele dia Jeová visitará com sua espada dura, grande e forte, contra Leviatã, serpente escorregadia, serpente retorcida; e matará o dragão que está no mar[65]”. E que dizer de Ezequiel, que em sua segunda visão profetiza sem dar margem a erro a respeito do príncipe de Tiro com relação a uma potência adversa, e diz ainda que o dragão habita nos rios do Egito[66]?

De quem se ocupa toda a obra de Jó, senão do diabo, que solicita permissão e poder sobre tudo o que Jó possui: filhos, lar e até sua própria pessoa? E ainda assim o diabo é vencido pela paciência de Jó. Nesse livro o Senhor distribuiu muita informação com suas respostas sobre o poder do dragão que nos combate.

Estas são as afirmações que são feitas no Antigo Testamento, até onde podemos recordar, sobre o tema dos poderes hostis citados na Escritura, ou dos que se diz que se opõem à raça humana, sujeitos a um castigo posterior.

2.       O diabo no Novo Testamento

Vejamos agora o Novo Testamento, onde Satanás se aproxima do Salvador para tentá-lo, onde também se diz que existem espíritos maus e demônios impuros, que haviam se apossado de muitos e foram expulsos pelos Salvador dos corpos da vítimas, a quem Cristo libertou.

Inclusive Judas, quando o diabo colocou em seu coração que traísse o Mestre, recebeu-o totalmente, segundo está escrito: “E junto com o pedaço [de pão] Satanás entrou nele[67]”. E o apóstolo Paulo nos ensina que não devemos dar espaço para o diabo, mas que devemos “tomar a armadura de Deus, para poder resistir no dia mau, e estar firmes, depois de tudo acabado”, assinalando que os santos “não devem lutar contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades, contra os senhores do mundo: governadores das trevas, contra as malícias espirituais nos ares[68]”. Ele chega a dizer que o Salvador foi crucificado pelos príncipes desse mundo, que, não obstante, serão aniquilados[69].

Mediante todas essas coisas, a Escritura nos ensina que existem certos inimigos invisíveis que lutam contra nós, e contra os quais ela nos ordena que nos armemos. Daí, também, que os mais simples dos crentes no Senhor Cristo opinam que todos os pecados que os homens cometeram foram causados pelos esforços persistentes desses poderes adversos, exercidos sobre a mente dos pecadores, porque nessa luta invisível eles estão numa posição de superioridade em relação ao homem. Porque, por exemplo, se não existisse o diabo, nenhum ser humano seria extraviado.

3.       A parte da natureza e a parte de Satanás

Não obstante, nós, que vemos as razões das coisas com mais clareza, não apoiamos essa opinião, levando em conta aqueles pecados que provêm evidentemente como consequência de nossa constituição corporal.

Devemos realmente supor que o diabo seja a causa de nossa sensação de fome e de sede? Ninguém, penso eu, se atreveria a sustentar isso. Se, então, ele não é a causa da sensação de fome ou de sede, onde reside a diferença entre isso e o indivíduo que, tendo alcançado a idade da puberdade entra nesse período em que são provocados os incentivos do calor natural? Seguir-se-á, indubitavelmente, que, assim como o diabo não é a causa de nossas sensações de fome e de sede, tampouco o será dessa apetência que surge naturalmente no momento da maturidade, a saber, o desejo da relação sexual. É certo que essa causa não é posta em movimento pelo diabo, de modo que estaríamos enganados se fôssemos obrigados a supor que nossos corpos não possuiriam esse desejo de relação sexual se não existisse o diabo.

Consideremos, em segundo lugar, se a comida é desejada pelos seres humanos, não por sugestões do diabo, como já mostramos, mas por uma espécie de instinto natural, e assim, se não houvesse o diabo, seria possível para a experiência humana exibir continência na hora de comer, para não exceder os limites apropriados, ou seja, não tomar mais do que o requerido no momento, ou o que ordene a razão, cujo resultado seria que, em relação à medida e à moderação no comer, ela (a experiência humana) nunca se equivocaria? Não creio, realmente, que os homens possam observar uma moderação tão grande (ainda que não houvesse instigação do diabo incitando à gula), nem que indivíduo algum, ao participar do alimento, deixe de ir além dos limites previstos, a menos que tenha aprendido a se conter, graças ao costume e à experiência.

Qual é, então, o estado do caso? No tema do comer e do beber, é possível nos excedermos, mesmo sem nenhuma incitação do diabo, se acontecer que sejamos menos moderados e cuidadosos do que se supõe que devêssemos ser. Sendo assim, no nosso apetite por relações sexuais, ou em relação à restrição de nossos desejos naturais, não será nossa condição algo similar?

Opino que a mesma linha de raciocínio deve ser aplicada a outros movimentos naturais como a cobiça, a cólera, a dor, e a todos aqueles que, geralmente pelo vício da intemperança, excedem os limites naturais da moderação.

4.       As sementes do pecado e a oportunidade dos demônios

Existem, portanto, razões manifestas para sustentar a opinião de que, assim como nas coisas boas a vontade humana é por si mesma fraca para realizar qualquer coisa boa (porque é pela ajuda divina que se obtém a perfeição em tudo), do mesmo modo, nas coisas de natureza oposta recebemos certos elementos iniciais, como se fossem sementes de pecado, daquelas coisas que usamos conforme a natureza; mas quando nos comprazemos além do que é apropriado, e não resistimos aos primeiros movimentos da intemperança, então o poder hostil, tomando a oportunidade dessa primeira transgressão, nos incita e pressiona com força por todos os lados, buscando estender nossos pecados por um caminho mais amplo, equipando, a nós seres humanos, com ocasiões e começos de pecados, que esses poderes hostis estendem em largura e comprimento, e, se possível, além de todo limite.

Assim, quando os homens, no princípio, desejam um pouco de dinheiro, a cobiça começa a crescer na medida em que a paixão aumenta, e, finalmente, acontece a queda na avareza. Depois disso, quando a cegueira da mente se sucede à paixão, os poderes hostis, com suas sugestões, apressam a mente, e o dinheiro desejado agora passa a ser roubado, ou tomado à força, ou mesmo mediante o derramamento de sangue humano.

Finalmente, uma evidência comprobatória do fato de que os vícios de tal enormidade procedem dos demônios, se pode ver facilmente no seguinte: que os indivíduos que são oprimidos pelo amor imoderado, ou pela cólera incontrolável, ou pela dor excessiva, não sofrem menos do que os que são fisicamente oprimidos pelo diabo.

Registram-se certas histórias, nas quais alguém cai de um estado de amor a um estado de loucura, outros de um estado de cólera, não poucos de um estado de dor, ou mesmo de uma alegria excessiva. Daí resulta, penso eu, que aqueles poderes adversos, isso é, os demônios que ganharam espaço em nossas mente – que a intemperança abriu para eles – se apossam por completo de sua natureza sensível, sobretudo quando nenhum sentimento de glória da virtude lhes oponha resistência.

5.       As tentações e a Providência divina

Que existem certos pecados, entretanto, que não provêm dos poderes adversos, mas que têm seus princípios nos movimentos naturais do corpo, isso é manifestamente declarado pelo apóstolo Paulo: “A carne deseja contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e essas coisas se opõem uma à outra, para que façais o que quereis[70]”. Se, então, a carne deseja contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, às vezes temos que lutar contra a carne e o sangue, isso é, como homens que vivem e agem segundo a carne, cujas tentações não são maiores do que as tentações humanas, já que nos foi dito: “Não fostes tentados além do que podeis suportar, porque Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, junto com a tentação, ele dará a vós os meios de sair dela e a força para suportá-la[71]”.

Porque, assim como os que presidem aos jogos públicos não permitem aos competidores entrar em listas sem critério, ou por casualidade, senão após um exame cuidadoso, emparelhando-os com imparcial consideração ao tamanho e à idade – esse indivíduo com aquele outro, jovens com jovens, homens com homens, que estejam relacionados uns com os outros por idade e força –, também assim devemos entender o procedimento da Providência divina, que ordena segundo princípios imparciais tudo o que participa da luta na existência humana, segundo a natureza do poder de cada um, que só é conhecido Daquele que pesa os corações dos homens, de modo a que cada qual lute contra as tentações que é capaz de suportar. A um tenta a carne, a outro a indulgência, a um a ira, a outro a preguiça. Um fica exposto longo tempo aos inimigos, outro é retirado logo da batalha. Em todos podemos observar a verdade do que disse o apóstolo: “Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, junto com a tentação, ele dará a vós os meios de sair dela e a força para suportá-la”. Isso é, cada qual é tentado em proporção à sua força e poder de resistência.

6.       Tentação e vitória

Agora, ainda que tenhamos afirmado ser pelo justo juízo de Deus que cada um é tentado conforme sua força ou resistência, não devemos supor, entretanto, que quem é tentado deva necessariamente sair vitorioso do conflito.

De maneira parecida, quem compete nos jogos, ainda que emparelhado com seu adversário sobre um princípio de justo confronto, nem por isso será necessariamente vencedor. Pois, a menos que a força dos combatentes seja igual, o prêmio do vencedor não terá sido ganho justamente, nem tampouco se lançará com justiça a culpa ao perdedor. No caso de Deus, Ele não permite que sejamos tentados “além do que somos capazes”, mas na proporção de nossas forças. E está escrito que juntamente com a tentação Ele nos mostrará a saída para que possamos resistir. Mas depende de nós usarmos o poder que nos foi dado, com energia ou debilidade.

Não há dúvida de que em cada tentação temos um poder de resistência, se empregarmos corretamente a força que nos é concedida. Mas não é a mesma coisa possuir o poder de conquistar e sair vitoriosos, como o próprio Apóstolo nos mostrou numa linguagem cautelosa, ao dizer: “Deus dará juntamente com a tentação a sápida, para que possais aguentar[72]” – não que o façamos sempre, já que muitos entram em tentação e são vencidos por ela.

Pois bem, Deus não nos capacita para não entrarmos em tentação, pois nesse caso não haveria luta, mas ele nos outorga o poder de resistir-lhe.

Esse poder que nos é dado para poder vencer pode ser usado, conforme nossa faculdade de livre arbítrio, de uma maneira diligente, e então sairemos vitoriosos; ou de uma maneira displicente, e terminaremos derrotados. Porque se nos fosse dado o poder total de vencer apesar de tudo, que razão haveria para permanecer numa luta na qual não se pode ser vencido? Ou que mérito existe numa vitória na qual se retira o poder de resistência? Mas a possibilidade de conquistar é conferida igualmente a todos, e, se está em nosso próprio poder o modo de usar essa possibilidade, a saber, com diligência ou negligência, então o derrotado será com justiça censurado, e o vencedor, merecidamente elogiado.

Desses pontos de que falamos, como melhor o podemos, penso que fica claramente evidente que existem certas transgressões que jamais cometemos sob a pressão de poderes malignos, enquanto que existem outras às quais somos incitados por instigação de sua parte, por causa de nossa indulgência excessiva ou imoderada. Daí se segue que devemos nos informar acerca de como os poderes adversos produzem essas incitações dentro de nós.

7.       O conflito das sugestões satânicas

No que concerne aos pensamentos que provêm de nosso coração, ou à recordação das coisas que fizemos, ou à contemplação de qualquer coisa ou causa, encontramos que às vezes essas coisas procedem de nós, e às vezes são originadas por poderes adversos; e que, não poucas vezes, são também sugeridas por Deus ou pelos santos anjos.

Essa declaração pode parecer incrível, a menos que seja confirmada pelo testemunho da Santa Escritura. Que os pensamentos surgem de nós mesmos, Davi o declara nos Salmos, dizendo: “O pensamento do homem Te confessará, e o resto de seu pensamento observará Tuas festas[73]”. Que eles também podem ser causados pelos poderes adversos, nos mostra Salomão no Livro do Eclesiastes: “Se o espírito do príncipe se exaltar contra ti, não abandones teu lugar; porque a mansidão fará cessar grandes ofensas[74]”.

Também o apóstolo Paulo dará testemunho sobre o mesmo ponto com as palavras: “Destruímos conselhos, e qualquer altura que se levante contra a ciência de Deus, e obrigamos todos os intentos à obediência de Cristo[75]”. Que esse efeito é devido a Deus, declara-o Davi, quando diz nos Salmos: “Bem-aventurado o homem que tem sua fortaleza em Ti, em cujo coração estão os Teus caminhos[76]”. E o Apóstolo diz que: “Deus colocou no coração de Tito[77]”.

Que certos pensamentos são sugeridos aos corações dos homens por anjos bons e maus, isso é mostrado, em ambos os casos, pelo anjo que acompanhou Tobias[78], e pelo texto do profeta, no qual diz: “E me disse o anjo que falava comigo[79]”. O Livro do Pastor declara a mesma coisa, dizendo que cada indivíduo é atendido por dois anjos, e que, sempre que surgem bons pensamentos em nossos corações, isso se deve ao anjo bom, mas quando surgem pensamentos de uma classe oposta, isso se deve à instigação do anjo mau[80]. O mesmo declara Barnabé em sua Epístola, na qual diz que existem dois caminhos, um de luz e outro de trevas, nos quais diz ele que certos anjos são colocados: os anjos de Deus no caminho de luz, os anjos de Satanás no caminho da escuridão.

Mas não vamos imaginar que qualquer outro resultado acompanhe o que é sugerido ao nosso coração, seja bom ou mau, salvo apenas uma comoção mental e uma incitação que nos inclina para o bem ou para o mal. Porque está dentro do nosso alcance, quando um poder maligno começa a incitar-nos ao mal, afastar para longe as más sugestões e nos opormos aos estímulos vis, e não fazermos nada que seja merecedor de culpa. E, por outro lado, é possível, quando um poder divino nos chama a coisas melhores, não obedecer ao chamado. E em ambos os casos nossa liberdade é preservada.

Nas páginas anteriores dissemos que certas recordações de ações boas e más podem nos ter sugeridas por um ato da providência divina ou pelos poderes adversos, como se mostra no Livro de Ester, quando Artaxerxes não se lembrou dos serviços do justo Mardoqueu, mas que quando, cansado de suas noites de vigília, Deus colocou em sua mente que pedisse que fossem lidos os anais onde estavam registrados os grandes feitos, recordou os benefícios recebidos de Mardoqueu e ordenou que seu inimigo Aman fosse enforcado, e que ele recebesse esplêndidas honrarias, bem como a impunidade em relação ao perigo que o ameaçava, concedido a toda a nação santa.

Por outro lado, entretanto, devemos supor que pela influência hostil do diabo se introduziu nas mentes do sumo sacerdote e dos escribas a sugestão que fizeram a Pilatos, quando se apresentaram a ele dizendo: “Senhor, lembramo-nos de que aquele enganador disse, quando ainda estava vivo: Depois de três dias ressuscitarei[81]”. Também o desígnio de Judas, a respeito da traição de nosso Senhor e Salvador, não proveio apenas da maldade de sua mente, já que a Escritura declara que “o diabo já havia colocado em seu coração traí-lo[82]”. Por isso Salomão ordena corretamente: “Acima de toda coisa guardada, guarda teu coração[83]”. E o apóstolo Paulo nos adverte: “Portanto é mister que com mais diligência atendamos às coisas que temos ouvido, para que não percamos o rumo[84]”. E quando diz: “Não dês lugar ao diabo[85]”, ele mostra com essa prescrição que é por meio de certos atos, ou por uma espécie de preguiça mental, que se cede espaço ao diabo, de modo que, se ele penetrar uma vez em nosso coração, se apossará de nós, ou ao menos contaminará a alma, se não a dominar por completo, atirando sobre nós seus dardos ardentes, pelos quais somos às vezes profundamente feridos, e que às vezes nos incendeiam. Raramente, na verdade, e só em poucos casos, esses dardos podem ser apagados a ponto de não encontrar lugar para ferir – exceto quando a pessoa se cobre com o escudo forte e poderoso da fé.

A declaração na Epístola aos Efésios: “Nós não devemos lutar contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades, contra os senhores do mundo: governadores das trevas, contra as malícias espirituais nos ares[86]”, deve ser entendida como significando esse “nós” como “eu-Paulo, vós-efésios”, e todos os que lutam não contra a carne e o sangue, já que temos que lutar contra principados e potestades, contra os senhores do mundo, contra os governadores das trevas, não como os coríntios, cuja luta era ainda contra a carne e o sangue, e aos quais ainda não sucedera nenhuma tentação que não as que são comuns aos homens.

8.       O poder de Cristo para vencer

Mas não vamos supor, entretanto, que cada indivíduo tenha que lutar contra todos esses adversários. Porque é impossível a qualquer homem, ainda que seja santo, manter batalhas contra todos eles ao mesmo tempo. Se esse fosse realmente o caso de alguma maneira, o que certamente seria impossível, a natureza humana não poderia suportá-lo sem ser totalmente destruída. Mas, por exemplo, se fosse ordenado a cinquenta soldados que enfrentassem outros cinquenta, essa ordem não seria entendida como se um só deles devesse enfrentar os cinquenta, mas cada um deles diria: “nossa guerra é contra os cinquenta”; da mesma forma devemos entender o significado do apóstolo Paulo, de que todos os atletas e soldados de Cristo devem lutar e guerrear contra todos os adversários enumerados, mas que a luta, mantida contra todos, é levada a cabo por indivíduos isolados e com poderes individuais, ou ao menos da maneira como for determinada por Deus, que preside o combate.

Pois sou de opinião de que existe um limite nos poderes da natureza humana, ainda que sejam os de Paulo, de quem foi dito: “Esse é o instrumento escolhido por mim[87]”; ou de Pedro, contra quem as portas do inferno não prevalecem[88]; ou de Moisés, o amigo de Deus. Ainda assim, nenhum deles seria capaz de sustentar o assalto simultâneo dos poderes adversos sem ser destruídos, a não ser que neles operasse a força única Daquele que disse: “Coragem, eu venci o mundo[89]”. Por isso, Paulo exclamou confiante: “Tudo posso em Cristo que me fortalece[90]”. E outra vez: “Trabalhei mais do que todos eles; mas não sou eu, mas a graça de Deus que está comigo[91]”.

Com base nesse poder, cuja operação certamente não é de origem humana, Paulo poderia dizer: “Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem as forças das alturas ou das profundidades, nem qualquer outra criatura, nada nos poderá separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor[92]”.

Penso que a natureza humana sozinha não pode manter uma contenda com anjos, com os poderes excelsos e profundos, ou com qualquer outra criatura; mas quando sente a presença do Senhor que mora dentro dela, a confiança na ajuda divina a leva a dizer: “O Senhor é minha luz e salvação: de quem terei medo? O Senhor é a fortaleza da minha vida: frente a quem tremerei? Quando os malfeitores avançam contra mim para devorar minha carne, são eles, meus adversários e inimigos, que tropeçam e caem. Que um exército acampe contra mim! Meu coração não tremerá! Que uma guerra estoure contra mim! Ainda assim estarei confiante![93]”. Saí deduzo que talvez um homem nunca seja capaz de vencer um poder adverso, a menos que conte com o socorro da assistência divina. Daí, também, que se diga que o anjo lutou contra Jacó. Aqui, porém, entendo que o cronista dá a entender que não é a mesma coisa para um anjo lutar contra Jacó e este haver lutado contra ele; mas sim que o anjo que lutou com ele é o que esteve presente com ele para garantir sua segurança, o qual, depois de conhecer também seu progresso moral, lhe deu ademais o nome  de Israel[94], isso é, “o que combate com Deus” ou “Deus combate”, e o assiste na contenda; pois vê-se que ali houve indubitavelmente outro anjo com quem lutou, e contra quem ele teve que prosseguir na luta. Finalmente, Paulo não disse que lutamos contra príncipes, ou poderes, mas contra principados e potestades. Daí que, tendo Jacó lutado, foi incontestavelmente contra algum desses poderes que resistem à raça humana e a todos os santos, segundo declara Paulo. Portanto, finalmente, diz a Escritura que “lutou com o anjo, e tinha o poder de Deus”, de modo que a luta foi apoiada pela ajuda do anjo, mas o prêmio do êxito conduziu o conquistador a Deus.

9.       A permissão divina das provas

Na verdade, não devemos supor que as lutas desse tipo se sustentam pelo exercício corporal e pelas artes das lutas, mas que o espírito combate com o espírito, segundo a declaração de Paulo, de que a nossa luta é contra os principados e potestades, contra os senhores das trevas desse mundo. Ou antes, devemos entender o seguinte a respeito da natureza dessa luta: quando, por exemplo, perdas e perigos nos atingem, ou se nos fazem calúnias e falsas acusações, o objetivo dos poderes hostis não é apenas que soframos essas provas, mas que, por meio delas sejamos levados ao excesso de ira ou de dor, ou ao fundo do desespero; ou, coisa que é um pecado ainda maior, que sejamos forçados a nos queixarmos contra Deus, quando estamos fatigados e vencidos por alguma moléstia, como se ele não administrasse justa e equitativamente a vida humana. A consequência disso pode ser a debilitação da fé, a decepção de nossa esperança, o abandono da verdade das nossas opiniões, ou o acolhimento de sentimentos antirreligiosos contra Deus.

A esse respeito foram escritas certas coisas sobre Jó, depois que o diabo solicitou de Deus de Deus o poder de tirar-lhe todos os bens que possuía. Com isso aprendemos também que não é por nenhum ataque acidental que somos assaltados, ainda que soframos alguma perda de propriedade; também não se deve ao acaso que alguém seja levado prisioneiro, ou quando o edifício onde moram entes queridos rui e desaba sobre eles, causando sua morte. A tudo isso, devemos responder: “nenhum poder terias sobre mim, se não te houvesse sido concedido do alto[95]”.

Observe que a casa de Jó não caiu sobre seus filhos enquanto o diabo não recebeu primeiro o poder sobre eles; tampouco os ladrões teriam irrompido em três esquadrões, levando seus camelos e bois e todo o seu gado, se não tivessem primeiro se entregado como servos da vontade do espírito que os instigava. Nem o fogo ou o raio, ao que parece, não teria caído sobre as ovelhas do patriarca, se antes disso o diabo não tivesse dito a Deus: “Tu mesmo puseste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens. Abençoaste os trabalhos dele e seus rebanhos cobrem toda a região. Estende, porém, a mão e mexe no que ele possui. Garanto que ele te amaldiçoará na cara![96]”.

10.   Nada é operado diretamente por Deus, e nada sem Ele

O resultado de todos os comentários precedentes consiste em mostrar que todos os acontecimentos do mundo que são considerados de um tipo intermediário, tanto afortunados como desafortunados, não são causados por Deus e, certamente, tampouco sem Ele. Por outro lado, Deus não só não impede os poderes maus e adversos que desejam trazer desgraças sobre nós para alcançar seus objetivos, como permite sua livre atuação, ainda que só em certas ocasiões e em casos muito particulares, como com Jó, por exemplo, que durante um tempo caiu sob seu poder e revê sua casa roubada por pessoas injustas.

A Santa Escritura, portanto, nos ensina a receber tudo o que acontece como coisas enviadas por Deus, sabendo que sem Ele nada ocorre. Como podemos duvidar que seja assim, vale dizer, que nada acontece ao homem sem a vontade de Deus, quando nosso Senhor e Salvador declara: “Não se vendem dois pardais por um quarto? Contudo, nenhum deles cai por terra sem vosso Pai.[97]”?

A necessidade desses casos nos afastou em nossa extensa digressão sobre o tema da luta empreendida pelos poderes hostis contra o homem, e daqueles tristes acontecimentos que acontecem na vida humana, isso é, as tentações, segundo a declaração de Jó: “Não é a vida inteira do homem sobre a terra uma tentação?[98]”, para que o modo como acontecem e o espírito com que os enfrentamos possam se manifestar claramente.

Notaremos a seguir como o homem cai no pecado do falso conhecimento, ou com que objetivo os poderes adversos tentam nos implicar nesse conflito.


3
A TRÍPLICE SABEDORIA

1.       A sabedoria superior de Deus

O santo Apóstolo, desejando ensinar-nos alguma verdade grande e oculta a respeito da ciência e da sabedoria, diz na primeira Epístola aos Coríntios: “Na realidade, é aos perfeitos na fé que falamos de uma sabedoria que não foi dada por este mundo, nem pelos príncipes deste século, que se desfazem. Falamos de uma sabedoria oculta de Deus em mistério, uma sabedoria oculta, aquela que ele projetou desde o princípio do mundo para nos levar à sua glória. Nenhuma autoridade do mundo conheceu tal sabedoria, pois se a tivessem conhecido não teriam crucificado o Senhor da glória[99]”. Nessa passagem, desejando descrever os diferentes tipos de sabedoria, o Apóstolo indica que existe uma sabedoria deste mundo e uma sabedoria dos príncipes deste século, e outra sabedoria de Deus. Mas quando ele usa a expressão “sabedoria dos príncipes deste século”, não penso que signifique uma sabedoria comum a todos os príncipes deste mundo, mas uma que seria peculiar a alguns indivíduos dentre eles. Da mesma forma, quando ele diz: “Falamos de uma sabedoria oculta de Deus em mistério, uma sabedoria oculta, aquela que ele projetou desde o princípio do mundo para nos levar à sua glória”, devemos nos perguntar qual seja o seu significado, se é a mesma sabedoria de Deus que esteve oculta em outros tempos e outras gerações, sem que fosse dada a conhecer aos filhos dos homens do modo como foi agora revelada aos santos apóstolos e profetas, e que foi também a sabedoria de Deus antes do advento do Salvador, por meio da qual Salomão adquiriu sua sabedoria, e em referência à qual o próprio Salvador declara que a ensinou mais do que Salomão: “Aqui está quem é maior do que Salomão[100]” – palavras que mostram que os que foram instruídos pelo Salvador foram instruídos em algo mais elevado do que o conhecimento de Salomão. E se alguém afirmar que o Salvador, na verdade, possuía maior conhecimento do que Salomão, mas que não o comunicou aos outros mais do que o fez Salomão, como poderá colocar-se de acordo com a declaração seguinte: “No dia do julgamento, a rainha de Sabá se levantará contra esta geração, e a condenará. Porque ela veio de uma terra distante para ouvir a sabedoria de Salomão. E aqui está quem é maior do que Salomão[101]”.

Existe, portanto, uma sabedoria deste século, e também, provavelmente, uma sabedoria que pertence a cada príncipe deste século individualmente. Mas no que diz respeito à sabedoria que só Deus possui, percebemos que isso está indicado que atuou em grau menor em tempos anteriores e mais antigos, e que depois se revelou e se manifestou mais plenamente por meio de Cristo. Mas examinaremos a sabedoria de Deus em lugar apropriado.

2.       A sabedoria do mundo

Agora, já que estamos falando da maneira como os poderes adversos fomentam disputas, mediante as quais introduzem o falso conhecimento na mente dos homens e extraviam suas almas – enquanto que esses imaginam ter descoberto a sabedoria – penso que é necessário distinguir a sabedoria deste mundo, e dos príncipes deste mundo, para que assim possamos descobrir quem são os pais dessa sabedoria, ou melhor, dessas classes de sabedoria. Sou de opinião, portanto, conforme declarei acima, de que existe outra sabedoria deste mundo ao lado das diferentes classes de sabedoria que pertencem aos príncipes deste mundo, e por essa sabedoria parece que são entendidas e compreendidas as coisas que pertencem a este mundo.

Essa sabedoria, porém, não possui em si mesma nenhuma propriedade que permita formar uma opinião sobre as coisas divinas ou sobre o plano de governo do mundo, ou sobre qualquer outro tema de importância para uma vida boa e feliz; mas ela é a que trata da arte e da poesia, por exemplo, da gramática, da retórica, da geometria, da música, dentre as quais, talvez, a medicina deva ser também classificada. Em todos esses temas devemos supor que se inclui a sabedoria deste mundo.

Como sabedoria dos príncipes deste mundo entendemos a que se apresenta como a filosofia secreta e oculta, como eles a chamam, dos egípcios, a astrologia dos caldeus e dos hindus, que dizem possuir o conhecimento de coisas elevadas, e também a múltipla variedade de opiniões que prevalece entre os gregos quanto às coisas divinas. Por conseguinte, nas Santas Escrituras encontramos que existem príncipes sobre nações específicas: como elemos em Daniel, onde se fala de um príncipe do reino da Pérsia e outro príncipe do reino da Grécia, que claramente são mostrados, pela natureza das passagens em que são citados, não como seres humanos, mas como determinados poderes[102]. Nas profecias de Ezequiel, o príncipe de Tiro é mostrado sem dúvidas como uma espécie de poder espiritual[103]. Quando esses e outros da mesma classe, possuidores cada qual de sua própria sabedoria, e aumentando suas próprias opiniões e sentimentos, contemplariam nosso Senhor e Salvador, professando e declarando que Ele havia vindo a esse mundo com o propósito de destruir todas as opiniões da ciência (falsamente chamada) deles, e não sabendo o que havia sido oculto Nele, imediatamente tentaram armar-lhe uma armadilha: “Os reis da terra se revoltaram e os príncipes conspiraram unidos contra o Senhor e contra Seu Ungido[104]”. Mas seus truques foram descobertos e os planos que haviam proposto se manifestaram quando crucificaram o Senhor da glória. Por isso disse o Apóstolo: “Falamos da sabedoria de Deus entre os perfeitos; sabedoria, não deste século, nem dos príncipes deste século, que se desfazem; mas falamos da sabedoria de Deus em mistério, da sabedoria oculta, que Deus predestinou antes dos séculos para nossa glória; daquela que nenhum dos príncipes deste século conheceu, porque, se a houvessem conhecido, nunca teriam crucificado do Senhor da glória[105]”.

3.       Príncipes e poderes espirituais deste mundo

Certamente devemos procurar averiguar se aquela sabedoria dos príncipes deste mundo, que eles procuram incutir nos homens, é introduzida em suas mentes pelos poderes adversos, com o propósito de prendê-los ou prejudicá-los, ou apenas com o intuito de enganá-los, isso é, sem o propósito de fazer-lhes algum mal; mas, como os príncipes deste mundo consideram que tais opiniões são verdadeiras, eles desejam dar aos outros aquilo que eles mesmos acreditam ser a verdade; essa é a opinião que me inclino a adotar. Porque, para dar um exemplo, certos autores gregos, ou dirigentes de algumas seitas heréticas, depois de haver inculcado um erro de doutrina em vez da verdade, e tendo chegado à conclusão em suas próprias mentes que que tal seja a verdade, procedem, as seguir, tentando convencer os demais da correção de suas opiniões. Assim, do mesmo modo, devemos supor que procedem os espíritos deste mundo, no qual certas nações foram entregues a determinadas potências espirituais, razão pela qual são eles chamados de “príncipes deste mundo”.

Além desses príncipes, existem certas energias específicas desse mundo, vale dizer, poderes espirituais que causam certos efeitos, que eles mesmos escolhem produzir, em virtude de sua livre vontade. A esses pertencem aqueles príncipes que praticam a sabedoria deste mundo, sendo, por exemplo, uma energia e um poder peculiar o inspirador da poesia, outro o da geometria, e assim por diante, para cada uma das artes e profissões dessa classe.

Finalmente, muitos escritores gregos opinaram que a arte da poesia não pode existir sem a loucura; por isso se conta muitas vezes em suas histórias, que aqueles que são chamados poetas (vates) foram repentinamente acometidos por uma espécie de espírito de loucura. E que diremos daqueles a quem eles chamam de adivinhos, os quais, pela ação dos demônios que os dominam, respondem em versos cuidadosamente construídos? E também existem aqueles a que chamam de magos ou malévolos, os quais, ao invocar os demônios sobre crianças de tenra idade, com frequência as fazem repetir composições poéticas que são a admiração e o espanto de todos.

Devemos supor que todos esses efeitos são produzidos da seguinte maneira: assim como as almas santas e imaculadas, depois de se dedicarem por completo a Deus em afeto e pureza, e depois de se terem mantido livres de todo contagio de espíritos maus e de terem sido purificadas por uma longa abstinência, cheias de uma educação santa e religiosa, assumem por esse meio uma porção da divindade e adquirem a graça da profecia e outros dons divinos, da mesma forma devemos supor que os que se colocam no caminho dos poderes adversos, a quem deliberadamente admiram, adotando sua maneira de vida e seus hábitos, recebem deles sua inspiração, e se tornam partícipes de sua sabedoria e doutrina. O resultado disso é que são possuídos pelo poder desses espíritos a cujo serviço se submeteram.

4.       Energias, sugestões e livre vontade

Com relação aos que ensinam de um modo diferente do que o que a regra da Escritura permite no que concerne a Cristo, não será tarefa ociosa averiguar se é com um propósito traidor que os poderes adversos, em sua luta para impedir a crença em Cristo, inventaram certas doutrinas fabulosas e ímpias; ou se, tendo ouvido a palavra de Cristo, e sendo incapazes de tirá-la do secreto de sua consciência, e tampouco de retê-la pura e santa, utilizam de instrumentos convenientes para seu uso e introduzem erros mediante seus profetas, se é que podemos chamá-los assim, contrários à regra da verdade cristã.

Antes, devemos supor que o apóstata e os poderes do refugiado, que se separaram de Deus pela própria maldade de sua mente e de sua vontade, ou por inveja dos que estão preparados para receber a verdade e ascender ao nível que eles tinham antes de cair, inventam todos esses erros e ilusões da falsa doutrina, com o fim de impedir qualquer progresso em direção à verdade.

Está claramente estabelecido por muitas provas que, enquanto a alma do homem existe nesse corpo, pode admitir energias diferentes, isso é, operações de uma diversidade de espíritos bons e maus. Agora, os espírito maus têm um duplo modo de proceder, a saber, quando tomam posse completa e total da mente, sem permitir aos seus cativos o poder de compreender ou sentir (como é o caso, por exemplo, dos que são comumente chamados de possessos, aos quais vemos privados de razão e como que loucos, como os que o Senhor curou, segundo relatado nos Evangelhos), ou quando, por suas más sugestões, depravam uma alma sensível e inteligente com pensamentos de várias classes, persuadindo-a a seguir o mal, de que Judas é uma ilustração, pois ele foi induzido pela sugestão de um diabo a cometer o crime da traição, conforme declara a Escritura: “o diabo colocou no coração de Judas a traição[106]”.

Mas um homem recebe a energia, ou seja, o poder de operar, de um espírito bom, quando está animado e incitado ao bem e se inspira em coisas celestiais ou divinas, como os santos anjos. O próprio Deus operou nos profetas, despertando-os e exortando-os por suas santas sugestões a um melhor modelo de vida, ainda que, certamente, tenha permanecido na vontade e no juízo dos indivíduos estar dispostos ou indispostos a seguir a chamada divina e as coisas celestiais.

Dessa manifesta distinção se vê como a alma é movida pela presença de um espírito melhor, isso é, se não encontra nenhuma perturbação ou alienação mental da inspiração iminente, nem perde o controle de sua vontade; é o caso, por exemplo, de todos, profetas ou apóstolos, que ministraram as respostas divinas sem nenhuma perturbação em suas mentes. Mais ainda, pela sugestão de um bom espírito a memória do homem desperta a lembrança de coisas melhores, como já mostramos em exemplos anteriores, quando mencionamos o caso de Artaxerxes e Mardoqueu.

5.       Causas anteriores ao nascimento da alma no corpo

Penso que depois deveríamos investigar quais são as razões pelas quais uma alma humana é às vezes operada por um espírito bom e outras por um espírito mau, cujo fundamento eu suspeito que seja anterior ao nascimento corporal do indivíduo, como João Batista mostrou ao saltar e regozijar-se ainda no seio de sua mãe, quando a voz da saudação de Maria chegou aos ouvidos de sua mãe Isabel. Da mesma forma, o profeta Jeremias declara que foi conhecido por Deus antes de ter sido formado no seio de sua mãe, e santificado antes de nascer, recebendo depois a graça da profecia quando ainda era um menino.

Por outro lado, já se mostrou sem sombra de dúvida, que alguns foram possuídos por espíritos hostis desde o começo de suas vidas; isso é, alguns nasceram com um mau espírito, e outros, segundo histórias críveis, praticaram a adivinhação desde a infância. Outros estiveram sob a influência do demônio chamado Píton, ou seja, do espírito ventríloquo, desde o começo de sua existência.

Para os que sustentam que todo o mundo está sob a administração da Divina Providência (como cremos também), todos esses casos, me parece, podem não ter nenhuma resposta, de modo que, para demonstrar que nenhuma sombra de injustiça recai sobre o governo divino, devemos sustentar que existem algumas causas de existência prévia, em consequência das quais as almas, antes de seu nascimento no corpo, podem ter contraído uma certa dose de culpa em sua natureza sensitiva, ou em seus movimentos, em razão da qual foram consideradas dignas pela Providência Divina de ser colocadas nessa condição. Porque uma alma sempre está de posse do livre arbítrio, tanto estando no corpo como fora dele; e a liberdade de vontade sempre se dirige para o bem ou para o mal.

Nenhum ser racional e senciente, ou seja, a mente ou a alma, pode existir sem algum movimento, seja ele bom ou mau. E é provável que esses movimentos criem razões para o mérito, mesmo antes que se faça qualquer coisa nesse mundo. Dessa forma, com base nesses méritos, eles – os seres racionais e sencientes -  podem ser, imediatamente ao nascimento ou mesmo antes, ser, por assim dizer, classificados pela Divina Providência para resistir ao bem ou ao mal.

Deixemos, então, que sejam essas as nossas opiniões sobre esses encargos que caem sobre os homens, sejam imediatamente depois do nascimento, seja antes de entrar na luz. Mas quanto às sugestões que são feitas à alma, vale dizer, à faculdade do pensamento humano, por espíritos diferentes, que despertam nos homens ganas de realizar atos bons ou maus, mesmo nesse caso devemos supor que às vezes existam ali certas causas anteriores ao nascimento corporal.

Porque ocasionalmente a mente, quando vigilante, ao afastar de si todo o mal, pede ajuda ao bom; mas ao contrário, se for negligente e preguiçosa, isso dá lugar, por causa da precaução insuficiente, a que esses espíritos, que esperam secretamente como ladrões, busquem a maneira de se precipitar sobre as mentes dos homens quando percebem uma moradia ali preparada pela preguiça, como diz o apóstolo Pedro: “Vosso adversário, o diabo, qual leão que ruge, anda ao redor buscando a quem devorar[107]”. Com base nisso, nosso coração deve ser guardado com todo esmero, de dia e de noite, sem dar nenhum espaço ao diabo. Devemos fazer todo o possível para que os ministros de Deus – os espíritos que são enviados a administrar os herdeiros da salvação – possam encontrar um lugar em nós, e entrar encantados na morada de hóspedes de nossa alma. E que assim, morando conosco, possam guiar-nos com seus conselhos, se, de verdade, encontrarem a morada de nosso coração adornada com a prática da virtude e da santidade. Esperamos que tenha sido suficiente o que dissemos, como melhor pudemos, sobre os poderes hostis à raça humana.


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AS TENTAÇÕES

1.       Teorias sobre a natureza da alma

Na minha opinião, o tema das tentações humanas não deve ser passado por alto, nem mantido em silêncio nesse contexto. A tentação surge às vezes do sangue e da carne, ou da sabedoria da carne e do sangue, que, como se diz, são hostis a Deus[108]. E, se é ou não verdadeira a declaração que alguns alegam, a saber, que cada indivíduo tem como que duas almas, isso iremos determinar depois de explicar a natureza das tentações, que, como se diz, são mais poderosas do que tudo o que tem origem humana, isso é, as que sustentamos “contra os principados, as potestades, contra os senhores deste mundo, governadores dessas trevas, contra as malícias espirituais nos ares[109]”, ou aquelas a que somos submetidos por espíritos impuros e demônios de maldade.

Na investigação desse tema, penso que devemos inquirir segundo um método lógico, se existe em nós, seres humanos compostos de alma, corpo e espírito vital, algum outro elemento que possua incitação própria, e que evoque um movimento na direção do mal. Porque existem alguns que costumam discutir esse tipo de questão do seguinte modo: em primeiro lugar, se, segundo se diz, duas almas coexistem dentro de nós, uma será mais divina e espiritual e a outra, inferior; em segundo lugar, se, pelo fato mesmo de estarmos inseridos numa natureza corporal que, segundo sua natureza própria está morta e desprovida de vida – pois nosso corpo material extrai sua vida de nossa alma, e ele é contrário e hostil ao espírito – somos levados e atraídos à prática dos espíritos maus que se conformam ao corpo; em terceiro lugar – que foi a opinião dos filósofos gregos – ainda que nossa alma seja uma substancia, consiste ela em vários elementos, uma parte chamada racional e uma irracional, sendo que a parte irracional se divide por sua vez em dois afetos, a saber a ira e a concupiscência. Essas três opiniões em relação à alma, que estabelecemos agora, nós as temos encontrado sustentadas por pessoas, mas aquela que dissemos ser própria dos gregos, a saber, que a alma é tripartite, não vejo que seja fortemente confirmada pela autoridade da Santa Escritura, enquanto que a respeito das outras encontramos um número considerável de passagens nas Escrituras que podem ser-lhes aplicadas.

2.       A teoria das duas almas, uma celestial e outra terrena

Dessas duas opiniões, discutamos primeiro aquela que alguns sustentam, de que existem em nós uma alma boa celestial e outra terrena e inferior, e que a alma melhor é implantada em nós a partir do céu, como foi o caso de Jacó quando ainda estava no ventre de sua mãe, e que recebeu o prêmio da vitória ao suplantar a seu irmão Esaú; ou o caso de Jeremias, que foi santificado desde seu nascimento; ou de João, que esteve cheio do Espírito Santo desde o sei o materno.

Ao contrário, alega-se que a alma inferior é produzida juntamente com a própria semente do corpo, de onde se deduz que ela não pode viver ou subsistir sem o corpo, razão pela qual se diz também que ela é frequentemente chamada de carne. Porque eles tomam a expressão “a carne conspira contra o Espírito[110]” não para ser aplicada à carne, mas à alma, que é propriamente a alma da carne. Por essas palavras, ademais, buscam validar a declaração do Levítico: “A alma de toda carne, sua vida, está no sangue[111]”. Porque, pelo fato da difusão do sangue por todas as partes da carne, produzindo a vida na carne, eles afirmam que essa alma, da qual se diz ser a vida de toda a carne, está contida no sangue.

Ademais, com a afirmação de que “a carne conspira contra o espírito, e o espírito contra a carne”, e a seguinte, de que “a alma de toda carne, sua vida, está no sangue”, segundo os escritores, simplesmente a sabedoria da carne está sendo chamada por outro nome, porque se trata de uma espécie de espírito material, que não está sujeito às leis de Deus, nem pode estar, porque tem desejos terrenos e corporais. É a respeito disso que eles pensam que o apóstolo pronunciou as palavras: “Vejo outra lei em meus membros, que se rebela contra a lei de meu espírito, e que me traz cativo à lei do pecado que está em meus membros[112]”. Mas é possível objetar a isso que essas palavras se referem à natureza do corpo, que de acordo com a particularidade de sua natureza está morto mas possui sensibilidade, ou sabedoria, e que é hostil a Deus, ou que luta contra o espírito. E se alguém lhes dissesse que, em certa medida, a própria carne está provida de uma voz, que grita contra qualquer padecimento, seja de fome, de sede, de frio ou qualquer outro incômodo que surja da abundância ou da pobreza, eles procurariam diminuir ou contrariar a força de tais argumentos mostrando que existem muitas outras perturbações mentais que não têm sua origem em nenhum aspecto da carne, e que ainda assim o espírito luta contra elas , como a ambição, a avareza, a vanglória, a inveja, o orgulho e coisas semelhantes; e, vendo que a mente humana ou o espírito sustenta contra eles uma espécie de competição, eles estabeleceriam como causa de todos esses males nada menos do que a alma corporal de que falamos, e que é gerada a partir da semente por um processo de generacionismo[113].

Eles também costumam acrescentar em apoio de sua asserção a declaração do Apóstolo: “Além disso, as obras da carne são bem conhecidas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes[114]”, afirmando que todas elas têm sua origem não nos hábitos ou prazeres da carne, de maneira que esses movimentos devem ser considerados como inerentes à essa substância que não possui uma alma, isso é, a alma.

Além disso, a declaração: “Vede, irmãos, vossa vocação, vós que não sois muito sábios segundo a carne, nem muito poderosos, nem muito nobres[115]”, pareceria exigir, para ser compreendida, a existência de um tipo de sabedoria carnal e material e outra segundo o espírito. A primeira não poderias ser realmente chamada de sabedoria, a menos que exista uma alma da carne, que seja sábia em relação ao que se chama de sabedoria carnal. Em apoio a essas passagens, eles aduzem o seguinte: “Porque a carne conspira contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e essas coisas se opõem uma à outra, para que não façais o que quereis[116]”. O que são essas coisas, das quais se diz “para que não façais o que quereis”? é certo, dizem eles, que o espírito não está entendido aqui, porque a vontade do espírito não sofre nenhum obstáculo; mas tampouco pode se referir à carne, porque, se ela não possuir uma alma própria, tampouco possuirá vontade.


Resta pois entender que a vontade dessa alma seja capaz de ter vontade própria, e que certamente se opõe à vontade do espírito. E se esse for o caso, fica estabelecido que a vontade da alma é algo intermediário entre a carne e o espírito, obedecendo e servindo a cada um dos dois que deseje obedecer. Se ela cede aos prazeres da carne, isso torna os homens carnais; mas quando ela se une ao Espírito, produz homens do Espírito, que, por essa razão, são chamados de espirituais. E esse parece ser o significado das palavras do Apóstolo: “Mas vós não estais na carne, mas no espírito, na medida em que o Espírito de Deus habita em vós[117]”.

Conforme a isso, temos que investigar o que é essa vontade intermediária entre a carne e o espírito, além da vontade que se diz pertencer à carne ou ao espírito. Porque sustenta-se como certo que qualquer coisa que se diga ser operada pelo espírito é produto da vontade do espírito, e tudo o que se chama de obra da carne procede da vontade da carne. No que consiste, então, a vontade da alma, além disso, que recebe um nome separado, e cuja vontade o apóstolo opõe à “nossa execução”, “para que não façais o que quereis”? Com isso deveria entender-se que não devemos aderir a nenhum dos dois, isso é, nem à carne, nem ao espírito. Mas alguém poderá dizer que é melhor para a alma executar a própria vontade, do que a da carne; e por outro lado, é melhor fazer a vontade do espírito do que a própria vontade. Como, então, diz o apóstolo: “para que não façais o que quereis”? Porque nessa competição que é mantida entre a carne e o espírito, o espírito nunca está seguro da vitória, sendo manifesto que em muitos indivíduos a carne é quem tem o domínio.

3.       O perigo de ser morno

Mas já que o tema de discussão em que entramos é de grande profundidade, será preciso considerá-lo em todos os seus sentidos. Vejamos se algum ponto, como a seguir, não pode ser determinado: assim como é melhor para a alma seguir o espírito quando este vence a carne, também, se parece ser um curso pior para a alma seguir a carne em suas lutas contra o espírito, quando este recorda à alma sua influência, não obstante, pode parecer um procedimento mais vantajoso para a alma estar sob o domínio da carne do que permanecer sob o domínio de sua própria vontade. Porque, já que se diz que ela não é nem quente, nem fria, mas que se encontra numa espécie de condição morna, ela achará a conversão uma empresa lenta e algo difícil. Se em verdade se unisse à carne, então, saciada ao extremo, e cheia daqueles males que decorrem dos vícios da carne, e como que cansada das pesadas cargas do luxo e de luxúria, ela poderia se converter com facilidade e maior rapidez, da imundície material ao desejo das coisas divinas e ao gosto pelas graças espirituais.

Devemos supor que, quando o Apóstolo diz: “O Espírito luta contra a carne e a carne contra o Espírito”, para que não possamos fazer as coisas que queremos, devemos entender essas coisas como estando além da vontade do espírito e da carne, ou seja, expressando-o por outras palavras, que é melhor para o homem estar num estado de virtude ou de malícia, do que em nenhum deles, porque a alma, antes de sua conversão ao espírito e sua união com ele, aparece, durante sua união com o corpo e sua meditação em coisas carnais, numa condição que não é nem boa nem má, mas que se parece, por assim dizer, a um animal.

Não obstante, é melhor para ela, se possível, tornar-se espiritual pela adesão ao espírito; mas, se não puder fazê-lo, é mais oportuno que siga a maldade da carne, do que, colocada sob a influência de sua própria vontade, conservar a posição de uma animal irracional.

Acabamos de discutir esses pontos com maior extensão do que a requerida, pois foi nosso desejo considerar cada opinião individual, para que não se suponha que tenha escapado de nossa atenção nenhuma delas, que são geralmente apresentadas pelos que investigam se dentro de nós existe outra alma distinta da celestial e racional, que se chama carne, ou sabedoria da carne, ou alma da carne.

4.       Os “desejos” da carne e seu significado

Vejamos agora a resposta que se dá geralmente às afirmações dos que sustentam que existe em nós um movimento e uma vida, procedentes de uma só e mesma alma, cuja salvação ou destruição é atribuída ao resultado de suas próprias ações.

Em primeiro ligar, vejamos de que natureza são as comoções da alma, que sofremos quando nos sentimos interiormente arrastados em direções diferentes, e começa uma espécie de competição de pensamentos em nossos corações; quando certas possibilidades nos são sugeridas, de acordo com as quais nos inclinamos ora para um lado, ora para outro, sendo às vezes convencidos de nosso erro, ou aprovamos o que fazemos. Não é nada espantoso, no entanto, dizer que os espírito maus têm um juízo variável e conflituoso, sem harmonia consigo mesmo, já que é isso que encontramos em todos os homens que, sempre que precisam deliberar a respeito de um acontecimento incerto, pedem conselho e consideram e consultam sobre qual deve ser o melhor curso a seguir, e o mais útil. Portanto, não é surpreendente que, quando duas possibilidades se apresentam e surgem opiniões desencontradas, a mente seja arrastada em direções contrárias. Por exemplo, se um homem é levado a crer e a temer a Deus, não se pode dizer que a carne conspira contra o Espírito; mas entre a incerteza do que possa ser verdadeiro e o que possa ser vantajoso, a mente é arrastada em direções opostas.

Da mesma forma, quando a carne provoca a indulgência em relação à luxúria, mas conselhos melhores fazem com que se oponha a esse tipo de atração, não devemos supor que se trate de uma vida resistindo a outra, mas que é a tendência da natureza do corpo, que está impaciente por esvaziar e limpar os lugares cheios de umidade seminal; do mesmo modo, de forma parecida, não se deve supor que seja algum poder adverso, ou a vida de outra alma, que excita em nós o apetite da sede, e que nos impele a beber, ou que faz com que sintamos fome e nos leve a satisfazê-la. Mas, assim como por um movimento natural do corpo a comida e a bebida são desejadas ou rechaçadas, também a semente natural, reunida ao longo do tempo nos múltiplos vasos, tem um desejo impaciente de ser expulsa e lançada, e está muito longe de não ser nunca removida, a não ser pelo impulso de alguma causa excitante, sendo às vezes emitida espontaneamente.

Portanto, quando se diz que “a carne conspira (ou luta) contra o Espírito”, essas pessoas entendem que essa expressão significa que o hábito ou a necessidade, ou ainda o prazer da carne, movem o homem e o afastam das coisas divinas e espirituais. Pois, devido à necessidade que o corpo tem de ser arrastado, não nos é permitido ter tempo ocioso para as coisas divinas, que nos são benéficas para toda a eternidade. Dessa maneira, a alma, dedicando-se ao sucesso das coisas divinas e espirituais, e estando unida ao espírito, é vista como lutando contra a carne, sem permitir que relaxe por indulgência e se torne instável por influência dos prazeres pelos quais sente um deleite natural.

Da mesma maneira eles dizem entender as palavras: “A sabedoria da carne é inimizade com Deus[118]”. Não que a carne tenha realmente uma alma, ou uma sabedoria própria. Mas, como costumamos dizer, por um abuso de linguagem, que a terra tem sede e deseja beber água – sendo que o emprego da palavra “desejo” não é próprio, mas alegórico – ou quando dizemos que uma casa quer ou busca ser reconstruída, e muitas expressões similares, assim também devemos entender a expressão “sabedoria da carne”, ou “a carne conspira contra o espírito”.

Geralmente, eles relacionam essa expressão com essa outra: “O sangue de teu irmão clama a mim da terra[119]”. Mas o que clama ao Senhor não é propriamente o sangue derramado, mas se diz impropriamente, alegoricamente, que o sangue pede vingança contra quem o derramou.

Da mesma forma, a declaração do Apóstolo: “Vejo outra lei em meus membros, que se revela contra a lei do espírito[120]”, é entendida por eles como se tivesse sido dito que quem deseja se dedicar à palavra de Deus se torna, devido aos seus hábitos e necessidades corporais (que estão estabelecidos em seu corpo como uma espécie de lei), distraído, dividido e impedido, a não ser que, dedicando-se energicamente ao estudo da sabedoria, seja capacitado para contemplar os mistérios divinos.

5.       Terá Deus criado aquilo que é hostil a Si mesmo?

A respeito da seguinte classificação das obras da carne, a saber, heresias, invejas, contendas e outras, eles entendem que a mente, ao se tornar mais grosseira devido à sua concessão às paixões do corpo, sendo oprimida pela massa dos seus vícios e não possuindo sentimentos refinados ou espirituais, se torna carne, e recebe seu nome daquilo que exibe com mais vigor e força de vontade.

Eles também se colocam a seguinte pergunta: “Quem poderá ser encontrado, ou, de quem se poderá dizer que seja o criador desse mau sentido, chamado de sentido da carne?”. Porque eles defendem a opinião que não existe nenhum outro criador da alma e da carne senão Deus. E se nós afirmarmos que o Deus bom criou tudo o que é hostil em sua própria criação, isso parecerá um manifesto absurdo. Então, se está escrito que “a sabedoria carnal é inimizade para com Deus”, e se diz que isso é resultado da criação, parecerá que Deus formou uma natureza hostil a Si mesmo, que não pode ser submetida a Ele nem à Sua lei, como se fosse, digamos, um animal do qual se afirmam essas qualidades. E, se admitirmos essa teoria, em que isso será diferente dos que sustentam que são criadas almas de natureza diferente, as quais, de acordo com sua natureza, estão destinadas a se perder ou salvar-se?

Mas essa é uma teoria dos hereges somente, os quais, incapazes de manter a justiça de Deus sobre a base da misericórdia, articulam invenções ímpias desse tipo. Agora que já expusemos o melhor que pudemos, na pessoa de cada partido, o que se poderia colocar por via de argumento em relação às diferentes perspectivas, deixemos que o leitor escolha por si mesmo a que pense ser a sua preferida.


5
O MUNDO SEU PRINCÍPIO NO TEMPO

1.       Criação e consumação do mundo

Agora, já que é um dos artigos da Igreja, sustentado principalmente em consequência de nossa crença na verdade de nossa história sagrada, a saber, que o mundo foi criado e teve seu princípio num determinado tempo e que, em conformidade com o ciclo de tempo decretado para todas as coisas, será destruído devido à sua corrupção, não será nada absurdo discutirmos alguns pontos relacionados com esse tema. E, até onde alcança a credibilidade da Escritura, suas declarações sobre esse tema são prova suficiente. Até os hereges, ainda que abertamente opostos a muitas outras coisas, nesse ponto são unânimes, cedendo à autoridade da Escritura.

A respeito da criação do mundo, pode a Escritura nos fornecer mais informação do que que Moisés nos transmitiu sobre sua origem? Ainda que ali estejam compreendidas matérias de significado muito mais profundo do que o que a mera narrativa histórica parece indicar, e que estejam contidas muitas coisas que devem ser entendidas espiritualmente, ele emprega a letra como uma espécie de véu, ao tratar de temas profundos e místicos. Não obstante, a linguagem do narrador mostra que todas as coisas visíveis foram criadas num determinado tempo.

Mas no tocante à consumação do mundo, Jacó é o primeiro a dirigir aos seus filhos essas palavras: “Reuni-vos, e eu vos declararei o que há de acontecer nos dias derradeiros[121]”, ou últimos dias. Então, se existem os “últimos dias”, ou um período de “dias últimos”, os dias que tiveram um princípio necessariamente deverão chegar a um final. Também Davi declara: “Os céus perecerão, e tu permanecerás; todos, como uma vestimenta, envelhecerão; como uma roupa que se veste, os mudarás, e serão mudados. Mas tu és o mesmo, e teus anos não se acabarão[122]”.

 Nosso Senhor e Salvador, ao dizer “Aquele que os fez no princípio, homem e mulher os fez[123]”, atesta que o mundo foi criado; e outra vez, quando diz: “Passarão o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão[124]”, assinala que as coisas são perecíveis, e que hão de chegar ao final. O Apóstolo, ademais, ao declarar que “as criaturas foram sujeitas à vacuidade, não por sua vontade, mas por causa Daquele que as submeteu com a esperança, de maneira que as mesmas criaturas serão libertadas da servidão da corrupção na liberdade gloriosa dos filhos de Deus[125]”, evidentemente anuncia o final do mundo, do mesmo modo como diz: “A aparência desse mundo é passageira[126]”.

Pois bem, mediante a expressão utilizada: “as criaturas foram submetidas à vacuidade”, ele mostra que houve um princípio para esse mundo, já que, se a criatura foi submetida à vacuidade devido a alguma esperança, isso certamente aconteceu por alguma causa; e, tendo sido por uma causa, necessariamente deve ter havido um princípio, porque sem princípio alguma criatura não poderia ter sido submetida à vacuidade, nem poderia esperar ser liberada da escravidão da corrupção, à qual não teria começado a servir. E quem decidir buscar a seu gosto, encontrará numerosas passagens na Santa Escritura, nas quais é dito que o mundo teve um começo, e que espera pelo final.

2.       Deus abarca todas as coisas com base em seu princípio

Mas se houver alguém que se oponha à autoridade ou à credibilidade de nossas Escrituras, eu lhe perguntaria se ele afirma se Deus pode, ou se não pode abarcar todas as coisas. Afirmar que não pode seria um ato evidente de impiedade. Se responder, então, que Deus abarca todas as coisas, segue-se que do próprio fato de sua capacidade de as abarcar, devemos entender que tudo tem um princípio e um final, sabendo que o que é totalmente sem princípio não pode, de modo algum, ser abarcado. Porque, por muito que se possa esticar o entendimento, a faculdade de compreender sem limites desaparece quando se afirma que não existe princípio.

3.       A criação de múltiplos mundos

Quanto a isso, eles apresentam geralmente a seguinte objeção: “Se o mundo esteve seu princípio no tempo, o que fazia Deus antes do mundo começar? É, de imediato, ímpio e absurdo dizer que a natureza de Deus é inativa e imóvel, ou supor que a bondade não fez o bem durante um tempo, ou que a onipotência não exerceu seu poder durante um tempo”. Essa é a objeção que se costuma fazer à nossa declaração de que o mundo teve seu princípio num dado tempo, e que, de acordo com nossa crença na Escritura, somos capazes de calcular os anos de sua duração passada.

Considero que nenhum herege possa responder facilmente a essas proposições, em conformidade com a natureza de suas opiniões. Mas nós podemos dar uma resposta logica em conformidade com a regra da piedade, se dissermos que não foi aquela a primeira vez que Deus começou a operar ao fazer esse mundo visível; mas que, assim como depois de sua destruição haverá outro mundo, cremos que também existiram outros anteriores ao presente. Ambas as posições serão confirmadas pela autoridade da Santa Escritura.

Que haverá outro mundo depois desse, é o que ensina Isaías, quando diz: “Como permanecem diante de mim os novos céus e a nova terra que faço[127]”; e, que existiram outros mundos anteriores a esse, é dito no Eclesiastes com as palavras: “O que foi? É o mesmo que será. O que foi feito? O mesmo que se fará; nada há de novo sob o sol. E se alguém disser: eis aqui algo novo! Isso já aconteceu nos séculos que nos precederam[128]”. De acordo com esses testemunhos, fica estabelecido que houve idades [séculos] antes das nossas, e que haverá outras depois.

No entanto, não devemos supor que os múltiplos mundos existem imediatamente, mas que, depois do final desse mundo, outros terão seu princípio; a respeito disso é desnecessário repetir cada opinião particular, visto que já o fizemos nas páginas precedentes.

4.       A criação desse mundo como “descida”

Esse ponto, em verdade, não deve ser displicentemente passado pro alto, a saber, que as Santas Escrituras chamaram a criação do mundo por um nome novo e peculiar, chamando-o katabolé, que foi muito incorretamente traduzido para o latim como constitutio; porque, em grego, katabolé significa mais propriamente dejicere, isso é, “descida”; essa palavra foi erradamente traduzida ao latim, como já comentamos, na frase constitutio mundi, como no Evangelho de São João, onde o Salvador diz: “Haverá então grande aflição, como não se vê desde o princípio do mundo[129]”, passagem na qual katabolé foi traduzida como “princípio” (constitutio), coisa que deve ser entendida conforme explicamos acima.

Também o Apóstolo, na Epístola aos Efésios, emprega a mesma linguagem ao dizer; “Segundo Ele nos escolheu antes da fundação do mundo[130]”; ele chama essa fundação de katabolé, que deve ser entendida no mesmo sentido de antes. Parece então que vale a pena perguntar porque esse termo novo foi proposto; e na verdade eu sou de opinião que, já que a consumação final dos santos será no “reino do invisível e do eterno[131]”, temos que concluir, como temos assinalado nas páginas precedentes, que as criaturas racionais tiveram um momento inicial semelhante ao que será aquele momento final, e que, se seu começo foi semelhante ao fim que os espera, em sua condição inicial terão existido no reino “do invisível e do eterno”. Se for assim, devemos pensar que não só desceram de uma condição superior a outra inferior as almas que mereceram tal trânsito por causa da diversidade de seus impulsos, como também outras que, ainda que contra sua vontade, foram trasladadas daquele mundo superior e invisível a este inferior e visível, para benefício de todo o mundo. Porque, com efeito, “a criatura foi submetida à vacuidade contra sua vontade, por causa Daquele que a submeteu com esperança[132]”. Desse modo, o sol, a lua, as estrelas ou os anjos de Deus podem cumprir um serviço no mundo, e esse mundo visível foi feito para essas almas que, pelos muitos defeitos de sua disposição racional, tiveram necessidade desses corpos mais grosseiros e sólidos.

A palavra katabolé (que significa descida e é utilizada na Escritura com referência à constituição do mundo), parece indicar essa “descida” das realidades superiores a um patamar inferior. É verdade, sem dúvida, que toda a criação traz consigo uma esperança de liberdade, para que se veja livre da servidão da corrupção, quando forem reduzidos à unidade os filhos de Deus que caíram ou foram dispersos, quando tiverem cumprido nesse mundo as funções que só Deus, artífice de tudo, conhece. E devemos pensar que o mundo foi feito de tal natureza e magnitude que nele possam exercitar-se todas as almas determinadas por Deus, bem como todas as virtudes que estão dispostas para assistir e servir a elas. Mas que todas as criaturas racionais sejam da mesma natureza, isso é algo que se pode provar com muitos argumentos; pois só assim pode permanecer a salvo a justiça de Deus em todas as suas disposições, a saber, colocando em cada uma delas a causa pela qual ela foi colocada em tal ou qual ordem específica de seres vivos.

5.       Presciência divina e destino humano

Algumas pessoas não souberam compreender essa disposição de Deus, por que não se deram conta de que Deus dispôs a variedade que vemos por causa das opções livres – das naturezas racionais –, e que, já desde a origem do mundo, previu Deus a disposição daqueles que haveriam de merecer ter um corpo devido a um defeito em sua atitude racional, bem como daqueles que seriam seduzidos pelo desejo das coisas visíveis, e daqueles que, voluntária ou involuntariamente, teriam que prestar serviço aos que haviam caído em tal estado, sendo forçados à sua condição mundana por Aquele que “os submetia com a esperança”. Por isso ficam buscando como explicação a ação do acaso, ou se diz que tudo o que existe nesse mundo acontece por necessidade, e que não temos liberdade alguma. Com isso, é impossível deixar de culpar a providência.

6.       Cristo, restaurador da lei do governo do mundo

Mas como dissemos que todas as almas que viveram nesse mundo tiveram necessidade de muitos ministros, governos ou ajudantes, nos últimos tempos, quando o fim do mundo já é iminente e próximo, e toda a raça humana está à beira da última destruição – e quando não apenas os que foram os que eram governados por outros foram reduzidos à debilidade, mas também aqueles a quem havia sido encomendado seu cuidado e governo – já não será necessária tal ajuda, nem tais defensores, mas será requerida a ajuda do Autor e Criador para restaurar em uns a disciplina da obediência, que foi corrompida e profanada, e em outros a disciplina de governar.

Daí que o Filho Unigênito de Deus, que foi Verbo e Sabedoria do Pai (quando estava de posse da glória do Pai, a que tinha antes que o mundo existisse[133]), se despojou dela e, tomando a forma de servo, “se fez obediente até a morte, e morte de cruz[134]”, e, “ainda que fosse Filho, padeceu e aprendeu a obediência; e consumado, veio a ser a causa de eterna salvação a todos os que o obedecem[135]”. Ele também restaurou as leis de domínio e governo que haviam sido corrompidas, ao submeter a todos os inimigos debaixo de seus pés, para, com isso – “porque é necessário que Ele reine, até colocar a todos os inimigos debaixo de seus pés e destruir seu último inimigo[136]” – poder ensinar a moderação em seu governo aos próprios governadores.

Veio, pois, para restaurar não a disciplina de governo somente, mas a obediência, como dissemos, realizando primeiramente Ele aquilo que desejava que os outros realizassem; por isso foi obediente ao Pai, não apenas até a morte na cruz, mas também até o final do mundo, abraçando a todos os que submete ao Pai, que por meio dele alcançam a salvação. Ele próprio, juntamente com eles, e neles, se submeterá ao Pai[137]; todas as coisas subsistem Nele, e Ele é a cabeça de todas as coisas[138], em quem está a salvação e a plenitude dos que obtêm a salvação. Por isso o Apóstolo disse: “Mas logo que todas as coisas lhe forem submetidas, então também o próprio Filho se submeterá Àquele que submeteu a ele todas as coisas, para Deus seja tudo em todos[139]”.

7.       A sujeição do Filho ao Pai

Não sei como os hereges, não entendendo o significado do Apóstolo nessas palavras, consideram o termo “sujeição” como algo degradante aplicado ao Filho; porque, se for posta em questão a propriedade do título, pode-se averiguar facilmente fazendo-se uma suposição contrária. Porque se não fica bem estar sob sujeição, segue-se que o contrário será bom, ou seja, não estar sujeito. Agora, a linguagem do Apóstolo, segundo opinam, parece indicar que, por essas palavras – “quando todas as coisas lhe forem submetidas, então o próprio Filho se submeterá Àquele que submeteu a ele todas as coisas” – Ele, que agora não está submetido ao Pai, se submeterá a Ele quando o Pai tiver primeiro submetido a ele todas as coisas.

Me assombra que se possa conceber que seja esse o significado: que se imagine que Aquele que não está submetido até que todas as coisas estejam submetidas, no momento em que tudo lhe tenha sido submetido, e quando houver se convertido em Rei de todos os homens, seja então submetido, sabendo que Ele nunca estivera antes sob sujeição. Porque os tais não entendem que a sujeição de Cristo ao Pai indica que nossa felicidade alcançou sua perfeição, e que a obra empreendida por Ele alcançou seu vitorioso término, sabendo que não apenas Ele purificou o poder de governo supremo sobre toda a criação, como ainda apresenta ao Pai os princípios da obediência e da submissão da raça humana numa condição corrigida e melhorada.

Portanto, se sustentamos que essa submissão do Filho ao Pai é boa e saudável, é uma inferência sumamente lógica e racional deduzir que a sujeição dos inimigos, que, como se diz, hão de se submeter ao Filho de Deus, deve também ser entendida como saudável e benéfica, como se, ao dizermos que o Filho se submeterá ao Pai, esteja implicada a restauração perfeita da criação em sua totalidade. Da mesma forma, quando se diz que os inimigos serão submetidos ao Filho de Deus, devemos compreender que a salvação consiste na salvação dos conquistados e na restauração dos perdidos.

8.       Os que se deixam ensinar a salvar

Essa sujeição, no entanto, se realizará de certa maneira, e depois de certa educação e num certo tempo; porque não devemos imaginar que a submissão será causada pela pressão da necessidade – e menos ainda que o mundo inteiro seja submetido a Deus pela força –, mas pela palavra, a razão e a doutrina; por um chamado a um curso melhor das coisas, mediante os melhores sistemas de educação, pelo emprego de ameaças convenientes e apropriadas, que se derramarão sobre os que desprezam qualquer cuidado ou atenção por sua salvação e utilidade. Numa palavra, na educação de nossos servos ou filhos, nós, homens, também os refreamos mediante ameaças e medo, enquanto ainda são, devido à sua pouca idade, incapazes de usar sua razão; mas quando começam a entender o que é bom, útil e honrado, termina o medo do castigo e consentem em tudo o que é bom pela pressão moral das palavras e da razão.

Mas o modo como deveria regrar-se as pessoas consistentemente com a preservação do livre arbítrio em todas as criaturas racionais; e quem são os que o Verbo de Deus encontra e educa, como se já estivessem preparados e capacitados para tal; quem são os que serão deixados para um tempo posterior; de onde são aqueles que estão totalmente ocultos; quem está situado tão longe que não consegue ouvir; quem são os que desprezam a palavra de Deus quando lhes é anunciada e predicada, e quem é levado à salvação por uma espécie de corrupção e castigo, cuja conversão é em certa medida exigida e reclamada; quem são aqueles a quem são concedidas certas oportunidades de salvação de maneira a que, demonstrando sua fé com uma única resposta, obtêm inquestionavelmente sua salvação; e a partir de que causa ou em que ocasiões tiveram lugar esses resultados; ou o que a sabedoria divina vê dentro deles, ou que movimentos de sua vontade leva a Deus a arranjar as coisas assim – tudo isso e muito mais só é conhecido por Deus, por Seu Filho Unigênito, por meio de quem todas as coisas criadas serão restauradas, e pelo Espírito Santo, por quem todas as coisas são santificadas, e que procede do Pai, a quem se deve a glória para sempre. Amém.



6
O FIM DO MUNDO

1.       Da imagem à semelhança de Deus

Com relação ao fim do mundo e à consumação das coisas, já dissemos nas páginas precedentes, com o melhor de nossa capacidade e até onde nos permite a autoridade da Santa Escritura, o que consideramos suficiente para o propósito de instrução; aqui só acrescentaremos alguns comentários de advertência, já que a ordem de nossa investigação nos devolveu o tema.

O maior bem, cujo fim perseguiam todas as naturezas racionais, que é também chamado de fim de toda bênção, é definido por muitos filósofos como segue: o maior bem dizem, é se tornar semelhante a Deus, tanto quanto seja possível. Mas considero que essa definição não é tanto um descobrimento seu, como é nosso, derivado da Santa Escritura. Porque muito antes dos filósofos, quando Moisés falou da primeira criação do homem, ele disse essas significativas palavras: “Disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança[140]”, e acrescentou: “E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher o criou, e o abençoou Deus[141]”. A expressão “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou”, sem mencionar a palavra “semelhança”, não tem outro significado senão que o homem recebeu a dignidade da imagem de Deus em sua primeira criação, mas que a perfeição de sua semelhança foi reservada para a consumação, as saber, para que pudesse adquiri-la pelo exercício de sua própria diligência na imitação de Deus, tendo sido a possibilidade de alcançar essa perfeição concedida desde o princípio pela dignidade da imagem divina, e a realização perfeita da semelhança divina podendo ser alcançada ao final por meio do cumprimento das obras necessárias.

Que isso é assim o apóstolo João o ensina mais claramente e sem deixar dúvidas, quando faz a seguinte declaração: “Meus amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser; mas sabemos que, quando Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é[142]”. Por meio dessa expressão ele mostra com extrema clareza que não é só o fim de todas as coisas que esperamos, e que disse ser-lhe desconhecido, como também a semelhança de Deus, que será concedida em proporção à perfeição de nossos atos. O próprio Senhor não só declara no Evangelho que esses resultados serão futuros, como ainda que serão alcançados por meio de sua própria intercessão. Ele mesmo ora para que possa obtê-los do Pai para seus discípulos, dizendo: “Pai, aqueles que me deste, quero que, onde eu estiver, estejam eles também comigo[143]”. Se podemos nos expressar assim, a semelhança divina parece avançar de uma mera similaridade a uma semelhança real, porque indubitavelmente será na consumação, ou no fim, que Deus será “tudo em todos”.

Com referência a isso, alguns se perguntam se a natureza da matéria corporal, ainda que limpa, purificada e tornada totalmente espiritual, não representará um obstáculo para conseguir a dignidade da semelhança divina, ou para o sucesso da unidade, porque uma natureza corporal não parece ser capaz de nenhuma semelhança com a natureza divina, que é certamente incorpórea, e tampouco ela pode ser considerada como certa e merecidamente una com essa natureza, em especial porque a verdade de nossa religião ensina que somente aquilo que é uno, a saber, o Pai com o Filho, pode se referir à particularidade da natureza divina.

2.       Nem todas as coisas estarão em Deus no final

Já que se promete que no final Deus será tudo em todos, não devemos supor que os animais, ovelhas ou outro gado, se incluam nesse final, para não implicar que Deus habitou inclusive os animais, ou pedaços de madeira ou pedras, como se Deus estivesse neles também.

Do mesmo modo, não devemos supor que qualquer coisa injusta alcance esse final, porque, ainda que se diga que Deus está em todas as coisas, não se pode dizer que esteja também em um vaso de injustiça. Porque se nós afirmamos que Deus está em todas as partes, com base em que nada pode estar vazio de Deus, também dizemos que Ele não é “todas as coisas” nas quais está.

Assim, devemos considerar com muito cuidado o que é que denota a perfeição da bem-aventurança e o fim das coisas, que não diz simplesmente que Deus está em todas as coisas, mas que Ele será “tudo em todas as coisas”. Vamos, pois, verificar o que são essas coisas nas quais Deus será tudo.

3.       Deus, “tudo em todos”

Sou de opinião que a expressão com a qual se diz que Deus será “tudo em todos” significa que Ele é “tudo” em cada pessoa individualmente. Agora, Ele será “tudo” em cada indivíduo do seguinte modo: quando todo entendimento racional, limpo da imundície de todo tipo de vício e varrido completamente de toda nuvem de maldade, possa sentir, entender ou pensar, ele será totalmente Deus, e se não puder reter ou manter nada senão Deus, sendo Deus a medida e modelo de todos os seus movimentos, então Deus será “tudo”, porque já não haverá distinção entre o bem e o mal, visto que o mal já não existirá em parte alguma, porque Deus será tudo em todos, e não existe mal Nele. Tampouco persistirá o desejo de comer do fruto da árvores do conhecimento do bem e do mal da parte de quem estará sempre na posse do bem, e para quem Deus é tudo.

 Assim, quando o fim tiver restaurado o princípio, e a terminação das coisas seja comparável ao seu começo, a condição em que a natureza racional foi colocada será restabelecida, quando não houver necessidade de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal; e assim, quando for retirado todo sentimento de malícia, o indivíduo, purificado e limpo, aquele que é somente o bom Deus será “tudo” para ele – e isso, não no caso de alguns poucos indivíduos, mas de um números considerável.

Quando a morte não mais existir em parte alguma, nem o aguilhão da morte, nem mal algum em absoluto, então, certamente Deus será “tudo em todos”. Mas alguns opinam que a perfeição e a bem-aventurança das naturezas ou criaturas racionais só podem permanecer nessa condição se uma natureza corporal não impedir essa união. De outro modo, pensam, a glória da bem-aventurança mais excelsa será impedida pela mescla de uma substância material. Mas esse tema já foi discutido de maneira extensa, como se pode ver nas páginas precedentes.

4.       O corpo espiritual e a unidade de todas as coisas

E agora, como encontramos o Apóstolo fazendo menção a um corpo espiritual[144], consideremos, com o melhor de nossa capacidade, que ideia devemos formar de tal coisa. Até aqui, tanto quanto nosso entendimento é capaz de compreender, pensamos que o corpo espiritual deve ser de tal natureza que seja habitado não apenas pelas almas santas e perfeitas, como também pelas de todas aquelas criaturas que serão libertas da escravidão da corrupção. “Temos de Deus uma morada, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus[145]”, disse o Apóstolo referindo-se às mansões dos bem-aventurados. A partir dessa declaração podemos formar uma conjectura sobre o quão puras, quão refinadas e quão gloriosas serão as qualidades daquele corpo, se os compararmos com os que, ainda que corpos celestes de refulgente esplendor, foram entretanto feitos por mãos e são visíveis à nossa visão. Mas daquele corpo, está dito que é uma casa não feita por mãos, mas eterna e no céu.

“Porque as coisas que se veem são temporais, mas as que não se veem são eternas[146]”; todos os corpos que vemos, seja na terra ou no céu, visíveis e feitos por mãos, não são eternos, e estão muito longe de superar em glória o que não é visível, nem feito por mãos, mas eterno. Dessa comparação podemos conceber o quão grande pode ser a beleza, o esplendor e a lucidez do corpo espiritual, e quanto é verdade que “as coisas que o olho não viu, nem o ouvido escutou, nem subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para aqueles que o amam[147]”. Entretanto, não devemos duvidar que a natureza desse nosso corpo presente pode, pela vontade de Deus que o fez, ser elevado a essas qualidades de refinamento, pureza e esplendor que caracterizam o corpo espiritual, segundo requeira a condição das coisas e o exija o merecimento de nossa natureza racional.

Finalmente, quando o mundo requereu variedade e diversidade, a matéria se ofereceu com toda docilidade ao Criador em todas as diversas aparências e espécies de coisas que seu Senhor e formador pudesse extrair de suas várias formas em seres celestes e terrestres. Mas quando as coisas começarem a se apressar para aquela consumação na qual poderão ser uma, como o Pai é um com seu Filho, podemos entender, como uma inferência racional, que, onde todos são um, não haverá mais nenhuma diversidade.

5.       A ressurreição da carne

Ademais, o último inimigo que é chamado de morte, será destruído[148], porque nada de uma classe tão triste como a morte poderá existir, nem nada adverso, quando não houver inimigo. Pela destruição do último inimigo não se deve entender que sua substância, que foi criada por Deus, tenha que desaparecer; o que desaparecerá será sua má intenção e sua atitude hostil, que são coisas que não têm sua origem em Deus, mas em si mesmo. Sua destruição significa, pois, não que deixará de existir, mas que deixará de ser inimigo e de ser morte. Nada é impossível à onipotência divina; nada que não possa ser sanado por seu Criador. O Criador fez todas as coisas para que existissem, e, se as coisas foram feitas para existir, não podem deixar de existir.

Por essa razão também haverá mudança e variedade para serem colocadas segundo seus méritos, seja em posição melhor ou pior; mas nenhuma destruição de substância poderá acontecer àquelas coisas que foram criadas por Deus para permanecerem. Sobre aquelas coisas que a opinião comum acredita que perecerão, a natureza de nossa fé e de nossa verdade não nos permite supor que serão destruídas.

Finalmente, alguns homens ignorantes e incrédulos supõem que nossa carne se destrói depois da morte de tal maneira que não conserva nenhum resto de sua substância anterior. Nós, no entanto, que acreditamos na ressurreição, entendemos que na morte só se produz sua corrupção, mas que sua substância certamente permanece; e, pela vontade de seu Criador, no tempo designado, será restaurada a vida; e pela segunda vez haverá uma mudança, de maneira que aquilo que primeiro foi a carne formada do pó da terra e depois dissolvida pela terra e reduzida a pó e cinzas – “Tu és pó, e ao pó tornarás[149]” – se levantará da terra e, depois disso, segundo os méritos da alma que a habitava, avançará para a glória de um corpo espiritual.

6.       A identidade do corpo para a eternidade

Nessas condições, pois, devemos supor que toda a nossa substância corporal será recuperada, quando todas as coisas forem restabelecidas num estado de unidade e Deus for tudo em todos.  O restabelecimento final dessa unidade não deve ser concebida como algo que vá acontecer de repente, mas que irá se fazendo por estágios sucessivos, gradualmente, ao longo de um tempo inumerável. A correção e a purificação se fará pouco a pouco em cada um dos indivíduos. Alguns irão adiante, e chegarão primeiro às alturas com um rápido progresso; outros os seguirão de perto, outros, de longe. Dessa forma multidões de indivíduos e incontáveis seres irão avançando e se reconciliando com Deus, de quem antes era inimigos. Finalmente caberá a vez ao último inimigo, chamado morte, que será destruído para deixar de ser inimigo.

Então, quando todos os seres racionais tenham sido restaurados, a natureza desse nosso corpo será transmutada na glória do corpo espiritual. Assim como as almas que foram pecadoras serão reconciliadas com Deus e entrarão num estado de felicidade depois de sua conversão, devemos considerar que nosso corpo, do qual agora fazemos uso num estado de miséria, corrupção e debilidade, não será diferente do que possuiremos num estado de incorrupção, poder e glória, mas será o mesmo corpo, que terá lançado longe as enfermidades que agora o assolam, e será transmutado a uma condição de glória, convertido em espiritual, para que um vaso de desonra, sendo limpo, se torne um vaso de honra e uma morada de felicidade.

Devemos também crer que, pela vontade do Criador, nosso corpo permanecerá para sempre sem mudança nessa condição, como se confirma pela declaração do Apóstolo, que disse: “Temos uma casa eterna no céu, não feita por mãos”. Porque a fé da Igreja não admite a opinião de certos filósofos gregos, de que, além do corpo composto por quatro elementos, existe um quinto corpo, que é diferente em todas as suas partes, e diverso desse nosso corpo presente; pois ninguém pode deduzir da Escritura nem o menor traço dessa crença, nem nenhuma inferência racional das coisas permite a aceitação dessa ideia, em especial quando o Apóstolo declara manifestamente que não será um novo corpo que será dado aos que ressuscitarem dos mortos, mas que receberão o mesmo e idêntico corpo que possuíram em vida, transformado de sua condição pior para uma melhor. Porque suas palavras são: “Semeado em corrupção, se levantará na incorrupção; semeado na vergonha, se levantará em glória[150]”.

Como, portanto, existe uma espécie de progresso no homem, que de um animal primeiro, sem entender o que pertence ao Espírito de Deus, alcança, mediante a instrução, a etapa de se converter num ser espiritual, e de julgar todas as coisas, enquanto que não é julgado por ninguém, da mesma forma acontecerá com o corpo, pois esse mesmo corpo de agora, que com base no serviço que presta à alma, é considerado um corpo animal, alcançará, por meio de um certo progresso (quando a alma unida a Deus se torne um só espírito com Ele), uma qualidade e condição espiritual, principalmente porque a natureza do corpo foi formada pelo Criador para passar facilmente por qualquer condição que deseje ou demande o caso. Então, até o corpo servirá ao espírito perante Deus.

7.       Deus faz e refaz tudo de novo

Todo esse raciocínio se reduz ao seguinte: Deus criou duas naturezas gerais, uma visível, isso é, a natureza corpórea, e outra invisível, que é incorpórea. Essas duas naturezas permitem duas permutações diferentes. A natureza visível e racional se transforma em mente e propósito, porque está dotada de livre vontade, e é sobre esse fundamento que ela às vezes se ocupa da prática do bem, outras do mal. Mas a natureza corpórea admite uma mudança de substância; daí que também Deus, que ordena todas as coisas, tem o serviço dessa matéria à sua disposição para moldar, fabricar ou retocar qualquer forma ou espécie que deseje, segundo demande o merecimento de cada coisa. O profeta contemplou isso com clareza, ao dizer: “Eis que faço uma coisa nova[151]”.

8.       Os tempos da salvação

Agora nosso ponto de investigação será se, quando Deus for tudo em todos, a natureza corporal, na consumação de todas as coisas, consistirá de uma espécie, e a única qualidade do corpo será a de brilhar na glória indescritível que devemos considerar como a posse futura do corpo espiritual. Se entendemos corretamente a questão, quando Moisés disse no princípio de seu Livro: “No princípio criou Deus os céus e a terra[152]”, esse é o começo de toda a criação; a esse começo deve se referir o fim e a consumação de todas as coisas, a saber, que o céu e a terra podem ser o lar e a morada de descanso do justo; de modo a que todos os santos e os mansos podem herdar a terra, já que isso é o que ensinam a lei, os profetas e o Evangelho. E nessa terra eu creio que existem as formas verdadeiras e vivas daquela adoração que Moisés transmitiu sob a sombra da lei, da qual foi dito: “Os quais servem de esboço e sombra das coisas celestiais[153]”. Ao mesmo tempo, também foi dada a Moisés a seguinte prescrição: “Olha e faz conforme o modelo que te foi mostrado no monte[154]”. Por isso, me parece que nessa terra a lei foi uma espécie de mestre para os que iriam ser levados a Cristo, de modo que sendo instruídos e exercitados nela, pudessem depois receber com muito mais facilidade os princípios mais perfeitos de Cristo; da mesma forma, a terra receptora de todos os santos pode primeiro incutir-lhes e moldar neles as instruções da lei verdadeira e eterna, para que possam com mais facilidade tomar posse das perfeitas instruções do céu, às quais nada se pode acrescentar. Ali estará, certamente, o Evangelho que se chama eterno, e aquele Testamento, sempre novo e nunca velho.

9.       A consumação final

Consequentemente, devemos supor que, quando da consumação e restauração de todas as coisas, aqueles que conseguirem um avanço gradual, e aqueles que ascenderem na escala da perfeição, chegarão na medida prevista e ordenada àquela terra e àquela educação que ela representa, onde possam ser preparados para instituições melhores às quais nenhuma adição possa ser feita. Porque, depois de seus agente e servos, o Senhor Cristo, que é Rei de todos, assumirá o reino; vale dizer que, depois da instrução das virtudes santas Ele mesmo instruirá os que forem capazes de recebê-Lo, enquanto sabedoria, reinando neles até que os tenha submetido ao Pai, que submeteu todas as coisas a Ele; ou seja, quando eles estiverem aptos para receber a Deus, Deus poderá ser tudo em todos.

Então, como uma consequência necessária, a natureza corporal obterá sua mais alta condição, à qual nada mais poderás ser acrescentado. Tendo considerado a qualidade da natureza corporal ou corpo espiritual até esse ponto, deixamos à eleição do leitor determinar o que considera melhor. E aqui podemos concluir esse terceiro livro.



[1] Miqueias 6: 8.
[2] Deuteronômio 30: 15-16.
[3] Isaías 1: 19-20.
[4] Salmo 81: 13-14.
[5] Mateus 5: 38-39.
[6] Mateus 5: 22.
[7] Mateus 5: 28.
[8] Mateus 7: 24, 26.
[9] Mateus 25: 34.
[10] Mateus 25: 41.
[11] Êxodo 4: 21; 7: 3.
[12] Ezequiel 11: 19-20.
[13] Marcos 4: 12; Lucas 8: 10.
[14] Romanos 9: 16.
[15] Filipenses 2: 13.
[16] Romanos 9: 18-19.
[17] Gálatas 5: 8.
[18] Romanos 9: 20-21.
[19] Romanos 9: 18.
[20] “Aqueles que pretendem que haja outro Deus além do Criador, querem que esse último seja justo e não bom, pois, por incapacidade e impiedade juntas, foram arrastados a separar a justiça da bondade e a pensar que se pode encontrar em alguém justiça sem bondade e bondade sem justiça. Ora, mesmo dizendo isso, admitem, contradizendo sua própria concepção de Deus justo, que Ele endureceu o coração do Faraó, e que o dispôs para obedecer-Lhe (...) De acordo com a interpretação dessas pessoas, Deus contribuiu para fazer do Faraó o mais injusto dos homens.” (Orígenes, Comentários ao Êxodo)
[21] Êxodo 9: 17; 4: 23.
[22] Êxodo 12: 12.
[23] “Com efeito, é indigno de um Deus causar um endurecimento no coração de alguém e provocá-lo depois para que desobedeça a vontade Daquele que o endureceu. Acaso – dizem – não é absurdo que Deus atue sobre alguém para fazê-lo desobedecer à sua vontade?” (Orígenes, Comentários ao Êxodo)
[24] Hebreus 6: 7-8.
[25] “Sobre toda a terra, pela operação da mesma chuva, o terreno que é cultivado produz frutas úteis que abençoam os cultivadores diligentes e cuidadosos, enquanto que o terreno endurecido pela negligência do granjeiro só traz espinhos e cardos. Consideremos, portanto, aqueles sinais e milagres feitos por Deus, como a chuva enviada do alto; e os objetivos e desejos dos homens, como o terreno cultivado ou inculto, que são da mesma natureza, como é cada terreno comparado entre si, mas não em estado de mesmo cultivo. Daí se segue que a vontade de cada um, se inexperiente, ou feroz, ou bárbaro, é endurecido pelos milagres e maravilhas de Deus, crescendo ainda mais selvagem e espinhoso do que anteriormente; ou então se torna mais flexível e produtiva graças à obediência e à limpeza do vício em sua mente, submetida à educação divina.” (Versão latina de Rufino)
[26] Êxodo 8: 24, 23.
[27] “Aqueles senhores que são notáveis pela bondade pera com seus servos, com frequência dizem a eles, quando, por sua paciência e indulgência, se tornam insolentes e indignos: ‘Sou eu que te fiz mal; sou culpado de teus hábitos perversos e maus, porque não te castiguei imediatamente por cada delito teu, segundo mereceste’. Porque primeiro devemos atender ao significado figurado da linguagem, para ver a força da expressão e não colocar reparos com palavras cujo significado interior não averiguamos”. (Versão latina de Rufino)
[28] Romanos 2: 4-5.
[29] Isaías 63: 17.
[30] Jeremias 20: 7.
[31] Hebreus 12: 6.
[32] Romanos 8: 35.
[33] Cf. Romanos 10: 9. “Se confessares com tua boca ao Senhor Jesus, e creres em teu coração que Deus se levantou dos mortos, serás salvo”.
[34] Lucas 14: 11.
[35] I Coríntios 1: 29.
[36] “A palavra de Deus é um médico para a alma, que utiliza os métodos terapêuticos mais variados, os mais oportunos e mais adaptados aos enfermos. Esses meios produzem sofrimentos e tormentos maiores ou menores aos que seguem o tratamento. Igualmente, os remédios são mais ou menos rápidos; podem ser aplicados, seja depois que os pacientes se fartaram do pecado, ou depois de, por assim dizer, tê-lo apenas degustado (...) Talvez Deus abandone as almas quando essas ambicionam os bens do corpo, considerados como fontes de prazer, até que, saciadas, se voltem às realidades a que aspiram, como se quisessem vomitá-las e não recair nelas, visto que, quanto mais se fartam, mais castigadas são. E com lentidão são conduzidas à cura as almas que, se fossem liberadas rapidamente de seus males, menosprezariam o perigo de uma recaída nos mesmos. Deus Criador conhece as disposições de cada um e, correspondendo isso à Sua própria vontade, pode fazer o tratamento com sabedoria, conhecendo o que é necessário fazer a cada um, e quando”. (Orígenes, Comentários ao Êxodo)
[37] “Com a mesma intenção, na minha opinião, Deus disse: ‘Endurecerei o coração do Faraó”. Em primeiro lugar, isso aconteceu para a salvação do povo, fortalecido em sua fé graças aos numerosos prodígios; em seguida, para a salvação dos egípcios que, cheios de espanto pelos acontecimentos, seguiram em grande número aos hebreus (Êxodo 12: 38). Mas, de um modo mais secreto e mais oculto, talvez isso tenha sucedido para benefício do próprio faraó: ele já não ocultou seu veneno, mas o extraiu e o manifestou à luz do dia”. (Orígenes, Comentários ao Êxodo)
[38] Cf. Mateus 13: 5-6.
[39] Sabedoria 7: 16. Em seu Comentários ao Êxodo, Orígenes escreve: “Talvez, atuando, o elimine de tal maneira que, depois de haver expelido completamente o mal presente nele, possa daí para frente deixar sem forças a árvore portadora de males. Pode inclusive acontecer que, finalmente, se seque o mal, engolido pelo mar; isso não acontece para que seja totalmente destruído, mas para que, rechaçando seus pecados e aliviado deles, desça ao Hades em paz, ou, ao menos, se que sua alma encontre um grande conflito. Provavelmente nossos leitores dificilmente se convencerão, e pensarão que nossa explicação é forçada, ao dizermos que foi útil ao Faraó ter o coração endurecido, e que todos os acontecimentos relatados, incluindo seu afogamento, lhe foram favoráveis”.
[40] Romanos 9: 18.
[41] Ezequiel 11: 19-20.
[42] Marcos 4: 12.
[43] Cf. Mateus 11: 21-22. “Ai de ti, Corazin! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres que foram feitos no meio de vós, há muito tempo elas teriam feito penitência, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas. Pois bem! Eu vos digo: no dia do julgamento, Tiro e Sidônia terão uma sentença menos dura do que vós”.
[44] Romanos 9: 16.
[45] Salmo 127: 1.
[46] I Coríntios 3: 6.
[47] Filipenses 2: 13.
[48] “Certamente, Deus não poderia afirmar da mesma maneira o seguinte: “O homem não tem liberdade para voar”, ou “O homem não é livre para ser virtuoso”. O homem carece da faculdade de voar, mas possui a de ser virtuoso ou licencioso. Posto que essas duas faculdades existem, aquele que não escuta os chamados à conversão e as palavras educativas se entrega à má faculdade, e aquele que busca o bem e decide adequar sua vida a ele busca a faculdade boa. O primeiro não busca a verdade, porque tende ao prazer. O segundo a busca com cuidado, obtendo-a por meio das noções comuns e das palavras de exortação. O primeiro elege o prazer, não porque seja incapaz de fazer-lhe frente, mas por não lutar; o segundo despreza o prazer, pois enxerga a vergonha a que este conduz”. (Orígenes, Comentários ao Gênesis)
[49] Romanos 9: 18-21.
[50] II Timóteo 1: 16-18.
[51] II Coríntios 5: 10.
[52] II Timóteo 2: 20-21.
[53] Êxodo 19: 19.
[54] II Timóteo 2: 21.
[55] Romanos 9: 21.
[56] Gênesis 22: 11-12.
[57] Êxodo 4: 24.
[58] Êxodo 12: 23.
[59] Levítico 16: 18. Azazel, da raiz azal, “retirar”.
[60] I Samuel 18: 10.
[61] I Reis 22: 19-23.
[62] I Crônicas 21: 1.
[63] Eclesiastes 10: 4.
[64] Zacarias 3: 1.
[65] Isaías 27: 1.
[66] Ezequiel 28: 12ss.
[67] João 13: 27.
[68] Efésios 6: 12.
[69] Cf. I Coríntios 2: 6-8. (N.T.: referência não encontrada)
[70] Gálatas 5: 17.
[71] I Coríntios 10: 13.
[72] I Coríntios 10: 13.
[73] Salmo 76: 10, LXX.
[74] Eclesiastes 10: 4.
[75] II Coríntios 10: 5.
[76] Salmo 84: 5.
[77] II Coríntios 8: 16.
[78] Tobias, capítulos 5-6.
[79] Zacarias 1: 14.
[80] Pastor de Hermas 6: 2.
[81] Mateus 27: 63.
[82] João 13: 2.
[83] Provérbios 4: 23.
[84] Hebreus 2: 1.
[85] Efésios 4: 27.
[86] Efésios 6: 12.
[87] Atos 9: 15.
[88] Mateus 16: 18.
[89] João 16: 33.
[90] Filipenses 4: 13.
[91] I Coríntios 15: 10.
[92] Romanos 8: 38-39.
[93] Salmo 27: 1-3.
[94] Gênesis 32: 38.
[95] João 19: 11.
[96] Jó 1: 10-11.
[97] Mateus 10: 29.
[98] Jó 7: 11.
[99] I Coríntios 2: 6-8.
[100] Mateus 12: 42.
[101] Ibid.
[102] Daniel, 10.
[103] Ezequiel, 26.
[104] Salmo 2: 2.
[105] I Coríntios 2: 6-8.
[106] João 13: 2.
[107] I Pedro 5: 8.
[108] Romanos 8: 7; Gálatas 5: 17.
[109] Efésios 6: 12.
[110] Gálatas 5: 17.
[111] Levítico 17: 14.
[112] Romanos 7: 23.
[113] Processo segundo o qual se supõe que a alma humana se transmite de pais a filhos desde o começo da humanidade.
[114] Gálatas 5: 19-21.
[115] I Coríntios 1: 26.
[116] Gálatas 5: 17.
[117] Romanos 8: 9.
[118] Romanos 8: 7.
[119] Gênesis 4: 10.
[120] Romanos 7: 23.
[121] Gênesis 49: 1.
[122] Salmo 102: 26-27.
[123] Mateus 19: 4.
[124] Mateus 24: 35.
[125] Romanos 8: 20-21.
[126] I Coríntios 7: 31.
[127] Isaías 66: 22.
[128] Eclesiastes 1: 9-10.
[129] Mateus 24: 21.
[130] Efésios 1: 4.
[131] II Coríntios 4: 18.
[132] Romanos 8: 20-21.
[133] Cf. João 17: 5.
[134] Filipenses 2: 8.
[135] Hebreus 5: 8-9.
[136] I Coríntios 15: 25.
[137] I Coríntios 15: 28.
[138] Colossenses 1: 17-18.
[139] I Coríntios 15: 28.
[140] Gênesis 1: 26.
[141] Gênesis 1: 27-28.
[142] I João, 3: 2.
[143] João 17: 24.
[144] I Coríntios 15: 44.
[145] II Coríntios 5: 11.
[146] II Coríntios 4: 18.
[147] I Coríntios 2: 9.
[148] I Coríntios 6: 26.
[149] Gênesis 3: 19.
[150] I Coríntios 15: 42-43.
[151] Isaías 43: 19.
[152] Gênesis 1: 1.
[153] Hebreus 8: 5.
[154] Êxodo 25: 40.