1
O MUNDO E SUA CRIAÇÃO
1.
Preâmbulo
Ainda que as discussões do livro precedente tenham tido como
referência o mundo e sua ordenação, parece agora consequente seguir indagando
propriamente algumas poucas questões acerca do próprio mundo, isso é, de seu
princípio e fim, das coisas dispostas pela divina providência entre o princípio
e o final, e daqueles acontecimentos que, como se supõe, ocorreram antes da
criação do mundo, ou que ocorrerão depois do final.
Nessa investigação, a primeira coisa que aparece com evidência é que
todo estado do mundo, que é vário e diverso, consta não apenas de naturezas
racionais e mais divinas e de diversos corpos, como ainda de animais mudos, a
saber: feras, animais, gados e aves, e todos os animais que vivem nas águas; e
de diferentes lugares, a saber: o céu e os céus, a terra e a água, e também dos
que ocupam o lugar intermediário entre esses, o ar ao qual chamam éter; e
finalmente, de todos os seres que procedem ou nascem da terra.
Sendo, pois, tão grande a variedade desse mundo, e havendo uma
diversidade tão grande entre os próprios seres racionais, em razão da qual
pode-se supor que toda uma outra variedade e diversidade também tenham vindo a
existir, que outra coisa podemos considerar como causa da existência do mundo,
especialmente se considerarmos o fim pelos meios, por meio dos quais, como
mostramos no libro precedente, tudo será restaurado em sua condição original?
E, se é para afirmarmos isso logicamente, que outra causa, como
dissemos, podemos imaginar para tão grande variedade no mundo, exceto a
diversidade nos movimentos e inclinações dos que caem daquela unidade e
harmonia primitiva (na qual foram criados por Deus no princípio), daqueles que,
afastados do estado de bondade e dispersados nas várias direções pela
inesgotável influência de diferentes motivos e desejos, motivos e desejos que
transformaram, segundo suas diferentes tendências, a bondade única e indivisa
de sua natureza em mentes de várias classes.
2.
A ordenação do mundo para a liberdade
Mas Deus, pela arte inefável de sua sabedoria, ao restaurar e
transformar todas as coisas que incorrem em algo útil e em proveito comum para
todas, volta a conduzir essas mesmas criaturas, que distavam tanto de si mesmas
pela variedade de suas almas, a um acordo único de atuação e propósito, a fim
de que, ainda que com diferentes movimentos de suas almas, levem a cabo, não
obstante, a plenitude e a perfeição de um só mundo, de modo a que a mesma
variedade de mentes convirja a um só fim de perfeição. Com efeito, é uma só
virtude que une e sustenta toda a diversidade do mundo e conduz a uma só obra
seus distintos movimentos, para evitar que a obra imensa do mundo se dissolva
pelas dissensões das almas. E por isso pensamos que Deus, Pai de todas as
coisas, dispôs tudo de tal modo – pelo plano inefável de seu Verbo e sabedoria,
para a salvação de todas as suas criaturas – que todos os espíritos, ou almas (ou
qualquer que seja o nome que se deva dar às substâncias racionais), não fossem
forçados contra a liberdade de seu arbítrio a algo estranho ao movimento de sua
mente, de sorte que pareceriam privados, por causa disso, da faculdade do livre
arbítrio, e que assim fosse transformada a qualidade de sua natureza própria,
mas que os diversos movimentos próprios daquelas substâncias racionais se
adaptassem em acordo umas com as outras e utilmente. E assim, umas necessitam
ajuda, outras podem ajudar, outras suscitam combates e lutas para as que
progridem, para que sua diligência se mostre mais digna de elogio, e se retenha
com mais segurança, depois da vitória, o posto conquistado, obtido à custa de
dificuldades e esforços.
3.
Um corpo e muitos membros
Por conseguinte, ainda que o mundo esteja ordenado em vários ofícios,
não devemos entender por isso o estado do mundo como um estado de dissonância e
discrepância com respeito a si mesmo, mas que, do mesmo modo como nosso corpo,
constituído por muitos membros, é um só e segue mantido por uma só alma, também
o universo do mundo, como um animal imenso e enorme, creio eu, deve ser mantido
pelo poder e a razão de Deus como por uma alma.
Na minha opinião, a própria Escritura Sagrada indica isso, conforme
foi dito pelo profeta: “Não preenchi eu os céus e a terra? Palavra do Senhor[1]”,
e outra vez: “O céu é meu trono e a terra o escabelo de meus pés[2]”;
e o que disse o Salvador quando declarou que não se devia jurar “nem pelo céu,
pois é o trono de Deus, nem pela terra, pois é o escabelo de seus pés[3]”;
e ainda o que Paulo declara ao dizer que “Nele vivemos, nos movemos e existimos[4]”.
Pois, como vivemos e nos movemos e existimos em Deus, senão porque Ele une e
contém todo o mundo com seu poder? E como pode ser o céu o trono de Deus e a
terra o escabelo de seus pés, como o próprio Salvador proclama, senão porque
tanto o céu como a terra estão cheios de seu poder, como também disse o Senhor?
Não ceio, por conseguinte, que ninguém tenha dificuldade em conceder, de acordo
com o que mostramos, que Deus preenche e contém com a plenitude de sua virtude
o mundo universo.
Uma vez demonstrado, no que precede, que os diversos movimentos das
criaturas racionais e seus distintos modos de pensar foram a causa da
diversidade desse mundo, veremos se por acaso convém a esse mundo um fim
apropriado aos seu princípio. Porque não há dúvida de que seu fim deve
encontrar-se também em sua diversidade e variedade; variedade que, colhida de
surpresa no fim do mundo, dará novamente ocasião para a diversidade de um outro
mundo que existirá depois desse.
4.
A matéria não é incriada, mas criada
Tendo chegado a essa conclusão na sequência de nossa exposição, parece
apropriado explicar agora o caráter na natureza corpórea, já que a diversidade
do mundo não pode subsistir sem corpos. A mesma realidade demonstra que a
natureza corpórea é susceptível de mudanças variadas e diferentes, de modo a
que qualquer coisa pode se transformar em qualquer outra; assim, por exemplo, a
madeira se transforma em fogo, o fogo em fumaça, a fumaça em ar. Também o
azeite líquido se transforma no fogo. O próprio alimento dos homens, não
apresenta ele a mesma mutação? Qualquer que seja o alimento que tomemos, ele se
converte na substância do nosso corpo. Porém, ainda que seja fácil expor como
se transforma a água em terra ou em ar, ou o ar em fogo, o fogo em ar, ou o ar
em água, basta aqui levar isso em conta, para considerar a índole da substância
corpórea.
Entendemos como matéria aquilo que está na base dos corpos, isso é,
aquilo ao que os corpos devem sua permanência com as qualidades postas e
introduzidas neles. As qualidades são quatro: a quente, a fria, a seca e a
úmida. Essas quatro qualidades estão implantadas na matéria (porque a matéria,
considerada em si mesma, existe independentemente dessas qualidades), e são
elas as causas das distintas espécies de corpos. Essa matéria, ainda que, como
dissemos, não possua qualidades por si própria, não subsiste nunca à parte da
qualidade. E, sendo tão abundante e de tal índole, que é suficiente para todos
os corpos que Deus quis que existissem, e que ajuda e serve ao Criador para
realizar todas as formas e espécies, recebendo em si mesma as qualidades que
Ele lhe impõe, não compreendo como tantos homens ilustres puderam imaginar que
ela seja incriada, isso é, que ela não tenha sido feita pelo mesmo Criador de
todas as coisas, e ainda dizer [esses mesmos homens] que sua existência e
natureza sejam obras do acaso. O que me surpreende é como esses homens sejam
capazes de censurar os que negam a criação ou a providência que governa esse
universo, declarando que é ímpio pensar que essa obra tão grande do mundo não
necessita de artífice ou de governador, quando eles próprios incorrem na mesma
culpa e impiedade ao dizer que a matéria é incriada e coeterna ao Deus
incriado. Com efeito, se supusermos que não tivesse existido a matéria, então
Deus – no seu modo de ver – não teria podido iniciar atividade alguma, pois não
teria matéria com a qual começasse a operar. Porque, segundo eles, Deus nada
pode fazer a partir do nada, enquanto que, ao mesmo tempo, dizem que a matéria
existe pelo acaso, e não por um desígnio divino. Em sua opinião, aquilo que se
produziu fortuitamente é explicação suficiente para a grandiosa obra da
criação.
A mim parece que esse pensamento é completamente absurdo e próprio de
homens que ignoram por completo o poder e a inteligência da natureza incriada.
Mas, para podermos contemplar com maior clareza essa questão, conceda-se, por
um pouco de tempo, que não existisse matéria, e que Deus, antes de que
existisse qualquer coisa, fez com que fosse aquilo que ele quis que fosse: como
podemos imaginar que ele poderia tê-la feito melhor, ou maior, ou superior, ao
retirá-la de seu poder e de sua sabedoria, de modo a que fosse, não tendo sido
antes? Pensaremos que Ele a teria feito inferior ou pior? OU semelhante e igual
àquela a que eles chamam de incriada? Creio que a inteligência mostrará
facilmente a todos que se não houvesse sido tal como é, fosse ela melhor, fosse
inferior, não teria sido capaz de acolher em si as formas e espécies do mundo,
como as acolheu. E como não parecerá ímpio chamar de incriado aquilo que, se
acreditássemos feito por Deus, seria, sem dúvida, idêntico ao que se chama
criado?
5.
A criação a partir do nada
Mas, para que acreditemos também pela autoridade das Escrituras que
isso é assim, considera como, no Livro dos Macabeus, quando a mãe dos sete
mártires exorta a um de seus filhos a suportar os tormentos, se confirma essa
verdade. Diz ela, com efeito: “Eu te rogo, filho, que contemples o céu e a
terra, e que vejas tudo o que há neles, e que entendas que a tudo Deus fez do
nada[5]”.
Também no livro do Pastor, no primeiro mandamento, se diz o seguinte” “Crê,
acima de tudo, que Deus é um, e que ele criou e ordenou todas as coisas, e fez
que exista o universo a partir daquilo que era nada[6]”.
Talvez possamos também aplicar a essa questão o que está escrito nos Salmos:
“Ele falou e foram feitos, Ele ordenou e foram criados[7]”;
pois, ao dizer “Ele falou e foram feitos”, parece se referir à substância das
coisas que existem, e ao dizer: “Ele mandou e foram criados”, às qualidades que
informam a mesma substância.
2
A NATUREZA CORPORAL E A INCORPÓREA
1.
Questões sobre a corporeidade
Nesse ponto, alguns costumam investigar se, assim como Pai gera o
Filho eterno e produz o Espírito Santo, não como se estes não existissem antes,
mas por estar o Pai na origem e fonte do Filho e do Espírito Santo, e sem que
neles se possa entender algo como sendo anterior ou posterior, dizíamos, se é
possível entender-se uma sociedade ou parentesco semelhante entre as naturezas
racionais e a matéria corporal; e, para investigar de forma mais plena e atenta
a essa questão, eles costumam começar seu estudo indagando se essa mesma
natureza corpórea (que é suporte da vida das mentes espirituais e racionais e
que contém seus movimentos), irá perdurar eternamente com aquelas mentes, ou se
morrerá e perecerá separada delas. Para podermos esclarecer isso com maior
precisão parece necessário investigar, em primeiro lugar, se é possível que as
naturezas racionais permaneçam absolutamente incorpóreas uma vez que alcancem o
cume da santidade e felicidade – coisa que me parece no mínimo dificílima e
quase impossível – ou se é necessário que estejam ligadas a corpos. Por
conseguinte, se pudermos apresentar uma razão que torne possível que as
naturezas racionais careçam absolutamente de corpo, parecerá consequente que a
natureza corpórea, criada a partir do nada e por um intervalo de tempo, do
mesmo modo como foi feita, deixe de existir também, uma vez passada a
necessidade do objetivo ao qual serviu sua existência.
2.
Somente a Divindade é incorpórea
Mas, se é impossível afirmar de todo modo que possa viver fora do
corpo uma natureza que não seja a do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a
necessidade de raciocínio lógico nos obriga a entender que, embora as naturezas
racionais tenham sido criadas no princípio, a substância material foi separada
delas somente no pensamento e no entendimento, sendo que ela parece ter sido
formada para eles, ou em continuidade a eles, e que eles jamais viveram ou
vivem sem ela; e assim se pensará corretamente que a vida incorpórea é uma
prerrogativa da Trindade, e só dela.
Por conseguinte, tendo essa substância material do mundo, como
dissemos antes, uma natureza que se transforma de qualquer coisa em qualquer
coisa, que quando recai em seres inferiores recebe a forma de um corpo espesso
e sólido, de modo que ocasiona essas espécies visíveis e diversas do mundo, mas
que, quando serve a seres mais perfeitos e bem-aventurados, resplandece com o
fulgor dos corpos celestes e adorna com a roupagem do corpo espiritual aos
anjos de Deus ou aos filhos da Ressurreição, permite essa substância que todos
esses seres integrem o estado diverso e variado de um só mundo.
Mas se quisermos discutir essas coisas mais plenamente, será necessário
esquadrinhar as Escrituras atenta e diligentemente, com todo temor e reverência
a Deus, para ver se descobrimos nelas algum sentido secreto e oculto a respeito
de tais questões, ou se podemos encontrar algo em suas palavras recônditas e
misteriosas (que o Espírito Santo manifesta àqueles que são dignos), desde que
tenhamos reunidos muitos testemunhos dessa mesma espécie.
3
A CRIAÇÃO E SUA RENOVAÇÃO
1.
Do princípio do mundo e de suas causas
Depois disso nos resta inquirir se antes desse mundo existiu um outro
mundo; e, se existiu se foi como esse que existe agora, ou um pouco diferente,
ou inferior, ou se não houve absolutamente mundo algum, senão algo semelhante
ao que cremos que será depois do fim das coisas, quando o reino for entregue a
Deus e ao Pai, estado que, não obstante, teria correspondido ao fim de outro
mundo, a saber, daquele depois do qual teve início o nosso, por ter Deus
provocado as diferentes quedas das naturezas intelectuais para estabelecer essa
condição variada e diversa desse mundo. Também creio que devemos inquirir, do mesmo
modo, se depois desse mundo haverá alguma cura ou emenda, sem dúvida severa e
cheia de dor, para os que não quiseram obedecer à Palavra de Deus, mas que
mediante uma educação e instrução racional por meio das quais possam alcançar
uma inteligência mais rica em verdade, como os que nessa vida presente se
entregaram aos estudos e, purificados em suas mentes, partiram daqui já
capacitados na divina sabedoria; e se depois disso virá imediatamente o fim de
todas as coisas, e, para correção e melhora dos que o necessitam, haverá
novamente outro mundo semelhante ao que agora existe, ou melhor do que esse, ou
muito pior; e por quanto tempo existirá o mundo que vier depois desse; e se
haverá um tempo em que não exista mundo algum, ou se houve um tempo em que não
existiu mundo algum; ou se existiram vários, ou se existirão; ou se pode
acontecer que surja alguma vez um mundo em tudo igual, semelhante e idêntico a
outro.
2.
O corpo corruptível e a incorruptibilidade
Assim pois, para que apareça de modo mais manifesto se a natureza
corporal só subsiste por intervalos, e se, assim como não existiu antes de ser
criada, se dissolverá de novo de modo a deixar de ser, vejamos, em primeiro
lugar, se é possível que algo viva sem corpo. Pois, se algo puder viver sem
corpo, poderão também todas as coisas existir sem corpo; com efeito, tudo tende
a um só fim, como demonstrei no primeiro livro. E, se tudo pode carecer de
corpo, não precisará existir sem dúvida, a substância corporal, da qual não
haverá necessidade alguma. Sendo assim, como entenderemos o que disse o
Apóstolo naquelas passagens em que discute a ressurreição dos mortos, onde
afirma: “Porque é preciso que o corruptível se revista de incorrupção e que
esse ser mortal se revista de imortalidade. E, quando esse ser corruptível se
revestir de imortalidade e esse ser mortal se revestir de imortalidade, então
se cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida pela vitória. Onde está,
ó morte, tua vitória? Onde está, ó morte, teu aguilhão? O aguilhão da morte é o
pecado, e a força do pecado é a lei[8]”.
Parece, pois, que o Apóstolo sugere um sentido semelhante ao que
sustentamos. Com efeito, quando ele fala “esse ser corruptível” e “esse ser
mortal”, com a ênfase de quem assinala e toca aquilo a que se refere, a que
outra coisa, senão à matéria corporal, podem esse termos ser aplicados? Por
conseguinte, essa matéria do corpo, que agora é corruptível, se revestirá de
incorrupção, quando a alma, perfeita e instruída nas provas da incorrupção,
comece, nesse estado, a servir-se dela. E que ninguém estranhe se chamamos de
‘roupagem do corpo’ a alma perfeita que, por causa do Verbo de Deus e de sua
sabedoria, recebe aqui o nome de incorrupção, ainda mais que o próprio Senhor e
criador da alma, Jesus Cristo, é chamado de ‘roupagem dos santos’, como diz o
Apóstolo: “Vestidos do Senhor Jesus Cristo[9]”.
Portanto, da mesma maneira como Cristo é a roupagem da alma, assim também, por
uma razão compreensível, se diz que a alma é a roupagem do corpo, e, com
efeito, é constitui um seu ornamento que vela e cobre sua natureza mortal. É
isso o que significa “é preciso que o corruptível se revista de incorrupção”,
como se se dissesse que é preciso que a natureza corruptível do corpo receba
uma roupagem de incorrupção por se ter revestido de Cristo, que é a sabedoria e
o Verbo de Deus. E quando esse corpo, que algum dia teremos glorioso, participe
da vida, então ele acessará ao que é imortal, de modo que se tornará também
incorruptível. Mas se uma coisa é mortal, é necessariamente corruptível; mas
não é porque uma coisa seja corruptível que ela poderá ser chamada de mortal.
Assim por exemplo, dizemos que a pedra e a madeira são corruptíveis, mas não
podemos dizer que por causa disso sejam mortais.
Por sua vez, o corpo, por participar da vida, e pelo fato de que a
vida pode se separar dele – como de fato se separa – é por conseguinte chamado
de mortal, e também desde outro ponto de vista, de corruptível. Com maravilhosa
razão, pois, o santo Apóstolo, considerando a causa primeira e geral da matéria
corporal – matéria que é sempre o instrumento da alma, em qualquer qualidade
que se coloque, seja na carnal, seja na mais sutil e pura que recebe do homem
espiritual, e que a alma utiliza sem cessar – diz: “É preciso que o corruptível
se revista de incorrupção”. E, em segundo lugar, buscando a causa específica do
corpo, diz que “esse ser mortal se revista de imortalidade”.
Pois bem, o que pode revestir e adornar a alma, senão a sabedoria, a
palavra e a justiça de Deus? Daí que se diga: “É preciso que o corruptível se
revista de incorrupção, e que o mortal se revista de imortalidade”, porque,
ainda que agora possamos realizar alguns avanços, ainda só conhecemos em parte,
e somente em parte profetizamos: vemos como através de um cristal,
obscuramente, aquelas mesmas coisas que parecemos entender: esse corruptível
ainda não se vestiu de incorrupção, nem esse mortal de imortalidade; e, como
essa educação no corpo é indubitavelmente prolongada por um período mais longo,
até o tempo em que os mesmos corpos com os quais estamos revestido, devido à
Palavra de Deus, à sua sabedoria e à sua justiça perfeita, ganhem a
incorruptibilidade e a imortalidade, é por isso que foi dito: “É preciso que o
corruptível se revista de incorrupção, e que o mortal se revista de
imortalidade”.
3.
A matéria corporal restabelecida e renovada
Entretanto, os que pensam que as criaturas racionais possam a qualquer
momento viver fora dos corpos, podem apresentar nesse ponto algumas objeções do
tipo: se é verdade que esse ser corruptível irá se revestir de incorrupção e
esse ser mortal, de imortalidade, e que a morte será absorvida pela vitória,
isso não significa outra coisa do que a destruição da natureza material, na
qual a morte podia operar alguma coisa, já que a agudeza da mente do que estão
no corpo parece ser debilitada pela natureza da matéria corporal, e, em troca,
estando fora do corpo, escapará totalmente ao incômodo de uma perturbação desse
gênero.
Mas como as naturezas racionais não poderão eludir toda roupagem
corporal subitamente, deve-se considerar que habitarão primeiro em corpos mais
sutis e mais puros, que já não poderão ser vencidos pela morte nem picados por
seu aguilhão, de modo a que, finalmente, na medida em que a natureza material
desapareça paulatinamente, a própria morte seja absorvida e exterminada, e todo
aguilhão seu destruído pela graça divina, da qual a alma se tornou digna,
merecendo assim alcançar a incorrupção e a imortalidade. E então todos dirão
com razão: “Onde está, ó morte, tua vitória? Onde está, ó morte, teu aguilhão?
O aguilhão da morte é o pecado”.
Se essas conclusões, pois, parecem consequentes, devemos crer que
nosso estado será, em algum tempo futuro, incorpóreo, e se isso for aceito e se
dissermos que todos hão de se submeter a Cristo, necessariamente isso se
aplicará a todos aqueles nos quais se realizar essa submissão, porque todos os
que se submeteram a Cristo serão igualmente submetidos a Deus Pai no final, a
quem se diz que Cristo entregará o reino[10],
e assim parece que cessará então o uso dos corpos. E, cessando, voltará a
natureza corpórea ao nada, do mesmo modo como antes não existia.
Vejamos, porém, as
consequências dessa afirmação. Parece necessário que se a natureza corpórea for
aniquilada, essa terá que ser restabelecida e criada de novo, já que parece
possível que nas naturezas racionais, às quais nunca se retira a faculdade do
livre arbítrio, possam achar-se outra vez sujeitas a alguns movimentos, desde
que o permita o Senhor, para que não aconteça que, por se conservarem sempre
num estado imóvel, ignorem que se encontram estabelecidas naquele estado final
de felicidade pela graça de Deus, e não por seu próprio mérito. E a esses
movimentos seguir-se-á, sem dúvida, a variedade e a diversidade dos corpos que
sempre adornam o mundo. O mundo não poderá nunca constar senão de diversidade e
variedade, coisa que não podem se produzir de modo algum fora da matéria
corporal.
4.
Não existe tempo cíclico nem retorno
Quanto aos que afirmam que se produzem às vezes mundos semelhantes ou
iguais em tudo, não sei em que provam se apoiam. Se acreditarmos que pode
surgir um mundo semelhante em tudo a esse, poderá acontecer que Adão e Eva
voltem a fazer o que fizeram; voltará a acontecer o mesmo dilúvio, e o mesmo
Moisés levará embora do Egito seu povo em número de seiscentos mil; Judas
entregará o Senhor pela segunda vez; Paulo guardará novamente as roupas dos que
apedrejam Estevão; e teremos que dizer que voltarão a acontecer todas as coisas
que já aconteceram nessa vida. Mas não creio que haja razão alguma para afirmar
isso, se as almas são conduzidas pela liberdade de seu arbítrio, e tantos seus
progressos como suas quedas dependem do poder de sua vontade.
Porque as almas não são conduzidas ao longo de muitos séculos aos mesmos
círculos em virtude de uma revolução determinada, de sorte a que tenham fazer
ou desejar isso ou aquilo, mas ao contrário, elas dirigem o curso de seus atos
usando da liberdade de sua própria natureza. O que aqueles dizem, é igual a
afirmar que, atirando repetidas vezes à terra um mesmo módio[11]
de trigo, pode ocorrer que venham a acontecer duas vezes as mesmas e idênticas
caídas de grãos, de modo a que cada grão volte a cair onde caiu primeiro, e na
mesma ordem, e que todos sejam dispersados da mesma forma em que antes foram
dispersos, probabilidade que, sem dúvida, é impossível que ocorra com os
inumeráveis grãos de um módio, ainda que isso se repita sem cessar por toda a
imensidão dos séculos. Do mesmo modo me parece impossível que possa ocorrer um
mundo em que tudo suceda na mesma ordem, e cujos habitantes nasçam, morram e
atuem da mesma maneira do que em outro. Mas creio que podem existir diversos
mundos com não pequenas variações, de sorte que por causas manifestas o estado
de determinado mundo seja superior, inferior, ou intermediário em relação a
outros. Quanto ao número e à medida desses mundos, confesso que os ignoro; se
alguém pudesse mostrá-los a mim, teria muito prazer em aprender com ele.
5.
Cristo, consumador dos séculos passados e
futuros
Não obstante, diz-se que esse mundo, que também se chama século, é o
fim de muitos séculos. Com efeito, o santo Apóstolo ensina que Cristo não
padeceu no século que precedeu ao nosso, nem no anterior, e ignoro se eu
poderia enumerar quantos séculos anteriores existiram, nos quais Ele não
padeceu. Citarei, no entanto, as palavras de Paulo a partir das quais cheguei a
essa conclusão: “Mas uma única vez na plenitude dos séculos [Ele] se manifestou
para destruir o pecado mediante o sacrifício de Si mesmo[12]”.
O Apóstolo diz, de fato, que Cristo se fez vítima uma única vez, e que
se manifestou na plenitude dos séculos para destruir o pecado. E que, depois
desse século, que nos ensina ter sido feito para a consumação ou plenitude dos
outros séculos, haverá outros subsequentes, conforme aprendemos de modo
manifesto quando afirma: “A fim de mostrar aos séculos futuros as excelsas
riquezas de sua graça, por sua bondade para conosco[13]”.
Ele não diz “no século futuro”, nem “nos dois séculos futuros”, e por isso
penso que suas palavras indicam muitos séculos.
Mas, se existe algo maior do que os séculos, de sorte que os séculos
possam ser entendidos como criaturas, e que se considere coo sendo de outra
índole aquilo que excede e ultrapassa as criaturas visíveis (o que talvez aconteça
quando da restituição de todas as coisas, quando todo o universo chegue a um
fim perfeito), é possível que devamos entender como algo mais do que um século
aquele estado quando acontecerá a consumação de todas as coisas. Nesse ponto,
move-me a autoridade da Sagrada Escritura, que diz: “No século e ainda”; e
aquilo que ela chama de “ainda”, indubitavelmente significa algo maior do que o
século. Considere também, se o que diz o Salvador: “Quero que aonde eu esteja,
estejam também eles comigo (...) a fim de que sejam um, como nós somos um[14]”,
não parece indicar algo mais do que o século e os séculos, e talvez ainda mais
do que o século e os séculos, a saber, aquela condição na qual as coisas já não
estão no século, mas estão em Deus.
6.
Os diferentes significados da palavra mundo
Uma vez que explicamos, na medida de nossa capacidade, essas questões
sobre o mundo, não parece impertinente indagar o que significa o próprio nome
do mundo, que, nas Sagradas Escrituras aparece com diversos sentidos. Com
efeito, aquilo a que chamamos mundus
em latim, se chama em grego kosmos,
que significa não só mundo, como ornamento. Assim, em Isaías, na passagem em
que ele dirige uma imprecação contra as principais filhas de Sião, diz que no
lugar do adorno de ouro em sua cabeça elas teriam a calvície por causa de suas
obras, e ele emprega para “adorno” o mesmo nome que para mundo, ou seja, kosmos[15].
A mesma palavra também é empregada na descrição das vestes do sacerdote, como
encontramos na Sabedoria de Salomão: “Levava em sus longa vestimenta o mundo
inteiro[16]”.
O mesmo termo se aplica a essa nossa orbe terrestre com todos os seus
habitantes, quando diz a Escritura: “O mundo inteiro está sob o domínio do
Maligno[17]”.
Clemente, o discípulo dos apóstolos, menciona aquilo que os gregos chamaram antikgones e ainda outras partes da orbe
terrestre às quais nenhum de nós tem acesso e das quais nenhum habitante pode
chegar até nós, e chama de mundos a essas regiões, quando diz: “O oceano é
infranqueável para os homens, assim como os mundos que se encontram do outro
lado, que são governados pelas mesmas disposições e domínio de Deus[18]”.
Chama-se ainda de mundo a tudo o que está contido entre o céu e a terra, como
diz Paulo: “A aparência desse mundo é passageira[19]”.
Nosso Senhor e Salvador designa também “outro mundo”, além desse
visível, mundo difícil de descrever e caracterizar, quando diz: “Eu não sou
desse mundo[20]”.
De fato, Ele diz “não sou desse mundo”, como se fosse de algum outro. Pois bem,
dissemos de antemão que a explicação desse “outro mundo” é difícil: é para não
corrermos o risco de sugerir a alguns que estamos afirmando a existência de
certas imagens, a que os gregos chamam de ideias, quando está fora de nossa
intenção falar de um mundo incorpóreo, que consistiria apenas na fantasia da
mente ou em algum pensamento escorregadio.
Tampouco vejo como poderia ser dali o Salvador, nem como se poderá
afirmar que os santos irão para lá. No entanto, não há dúvida de que o Salvador
indica algo mais digno de admiração e respeito, mais esplêndido do que o mundo
atual, e que nos incita e anima a aspirar por ele. Mas, se esse mundo que Ele
quer dar a conhecer está separado ou muito distante, desse quanto ao lugar, à
qualidade ou à glória, ou se, por ser muito superior ao nosso em qualidade e glória,
está contido, não obstante, dentro da circunscrição desse mundo (o que me
parece mais verossímil), essas são questões que permanecem incógnitas, em meu
entender, e que ainda não foram tratadas por pensamentos e mentes humanas. Não
obstante, segundo parece indicar Clemente ao dizer que “o Oceano é
infranqueável aos himens, assim como os mundos que estão além dele”, nomeando
com plural os mundos que estão além, dizendo que são conduzidos e regidos pela
mesma providência do sumo Deus, parece que ele quer espalhar a semente de uma
interpretação segundo a qual se pense que todo o universo das coisas que existe
e subsistem – celestes, supra-celestes, terrenas e infernais – recebem
genericamente o nome de um mundo único e perfeito, dentro do qual, ou pelo qual,
devemos crer que estão contidos todos os demais, caso existam. E por isso, sem
dúvida, são chamados individualmente de mundos o globo da lua, o do sol e os
dos demais astros que se chamam planetas. Inclusive, a própria esfera
supra-eminente a que chamam de aplanh
recebe apropriadamente o nome de mundo, acrescentando-se como testemunho dessa
asserção o livro do profeta Baruch, porque nele se alude de modo evidente aos
sete mundos ou céus. Não obstante, pretende-se que acima da esfera a que se
chama de aplanh existe outra esfera
que (do mesmo modo como entre nós o céu contém em sua magnitude imensa e âmbito
inefável a tudo o que se encontra sob ele) abarca com seu contorno grandioso os
espaços de todas as esferas, de sorte a que todas as coisas estão dentro dela,
assim como a nossa terra está debaixo do céu. E essa esfera é também aquela que
se crê ser nomeada nas Santas Escrituras como “terra boa” e “terra dos vivos”,
tendo seu próprio céu, que está sobre ela, no qual diz o Salvador estarem
inscritos os nomes dos santos, céu este que limita a terra que o Salvador
prometeu no Evangelho aos mansos e humildes[21].
Dizem que a nossa terra (que antes se chamava seca) recebeu seu nome dessa outra, assim como nosso céu firmamento
recebeu seu nome daquele outro céu. Mas trataremos dessas questões de modo mais
completo quando investigarmos no que consiste o céu e a terra que Deus criou no
princípio. Porque, com efeito, se dá a entender que se trata de outro céu e de
outra terra, do que o firmamento do qual se diz que foi feito dias depois, ou
da seca, que depois se chamou terra.
E, certamente, o que alguns dizem desse mundo, a saber, que é corruptível (sem
dúvida, por ter sido feito), mas que, entretanto, não se corrompe, porque é
mais forte e mais poderosa do que a corrupção a vontade de Deus que o fez e o
mantém para que a corrução não se assenhore dele, o que dizem dele pode se
aplicar corretamente a esse mundo a que chamamos de esfera aplanh, já que, pela vontade de Deus, essa não está de modo algum
submetida à corrupção, por não ter recebido em si as causas da corrupção. Com
efeito, aquele mundo é um mundo de santos e de purificados até a transparência,
e não de ímpios como o nosso. E devemos considerar se não é nisso que o
Apóstolo pensa ao dizer: “Não coloquemos os olhos nas coisas visíveis, mas nas
que não se veem, pois as visíveis são temporais, e as que não se veem são
eternas[22]”.
“Pois sabemos que se a tenda de nossa morada terrena se desfaz, temos em Deus
um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus[23]”.
E em outro lugar: “Quando contemplo os céus, obra de Tuas mãos[24]”;
e quando Deus afirma pelo profeta a respeito de todas as coisas visíveis:
“Minhas mãos fizeram todas essas coisas[25]”,
Ele declara que essa casa eterna nos céus, prometida aos santos, não foi feita
por mãos, para mostrar, sem dúvida, à criatura, a diferença que existe entre as
coisas que se veem e as que não se veem. Porque não devemos entender no mesmo
sentido as coisas que não se veem e as que são invisíveis: as coisas invisíveis
não só não se veem, como também possuem uma natureza tal que não podem ser
vistas, e os gregos as chamam aswmata,
ou seja, incorpóreas; enquanto que as coisas das quais Paulo diz que “não se
veem” têm, certamente, uma natureza que lhes permite ser vistas; mas, como ele
explica, ainda não são vistas por aqueles a quem elas estão prometidas.
7.
Novos céus e nova terra
Tendo esquematizado, na medida em que nossa inteligência o permite,
essas três opiniões quanto ao final de todas as coisas e à felicidade suprema,
cada leitor deve julgar por si mesmo com toda diligência e meticulosidade se
alguma delas parece digna de ser aprovada ou eleita.
Foi dito, com efeito, que ou bem se deve crer que possa existir uma
vida incorpórea depois que todas as coisas tenham sido submetidas a Cristo, e
por Cristo a Deus Pai, quando Deus for tudo em todos; ou bem que, concedendo
que todas as coisas serão submetidas a Cristo e por Cristo a Deus, com o qual
se tornarão um só espírito na medida em que as naturezas racionais são
espírito, resplandecerá também a própria substância corporal, associada então a
espíritos melhores e mais puros e transformada num estado etéreo em razão da
qualidade e dos méritos dos que a assumem, segundo disse o Apóstolo: “E nós
seremos transformados[26]”
e brilharemos daí por diante em esplendor; ou que, passado o estado das coisas
que se veem, tendo sido sacudida e limpa toda corrução, e transcendida e
superada toda essa condição do mundo, na qual se diz que existem as esferas dos
planetas, a morada dos piedosos e bem-aventurados será colocada acima daquela
esfera a que chamam aplanh, na terra
boa e dos vivos que os mansos e humildes receberão por herança, a qual pertence
esse céu que em seu contorno magnífico a circunda e contém, e que se chama, em
verdade e de modo principal, céu.
Nesse céu e nessa terra poderá repousar o fim e a perfeição de todas
as coisas, como numa morada segura e fidelíssima: alguns merecerão habitar essa
terra depois de obter a purgação de seus delitos, uma vez cumpridas e pagas
todas as coisas; de outros, por sua vez, que foram obedientes à Palavra de
Deus, e que, por sua docilidade, se mostraram desde já capazes de sabedoria, se
diz que merecem o reino daquele céu ou céus, e assim se cumprirá mais
dignamente o que foi dito: “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a
terra. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles será o reino dos
céus[27]”,
e também o que diz o Salmo: “Ele te exaltará para que possuas a terra[28]”.
Com efeito, dessa nossa terra se diz que desce, mas daquela que está no alto,
que é exaltada. Portanto, parece que se abre uma espécie de caminho pelo
progresso dos santos daquela terra àqueles céus, de sorte que parecem mais
habitar por algum tempo naquela terra do que permanecer nela, estando
destinados a passar, quando tiverem alcançado o correspondente grau, à herança
do reino dos céus.
4
A UNIDADE DE DEUS
1.
Identidade de Deus nos dois Testamentos
Tendo organizado brevemente esses ponto o melhor que pudemos, segue-se
que, conforme nossa intenção desde o princípio, devemos agora refutar os que
pensam que o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo seja um Deus diferente do que deu
a lei a Moisés, ou que comissionou os profetas, e que é o Deus de nossos pais,
Abrahão, Isaac e Jacó. Devemos, antes de tudo, permanecer firmemente estabelecidos
nesse artigo de fé. Temos que considerar a expressão que se repete com
frequência nos Evangelhos e uni-la a todos os atos de nosso Senhor e Salvador:
“Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito pelo Senhor, pelos
profetas[29]”,
sendo evidente que os profetas são aqueles profetas do Deus que fez o mundo.
Daí tiramos a seguinte conclusão, de que quem enviou os profetas é o mesmo que
profetizou prenunciando a Cristo. E não existe dúvida de que o próprio Pai, e
não outro diferente dele, foi quem pronunciou essas predições. Ademais, a
própria prática do Salvador e de seus apóstolos, citando com frequência as
ilustrações do Antigo Testamento, mostra que eles atribuíram uma autoridade aos
antigos.
A prescrição do Salvador, exortando seus discípulos ao exercício da
bondade (“Para que sejais filhos de vosso Pai que está nos céus; que faz com
que o sol nasça para maus e bons e que chova sobre os justos e os injustos.
Sede perfeitos, como vosso Pai que está no céu é perfeito[30]”),
sugere nitidamente, até para uma pessoa de entendimento débil, que ele não
propõe a seus discípulos a imitação de nenhum Deus, senão o que fez o céu e
outorgou a chuva. Ademais, que outra coisa significa a expressão usada por
todos os que oram: “Pai nosso, que estais no céu[31]”,
senão que Deus deve ser buscado nas melhores partes do mundo, isso é, de sua
criação?
Cristo deixou dito sobre os juramentos: “Não jureis de nenhuma
maneira: nem pelo céu, que é o trono de Deus, nem pela terra, que é o escabelo
de seus pés[32]”,
o que harmoniza literalmente com as palavras do profeta: “O céu é meu trono, e
a terra apoio para os meus pés[33]”.
E também, quando da expulsão dos vendedores de ovelhas, bois e pombas
do templo, derrubando as mesas dos cambistas, Cristo disse: “Tirai essas coisas
daqui, e não façais da casa de meu Pai uma praça de mercado[34]”.
Jesus o chamou indubitavelmente de Pai, aquele a quem Salomão levantara um
templo magnífico. Ademais, as palavras que dizem: “Não lestes o que vos disse
Deus, quando falou: Eu sou o Deus de Abrahão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó?
Deus não é o Deus de mortos, mas de vivos[35]”,
nos ensinam com clareza que Ele chamou de Deus dos patriarcas (porque eram
santos e estavam vivos) o Deus dos vivos, a saber o mesmo referido pelos
profetas: “Eu sou Deus e não existe outro Deus[36]”.
Porque se o Salvador, sabendo que está escrito na lei que o Deus de Abrahão é o
mesmo Deus que disse “Eu sou Deus e não existe outro Deus”, Ele reconhece que o
Pai ignora a existência de qualquer outro Deus acima Dele, como supõem os
hereges. Mas se não for por ignorância, mas por engano, que Ele disse não haver
Deus senão Ele, então é um absurdo muito maior confessar que seu Pai é culpado
de falsidade. Daí se deduz que Cristo não conhece nenhum Pai senão Deus, o
fundador e criador de todas as coisas.
2.
Um só Deus nas duas alianças
Seria tedioso recolher de todas as passagens dos Evangelhos as provas
que mostram que o Deus da lei e o Deus dos Evangelhos são o mesmo. Consideremos
brevemente os Atos dos Apóstolos, onde Estevão e os demais apóstolos dirigem
suas orações ao Deus que fez o céu e a terra, que falou pela boca de seus
santos profetas, chamando-o de “Deus de Abrahão, Isaac e Jacó”; “o Deus (...)
que os livrou, fazendo prodígios e milagres na terra do Egito[37]:
essas expressões sem dúvida dirigem nosso entendimento à fé no Criador, e
implantam um afeto por Ele naqueles que piedosa e fielmente aprenderam a pensar
assim Dele; segundo as palavras do próprio Salvador, que, quando lhe
perguntaram qual era o mandamento maior da lei, respondeu: “Amarás ao Senhor
teu Deus de todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente. Esse é o
primeiro e grande mandamento. E o segundo é esse: amarás ao próximo como a ti
mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas[38]”.
Não é assim, portanto, que quem instruía e levava seus discípulos a entrar no
ofício do discipulado, lhes recomendava esse mandamento acima de todos os
outros, por meio do qual, indubitavelmente, se acende o amor ao Deus da lei,
posto que desse modo se declara segundo a lei através dessas mesmas palavras?
Mas, concedamos, não obstante todas essas provas tão evidentes, que
seja de algum outro Deus desconhecido que o Salvador disse: “Amarás ao Senhor
teu Deus de todo o coração, etc.”; como, nesse caso, sendo a lei e os profetas,
como eles dizem, do Criador, isso é, de outro Deus do que Aquele a quem Ele
chamou de bom, se pode aceitar que Ele acrescente que “desses dois mandamentos
dependem toda a lei e os profetas”? Pois, como é possível que algo estranho e
alheio a Deus possa depender Dele?
E quando Paulo diz: “Dou graças a Deus, a quem sirvo desde meus
antepassados com a consciência limpa[39]”,
mostra claramente que ele veio, não para um novo Deus, mas para Cristo. Pois a
quais outros antepassados pode Paulo se referir, senão àqueles de quem ele
disse: “São hebreus? Eu também sou. São israelitas? Eu também? São semente de
Abrahão? Também eu[40]”.
No próprio prefácio de sua Epístola aos Romanos mostra-se claramente a mesma
coisa aos que sabem entender as cartas de Paulo, a saber, a qual Deus predica
ele? Porque suas palavras são: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado a ser
apóstolo, escolhido para anunciar o evangelho de Deus por seus profetas nas
Santas Escrituras, a respeito de Seu Filho (que foi feito da semente de Davi
segundo a carne, e que foi declarado Filho de Deus com poder, segundo o
espírito de santidade, pela ressurreição dos mortos), de Jesus Cristo nosso
Senhor[41]”.
Ademais, ele diz o seguinte: “Porque na lei de Moisés está escrito:
“Não amordace o boi que debulha o grão. Terá Deus cuidado com os bois? Ou Ele o
disse inteiramente para nós? Porque para nós está escrito: com esperança há de
arar o que ara; e o que trabalha, com esperança de receber seu fruto[42]”.
Aqui fica demonstrado que Deus deu a lei por nossa causa, isto é, devido aos
apóstolos: “Não amordace o boi que debulha”, cujo cuidado não se refere ao boi,
mas aos apóstolos, que predicavam o Evangelho de Cristo.
Também em outras passagens, Paulo, abarcando as promessas da lei, diz:
“Honra a teu pai e à tua mãe, que é o primeiro mandamento com promessa, para
que tudo te saia bem, e tenhas uma longa vida sobre a terra[43]”.
Aqui se dá a entender sem dúvidas que ele se compraz na lei e no Deus da lei e
suas promessas.
3.
Deus, invisível e imaterial
Mas como os que sustentam essa heresia costumam enganar às vezes os
corações dos mais simples mediante certos sofismas enganadores, não considero
impróprio apresentar aqui suas asserções e refutar seu engano e falsidade.
Uma de suas declarações é a seguinte: está escrito que “jamais alguém
viu a Deus[44]”;
mas o Deus que Moisés predicou foi visto por ele e por seus pais antes dele,
enquanto que o que o anunciado pelo Salvador nunca foi visto por ninguém. Perguntaremos
a eles, e a nós mesmos, se sustentam que aquele a quem eles reconhecem como
Deus, e que alegam ser um Deus diferente do Criador, é visível ou invisível. Se
disserem que é visível, além de irem contra o que a declara a Escritura, que
fala do Salvador, que “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda
criação[45]”,
cairão também no absurdo de afirmar que Deus é corpóreo. Pois nada pode ser
visto sem a presença da forma, tamanho e cor, que são as propriedades
específicas dos corpos. E se declararem que Deus é um corpo, então seguir-se-á
que Ele é um ser material, já que todo corpo é composto de matéria. Mas, se
Deus for composto de matéria, sendo a matéria corruptível, então, segundo eles,
Deus é susceptível de corrupção!
Faremos a eles uma segunda pergunta: a matéria é feita ou é incriada,
vale dizer, não feita? Se responderem que não é feita, vale dizer, que é
incriada, perguntaremos se uma parte da matéria é Deus, e outra parte é o
mundo. Mas se disserem que a matéria é feita, seguir-se-á que eles confessam
que aquele a quem declaram ser Deus foi também ele feito, um resultado que
certamente nem sua razão, nem a nossa, podem admitir.
Mas dirão eles, que Deus é invisível. E o que fará você? Se isso
implica que Ele é invisível por natureza, então sequer para o Salvador poderá
ser visível. Mas se, ao contrário, Deus, o Pai de Cristo, pode ser visto
conforme foi dito: “Quem me viu, viu o Pai[46]”,
isso com certeza nos pressionaria com muita força, se essa expressão não for
entendida por nós mais corretamente como se referindo ao entendimento e não à
vista. Porque quem compreende o Filho, compreenderá também o Pai. Desse modo
podemos supor que também Moisés viu a Deus, não contemplando-o com os olhos
corporais, mas entendendo-o com a visão do coração e a percepção da mente, e
isso apenas em certo grau. Porque é manifesto que Deus disse a Moisés: “Não
poderás ver meu rosto (...) verás minhas costas, mas não verás meu rosto[47]”.
Essas palavras devem ser entendidas naquele sentido místico que convém às
palavras divinas, rechaçando e desprezando “as fábulas profanas e velhas[48]”,
inventadas por pessoas ignorantes a respeito das partes anteriores e
posteriores de Deus.
Que ninguém suponha que nos comprazemos em algum sentimento de
impiedade por afirmar que o Pai não é visível nem para o Salvador. Antes bem,
considerem a distinção que utilizamos ao tratar com os hereges. Porque
explicamos que uma coisa é ver e ser visto, e outra coisa é conhecer e ser
conhecido, ou entender e ser entendido. Ver e ser visto é uma propriedade dos
corpos, que certamente não pode se aplicar ao Pai, ao Filho ou ao Espírito
Santo em suas relações mútuas. A natureza da Trindade ultrapassa a medida de
visão concedida aos que estão no corpo, isso é, a todas as demais criaturas,
cuja propriedade de visão se refere umas às outras. Mas, a uma natureza que é incorpórea e
principalmente intelectual, nenhum outro atributo é apropriado senão o de
conhecer e ser conhecido, como o próprio Salvador declara: “Ninguém conhece o
Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aqueles a quem o
Filho o quiser revelar[49]”.
Está claro, portanto, que ele não disse: “Ninguém viu o Pai, senão o Filho”,
mas “ninguém conhece o Pai, senão o Filho”.
4.
Antropomorfismos e a impassibilidade divina
Agora, se, devido àquelas expressões que ocorrem no Antigo Testamento
– como quando se dia que Deus se aborrece ou se arrepende, ou quando se aplica
a Ele qualquer outro afeto ou paixão humanos – nossos opositores pensam que têm
boas razões para nos refutar, já que sustentamos que Deus é totalmente
impassível, e que deve ser considerado totalmente livre de emoções desse tipo.
Temos que mostrar-lhes que declarações similares aparecem nas
parábolas do Evangelho: como quando se diz que um homem plantou uma vinha e a
arrendou a camponeses, que mataram os criados que lhes foram enviados, e por
fim mataram até o filho do proprietário; diz-se então que, em sua cólera, ele
lhes tomou o vinhedo e os entregou à destruição, depois de haver dado o vinhedo
a outros, que deram fruto a seu tempo[50].
E também quando o homem nobre partiu para uma província distante, para ser
corado num reino e depois voltar, e, chamando dez servos, deu a cada um deles
dez talentos, dizendo: “Negociem até que eu venha”. Mas os cidadãos daquele
reino o detestavam e enviaram uma embaixada a ele, dizendo: “Não queremos que
reines entre nós”. Porém aconteceu que, ao retornar, e tendo assumido o reino,
mandou chamar seus servos a si e, cheio de cólera, mandou que matassem aquele
que nada havia produzido, e que queimassem aquela outra cidade com fogo[51].
Assim, quando lemos no Antigo ou no Novo Testamento sobre a ira ou a
cólera de Deus, não devemos tomar tais expressões literalmente, mas devemos
buscar nelas um significado espiritual, de modo a que possamos pensar em Deus
como Ele merece ser pensado. Portanto, sobre esses assuntos, ao expor o verso
do Salmo 2: “Então falará a eles em seu furor, e os turbará com sua ira[52]”,
cremos haver mostrado, com o melhor de nossa pobre capacidade, como essas
expressões devem ser entendidas.
5
A JUSTIÇA E A BONDADE DE DEUS
1.
A divisão herética ente o Deus bom e o Deus
justo
Os hereges de quem estamos falando estabeleceram uma espécie de
divisão por meio da qual declaram que uma coisa é a justiça e outra a bondade.
Eles aplicaram essa divisão inclusive às coisas divinas, sustentando que o Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo é na verdade um Deus bom, mas não justo, enquanto
que o Deus da lei e dos profetas é um Deus justo, mas não bom. Por isso penso
que é necessário voltar agora a considerar esses assuntos com o máximo de
ênfase e brevidade.
Essas pessoas consideram a bondade como sendo algum tipo de afeto que
confere vantagens a que confira, ainda que o receptor seja indigno e não
merecedor de qualquer bondade; mas aqui, na minha opinião, eles não aplicaram
corretamente sua definição, dado que pensam que nenhum benefício é conferido ao
que é visitado por qualquer sofrimento ou calamidade. A justiça, por sua vez, é
vista por eles como a qualidade que recompensa a cada um segundo seus méritos.
Porém aqui, mais uma vez, eles não interpretam corretamente o significado de
sua própria definição, já que pensam ser justo enviar desgraças aos malvados e
benefícios aos bons; vale dizer que, em sua opinião, o Deus justo não parece
desejar o bem aos maus, mas parece estar animado de uma espécie de ódio por
eles.
Para sustentar sua doutrina, eles reuniram alguns exemplos disso. Em
qualquer lugar das Escrituras do Antigo Testamento onde possam encontrar uma
história relacionada com o castigo, como o dilúvio, por exemplo, e o destino
daqueles que pereceram nele; ou a destruição de Sodoma e Gomorra por uma chuva
de fogo e enxofre; ou a morte do povo no deserto devido aos seus pecados, de
modo que nenhum dos que saíram do Egito entraram na terra prometida, exceto
Josué e Caleb.
Por outro lado, no Novo Testamento eles recolhem as palavras de
compaixão e piedade, com as quais os discípulos foram ensinados pelo Salvador,
e também as que dizem que ninguém é bom, senão Deus Pai; por esse meio
aventuraram-se a designar o Pai do Salvador Jesus Cristo como Deus bom, e dizem
que o Deus do mundo é diferente para aqueles que consideram a Deus como justo,
mas não bom.
2.
A letra e o significado interior
Penso que, em primeiro lugar, devemos exigir deles que mostrem, se
puderem fazê-lo conforme sua própria definição, que o Criador tenha sido
injusto ao castigar segundo seu merecimento os que faleceram no dilúvio, ou os
habitantes de Sodoma, ou os que saíram do Egito, sendo que nós às vezes vemos
ser cometidos crimes mais malvados e detestáveis do que os daquelas pessoas que
foram destruídas, sendo que nós não fazemos com que cada pecador pague a pena
por seus malfeitos. Dirão que Deus, que foi justo durante certo tempo, tenha se
tornado bom? Ou crerão que Ele ainda é justo, mas que suporta pacientemente as
ofensas humanas, enquanto que naquela ocasião não foi justo, pois exterminou
crianças inocentes e lactantes juntamente com gigantes cruéis e ímpios?
São essas as suas opiniões, porque não sabem como entender nada que vá
além da letra; senão fosse assim, eles poderiam mostrar de que modo a justiça
literal pelos pecados visita os filhos até a terceira ou quarta geração, e
recai sobre os filhos dos filhos depois deles[53].
Nós, entretanto, não entendemos essas coisas literalmente, mas, como nos
ensinou Ezequiel ao relatar sua parábola[54],
inquirimos sobre o significado interior contido na parábola.
Ademais, eles deveriam explicar também como Deus é justo e recompensa
a cada um segundo seus méritos, como castiga as pessoas mundanas e o diabo,
vendo que não fizeram nada digno de castigo. Ou se esses não poderiam fazer
nenhum bem, dado que, segundo eles, sua própria natureza era má e arruinada.
Pois, já que eles O classificam como juiz, parece ser um juiz tanto de ações
como de naturezas; e, se uma natureza má não pode fazer algo bom, tampouco uma
boa poderá fazer o mal.
3.
A bondade e a justiça de Deus
Então, em segundo lugar, se aquele a quem chamam ‘bom’ é bom para
todos, também será bom, indubitavelmente, para os que estão destinados a
perecer. E por que não os salva? Se não quer, é porque não é bom; e se quer,
mas não pode, então não será onipotente. Por que não escutam que nos Evangelhos
o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo está preparando um fogo para o diabo e seus
anjos? E como tal procedimento, tão penal quanto triste, parecerá, em sua
opinião, obra do Deus bom? Até o próprio Salvador, o Filho do Deus bom,
protesta nos Evangelhos e declara, falando de Corazin e de Betsaida, ao
recordar Tito e Sidon, que “se tivessem sido realizados os milagres que foram
feitos no meio de vocês, há muito tempo teriam feito penitência, vestindo-se de
cilício e sentando-se sobre cinzas[55]”.
E quando passou por perto daquelas cidades e entrou em seu território, por que
evitou entrar nelas, e fazer uma abundância de sinais e maravilhas, se fosse
certo que eles haveriam de se arrepender com silício e cinzas depois da
realização de tais prodígios? Ora, como Ele não o fez, indubitavelmente
abandonou à destruição àqueles que, na linguagem do Evangelho, mostraram não
possuir uma natureza má ou debilitada, pois Ele próprio declara que eles eram
capazes de arrependimento.
Outra vez, em dada parábola do Evangelho, o rei entra para ver os
convidados que se reclinam no banquete e, contemplando certo individuo sem o
vestido de boda, lhe diz: “Amigo, como entraste aqui não tendo vestes de boda?
Mas ele calou-se. Então o rei disse aos que o serviam: Atem-lhe os pés e as
mãos, atirem-nos às trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes[56]”.
Que nos digam quem é esse rei que entrou a ver os convidados e ordenou aos seus
servos que atassem e lançassem nas trevas profundas a pessoa que trazia uma
veste inadequada. É o mesmo a quem chamam justo? Como, então, mandou que fossem
convidados bons e maus igualmente, sem indicar aos seus servos que indagassem
sobre seus méritos? Com tal procedimento indica-se, não o caráter de um Deus
justo que recompensa os homens segundo seus méritos, mas o de alguém que
estende uma bondade indiscriminada a todos. Agora, se devemos necessariamente
entender isso em relação ao Deus bom, seja de Cristo ou do Pai de Cristo, que
outra objeção poderão trazer contra a justiça do julgamento de Deus? Que
injustiça pode haver em acusar o Deus da lei, por ter ordenado a quem havia
sido convidado por seus próprios servos – que foram enviados para chamar
igualmente os bons e os maus – de ser atado de pés e mãos e lançado na
escuridão, por não ter vestimenta adequada?
4.
Esperança no castigo
O que temos extraído da autoridade da Escritura deveria ser suficiente
para refutar os argumentos dos hereges. Não obstante, não parecerá impróprio se
tratarmos brevemente desse tema com eles, baseados na razão. Perguntaremos a
eles, então, se sabem o que é considerado entre os homens como a base da
virtude e da maldade, e se disso se deduz que podemos falar de virtudes de
Deus, ou, como eles pensam, dos dois deuses. Deixemos também que nos respondam
– se consideram que a bondade é uma virtude, como indubitavelmente o admitem –
o que dirão da injustiça? Creio que jamais, em minha opinião, serão tontos a
ponto de negar que a justiça seja uma virtude.
Por conseguinte, se a virtude é uma bênção, e a justiça uma virtude,
então a justiça é, sem dúvida, bondade. Mas se eles disserem que a justiça não
é uma bênção, é porque ela deve ser um mal ou uma coisa indiferente. Penso que
é loucura responder aos que dizem que a justiça é um mal, já que terei que
contestar palavras insensatas, ou homens fora de si. Como poderá parecer um
mal, algo que é capaz de recompensar o bom com bênçãos, como eles próprios
admitem? Mas se disserem que é uma coisa indiferente, segue-se que, se a
justiça é assim, também serão assim a moderação, a prudência e o resto das
virtudes. E qual será nossa resposta àquilo que disse Paulo: “Finalmente,
irmãos, ocupem-se com tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável,
honroso, virtuoso, ou que de algum modo mereça louvor. Pratiquem tudo o que
vocês aprenderam e receberam como herança, o que ouviram e observaram em mim[57]”.
Deixemos que aprendam, portanto, esquadrinhando as Santas Escrituras,
no que consistem as virtudes individuais, e que não enganem a si mesmos dizendo
que Deus premia a cada um segundo seus méritos, recompensando o mau com o mal –
por detestar o mal – e não porque aqueles que pecaram precisam ser tratados com
remédios mais severos, e porque aplica medidas que, visando a melhora, parecem
produzir, entretanto e momentaneamente, um sentimento de dor. Não leem o que
está escrito dobre a esperança dos que foram destruídos pelo dilúvio, esperança
a que Pedro se refere em sua primeira epístola: “De fato, o próprio Cristo
morreu uma vez por todas pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de os
conduzir a Deus. Ele sofreu a morte em seu corpo, mas recebeu vida pelo
Espírito. Foi então que ele proclamou a vitória, inclusive para os espíritos
aprisionados; falo das pessoas que foram rebeldes outrora, nos tempos de Noé,
quando Deus demorava para castigar o mundo. Enquanto isso, Noé construía a
arca, na qual somente oito pessoas foram salvas por meio da água. Aquela água
representava o batismo que agora salva vocês; não se trata de limpeza da
sujeira corporal, mas do compromisso solene de uma boa consciência diante de
Deus, mediante a ressurreição de Jesus Cristo[58]”.
Com relação a Sodoma e Gomorra, deixemos que nos digam se creem que as
palavras proféticas são de Deus Criador, a quem está relacionada a chuva de
fogo e enxofre. O que diz o profeta Ezequiel? “E tias irmãs, Sodoma com suas
filhas e Samaria com suas filhas, voltarão ao seu primeiro estado[59]”.
5.
Identidade entre a justiça e a bondade
Mas porque, ao atingir os que merecem castigo, não os afligem para seu
bem? Ele disse aos caldeus: “Eis que serão como palha: o fogo os queimará, e
não salvarão suas vidas do poder das chamas[60]”.
E a respeito dos que pereceram no deserto, deixemos que ouçam o que diz o Salmo
78, que leva a assinatura de Asaf: “Quando os matava, então buscavam a Deus[61]”.
Não está dito que alguém buscava a Deus depois de outros terem sido mortos, mas
que a destruição dos que eram mortos era de tal natureza que, quando conduzidos
à morte, buscavam a Deus. Por tudo isso fica estabelecido que o Deus da lei e o
Deus dos Evangelhos é o mesmo, um Deus justo e bom, que confere benefícios com
justiça e castiga com bondade, já que nem a bondade sem a justiça, nem a
justiça sem a bondade, podem expressar a dignidade real da natureza divina.
Acrescentaremos ainda a eles os seguintes comentários, por causa de
suas sutilezas. Se a justiça for uma coisa diferente da bondade, então, já que
o mal é o oposto do bem e a justiça o oposto da injustiça, sem dúvida a justiça
será mais do que um mal; e como, em sua opinião, o homem justo não é bom, então
tampouco o homem injusto será mau; e, assim como o homem bom não é justo, o
homem mau não será injusto. Mas quem não verá o absurdo de opor a um Deus bom
outro que seja mau, enquanto que a um Deus justo (que eles alegam ser inferior
ao bom) ninguém é capaz de se opor? Pois não haveria ninguém que pudesse ser
chamado de injusto, tal como Satanás é chamado de maligno. Que devemos fazer,
então? Que aceitem a posição que defendemos, já que eles não serão capazes de
sustentar que um homem mau não seja também injusto, e que o injusto não seja
mau. E se essas qualidades são indissoluvelmente inerentes a essas
contraposições, a saber, a injustiça em relação à maldade, ou a maldade em
relação à injustiça, então, inquestionavelmente, o homem bom será inseparável
do homem justo, e o justo do bom; e assim, do mesmo modo como falamos de uma
mesma maldade na guerra e na injustiça, poderemos também sustentar que as
virtudes da bondade e da justiça são uma só e a mesma.
6.
Não existe separação entre a bondade e a
justiça de Deus
Eles, uma vez mais, nos recordam as palavras da Escritura, ao
trazer-nos a celebrada questão, afirmando que está escrito: “Não pode uma
árvore boa dar maus frutos, nem uma árvore má dar bons frutos[62]”.
Qual é, pois, sua posição? Que tipo de árvore será a lei, que se mostra por
seus frutos, isso é, pela linguagem dos seus preceitos? Já que, se a lei for
considerada boa, então sem dúvida quem a deu deve ser considerado um Deus bom.
Mas se, antes de ser justo, Ele for bom, então Deus deverá ser considerado como
um legislador justo. O apóstolo Paulo não faz rodeios que diz: “Em verdade, a
lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom[63]”.
É evidente que Paulo não havia aprendido a linguagem dos que separam a
justiça da bondade, mas foi instruído por aquele Deus, e iluminado pelo
Espírito, que é ao mesmo tempo santo, bom e justo. Falando desse Espírito, ele
declarou que o mandamento da lei era santo, justo e bom. E para que pudesse
mostrar mais claramente que a bondade estava no mandamento em grau maior do que
a justiça e a santidade, repetindo suas palavras, usou, ao invés dos três
epítetos, apenas o da bondade. Dizendo: “Então o que é bom se transformou em
morte para mim?[64]”.
Como ele sabia que a bondade constituía o gênero das virtudes, e que a
justiça e a santidade eram espécies pertencentes a esse gênero, e tendo
chamado, nos versículos anteriores, o gênero e a espécie juntos, ele agora
retrocede, repetindo suas palavras apenas a respeito do gênero. Mas a seguir
ele diz: “O pecado, para se mostrar como pecado, por meio do que é bom produziu
em mim a morte[65]”,
onde ele resume genericamente o que havia explicado de antemão especificamente.
Do mesmo modo devemos também entender a declaração: “O homem bom extrai coisas
boas do tesouro de seu coração; e o homem mau, de seu mau tesouro extrai coisas
más[66]”.
Aqui também se assume que existe um gênero do bom e um do mal, assinalando-se
inquestionavelmente que num homem bom encontra-se a justiça, a moderação, a
prudência, a piedade e tudo o mais que se possa entender ou considerar como
bom. Do mesmo modo também fica dito que é mau o homem injusto, impuro, ímpio, e
tudo o que torna um homem mau. Já que ninguém considera como mau a um homem que
não apresente essas marcas de maldade (nem se pode fazê-lo), também é certo que
sem aquelas virtudes ninguém pode ser considerado bom.
Apesar de tudo, resta ainda a eles explicar o que o Senhor diz no
Evangelho, e que eles interpretam de modo especial, como um escudo, a saber:
“Ninguém é bom, senão Deus[67]”.
Eles declaram que essas palavras são específicas para o Pai de Cristo, o qual,
entretanto, seria diferente do Deus Criador de todas as coisas, ao qual não se
atribui bondade alguma.
Vejamos agora se, no Antigo Testamento, o Deus dos profetas e o
Criador e Legislador da palavra não é chamado de bom. Quais são as expressões
que aparecem nos Salmos? “Certamente é bom o Deus de Israel aos puros de
coração[68]”.
E: “Diga agora, Israel, que sua misericórdia é para sempre[69]”.
Veja-se a linguagem nas Lamentações de Jeremias: “Bom é o Senhor para os que O
esperam, para a alma que o busca[70]”.
Da mesma forma, portanto, como Deus é com frequência chamado de bom do Antigo
Testamento, também o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é qualificado como justo
nos Evangelhos. No Evangelho de São João, nosso Senhor diz, orando ao Pai: “Pai
justo, o mundo não Te conheceu[71]”.
E, a menos que eles digam que, por haver assumido a carne humana, Ele chamou de
Pai ao Criador do mundo, qualificando-o como “justo”, ficarão excluídos de
semelhante refúgio pelas palavras que se seguem imediatamente: “O mundo não Te
conheceu”. Mas, segundo eles, o mundo só é ignorante do Deus bom; então,
claramente, aquele a quem eles consideram como Deus bom é chamado de justo nos
Evangelhos.
Alguém que disponha de tempo livre poderá reunir um grande número de
provas consistentes, naquelas passagens do Novo Testamento onde o Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo é chamado de justo, e também no Velho, onde o Criador do
céu e da terra é chamado de bom; de modo que os hereges, convencidos por
numerosos testemunhos, possam talvez ser colocados em condição de vergonha.
6
A ENCARNAÇÃO DE CRISTO
1.
Perguntas sobre o como e o porquê do
Mediador
É chegada a hora, depois da nota superficial sobre esses pontos, de
reassumir nossa investigação sobre a encarnação de nosso Senhor e Salvador, a
saber: como e porque Ele se fez homem. Consideramos, portanto, com o melhor de
nossa débil capacidade, sua natureza divina a partir da contemplação de suas
próprias obras, mais do que de nossos próprios sentimentos, e ainda, contemplamos (com os olhos) sua criação
visível – enquanto que a criação invisível só pode ser vista pela fé, porque a
debilidade humana não pode ver todas as coisas com o olho corporal, nem
compreendê-las com a razão, sabendo que nós os homens somos mais débeis e
frágeis do que quaisquer outros seres racionais (porque os que estão no céu ou,
como se supõe, existem acima do céu, são superiores). Resta buscar um ser
intermediário entre todas as coisas criadas e Deus, isso é, um Mediador, a quem
o apóstolo Paulo chama de “o primogênito de toda a criação[72]”.
Veremos, ademais, aquelas declarações relativas à sua majestade
contidas nas Escrituras, onde Ele é chamado de “imagem do Deus visível e
primogênito de toda criatura”, onde se diz que “por Ele foram criadas todas as
coisas que estão nos céus, e que estão na terra, visíveis e invisíveis: sejam
tronos, sejam domínios, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado
por Ele e para Ele. E Ele existe antes de todas as coisas, e por Ele todas as
coisas subsistem[73]”.
Veremos também que Ele é a cabeça de todas as coisas, tendo Ele apenas o Pai
por cabeça, já que está escrito: “E Deus, a cabeça de Cristo[74]”.
Veremos claramente que está escrito: “Ninguém conhece o Filho, senão o
Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho[75]”.
Pois, que pode saber o que é a sabedoria, salvo Aquele que a chamou à
existência? OU, quem pode entender claramente o que é a verdade, senão o Pai da
verdade? Só quem pode investigar a natureza universal do Verbo, e do próprio
Deus, cuja natureza procede de Deus, senão somente Deus, com que o Verbo era no
princípio; nós deveríamos considerar que com certeza que esse Verbo, ou Razão
(se assim deve ser chamado), essa Sabedoria, essa Verdade, não é conhecido de
ninguém mais senão do Pai; e Dele está escrito: “E penso que nem no mundo
caberiam os livros que teriam que ser escritos”, a respeito da glória e da
majestade do Filho de Deus, porque é impossível colocar por escrito todos os
detalhes que pertencem à glória do Senhor.
Depois de considerarmos questões de tal importância a respeito do ser
do Filho de Deus, nos perderemos no assombro mais profundo de tal natureza,
preeminente sobre todas, que se despiu de sua condição de majestade e se fez
homem, e habitou entre os homens, como o declara a graça derramada de seus
lábios, e do qual deu testemunho seu Pai divino, confessando-o por meio dos
vários sinais, maravilhas e milagres que realizou.
Ele, antes de aparecer manifestado em um corpo, enviou os profetas
como precursores e mensageiros de seu advento; e, depois de sua ascensão ao
céu, instituiu seus santos apóstolos, homens ignorantes e iletrados, retirados
das fileiras dos arrecadadores e pescadores, que se encheram do poder de sua
divindade, para que caminhassem por todo o mundo, para que pudessem recolher de
cada povo e nação uma multidão de fiéis devotos a Ele.
2.
O assombro da encarnação de Deus na
fragilidade humana
Mas de todos os atos maravilhosos e poderosos relacionados com Ele, ultrapassa
totalmente a admiração humana, e está fora do poder da fragilidade mortal,
entender ou sentir de que modo aquele poder de divina majestade, a própria
Palavra do Pai, a própria sabedoria de Deus, por quem foram criadas todas as
coisas, tenha existido dentro dos limites daquele homem que apareceu na Judeia;
como é possível que a Sabedoria de Deus tenha entrado na matriz de uma mulher e
que nascesse como criança, chorando como choram as crianças! E também a forma
pela qual, conforme se diz, angustiou-se enormemente diante da morte, dizendo,
como ele próprio declarou: “Minha alma está triste até a morte[76]”.
E a maneira como, afinal, foi levado àquela morte mais vergonhosa entre os
homens, e ainda, que se tenha erguido novamente ao terceiro dia.
3.
O mistério de duas naturezas num mesmo ser
Já que vemos Nele algumas coisas tão humanas que parecem não se
diferenciar em nada da debilidade do comum dos mortais, e algumas obras tão
divinas que só podem pertencer à natureza primeira e inefável da Divindade, a
estreiteza do entendimento humano não consegue encontrar nenhuma saída; e,
vencido pelo assombro de uma admiração poderosa, não sabe aonde se refugiar,
nem que caminho tomar, nem para onde se voltar.
Quando se pensa num Deus, aparece um mortal; quando se pensa num
homem, o vemos retornando do sepulcro, depois de derrotar o império da morte,
carregado de troféus. Portanto, o espetáculo deve ser contemplado com temor e
reverência, para que se veja que ambas as naturezas existem num mesmo ser; para
que não se perceba nada de indigno ou de impróprio naquela substância divina e
inefável, nem naquelas coisas que se pode supor terem sido feitas em aparência
ilusória e imaginária.
Pronunciar essas coisas a ouvidos humanos e explicá-las em palavras
ultrapassa os poderes de nosso nível e de nosso intelecto e palavra. Penso que
ultrapassa mesmo o poder dos santos apóstolos. A explicação desse mistério pode
estar, talvez, além do alcance de toda a criação dos poderes celestiais.
Quanto a Ele, então declararemos, com o mínimo de palavras possível, o
conteúdo de nosso credo, mais do que as asserções que a razão humana seja capaz
de colocar; e isso, não por um espírito de imprudência, mas conforme exige a
natureza de nosso estudo, colocando diante de vós aquilo a que podemos chamar
de nossas suspeitas, mais do que afirmações claras.
4.
A alma de Cristo
O Unigênito de Deus, portanto, pelo qual (conforme mostramos no
decurso de nossa discussão anterior) todas as coisas foram feitas, visíveis e
invisíveis, segundo a concepção da Escritura, ama a tudo o que fez. Porque,
sendo Ele a imagem visível do Deus invisível, concedeu de forma invisível uma
participação de Si a todas as suas criaturas racionais, para que cada uma
obtivesse uma parte de Si, exatamente proporcional ao afeto com Ele a
considerou. Mas, uma vez que, de acordo com a faculdade do livre arbítrio, as
almas individuais se caracterizam pela variedade e a diversidade (de maneira a
que uma é mais afetada do que outra em seu amor ao Autor de sua existência e
ser, e outra com uma consideração menor e mais débil), essa alma, de quem Jesus
disse: “[Minha vida] ninguém a tira de mim; eu a dou livremente[77]”,
inerente a Ele, desde o princípio da criação, e depois indissoluvelmente
inseparável Dele, como Sabedoria e Verbo de Deus, e Verdade e Luz verdadeira; tendo-a
recebido Ele totalmente, e passando-a à sua luz e esplendor, a fez com Ele um
só espírito, num grau preeminente, segundo a promessa do Apóstolo aos que
deviam imitá-lo: “Aquele que se une ao Senhor, torna-se um só espírito com Ele[78]”.
A alma de Cristo forma um vínculo de união entre Deus e a carne, já
que não seria possível que a natureza divina se mesclasse diretamente com a
carne; daí nasce o “Deus-homem”. Como dissemos, a alma é uma substância
intermediária, e não é contra sua natureza assumir um corpo; por outro lado,
sendo uma substância racional, tampouco é contra sua natureza receber a Deus,
para o qual ela já tendia, assim como ao Verbo, à Sabedoria e à Verdade. Então,
com toda razão, estando toda ela no Filho de Deus, ela mesma, junto com a carne
que tomou, se chama Filho de Deus, e Poder de Deus, Cristo e Sabedoria de Deus;
e por sua vez, o Filho de Deus, “por quem todas as coisas foram feitas[79]”,
se chama Jesus Cristo e Filho do Homem.
Assim sendo, diz-se que o Filho de Deus morreu, a saber, com relação
àquela natureza que podia padecer a morte, e proclama-se que o Filho do Homem
“virá na glória de Deus Pai juntamente com os santos anjos[80]”.
Por essa razão, em toda a Escritura divina atribui-se à natureza divina
qualidades humanas, e a natureza humana recebe a honra das qualidades divinas.
Porque aquilo que está escrito: “Serão dois em uma só carne, e já não serão
dois, mas uma única carne[81]”,
pode ser aplicado a essa união com mais propriedade do que a nenhuma outra, já
que devemos crer que o Verbo de Deus forma com a carne uma unidade mais íntima
do que a que existe entre marido e esposa. E quem mais pode se tornar um
espírito com Deus, do que essa alma que se uniu a Deus por amor, para que se
diga com justiça que se tornou um só espírito com Ele?
5.
Uma alma pura e sem pecado
Para entendermos como a perfeição de seu amor e a sinceridade de seu
afeto merecido, formaram por isso essa união inseparável com Deus, para que o
ato de assumir essa alma não fosse acidental, ou o resultado de uma preferência
pessoal, mas que foi conferida como recompensa por suas virtudes, escutemos o
profeta que se dirige a ela dizendo: “Amaste a justiça e detestaste a maldade;
por isso te ungiu Deus, teu Deus, com óleo de festa, dentre todos os teus
companheiros[82]”.
Como uma recompensa por seu amor, então, é ungida com óleo de alegria; isso é,
a alma de Cristo, juntamente com o Verbo de Deus, é tornada Cristo. Porque ser
ungida com óleo de festa não significa outra coisa do que encher-se do Espírito
Santo. E quando se diz: “dentre todos os teus companheiros”, significa que a
graça do Espírito não lhe foi dada como o foi aos profetas, mas que a própria
plenitude essencial da Palavra de Deus estava nela, conforme o dito do
Apóstolo: “Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade[83]”.
Finalmente, com base nisso, não apenas se diz: “Amaste a justiça”,
como ainda se acrescenta: “Detestaste a maldade”. Em relação a detestar a
maldade, diz Dele a Escritura: “Nunca ele cometeu maldade, nem existiu engano
em sua boca[84]”,
e: “Tendo sido provado em tudo segundo nossa semelhança, exceto no pecado[85]”.
Mesmo o próprio Senhor disse: “Quem de vós me acusa de pecado?[86]”.
E outra vez, referindo-se à sua pessoa: “Eis que vem o príncipe desse mundo;
mas ele não tem nada em mim[87]”.
Todas essas passagens mostram que Nele nunca houve sentido algum de
pecado; e, para mostrar mais claramente que nenhum sentido de pecado penetrou
alguma vez Nele, o profeta disse: “Porque antes que a criança saiba dizer ‘meu
pai’ e ‘minha mãe’, saberá afastar o mal e escolher o bom[88]”.
6.
Cristo não pôde pecar
Agora, se causar dificuldade a alguém a demonstração de que Cristo
possuiu uma alma racional, sabendo que mostramos com frequência em diversas
partes de nossas discussões que a natureza das almas é capaz tanto de bem
quanto de mal, a dificuldade será explicada a seguir.
Não se pode duvidar que a alma de Jesus era de natureza semelhante à
das demais almas; de outro modo, não poderia ser chamada de alma, se não o
fosse realmente. Mas enquanto todas as almas possuem a faculdade de escolher o
bem ou o mal, a alma de Cristo havia optado pelo amor à justiça de tal maneira
que, devido à infinitude de seu amor por ela, ela aderiu à justiça, destruindo
toda possibilidade de mudança ou transformação. Dessa forma, o que seria efeito
de sua livre escolha tornou-se para Ele uma “segunda natureza”. Devemos crer,
portanto, que havia em Cristo uma alma racional humana, mas devemos concebê-la
de tal forma que era para ela impossível qualquer sentimento ou possibilidade
de pecado.
7.
A união da alma humana de Cristo com a
divindade
Para explicar melhor essa união, será conveniente recorrer a uma
comparação, ainda que, na realidade, numa questão tão difícil, nenhuma
comparação poderá ser adequada. Não obstante, se podemos falar sem ofensa, o
ferro tem a propriedade de poder estar frio ou quente, de forma que, se uma
massa de ferro é posta no fogo, ela é capaz de receber o ardor do fogo em todos
os seus poros e veios, convertendo-se o ferro em fogo, desde que não seja
tirado dele. Podemos dizer que aquela massa, que, por natureza, era ferro,
estando no fogo e ardendo sem cessar, é algo que pode ser frio? É mais correto
dizermos – por ser compatível com a verdade, conforme vemos acontecer nos
fornos – que o ferro se converteu totalmente em fogo, já que não podemos
observar nele nada além de fogo. E, se alguém tentar tocá-lo ou manejá-lo,
experimentará não a ação do ferro, mas a do fogo. De igual modo, essa alma (de Jesus),
que permanece sem cessar no Logos, na
Sabedoria e em Deus, da mesma maneira como o ferro está mergulhado no fogo, é
Deus em tudo o que faz, sente e conhece, e por tanto não podemos dizer dela que
pode ser convertida nem transformada, posto que, sendo sem cessar aquecida, ela
possui a imutabilidade de sua união com o Logos
de Deus.
É de se supor que esse calor do Verbo de Deus passou em certa medida a
todos os santos; e em Sua alma o fogo divino repousou, do qual cremos que algum
calor poderia passar a outros. Finalmente, a expressão: “Por isso te ungiu
Deus, teu Deus, com óleo de festa, dentre todos os teus companheiros”, mostra
que essa alma foi ungida de um determinado modo com óleo de festa, isso é, com
a palavra de Deus e a sabedoria, e de outro modo foi a de seus companheiros,
isso é, dos santos profetas e dos apóstolos, já que eles, como se diz, “se
regozijam no odor de seus perfumes”. E essa alma foi o vaso que conteve o
perfume do qual participaram os apóstolos e os profetas.
Como a substância do perfume é uma coisa e seu cheiro outra, da mesma
forma Cristo é uma coisa e seus companheiros são outra. E também o próprio vaso
que contém a substância do perfume, em hipótese alguma pode admitir um odor
repugnante; é possível que aqueles que desfrutam de seu olor, caso se afastem
um pouco de sua fragrância, cheguem a receber algum mau cheiro que os atinja.
Da mesma maneira, era impossível que Cristo, sendo o próprio vaso no qual
estava a substância do perfume, recebesse um odor de categoria oposta, enquanto
seus companheiros seriam partícipes e receptores de seu olor na proporção da
sua proximidade do vaso.
8.
Profecias sobre Cristo e sua “sombra”
Penso, de verdade, que também o profeta Jeremias, entendendo qual era
a natureza da sabedoria de Deus Nele, que era a mesma que Ele havia assumido
para a salvação do mundo, disse: “O alento de nossa narinas, o ungido de Jeová,
de quem dissemos: à sua sombra teremos vida entre os povos[89]”.
E, posto que a sombra de nosso corpo é inseparável do corpo, e realiza e repete
inevitavelmente seus gestos e movimentos, penso que o profeta, desejando
indicar a natureza da alma de Cristo, e os movimentos que inseparavelmente lhe
pertencem, que a tudo conseguiu mediante seus movimentos e sai vontade, chamou
a esta a sombra de Cristo o Senhor, debaixo da qual deveríamos viver entre as
nações. Porque no ministério dessa assunção, as nações vivem de tal forma que,
imitando-o pela fé, obtêm a salvação. Também Davi parece indicar o mesmo,
quando diz: “Senhor, lembra-te do opróbio de teus servos, opróbio que levo em
meus seio, de muitos povos. Porque teus inimigos desonraram os passos de teu
ungido[90]”.
E que outra coisa quis dizer Paulo, quando falou: “Vossa vida está
oculta com Cristo em Deus[91]”?
E, de novo, em outro lugar: “Buscais uma prova de que é Cristo que fala em mim[92]”.
Agora ele diz que Cristo estava escondido em Deus. O significado dessa
expressão excede, talvez, a apreensão da mente humana, a menos que se demonstre
algo similar ao que indicamos mais acima com as palavras do profeta sobre “a
sombra de Cristo”.
Mas podemos ver também que existem muitas outras declarações na
Escritura a respeito do significado da palavra “sombra”, como aquela, bem
conhecida do Evangelho segundo Lucas, onde Gabriel diz a Maria: “O Espírito
Santo virá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te fará sombra[93]”.
E o Apóstolo diz, com referência à lei, que os que têm a circuncisão na carne
“servem de ensaio e sombra das coisas celestiais[94]”.
E em outra parte: “Nossos dias sobre a terra são como sombra[95]”.
Se, então, não apenas a lei que está na terra é uma sombra, como
também toda nossa vida na terra é a mesma coisa, e se vivemos entre as nações
sob a sombra de Cristo, devemos ver se a verdade de todas essas sombras não
pode chegar a ser conhecida por meio daquela revelação, quando já não veremos
más por um cristal, e misteriosamente, mas cara a cara, quando todos os santos
merecerão contemplar a glória de Deus e as causas e a verdade das coisas. E a
promessa dessa verdade já está sendo recebida por intermédio do Espírito Santo.
O Apóstolo disse: “De maneira que daqui por diante já não conheceremos a
ninguém pela carne; e mesmo que tenhamos conhecido a Cristo segundo a carne,
agora já não o conheceremos[96]”.
Esses pensamentos nos ocorreram enquanto tratávamos de doutrinas de
grande dificuldade, como a encarnação e a divindade de Cristo. Se houver alguém
que, de verdade, possa descobrir algo melhor e puder esclarecer suas
proposições por provas mais claras da Sagrada Escritura, deixaremos que sua
opinião seja recebida antes da nossa.
7
O ESPÍRITO SANTO
1.
A unidade do Espírito em ambos os
Testamentos
Depois daquelas primeiras discussões que, segundo as exigências do
caso, sustentamos no princípio quanto ao Pai, o Filho e o Espírito Santo,
pareceu lógico que retrocedêssemos sobre nossos passos e mostrássemos que o
mesmo Deus criador e fundador do mundo é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
isso é, que o Deus da lei de dos profetas e o do Evangelho são um e o mesmo. Em
seguida, foi preciso demonstrar, com relação a Cristo, de que maneira Ele, que
é Logos ou Palavra e Sabedoria de
Deus, se fez homem; e agora, voltemos com a brevidade possível sobre o tema do
Espírito Santo.
É tempo, pois, de dizer algumas palavras, com o melhor de nossa
capacidade, sobre o Espírito Santo, a quem nosso Senhor e Salvador, no
Evangelho de João, chamou de Paráclito. Pois, assim como é o mesmo Deus e o
mesmo Cristo, é também o mesmo Espírito Santo que estava nos profetas e nos
apóstolos, isso é, seja nos que creram em Deus antes do advento de Cristo, ou
nos que buscaram refúgio em Deus através de Cristo.
Temos ouvido que determinados hereges se atreveram a dizer que existem
dois Deus e dos Cristo, mas nunca soubemos que a doutrina de dois Espíritos
Santos tenha sido pregada por alguém. Porque, como poderiam sustentar isso a
partir da Escritura, ou que distinção poderiam traçar entre o Espírito Santo e
o Espírito Santo, se é que se pode descobrir uma definição, ou uma descrição,
do Espírito Santo?
Porque, ainda que concedamos a Marcion ou a Valentino que é possível
traçar distinções na questão da divindade, e descobrir a natureza do Deus bom
como sendo um e de Deus como sendo outro, o que poderão inventar ou descobrir
que lhes permita introduzir uma distinção no Espírito Santo? Considero, portanto,
que são incapazes de descobrir seja lá o que for que possa indicar alguma
distinção, de qualquer tipo possível, sobre esse assunto.
2.
O poder do Espírito alcança a todos no
Evangelho
Somos de opinião de que cada criatura racional, sem distinção alguma,
recebe uma parte Dele da mesma maneira que da Sabedoria e do Logos de Deus. Mas observo que a
principal vinda do Espírito Santo aos homens se manifesta depois da ascensão de
Cristo, mais do que antes de sua vinda. Com efeito, antes o dom do Espírito Santo
era concedido a uns poucos profetas; dentre o povo, talvez quando alguém
chegava a alcançar méritos especiais. Mas depois da vinda do Salvador está
escrito que se cumpriu o que havia sido dito pelo profeta Joel, que “nos
últimos dias derramareis meu Espírito sobre toda carne, e profetizarão[97]”,
o que efetivamente concorda com outro dito: “Todos os povos o servirão[98]”.
Assim, pois, por essa doação do Espírito Santo, bem como por muitos outros
sinais, se torna patente aquele fato tão extraordinário, a saber, que o que
estava escrito nos profetas e na lei de Moisés poucos compreendiam, vale dizer,
os próprios profetas e um ou outro do povo eram capazes de ir além do sentido
literal e adquirir uma compreensão mais profunda, penetrando o sentido
espiritual da lei e dos profetas. Mas agora, são inúmeras as multidões dos que
creem, e, ainda que não sejam capazes de explicar a razão do sentido espiritual
de forma clara e ordenada, não obstante quase todos estão perfeitamente
convencidos de que nem a circuncisão deve ser entendida em sentido literal, nem
o descanso do sábado, nem o derramamento de sangue dos animais, nem as
respostas que Deus dava a Moisés a respeito dessas coisas. Não há dúvidas de
que essa compreensão se deve ao poder com o qual o Espírito Santo inspira a
todos.
3.
Erros a respeito da natureza do Espírito
Santo
Assim como existem muitas maneiras de apreender a Cristo, que, ainda
que seja sabedoria, não trabalha o poder de sua sabedoria em todos os homens,
mas só nos que se entregam ao estudo de Sua sabedoria; o qual, ainda que seja
chamado de médico, não opera em todos, mas só nos que entendem sua condição
débil e enferma e que pedem Sua compaixão para obter saúde; assim também, penso
que ocorre com o Espírito Santo, em quem estão contidos todos os tipos de dons,
porque a uns é concedida pelo Espírito uma palavra de sabedoria, a outros de
conhecimento, a outros de fé; e assim, a cada indivíduo capaz de recebê-lo, o
próprio Espírito concede essa qualidade, ou o que for necessário ao indivíduo
que tenha merecido partilhar.
Essas divisões e diferenças, que não são percebidas pelos que ouvem
chamá-lo Paráclito no Evangelho, e que não consideram devidamente a
consequência do trabalho ou dos atos pelos quais Ele é chamado de Paraclito,
fazem com que o tenham comparado a algum espírito comum; e, dessa maneira,
perturbaram as igrejas de Cristo e provocaram não pequenas dissensões entre os
irmãos, enquanto que o Evangelho o apresenta com tal poder e majestade, que se
diz que os apóstolos não foram capazes de receber aquelas coisas que o Salvador
desejava ensinar-lhes, até o advento do Espírito Santo, o qual, derramando-se
em suas almas, pôde ilustrá-los quanto à natureza e à fé na Trindade.
Mas essas pessoas, devido à ignorância de seu entendimento, não apenas
são incapazes de expor logicamente a verdade, como sequer são capazes de
prestar atenção no que dizemos. Mantêm ideias indignas de Sua divindade,
entregando-se a erros e enganos, depravados por um espírito de erro, ao invés
de serem instruídos pelo ensinamento do Espírito Santo, segundo a declaração do
Apóstolo: “O Espírito diz manifestamente que nos tempos futuros alguns
apostatarão da fé, escutando espíritos de erro e doutrinas de demônios; que,
com hipocrisia, dirão mentiras, tendo a consciência cauterizada[99]”.
4.
Espírito de consolação
Portanto, também devemos saber que o Paráclito é o Espírito Santo, que
ensina as verdades que não podem ser pronunciadas com palavras humanas, sendo,
por assim dizer, impronunciáveis, “palavras secretas que o homem não pode dizer[100]”,
isso é, que não podem ser ditas em linguagem humana. A expressão “não é
possível” é usada pelo Apóstolo, segundo pensamos, do mesmo modo como na
passagem em que ele diz: “Tudo me é lícito, mas nem tudo convém; tudo me é
lícito, mas nem tudo edifica[101]”.
Porque aquelas coisas que estão em nosso poder, pelo fato de que podemos
tê-las, diz ele, são lícitas para nós. Mas o Paráclito, que é chamado de
Espírito Santo, é chamado assim por sua obra de consolação (em grego: para clesis). Porque, se alguém merece
participar do Espírito Santo pelo conhecimento de seus mistérios inefáveis, sem
dúvida obtém gozo e alegria de coração. Porque, ao adquirir o conhecimento de
todas as coisas que acontecem – como e porque acontecem – sua alma já não pode
preocupar-se com nada, ou admitir sentimentos de dor; tampouco ficará ele
alarmado com coisa alguma, já que, ao unir-se ao Verbo de Deus e Sua sabedoria,
o poderá chamar de ‘Senhor’ no Espírito Santo[102].
E já que mencionamos o Paráclito, e que explicamos na medida de nossa
capacidade os sentimentos que devemos ter em relação a Ele, e já que o próprio
Salvador também é chamado de Paráclito na Epístola de João, quando este diz: “E
se alguém pecou, temos um advogado (paráclito) junto ao Pai, que é Jesus
Cristo, o justo; e ele é a propiciação por nossos pecados[103]”,
consideremos se o termo ‘Paráclito’ tem um significado quando se aplica ao
Salvador e outro quando se aplica ao Espírito Santo. Pois ‘Paráclito’, quando
se fala do Salvador, parece significar “intercessor” (advogado), porque o termo
grego paracleto tem os dois
significados: intercessor e consolador. Com base nisso, na frase que se segue,
“e Ele é a propiciação por nossos pecados”, o nome Paráclito deve ser
entendido, no caso de nosso Salvador, com o significado de intercessor, já que
ele, como está dito, intercede junto ao Pai pelos nossos pecados. No caso do
Espírito Santo, devemos entendê-lo no sentido de consolador, já que outorga
consolo às nossas almas, às quais revela abertamente a compreensão do
conhecimento espiritual.
8
A ALMA
1.
Alma sensível e móvel
A ordem de nosso estudo requer agora, depois da discussão dos temas
precedentes, instituir uma pergunta geral quanto à alma, começando com os
pontos de importância menor, para depois ascender aos maiores.
Que existem almas em todos os seres vivos, até nos que vivem nas
águas, suponho que ninguém duvida. Essa é a opinião geral que os homens
sustentam, à qual se acrescenta a confirmação da autoridade da Santa Escritura
quando diz que “Deus criou as grandes baleias e toda coisa viva que desliza,
que as águas produziram segundo seu gênero, e toda ave alada segundo sua
espécie[104]”.
Isso é confirmado também pela inteligência comum da razão, pelos que deixaram
uma definição em palavras da alma.
A alma é definida assim: uma substância fantastikh e ormhtikh,
que pode ser traduzida, ainda que de forma muito aproximada, como “sensível” e “móvel”.
Isso pode ser dito com propriedade de todas as criaturas vivas, mesmo das que
vivem nas águas, e também das criaturas aladas. Essa definição de alma pode ser
considerada correta.
2.
A alma e o sangue de todos os seres vivos
A Escritura também autoriza uma segunda proposição, quando diz: “Não
comerás sangue, porque a alma de toda carne, sua vida, está em seu sangue, e
não comerás sua vida com a carne[105]”.
Aqui se assinala claramente que o sangue de todo animal é sua vida. E, se agora
alguém perguntar como se pode dizer isso a respeito das abelhas, vespas e
formigas, e de outras coisas que estão nas águas, como ostras e caranguejos, e
de todas as demais que não possuem sangue, mas que vemos nitidamente que são
seres vivos, se é que “a vida de toda carne é seu sangue”, devemos responder
que nos seres vivos dessa classe a força que nos outros animais é exercida pelo
poder do sangue vermelho, neles é exercida por aquele líquido que se encontra
neles, ainda que seja de cor diferente; porque a cor é uma coisa sem
importância, com a condição de que a substância esteja dotada de vitalidade e
vida.
Que as bestas de carga e o gado de menor tamanho estejam dotados de
alma, é uma questão sobre a qual todos estão de acordo. A opinião da Santa
Escritura, por sua parte, fica evidente quando Deus diz: “Produza a terra seres
vivos segundo seu gênero, feras e serpentes e animais da terra segundo sua
espécie[106]”.
3.
Alma humana, angélica e divina
E agora, no que diz respeito ao homem, ainda que ninguém tenha dúvida
nem precise se informar, a Santa Escritura diz que Deus “soprou em suas narinas
um sopro de vida; e o homem se tornou uma alma viva[107]”.
Resta indagarmos se a ordem angélica também tem alma, ou se são almas; e
também, a respeito de outros poderes divinos e celestes, assim como os da
classe oposta.
Em nenhuma parte da Escritura encontramos autoridade para afirmar que
os anjos, ou qualquer dos outros espíritos que são ministros de Deus, possuem
almas ou que sejam chamados de almas, embira sejam sentidos por muitas pessoas
como seres dotados de vida.
Mas a respeito de Deus, encontramos que está escrito: “Eu colocarei
minha alma contra a pessoa que comer sangue, e a cortarei de entre seu povo[108]”.
E também, em outra parte: “Luas novas, sábados, assembleias... não suporto
injustiças junto com solenidades. Vossas luas novas e vossas solenidades
desagradam minha alma[109]”.
E no Salmo 22, quanto a Cristo – porque é certo, como atesta o
Evangelho, que esse Salmo se refere a Ele – aparecem as seguintes palavras:
“Mas Tu, Senhor, não te afastes; ó minha fortaleza, apressa-te em meu socorro.
Livra minha alma da espada[110]”.
E existem muitos outros testemunhos a respeito da alma de Cristo enquanto
habitou a carne.
4.
A alma é uma substância racional
Mas a natureza da encarnação torna desnecessária qualquer inquisição
sobre a alma de Cristo. Porque, assim como Ele realmente possuiu um corpo,
também possuiu realmente uma alma. É difícil sentir e afirmar como se deve
entender aquilo que na Escritura é chamado de “alma de Deus”: já que
reconhecemos que sua natureza é simples, sem nenhuma mescla ou adição. De
qualquer modo, entretanto, devemos entender o que é chamado de “alma” de Deus;
quanto a Cristo, não cabe dúvida.
Portanto, não me parece absurdo entender ou afirmar algo parecido a
respeito dos santos anjos e de outros poderes divinos, já que a definição de
alma é aplicável também a eles. Porque, quem pode negar racionalmente que eles
sejam “sensíveis e móveis”? Mas se essa definição é correta, segundo a qual se
diz que a alma é uma substância racionalmente “sensível e móvel”, a mesma
definição é aplicável também aos anjos. Pois o que mais existe neles além de
sentimento racional e movimento? Ora, os seres compreendidos sob a mesma
definição possuem sem dúvida a mesma substância.
Paulo, na verdade, insinua que existe uma espécie de homem animal que
não pode receber as coisas do Espírito de Deus, mas a quem, segundo declara, a
doutrina do Espírito Santo parece loucura e que não é capaz de entender que ela
deve ser discernida espiritualmente[111].
Em outro lugar, ele diz que se semeia um corpo de animal, mas que ressuscita um
corpo espiritual[112],
indicando que na ressurreição dos justos nada existirá da natureza animal.
Portanto, nos perguntamos se pode acontecer de que exista alguma
substância que, com relação à sua existência animal, seja imperfeita. Porque,
se ela for imperfeita por ter decaído da perfeição, ou por ter sido assim
criada por Deus, esse será um ponto de nossa investigação, quando discutiremos
cada ponto individualmente em ordem. Porque, se o homem animal não recebe as
coisas do Espírito de Deus, e se, por ser animal, for incapaz de admitir um
melhor entendimento, a saber, a respeito de uma natureza divina, talvez seja
por essa razão que Paulo, querendo ensinar-nos com mais clareza do que se
trata, para que sejamos capazes de compreender as coisas do Espírito – as
coisas espirituais – une associa com o Espírito Santo o entendimento, mais do
que a alma. Penso que é isso que ele indica quando diz: “Orarei com o espírito,
mas também com o entendimento; cantarei com o espírito, mas cantarei também com
o entendimento[113]”.
Ele não diz: “Orarei com a alma”, mas com o espírito e o entendimento; também
não diz: “Cantarei com a alma”, mas com o espírito e o entendimento.
5.
Deixará a alma de ser?
Mas talvez possamos fazer a seguinte pergunta: se o entendimento com o
qual se ora e se canta no espírito, é o mesmo por meio do qual se recebe a perfeição
e a salvação, como pode Pedro dizer: “Obtendo o fim de vossa fé, que é a
salvação de vossas almas[114]”?
Se a alma não ora, nem canta com o espírito, como poderá esperar a salvação?
Ou, quando alcançar a felicidade eterna, já não será mais alma?
Vejamos se podemos responder a essa pergunta da seguinte maneira: como
o Salvador veio salvar o que havia sido perdido, aquilo que antes se havia
perdido já não está perdido quando se salva; assim também, talvez, isso que foi
salvo se chame alma, e quando é colocada em um estado de salvação receberá por
meio do Verbo um nome que denote sua condição mais perfeita. Mas parece que a
alguns que se pode acrescentar que, assim como a coisa que estava perdida
indubitavelmente existiu antes de ter se perdido, também será assim quando já
não esteja mais numa condição arruinada. De maneira semelhante também a alma,
que se diz ter perecido, deve ter sido alguma coisa num determinado tempo,
antes de haver perecido, e por esse motivo se chamou ‘alma’ e se tornou livre
de uma segunda destruição, podendo se converter novamente no que era antes de
perecer e de ser chamada de alma[115].
6.
A condição fria e quente da alma
Mas, a partir do mesmo significado do nome ‘alma’, cuja palavra grega
traz consigo, pareceu a alguns investigadores curiosos que se pode sugerir um
significado de não pequena importância. Porque na linguagem sagrada, Deus é
chamado de fogo, como quando a Escritura diz: “Nosso Deus é um fogo devorador[116]”.
A respeito da substância dos anjos também se fala assim: “O que faz dos
espíritos (ventos) seus anjos (mensageiros) e do fogo chamejante seus ministros[117]”.
E em outro lugar: “Apareceu-lhe o Anjo do Senhor numa chama de fogo em meio a
uma sarça[118]”.
Ademais, recebemos o mandamento de sermos “ardentes em espírito[119]”,
com cuja expressão sem dúvida o Verbo de Deus se mostra devorador e ardente. O
profeta Jeremias também escutou Dele essas palavras: “Eis que coloquei minhas
palavras na tua boca como fogo[120]”.
Assim como Deus é fogo, os anjos uma chama de fogo, e todos os santos
são ardentes em espírito, os que abandonaram o amor de Deus são, pelo
contrário, frios em seu afeto por Ele, tal como está escrito, como o Senhor
disse: “E por ter-se multiplicado a maldade, a caridade de muitos esfriará[121]”.
Todas as coisas, quaisquer que sejam, que são comparadas na Escritura Santa com
os poderes hostis, como o diabo, por exemplo, se diz permanentemente estarem
frias; e o que se pode encontrar de mais frio do que ele? Também se diz que no
mar reina o dragão. O profeta insinua a serpente e o dragão, que seguramente se
refere a um dos maus espíritos, que também está no mar. Em outro lugar, o
profeta diz: “Nesse dia, com sua espada dura, grande e forte, o Senhor
castigará Leviatã, serpente escorregadia, Leviatã, serpente tortuosa, e matará
o dragão do mar[122]”.
E outra vez, diz: “Se conseguirem esconder-se no pico do Carmelo, aí vou
procurá-los e pegá-los; se mergulharem no fundo do mar, lá mandarei o dragão
para que os morda[123]”.
Também no Livro de Jó se diz que a serpente é o rei de todas as coisas das
águas[124].
O profeta ameaça com que os males serão atiçados pelo vento norte sobre todos
os que habitam na terra[125].
Pois bem, o vento do norte é descrito na Santa Escritura como sendo frio,
segundo a declaração do Livro da Sabedoria: “Aquele vento frio do norte[126]”,
com o qual se deve entender, indubitavelmente, o diabo.
Então, se as coisas santas são chamadas de fogo, luz e ardor, enquanto
que as de natureza oposta são, como se diz, frias, e se o amor de muitos
esfriará, temos que inquirir se talvez o nome ‘alma’, que em grego se chama yukh, é chamado assim por causa do frio
crescente nascido de uma condição melhor e mais divina, sendo daí derivado,
porque parece haver-se esfriado de seu calor divino e natural, sendo ela
portanto colocada em sua atual condição, e chamada por seu nome presente.
Finalmente, verifique se se pode encontrar em lugar na Escritura onde
a alma seja mencionada propriamente em termos de louvor; com frequência
acontece o contrário, sendo ela acompanhada de expressões de censura, como nessa
passagem: “Uma alma ruim arruína tudo o que possui[127]”.
E: “A alma que pecar, essa morrerá[128]”.
Porque, depois de se dizer: “Eis que todas as almas são minhas; tal como a alma
do pai, a alma do filho é minha[129]”,
é lógico que se diga: “A alma que seguir a justiça se salvará, e a alma que
pecar se perderá”.
Mas já que vimos que Deus associou a alma a tudo o que é censurável, e
guardou silêncio quanto ao que merece elogio, temos que ver se, por
casualidade, ela é declarada pelo homem pelo mesmo nome de yukh, como no latim anima,
porque se esfriou das coisas justas e da participação no fogo divino, e ainda
se não perdeu o poder de restaurar-se a essa condição de fervor na qual estava
no princípio. Daí que o profeta também parece indicar tal estado de coisas com
as palavras: “Volta, alma minha, ao teu repouso; porque o Senhor te fez bem[130]”.
De tudo isso parece destacar-se que o entendimento, tendo caído de seu
estado e dignidade, se tornou e foi chamado de ‘alma’; e esta, se for reparada
e corrigida, voltará à condição de entendimento[131].
7.
A conversão do entendimento da alma
Agora, se for esse o caso, me parece que essa decomposição e queda do
entendimento não é a mesma em todos, mas que essa conversão em alma é levada a
um grau maior ou menor em casos diferentes, e que certos entendimentos chegam
mesmo a conservar algo de seu vigor anterior, e outros, ao contrário, pouco ou
nada. Daí que se encontre que alguns, desde o começo de suas vidas, sejam de um
intelecto mais ativo, enquanto que outros têm o hábito mental mais lento, e que
outros nasçam totalmente obtusos, e completamente incapazes de instrução.
Nossa declaração, porém, de que o entendimento se converte em alma, ou
em algo que pareça ter esse significado, deve ser considerada pelo leitor como
cuidado, e ele deve solucioná-la por si mesmo, já que essas concepções não
estão propostas de modo dogmático, mas apenas como opiniões, tratadas no estilo
de uma investigação e discussão. Que o leitor leve isso também em consideração,
sobre o que se observou a respeito da alma do Salvador, que aquelas coisas que
estão escritas no Evangelho, algumas lhe são atribuídas sob o nome de alma, e
outras, de espírito. Quando se deseja indicar qualquer sofrimento ou
perturbação que o afeta, se indica sob o nome de alma, como quando é dito:
“Agora minha alma está perturbada[132]”;
e: “Minha alma está triste até a morte[133]”;
e: “Ninguém me tira minha alma, mas eu a dou de mim mesmo[134]”.
Nas mãos do Pai ele entrega não sua alma, mas seu espírito; e, quando Ele diz
que a carne é fraca[135],
não diz que a alma está alerta, mas o espírito; daí parece que a alma é algo
intermediário entre a carne fraca e o espírito alerta.
8.
Cristo, alma de Deus?
Mas talvez alguém possa vir de encontro a nós com alguma daquelas
objeções que nós mesmos denunciamos em nossas declarações, dizendo-nos: como se
pode dizer que haja também uma alma em Deus? A isso responderemos assim: tudo o
que se diz corporalmente de Deus, como dedos, mãos, braços, olhos, pés, boca,
dissemos que não pode ser entendido como membros humanos, mas que certos
poderes divinos são indicados com esses nomes de membros do corpo; da mesma
forma, devemos supor que o que se assinala com o nome de “alma de Deus” deve
ser algo mais. E se nos for permitido nos aventurarmo-nos a dizer algo mais
sobre o tema, talvez possamos entender que a alma de Deus significa o Filho
Unigênito de Deus. Porque, assim como a alma, ao ser implantada no corpo, move
todas as coisas nele e exerce sua força sobre tudo o que opera, assim também o
Filho Unigênito de Deus, que é sua Palavra e Sabedoria, abarca e se estende a
todo o poder de Deus, ao ser implantado Nele – e talvez para indicar assim esse
mistério, Deus é chamado ou descrito na Escritura coo um corpo.
Na verdade, devemos levar em conta que talvez seja por isso que a alma
de Deus pode ser entendida como se referindo a Seu Filho Unigênito, porque Ele
próprio veio a esse mundo de aflição e desceu a esse vale de lágrimas e a esse
lugar de nossa humilhação; como Ele disse no Salmo: “Quando nos esmagastes num
lugar de chacais, e nos cobriste com a sombra da morte[136]”.
Finalmente, estou consciente de que certos críticos, ao explicar as
palavras usadas pelo Salvador no Evangelho: “Minha alma está triste até a
morte”, foram interpretadas sobre os apóstolos, a quem Ele chamou de sua alma,
por ser melhores do que o resto do corpo. Porque assim como a multidão de
crentes é chamada de seu corpo, eles dizem que os apóstolos, por ser melhores
do que o resto do corpo, deveriam ser entendidos como sua alma.
Apresentamos o melhor que pudemos esses pontos a respeito da alma
racional, como tema de discussão para nossos leitores, mais do que como
proposições dogmáticas e bem definidas. No que concerne às almas dos animais e
de outras criaturas mudas, talvez seja suficiente o que declaramos acima em
termos gerais.
9
O MUNDO E OS MOVIMENTOS DAS CRIATURAS
RACIONAIS
1.
O número das criaturas criadas
Voltemos agora à ordem de nossa discussão proposta e contemplemos o
começo da criação, até onde o entendimento pode contemplar o princípio da criação
de Deus. Devemos supor que naquele começo Deus criou um grande número de
criaturas racionais ou intelectuais (ou como quer que se chamem), que nós antes
chamamos de ‘entendimentos’, tantas quantas Ele previu que seriam suficientes.
É certo que Ele as fez de acordo com algum número definido e predeterminado por
Ele mesmo, pois não devemos imaginar, como alguns o fizeram, que as criaturas
não têm limite, porque onde não existe limite também não existe compreensão nem
limitação. Agora, se fosse esse o caso, as coisas criadas não poderiam ser
refreadas nem administradas por Deus. Porque, naturalmente, tudo o que é
infinito é também incompreensível. Mais ainda, a Escritura diz: “A tudo Deus
dispôs com número, peso e medida”. Portanto, um número será corretamente
aplicado às criaturas racionais ou entendimentos, tão numeroso quanto
necessário para permitir que sejam dispostos, governados e controlados por Deus[137].
Mas a medida se aplica apropriadamente ao corpo material, e essa
medida, segundo cremos, foi criada por Deus tal como Ele sabia ser suficiente
para adornar o mundo. Essas coisas são, pois as que devemos crer que foram
criadas por Deus no princípio, vale dizer, antes de todas as coisas. E cremos
que isso indica inclusive o começo da introdução de Moisés, que diz em termos
um pouco ambíguos: “No princípio criou Deus os céus e a terra[138]”;
porque é certo que não se está falando do firmamento, nem da terra seca, mas do
céu e da terra dos quais os atuais céu e terra que hoje vemos tomaram seus
nomes.
2.
A liberdade das criaturas, primeira condição
Mas já que as naturezas racionais, a que nos referimos acima, foram
feitas em um princípio, foram criadas quando não existiam previamente, e pelo
fato de que não existiam e logo passaram a existir, são necessariamente mutáveis
e instáveis, já que qualquer virtude que exista em seu ser não está nele por
sua própria natureza, mas pela bondade do Criador. Seu ser não é algo de seu,
nem é eterno, mas é um dom de Deus, já que não existiu desde sempre; e tudo o
que lhe é dado pode lhe ser tirado, ou perdido. Agora, deve haver uma causa
para que as naturezas racionais percam os dons que receberam, se o impulso das
almas não estiver dirigido com retidão e de maneira adequada. Porque o Criador
concedeu às inteligências que havia criado o poder de optar livre e
voluntariamente, a fim de que o bem que fizerem seja seu propriamente,
conseguido por sua própria vontade. Mas a negligência e o cansaço no esforço
requerido pela custódia do bem, e o esquecimento e o descuido das coisas melhores,
deram origem a que se apartassem do bem; e afastar-se do bem é o mesmo que
entrar-se ao mal, já que esse não é mais do que a ausência do bem. E é certo
que a ausência do bem é a maldade.
Por isso aconteceu que, na proporção de sua queda do bem as naturezas
se envolveram com o mal. Com isso, cada uma das inteligências, conforme
descuidava mais ou menos do bem seguindo seus impulsos, era mais ou menos
arrastada ao seu contrário, que é o mal. É aqui que parece que devemos buscar
as causas da variedade e da multiplicidade dos seres: o Criador de todas as
coisas aceitou criar um mundo diverso e múltiplo, de acordo com a diversidade
de condição das criaturas racionais, cuja diversidade devemos supor que foi
concebida pela causa acima mencionada. E agora vamos explicar o que entendemos
por diversidade e variedade.
3.
A diversidade das criaturas
Chamamos de ‘mundo’ a tudo o que está acima do céu, ou no céu, ou
sobre a terra, ou naqueles lugares que chamam de regiões inferiores, ou
qualquer outro lugar que exista, juntamente com seus habitantes. Tudo isso é
chamado de mundo. Nesse mundo, certos seres são supra celestes, isso é, estão
colocados em moradas mais felizes e vestidos com corpos celestes e
resplendentes; e o Apóstolo mostra que existem essas muitas distinções: “E
existem corpos celestiais e corpos terrestres; mas certamente uma é a glória
dos celestiais e outra a dos terrestres[139]”.
Certos seres são terrenos, e, dentre eles, vale dizer, entre os homens, não são
poucas as diferenças: porque muitos deles são bárbaros, e outros gregos; dos
bárbaros, alguns são selvagens e ferozes, e outros são de disposição mais
suave. Alguns vivem sob leis que escassamente foram aprovadas, enquanto outros
sob leis de uma categoria mais comum e severa; outros ainda possuem costumes de
caráter inumano e selvagem, ao invés de leis.
Muitos deles, desde a hora de seu nascimento, são reduzidos à
humilhação e à submissão, e criados coo escravos, postos sob o domínio de amos,
príncipes ou tiranos. Outros, por sua vez, são criados de maneira mais
consoante com a liberdade e a razão. Alguns com corpos sãos, outros com corpos
enfermos desde os seus primeiros anos; alguns com visão defeituosa, outros com
o ouvido ou a fala. Alguns nascidos em boa condição, outros privados do uso de
seus sentidos imediatamente após seu nascimento, ou sofrendo de tamanha
desgraça que dificilmente alcançam a vida adulta. Mas, por que repetir e
enumerar todos os horrores da miséria humana, da qual alguns estão livres e
outros estão implicados, quando cada um pode avaliá-los e considerá-los por si
mesmos?
Existem também certos poderes invisíveis aos quais foram confiadas
coisas terrenas para sua administração; e entre eles devemos assumir que não é
pequena a diferença que os distingue, assim como vemos entre os homens. O
apóstolo Paulo nos dá a entender que existem certos poderes inferiores nos
quais, de maneira parecida, podemos buscar o indubitável fundamento da
diversidade.
Quanto a animais mudos e pássaros, bem como às criaturas que vivem nas
águas, parece supérfluo insistir, já que é certo que não devem ser considerados
como uma categoria primária, mas subordinada.
4.
A sabedoria e a justiça, e a diversidade de
sortes entre a humanidade
Vimos, então, que todas as coisas foram criadas por Cristo e em Cristo,
como indica com clareza o apóstolo Paulo ao dizer: “Nele foram criadas todas as
coisas, as que existem nos céus e as que existem na terra, visíveis e
invisíveis, sejam tronos, domínios, principados ou potestades; tudo foi criado
por meio Dele e para Ele[140]”.
Do mesmo modo João indica em seu Evangelho: “No princípio era o Verbo, e o
Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Esse era o princípio em Deus, e
todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito teria
sido feito[141]”.
Também está escrito nos Salmos: “Fizestes a todas as coisas com sabedoria[142]”.
Vendo, pois, que Cristo é, como foi, o Verbo e a Sabedoria, e também a Justiça,
indubitavelmente seguir-se-á que aquelas coisa que foram criadas pelo Verbo e a
Sabedoria foram também criadas pela Justiça que é Cristo; para que nas coisas
criadas nada apareça de injusto ou acidental, mas para que todas as coisas
possam mostrar que são conforme a lei de equidade e justiça.
Como, então, é possível entender-se que seja totalmente justa e reta
tão grande variedade de coisas e tamanha diversidade? Estou seguro de que
nenhum poder humano, nem nenhuma linguagem o podem explicar, a não ser que,
como suplicantes prostrados oremos ao Verbo, à Sabedoria e à Justiça, que são o
Filho Unigênito de Deus, e que, pedindo que sua graça se derrame sobre nossos
sentidos, digne-se Ele a iluminar o que é escuro, abrir o que está fechado e
revelar o que é secreto; e se, de verdade, fomos considerados, buscando ou
chamado, suficientemente dignos para merecer receber o que pedimos e buscamos.
Não confiando em nossos próprios poderes, mas na ajuda da Sabedoria que fez
todas as coisas, e da Justiça que cremos estar em todas as criaturas, ainda que
no momento sejamos incapazes de declarar, mas, confiando em Sua misericórdia,
procuraremos examinar e perguntar de que modo a grande variedade e diversidade
do mundo possa ser compatível com a honradez e a razão. Refiro-me, desde logo,
simplesmente à razão em geral; porque seria um sinal de ignorância, ou de
loucura, buscar e dar uma razão especial em cada caso individual.
5.
O problema teológico das diferenças humanas
Agora, quando dizemos que esse mundo foi estabelecido com base na
variedade que explicamos acima, e que foi criado por Deus, e quando dizemos que
esse Deus é bom e justo – o mais justo – existem numerosos indivíduos,
sobretudo dos que procedem das escolas de Marcion, de Valentino e de Basílides,
que ouviram que existem almas de naturezas diferentes, e que objetam que não
pode ser consistente com a justiça de Deus a criação de um mundo que assinala a
algumas de suas criaturas uma morada no céu, e que não apenas lhes concede uma
vivenda melhor, como ainda uma posição mais alta e mais honrada; que favorece a
outros com a concessão de principados; que outorga poder a alguns, domínios a
outros; e a outros os tornos mais honrados nos tribunais celestes; que permite
a alguns brilhar com uma glória mais resplandecente e com um esplendor
estrelado; que dá a alguns a glória do sol, a outros a glória da lua, a outros
a glória das estrelas; e que faz com que uma estrela se diferencie de outra
estrela em glória. E, resumidamente, para falar de uma vez por todas, se Deus
Criador não deseja nem a vontade que empreenda, nem o poder que complete uma
obra boa e perfeita, que razão pode haver na criação de naturezas racionais,
isso é, de seres de cuja existência Ele próprio é a causa, para que alguns
sejam de categoria elevada, outros de segunda e terceira, e muitos dos graus
menores e inferiores?
Em segundo lugar nos objetam, a respeito dos seres terrestres: como é
possível que, desde o nascimento, a alguns se outorgue um lote mais feliz do
que a outros, como um homem, por exemplo, gerado de Abrahão e nascido da
promessa; e outro também, de Isaac e Rebeca, que, enquanto estava ainda na
matriz, suplantou a seu irmão e, como está dito, foi aceito por Deus antes de
nascer. Essa mesma circunstância, sobretudo que um homem nasça entre os
hebreus, dentre os quais encontra instrução divina; outro entre os gregos,
homens sábios e de não pouco estudo; e logo outro entre os etíopes, que
costumam se alimentar de carne humana; ou entre os citas, entre os quais o
parricídio é um ato sancionado por lei; ou entre o povo de Tauro, onde os
forasteiros são oferecidos em sacrifício, é fundamento de uma forte oposição.
Seu argumento em consequência disso é o seguinte: se existe uma grande
diversidade de circunstâncias, e essa diferente condição de nascimento, nas
quais a faculdade do livre arbítrio não tem nenhum alcance (pois ninguém
escolhe para si onde, com quem ou em que condição nascer); se, então, isso não
é causado pela diferença na natureza das almas, ou seja, que uma alma de
natureza má seja destinada a um povo mau, e uma boa a um povo justo, que outra
conclusão resta, senão de que devemos supor que as coisas estão reguladas por
acidente e acaso?
Se admitirmos isso, então, já não creremos que o mundo foi feito por
Deus, ou que é administrado por sua Providência; e, como consequência, não se
deve esperar o juízo de Deus sobre os atos de cada indivíduo. Nesse assunto, na
verdade, o que é propriamente verdade das coisas é o privilégio daquele que
sabe e conhece todas as coisas, inclusive a profundidade de Deus[143].
6.
O livre arbítrio é a causa da diversidade
Não obstante, para que nosso silêncio não sirva de alimento à audácia
dos hereges, responderemos na medida de nossas forças às objeções que eles nos
colocam. Já dissemos muitas vezes, apoiando-nos nas afirmações que pudemos
encontrar nas Escrituras, que o Deus criador é bom, justo e onipotente. Quando,
no princípio, Ele criou tudo o que quis criar, a saber, as criaturas racionais,
não teve outro motivo externo a ele para criar, senão sua bondade. Ora, sendo Ele
próprio a única causa das coisas que seriam criadas, e não existindo Nele
diversidade alguma, nem mudança, nem impossibilidade, criou todas as criaturas
iguais e idênticas, pois não havia Nele nenhuma causa de variedade ou
diversidade. No entanto, foi outorgada às criaturas racionais, como já
mostramos muitas vezes, a faculdade do livre arbítrio, e foi essa liberdade de
sua vontade que arrastou a cada uma delas – as criaturas racionais – seja a
melhorar, imitando a Deus, seja a se deteriorar pela negligência. Essa foi a
causa da diversidade que existe entre as criaturas racionais, que provém, não
da vontade ou da intenção do Criador, mas do uso da própria liberdade. Mas
Deus, que havia disposto conceder às suas criaturas segundo seus méritos,
compôs, com a diversidade dos seres intelectuais, um só mundo harmônico, que,
como uma casa na qual não existem apenas “vasos de ouro e de prata, mas também
de madeira ou de barro, uns para usos nobres, outros para usos mais baixos”,
contempla uma variedade de vasos, que são as almas. Na minha opinião são essas
as razões pelas quais se dá a diversidade nesse mundo, pois a divina
providência dá a cada qual o que lhe corresponde segundo seus distintos
impulsos e as opções das almas. Dessa explicação decorre que o Criador não é
injusto, pois a cada um Ele outorga o que previamente mereceu; nem nos vemos
forçados a pensar que a felicidade ou infelicidade de cada um se deve ao acaso
do nascimento ou a qualquer outra causa acidental; nem temos que acreditar que
existem vários criadores, ou várias origens para as almas.
7.
Não existe injustiça no Criador, mas na
criatura
Mas mesmo a Santa Escritura parece não guardar silêncio total sobre a
natureza desse segredo, como quando o apóstolo Paulo, discutindo o caso de Esaú
e Jacó, diz: “Quando os filhos dela ainda não haviam nascido e nada tinham
feito de bem ou de mal – isso para que ficasse confirmada a liberdade da
escolha de Deus, dependendo não das obras, mas daquele que chama – então foi
dito a Rebeca: ‘O mais velho será servo do mais novo’[144]”.
E, depois disso, ele se pergunta: “Que diremos então? Que existe injustiça em
Deus?[145]”.
E, para poder nos oferecer uma oportunidade de investigar certos assuntos, e de
averiguar como essas coisas não acontecem sem uma razão, ele mesmo responde:
“De modo algum[146]”.
Porque a mesma pergunta, me parece, que surge a respeito de Esaú e
Jacó, pode ser colocada a respeito de todas as criaturas celestes e terrestre,
e inclusive às do mundo inferior. E de modo semelhante, me parece, assim como
se disse de uns: “não tendo ainda nascido, nem feito bem ou mal algum”, pode-se
dizer de outros: “não tendo sido criados, nem feito bem ou mal algum”, mas “para
que ficasse confirmada a liberdade da escolha de Deus, dependendo não das
obras, mas daquele que chama”.
Que algumas coisas (como decerto se pensa) foram criadas celestes, por
um lado, e terrenas, por outro, e outras ainda debaixo da terra, “não pelas
obras” (como eles pensam), “mas por Aquele que chama” – que diremos então, se
essas coisas são assim? Que existe injustiça em Deus? De modo algum. Assim,
portanto, quando examinamos cuidadosamente as Escrituras quanto a Esaú e Jacó,
não encontramos nenhuma injustiça em Deus, tal que permita dizer que “antes que
nascessem”, ou que houvessem feito qualquer coisa nessa vida, “o maior servirá
o menor”. E não consideraremos injusto que, mesmo no ventre se sua mãe, tenha
Jacó suplantado a seu irmão, se sentirmos que ele foi dignamente amado por
Deus, segundo os méritos de sua vida prévia, a ponto de ser preferido em
relação a seu irmão. A mesma coisa acontece com as criaturas celestes, se
notarmos que a diversidade não era a condição original da criatura, senão que,
devido às causas que existiam previamente, o Criador preparou um ofício
diferente para cada uma em proporção ao grau de seu mérito, sobre o fundamento
de que cada qual foi criado por Deus como um entendimento ou um espírito
racional, recebendo para si, segundo os movimentos de sua mente e os
sentimentos de sua alma, uma porção maior ou menor de mérito, tornando-se
objeto de amor ou de repulsa de Deus; por sua vez, algumas dessas criaturas de
maior mérito foram dispostas para sofrer com outros para ornamento do estado do
mundo, e para impor o dever às criaturas de grau menor, para que dessa maneira
elas mesmas pudessem participar da paciência do Criador, conforme as palavras
do Apóstolo: “Porque as criaturas foram sujeitas à vacuidade, não por sua
vontade, mas por causa Daquele que as sujeitou com esperança[147]”.
Tendo em mente, então, o sentimento expresso pelo Apóstolo quando, falando do
nascimento de Esaú e Jacó, disse: “Existe injustiça em Deus? De modo algum.”,
penso que esse mesmo sentimento deve ser aplicado cuidadosamente no caso das
demais criaturas, porque, como já comentamos, a justiça do Criador deve
aparecer em tudo. E isso, me parece, será visto com mais clareza ao final, se
cada um dos seres celestes, terrestres ou infernais, têm as causas de sua
diversidade em si, e anteriores ao seu nascimento corporal. Porque todas as
coisas foram criadas pela Palavra (Verbo) de Deus, e por Sua Sabedoria, e
colocadas em ordem pela Sua Justiça. E pela graça de Sua compaixão Ele provê a
todos os homens, e os anima a que empreguem qualquer remédio que possa
conduzi-los à cura, e os incita à salvação.
8.
O Juízo e as obras
Assim, pois, não há dúvidas de que no dia do Juízo os bons serão
separados dos maus, e os justos dos injustos, e, pela sentença de Deus, todos
serão distribuídos segundo seus méritos por todos os lugares dos quais sejam
dignos; esse estado de coisas foi anteriormente o caso, segundo opino e
conforme mostrarei a seguir, se Deus permitir. Porque devemos crer que Deus faz
e ordena todas as coisas em todo o tempo segundo seu juízo. As palavras que o
Apóstolo usa ao dizer: “Numa casa grande não existem somente vasos de outro e
prata, mas também de madeira e de barro, e alguns para honra, outros para
desonra[148]”,
e o que acrescenta a seguir: “Assim, se alguém se limpar dessas coisas, será
vaso de honra, santificado e útil para os usos do Senhor, e aparelhado para
toda boa obra[149]”,
assinalam indubitavelmente que quem se purifica nessa vida, estará preparado
para todo bom trabalho na vida por vir; enquanto que quem não se limpar será,
dependendo da quantidade de impureza, um vaso de desonra, isso é, indigno.
Portanto, é possível entender que anteriormente houve também vasos
racionais, limpos ou não, isso é, que limparam a si mesmos ou que não o
fizeram, e que por conseguinte cada vaso, segundo a medida de sua pureza ou
impureza, recebeu um lugar, ou região, ou condição de nascimento, ou ofício a
desempenhar nesse mundo.
Tudo o que Deus provê e distingue pelo poder de sua visão, até o mais
humilde, implica que Ele dispõe todas as coisas segundo seu juízo anterior, de
acordo com a retribuição mais imparcial, até onde cada qual deva ser assistido
ou cuidado conforme seus méritos. Nisso certamente se mostra o princípio da
equidade, enquanto que a desigualdade de circunstâncias preserva a justiça da
retribuição segundo o mérito. Mas o fundamento dos méritos de cada caso
individual só pode ser reconhecido verdadeira e claramente pelo próprio Deus,
junto com Seu Verbo Unigênito e Sua Sabedoria, e com o Espírito Santo.
10
A RESSURREIÇÃO, O JUÍZO E OS CASTIGOS
1.
O corpo da ressurreição
Já que esse discurso nos recordou os objetos de um juízo futuro, de
sua retribuição e dos castigos dos pecadores, segundo as advertências da Santa
Escritura e o conteúdo do ensinamento da Igreja, a saber, a vinda do julgamento
futuro, o fogo eterno, as trevas exteriores, a prisão, o lago de fogo e outros
castigos de natureza semelhante preparados para os pecadores, vejamos quais
deveriam ser nossa opiniões a respeito. Para que esses temas possam ser
expostos numa ordem
Apropriada, me parece que primeiro deveríamos considerar a natureza da
ressurreição, ver o que podemos saber do corpo que virá, para castigo ou para
repouso e felicidade; essas questões, nós as compusemos em outros tratados
sobre a ressurreição, nos quais falamos com grande desenvolvimento, mostrando o
caráter de nossas opiniões.
Mas agora, por causa da ordem lógica de nossa exposição, não será
absurdo repetir alguns pontos daquelas obras, sobretudo porque alguns se
ofendem com o credo da Igreja, como se nossa crença na ressurreição fosse tola
e totalmente desprovida de sentido; esses são principalmente hereges a quem,
penso, devemos responder da seguinte maneira. Se eles também admitem que exista
uma ressurreição dos mortos, deixemos que respondam: o que foi que morreu? Não
foi o corpo? Se foi o corpo, então haverá ressurreição.
Deixemos a seguir que nos digam se pensam que faremos uso do corpo ou
não. Penso que quando o apóstolo Paulo disse: “Semeado corpo animal,
ressuscitará corpo espiritual[150]”,
eles não poderão negar que esse corpo ressuscita, ou que teremos corpos na
ressurreição.
E então? Se é certo que teremos corpos, e se os corpos que caíram vão
se levantar, segundo se declara (porque somente daquilo que caiu se pode dizer
que se levantará novamente), não se pode duvidar que todos se levantarão para
ser vestidos pela segunda vez na ressurreição. Uma coisa está unida à outra.
Pois se os corpos se levantam, se levantam sem dúvida para nos cobrir, e se é
preciso que estejamos revestidos de corpos, como decerto é, então não deveremos
nos revestir de nenhum outro corpo do que do nosso próprio.
E se é certo que se levantam de novo, e que são “corpos spirituais”,
então não há dúvida de que se tenha dito que se levantam dos mortos, depois de
haver deixado de lado a corrupção e a mortalidade, pois de outro modo seria vão
e supérfluo para qualquer um ressuscitar dos mortos para voltar a morrer pela
segunda vez.
Finalmente, podemos compreender isso com clareza se considerarmos
cuidadosamente quais são das qualidades do corpo animal, o qual, uma vez
semeado na terra, recupera a qualidade de um corpo espiritual. Porque é de
nosso corpo animal que o poder e a graça da ressurreição extrai um corpo
espiritual, quando se transmuta de uma condição de indignidade para uma de
glória.
2.
Diferenças entre os corpos
Não obstante, já que os hereges se creem pessoas de grande
conhecimento e sabedoria, lhes perguntaremos se cada corpo possui uma forma de
alguma espécie, isso é, se é formado a partir de algum modelo. E, se disserem
que um corpo é o que está configurado segundo nenhuma forma, mostrar-se-ão os
mais tolos e ignorantes da humanidade, já que ninguém negará isso, salvo quem
for totalmente inculto. Mas se, como um assunto de fato, disserem que
certamente cada corpo é configurado segundo alguma forma definida, lhes
perguntaremos se podem nos indicar e nos descrever a forma de um corpo
espiritual, coisa que de modo algum saberão fazer.
Perguntar-lhes-emos, ademais, sobre as diferenças dos que se
levantarão. Como mostrarão ser certa a declaração do Apóstolo, que diz: “Nenhuma
carne é igual às outras: a carne dos homens é de um tipo, a dos animais é de
outro, e de outro a dos pássaros e de outro ainda a dos peixes. Há corpos
celestes e há corpos terrestres. O brilho dos celestes, porém, é diferente do
brilho dos terrestres. Uma coisa é o brilho do sol, outra o brilho da lua, e
outra o brilho das estrelas. E até de estrela para estrela há diferença de
brilho. O mesmo acontece com a ressurreição dos mortos: o corpo é semeado
corruptível, mas ressuscita incorruptível.[151]”?
Segundo essa gradação que existe entre os corpos celestes, deixemos
que nos mostrem as diferenças na glória dos que se levantarão; e, se buscarem
por todos os meios idealizar um princípio que possa estar de acordo com as
diferenças dos corpos celestes, lhes pediremos que assinalem as diferenças na
ressurreição mediante a comparação com os corpos terrestres.
Nosso entendimento da passagem acima é que o Apóstolo, querendo
descrever a grande diferença que existe entre os que se levantam em glória,
isso é, os santos, tomou emprestada uma comparação com os corpos celestes,
dizendo “uma é a glória do sol, outra a glória da lua, outra a glória das
estrelas”. E desejando uma vez mais nos ensinar sobre as diferenças que se
produzirão na ressurreição daqueles que não se purificaram dessa vida, isso é,
dos pecadores, tomou emprestada uma ilustração das coisas terrestres, dizendo
que “uma carne é a dos animais, outra a dos peixes, outra a das aves”. Porque
as coisas divina são dignamente comparadas aos santos, e as coisas terrestres
aos pecadores. Essas declarações servem de resposta aos que negam a
ressurreição dos mortos, isso é, a ressurreição dos corpos.
3.
A transformação do corpo corruptível em
incorruptível
Agora dirigiremos a atenção para alguns dos nossos, que por debilidade
do intelecto ou pela ausência de instrução adequada, adotam uma visão muito
baixa e abjeta da ressurreição do corpo. Perguntaremos a essas pessoas de que
maneira entendem que o corpo animal se transformará pela graça da ressurreição,
e se tornará espiritual. E de que maneira o que foi semeado em debilidade
ressurgirá em poder; como o que foi plantado em desonra, surgirá em glória; e o
que foi semeado em corrupção, será transformado em incorrupção. Porque, se eles
creem no Apóstolo, o corpo que se levantar em glória, poder e
incorruptibilidade, terá se tornado espiritual. Se isso lhes parecer absurdo e,
contrariamente ao seu significado, disserem que pode voltar a ser enredado
pelas paixões da carne e do sangue, sabendo que o Apóstolo declara que “nem a
carne, nem o sangue, herdarão o reino de Deus, nem tampouco a corrupção herdará
a incorrupção[152]”,
como entenderão a declaração do Apóstolo no versículo seguinte, de que “todos
seremos transformados”?
Essa transformação deve ser entendida conforme ensinamos acima, o que,
sem dúvida, se converte para nós em esperança de algo digno da graça divina. E
isso será descrito pelo Apóstolo, semelhante a quem semeia um grão de trigo ou
de qualquer outro produto, ao qual Deus dará o corpo que lhe agradar, assim que
o grão morra. Do mesmo modo, também nossos corpos deverão cair por terra como
um grão (o germe implantado nele contém a substância corporal), e, ainda que os
corpos morram e se corrompam e se desmembrem, ainda assim, pela Palavra de
Deus, esse mesmo germe que sempre permaneceu encerrado na substância do corpo,
se levantará da terra, restaurará e reparará o corpo do mesmo modo como o poder
contido no grão de trigo, que depois de sua morte e corrupção repara e restaura
o grão num corpo de talo e espiga[153].
Assim, aos que mereçam obter uma herança no reino do céu, aquele germe
da restauração do corpo, que mencionamos antes, restaurará por mandato divino o
corpo terreno e animal num corpo espiritual, capaz de habitar o céu; enquanto
que, para os que possuem mérito inferior, ou que são de condição mais abjeta,
ou mesmo os mais baixos na escala e totalmente atirados a um canto qualquer, ainda
assim lhes será concedida uma dignidade e glória de corpo, na proporção da
dignidade de sua vida e de sua alma; de tal modo, que mesmo o corpo ressurreto
dos que estão destinados ao fogo eterno ou a castigos severos, se torna, pela
própria mudança da ressurreição, tão incorruptível, que já não pode
corromper-se nem ser dissolvido pelos mais severos castigos. Se, então, são
essas as qualidades do corpo que ressuscitará dos mortos, vejamos agora o
significado das ameaças do fogo eterno.
4.
A natureza do fogo eterno e a recordação do
próprio pecado
No profeta Isaías encontramos que o fogo com o qual cada um será
castigado é descrito como próprio, pois está dito: “Caminhai à luz do vosso
fogo, e das brasas que acendestes[154]”.
Essas palavras parecem nos indicar que cada pecador acende por si mesmo a chama
de seu próprio fogo, e que não é atirado a um fogo que tenha sido acendido por
outro, ou que existia antes dele mesmo. O combustível e o alimento desse fogo
são os nossos pecados, que são chamados pelo apóstolo Paulo de “madeira, feno e
palha[155]”.
E penso que, assim como a abundância de alimentos e provisões de uma
classe oposta à saúde produz febres no corpo, e febres de diferentes classes e
durações, segundo a proporção em que o veneno ingerido provê material e
combustível para a enfermidade (a qualidade desse material, recolhido de
venenos diferentes, provê as causas de que a enfermidade seja mais aguda ou
mais persistente), da mesma forma, quando a alma ingeriu uma multitude de obras
más, e uma abundância de pecados contra si, no tempo fixado todos os males que
reuniu ferverão para seu castigo e a alma será tomada de fogo, para sua grande
dor; ou quando a própria mente, ou a consciência, que recebeu pelo poder divino
a memória de todas aquelas coisas nas quais ficaram estampados os sinais e as
formas do momento do pecado, vê exposta diante de seus olhos como que uma
espécie de história de todos os seus atos tolos, vergonhosos ou ímpios.
Então, a própria consciência é acossada e aguilhoada por seus próprios
cometimentos, e se transforma em acusador e testemunho contra si mesma. E penso
que era essa a opinião do próprio apóstolo Paulo ao dizer: “A consciência deles
também testemunha isso, assim como os julgamentos interiores, que ora os
condenam, ora os aprovam. É o que vai acontecer no dia em que Deus, segundo o
meu Evangelho, for julgar, por meio de Jesus Cristo, o comportamento secreto
dos homens[156]”.
Daí se deduz que na própria substância da alma se produzem certas torturas
devidas aos mesmos efeitos lancinantes dos pecados.
5.
O sofrimento da ruptura da alma
Para que a compreensão desse assunto não resulte muito difícil,
podemos apresentar algumas considerações a partir dos maus efeitos produzidos
pelas paixões em algumas almas, como quando uma alma é incendiada pelo fogo do
amor, ou consumida pelo ciúme e a inveja, ou quando se acende a paixão da
cólera, ou quando a pessoa é consumida pela grandeza de sua loucura ou de sua
dor, ocasiões nas quais alguns, considerando insuportável o excesso desses
males, consideram mais tolerável render-se à morte do que aguentar
permanentemente uma tortura de tal classe.
Perguntar-me-ão, sem dúvida, se no caso em que aqueles que foram
colhidos pelos males que provêm dos vícios acima enumerados tenham sido
incapazes, enquanto existiam nessa vida, de procurar alguma melhora para si
mesmos, deixando esse mundo nessa condição, não será suficiente como castigo
ser torturados pelo que neles resta desses efeitos danosos, isso é, da cólera,
ou da fúria, da loucura, da dor, cujo veneno fatal não fôra nessa vida
amenizado por nenhuma medicina curativa; ou se esses efeitos, ao se
transformar, serão submetidos às dores de um castigo geral.
Sou de opinião de que podemos entender que existe outra espécie de
castigo, porque, assim como sentimos que, quando os membros do corpo são
enfraquecidos e arrancados de seus apoios mútuos, se produz uma dor da classe
mais insuportável, assim também, quando acontecer que a alma esteja fora da
ordem, conexão e harmonia tal como foi criada por Deus com o propósito de
realizar atos bons e úteis, e não harmonize consigo mesma em conexão com seus
movimentos racionais, isso deverá ser considerado como o castigo e a tortura de
sua própria dissensão, e ela sentirá os castigos de sua própria condição
desordenada. E quando essa dissolução e ruptura da alma forem provadas no fogo,
terá lugar uma solidificação indubitável numa estrutura mais firme, e dar-se-á
uma restauração como efeito.
6.
A medicina e a purificação divina
Existem também muitas outras coisas que escapam ao nosso conhecimento,
e que são conhecidas apenas por Aquele que é o médico de nossas almas. Porque,
se devido aos maus efeitos que causamos em nós ao comer e beber, consideramos
necessário para a saúde do corpo tomar alguma medicina desagradável e dolorosa,
sendo que às vezes, se o requer a natureza de nossa enfermidade, encaramos o
processo severo da amputação com uma faca, e, se a virulência da enfermidade
transcende os remédios, temos que queimar o mal com o fogo, quanto mais devemos
entender que Deus, nosso Médico, desejando retirar os defeitos de nossas almas,
que contraímos por diferentes pecados e crimes , deverá empregar medidas penais
dessa classe, aplicando, ademais, o castigo do fogo aos que perderam totalmente
a cordura de sua mente!
Imagens desse método de proceder se encontram igualmente nas Santas
Escrituras. No livro do Deuteronômio, a palavra divina ameaça os pecadores com
os castigos das febres, frios, icterícia, e com dores de fraqueza de visão, de
alienação mental e paralisia, cegueira e debilidade dos rins[157].
Se alguém, então, em seu tempo livre, recolher da Escritura todas as
enumerações dos males que, nas advertências dirigidas aos pecadores, recebem o
nome de enfermidades corporais, encontrará que os vícios da alma, ou seus
castigos, são indicados em sentido figurado.
Para entender agora que, da mesma maneira como os médicos aplicam
remédios ao enfermo para que recupere a saúde por um tratamento cuidadoso,
também Deus trata os que caíram no pecado; demonstra-se isso pelo cálice da ira
de Deus, oferecido por meio do profeta Jeremias a todas as nações, para que
dele bebam, tremam e enlouqueçam[158].
Ao fazer isso, Ele os ameaça, dizendo que se algum recusar beber, não será
purificado[159].
Assim vemos seguramente que a ira da vingança de Deus é proveitosa para a
purgação das almas. Que o castigo que se aplica pelo fogo também deve ser
entendido tendo por objetivo a cura, aprendemos com Isaías, que fala assim de
Israel: “Quando o Senhor lavar as imundícies das filhas de Sião, e limpar o
sangue de Jerusalém do meio delas com espírito de justiça e espírito abrasador[160]”.
Dos caldeus ele diz: “O fogo os queimará, não salvarão suas vidas do poder da
chama... assim serão teus aqueles com quem te fatigaste[161]”.
E em outras passagens ele diz: “A luz de Israel se tornará um fogo, e seu Santo
uma labareda, que há de devorar e consumir num só dia seus espinheiros e matagais[162]”.
E em suas profecias, Malaquias diz: “E se sentará para afinar e limpar a prata;
porque limpará os filhos de Levi, e os afinará como o ouro e como a prata[163]”.
7.
A parte que será deixada
Mas o castigo que também é mencionado nos Evangelhos, a respeito dos
administradores infiéis[164],
dos quais se diz que foram divididos, sendo uma parte deles colocadas com os
incrédulos, como se a parte que não era sua fosse enviada a outro lugar,
indubitavelmente indica, no meu parecer, algum castigo sobre aqueles cujo
espirito manifesta estar separado de sua alma. Porque, se o Espírito é de natureza
divina – entenda-se, o Espírito Santo – entendemos que isso se refere ao dom do
Espírito Santo; quando, pelo Batismo ou pela graça do Espírito, a palavra de
sabedoria, ou a de conhecimento, ou de qualquer outro dom, é concedida ao
homem, e não é administrado corretamente, isso é, fica enterrado na terra ou
atado num lenço, então o dom do Espírito será retirado da alma, e à outra parte
que permanecer, vale dizer a substância da alma, será assinalado um lugar entre
os incrédulos, sendo dividida e separada daquele Espírito com o qual, ao unir-se
ao Senhor, teria que ter se tornado um só espírito.
Agora, se isso não deve ser entendido do Espírito de Deus, mas da
própria natureza da alma, aquilo que se chama ‘sua melhor parte’ é a que foi feita
à imagem e semelhança de Deus, enquanto que a outra parte, a que, depois de sua
queda pelo exercício do livre arbítrio, foi assumida contrariamente à natureza
de sua condição de pureza original, essa parte, por ser amiga e amante da
matéria, é castigada com o destino dos incrédulos.
Existe também um terceiro sentido segundo o qual aquela separação pode
ser entendida, a saber, que, assim como cada fiel, ainda que seja o mais
humilde da Igreja, é assistido por um anjo que, como o declara o Salvador, sempre
contempla a face do Pai[165],
e, como esse anjo está seguramente unido ao objeto de sua tutela, assim, se
este último é considerado indigno por sua falta de obediência, se diz que o
anjo de Deus é retirado dele e de sua parte – a parte que pertence à natureza
humana – sendo essa separada da parte divina e colocada num lugar com os
incrédulos, porque não observou fielmente as advertência do anjo assinalado a
ela por Deus.
8.
As trevas exteriores e o corpo de perdição
Mas as “trevas exteriores[166]”
nesse julgamento devem ser entendidas não tanto como alguma atmosfera escura
sem nenhuma luz, mas como aquelas pessoas que, por estar submersas nas trevas
da ignorância mais profunda, foram colocadas além do alcance de qualquer luz do
entendimento.
Também devemos ver, a menos que talvez seja esse o significado da
expressão, que, assim como os santos receberão os corpos – com os quais viveram
em santidade e pureza nas moradas dessa vida – brilhantes e gloriosos depois da
ressurreição, os maus, que nessa vida preferiram as trevas do erro e da noite
da ignorância, serão também revestidos de corpos tenebrosos e escuros depois da
ressurreição, para que a mesma névoa de ignorância que, nessa vida, tomara
posse de suas mentes dentro deles, possa aparecer no futuro como a cobertura
exterior de seu corpo. Algo similar é a opinião que podemos formar da prisão. Deixemos
que esses comentários, feitos com a maior brevidade, sejam suficientes para a
presente ocasião, para que possamos manter a ordem de nosso discurso.
11
AS PROMESSAS
1.
As ocupações do homem
Vejamos agora quais ideias podemos formar acerca das promessas. É certo
que não existe coisa alguma viva que esteja totalmente inativa e quieta, senão
que se deleita num movimento de qualquer tipo que seja, numa atividade e numa
volição perpétuas; e penso que esse caráter é evidente em todas as coisas
vivas. Muito mais, então, num ser racional, vale dizer, na natureza do homem,
que está em perpétuo movimento e atividade.
Se o homem é esquecido de si mesmo, e ignorante a respeito daquilo no
que se converte, todos os seus esforços se dirigem a servir e usar seu corpo, e
em todos os seus movimentos ele se ocupa de seus próprios prazeres e luxúrias
corporais; mas se é alguém que estuda como cuidar e prover para o bem geral,
então, consultando sobre o benefício do estado e a obediência aos magistrados,
se obriga a tudo o que é, ou pode parecer promover com segurança, o bem-estar
público.
E se a pessoa é de tal natureza que possa entender que existe algo
melhor do que aquelas coisas que parecem ser corpóreas, e assim dedica seu
trabalho à sabedoria e à ciência, então, sem dúvida, dirigirá toda sua atenção
à busca daquelas disciplinas, para poder, mediante a investigação da verdade,
verificar as causas e a razão das coisas.
Portanto, nessa vida, um homem considera que o melhor bem de que pode
desfrutar são os prazeres corporais; outro, procura o bem da comunidade; um
terceiro dedica sua atenção ao estudo e à aprendizagem. Investiguemos, pois, se
na vida verdadeira (que, como se diz, está oculta com Cristo em Deus, isso é, a
vida eterna), se encontra em nós alguma ordem ou condição de existência.
2.
A interpretação literal das promessas
divinas
Algumas pessoas, recusando o trabalho de pensar, e adotando uma visão
superficial da letra da lei, e cedendo em boa medida às indulgências de seus
próprios desejos e luxúrias, sendo discípulos apenas da letra, são de opinião
que o cumprimento das promessas futuras deve ser buscado no prazer corporal e
no luxo; portanto, desejam voltar a possuir tudo, depois da ressurreição, com
tais estruturas corporais que nunca possam estar sem poder comer e beber, e sem
realizar todas as funções da carne e do sangue, desdenhando da opinião do
apóstolo Paulo quando à ressurreição do corpo espiritual. Por conseguinte dizem
que depois da ressurreição haverão matrimônios e concepção de crianças,
imaginando que a cidade terrestre de Jerusalém será reconstruída, e suas
fundações serão montadas sobre pedras preciosas, e suas paredes serão construídas
com jade, e seus contrafortes de cristal; que haverá um muro composto de muitas
pedras preciosas, como jaspe, safira, ágata, esmeralda, sardônica, ônix,
crisólito, crisópraso, berílio, jacinto e ametista.
Pensam, ademais, que os nativos de outras nações lhes serão dados como
ministros de seus prazeres, os quais empregarão no cultivo do campo ou na
construção de muralhas, e pelos quais sua cidade arruinada e decaída deverá ser
erguida novamente. E pensam que irão receber a riqueza das nações e que eles
terão o controle da riqueza; tudo isso e mais os camelos de Mediá e Kedar que
virão e lhes trarão ouro, incenso e pedras preciosas. Creem que podem
fundamentar essas teorias sobre a autoridade dos profetas, em relação ao que
está escrito a respeito de Jerusalém, e sobre aquelas passagens onde se diz que
os que servem ao Senhor comerão e beberão, mas que os pecadores terão fome e
sede; que o justo estará alegre, mas que o ímpio será possuído pela dor. E também
se apoiam no Novo Testamento, na fala do Salvador, em que promete a seus
discípulos acerca da alegria do vinho, dizendo: “Desde agora não beberei mais
desse fruto da videira, até aquele dia, quando voltarei a beber convosco no
reino de meu Pai[167]”.
Acrescentam, ademais, a declaração na qual o Salvador chama de bem-aventurados
aos que hoje sentem fome e sede, prometendo que serão saciados[168];
e adicionam muitas outras ilustrações bíblicas, cujo significado não percebem
que deve ser tomado em sentido figurado.
Então, outra vez, de acordo com a forma das coisas dessa vida, e
segundo as gradações das dignidades os graus desse mundo, ou a grandeza de seus
poderes, pensam que eles deverão ser reis e príncipes, como os monarcas
terrestres que ora existem, principalmente como aparece na expressão do
Evangelho: “Receba também o governo sobre cinco cidades[169]”.
Em poucas palavras, eles desejam que se cumpram todas as coisas em conformidade
à maneira de ser dessa vida, vale dizer, que aquilo que existe agora volte a
existir depois. Tais são as opiniões daqueles que, crendo em Cristo, entendem
as Escrituras divinas numa espécie de sentido judaico, extraindo delas nada
digno das promessas divinas.
3.
Interpretação cristã das promessas eternas
Aqueles que recebem as interpretações da Escritura segundo o
entendimento dos apóstolos, guardam a esperança de que os santos comerão,
certamente, mas que será o pão da vida que pode alimentar a alma com o alimento
da verdade e da sabedoria, e iluminar a mente, e que beberão do cálice da
sabedoria divina, segundo declara a Santa Escritura: “A sabedoria pôs a mesa. Enviou
suas criadas; do mais alto ponto da cidade, chamou: Quem quer que seja simples,
venha! Aos imprudentes, disse: Vinde, comei do meu pão e bebei do vinho que preparei[170]”.
Por meio desse alimento da sabedoria, o entendimento, sendo conduzido até uma
condição de inteireza e perfeição como aquela que tinha o homem ao princípio, é
restaurado à imagem e à semelhança de Deus; para que, ainda que um indivíduo
possa ter abandonado essa vida com uma instrução menos perfeita, mas tendo
realizado obras que tenham sido aprovadas, seja capaz de receber mais instrução
naquela Jerusalém, a cidade dos santos, isso é, será educado, moldado e tornado
uma pedra viva, pedra eleita e preciosa, porque sofreu com firmeza e constância
as lutas da vida e as provas da piedade; e ali chegará a um conhecimento mais
verdadeiro e mais claro do que aqui poderia ter previsto, a saber, “que o homem
não viverá só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor[171]”.
E também deve ficar entendido que serão príncipes e senhores os que governarão
sobre os de classe inferior e os instruirão e ensinarão, treinando-os nas
coisas divinas.
4.
O desejo de saber implantado por Deus
Mas se essas concepções não preenchem as mentes dos que esperam tais
resultados com um desejo apropriado para eles, voltemos um pouco atrás e,
independentemente do desejo natural e inato da mente pela própria coisa, investiguemos
de que modo podemos ser capazes de descrever ao menos a própria forma do pão da
vida e do cálice daquele vinho, e a peculiar natureza dos principados, todos
conforme a visão espiritual das coisas.
Nas artes que em geral se realizam pelo trabalho manual, a razão pela
qual se faz alguma coisa, ou o porquê dela ter uma qualidade especial, ou um propósito
específico, é, para a mente, um objeto de investigação, enquanto que o trabalho
real se desenvolve diante de sua vista pela habilidade das mãos; assim,
naquelas obras de Deus que foram criadas por Ele, devemos observar a razão e o
entendimento daquelas coisas que vemos feitas por Ele permanecem como restos
sem revelar. E assim, quando nosso olho contempla os produtos do trabalho de um
artista, a mente, percebendo algo de excelência artística insólita, de imediato
arde de desejos de conhecer qual é sua natureza, como foi formada, ou com que
propósito se lhe deu tal forma; assim, num grau muito maior, e mais além de
além de toda comparação, a mente arde com um desejo inexplicável de conhecer a
razão daquilo que vimos feito por Deus.
Esse desejo, essa ânsia, cremos que está inquestionavelmente implantado
por Deus dentro de nós; e, assim como o olho busca naturalmente a luz e a
visão, e nosso corpo deseja naturalmente o alimento e a bebida, nossa mente é
possuída por um desejo apropriado e natural de inteirar-se sobre a verdade de
Deus e as causas das coisas. Recebemos esse desejo de Deus, não para que nunca
seja satisfeito ou capaz de receber satisfação; pois de outro modo pareceria
que o amor pela verdade foi implantado por Deus em nossas mentes sem propósito,
como se nunca chegasse a ter uma oportunidade de satisfação.
5.
O rascunho presente da imagem perfeita
Daí também que, mesmo nessa vida, os que se dedicam com grande
trabalho a obter a conquista da piedade e da religião, ainda que obtendo não
mais do que alguns fragmentos pequenos dos numerosos e imensos tesouros do
conhecimento divino, mesmo assim, pelo fato mesmo de que suas mentes e suas
almas estão comprometidas nessa busca, e que impaciência de seu desejo excedem
a si mesmos, retiram daí muito proveito; e como suas mentes se dirigem ao
estudo e ao amor pela investigação da verdade, se preparam para receber a
instrução que há de vir; como se, quando alguém quer pintar uma imagem,
primeiro traça com um lápis leve os contornos da imagem e prepara os sinais que
receberão os traços que serão acrescentados depois; esse rascunho preliminar do
contorno é feito para preparar o modo como serão impressas as verdadeiras cores
da imagem; assim, numa certa medida, um contorno e um rascunho podem ser
traçados sobre as tábuas de nosso coração pelo lápis do Senhor Jesus Cristo. Talvez
por isso foi dito: “A quem tiver, mais será dado[172]”.
Por isso fica estabelecido que àqueles que nessa vida possuem uma espécie de
contorno de verdade e conhecimento, se lhes acrescentará no futuro a beleza de
uma imagem perfeita.
6.
O que falta saber
Um desejo semelhante creio ter sido indicado por aquele que disse: “Fico
na indecisão: meu desejo é partir dessa vida e estar com Cristo, e isso é muito
melhor[173]”.
Sabendo que quando estivesse com Cristo conheceria com mais clareza as razões
de todas as coisas que se fazem sobre a terra, seja a respeito do homem, ou da
alma do homem, ou da mente; ou a respeito de qualquer outro assunto, como, por
exemplo, no que consiste o Espírito que opera; também o que é o espírito vital,
o que é a graça do Espírito Santo que é dada aos fiéis. Então saberá o que é
aquilo que parece ser Israel, e o que se quer indicar com a diversidade das
nações; o que significam as doze tribos de Israel, e o que significam os
indivíduos de cada tribo. Então também entenderá a razão dos sacerdotes e
levitas, e das diferentes ordens sacerdotais, cujo protótipo estava em Moisés,
e também qual o significado dos jubileus, e também os motivos para os dias de
festas, os dias santos e para todos os sacrifícios e purificações.
Também perceberá a razão da limpeza da lepra, e o que são as diversas
classes de lepra, e a razão da impureza daqueles que perdem sua semente. Chegará
a saber, ademais, no que consistem as influências boas, sua grandeza e suas
qualidades; e também as que são de uma classe contrária, e qual a afeição das
primeiras, e no que constitui o esforço das últimas em promover conflitos contra
os homens. Contemplará também a natureza da alma e a diversidade dos animais
(dos que vivem na água, no ar e as feras selvagens), e porque cada um dos gêneros
é subdividido em tantas espécies; e qual a intenção do Criador, ou qual
propósito de sua sabedoria se oculta em cada coisa individual.
Familiarizar-se-á, também, com a razão pela qual se encontram certas
propriedades associadas a determinadas raízes e ervas, e porque, de outro lado,
os maus efeitos são combatidos por outras ervas e raízes. Conhecerá, ademais, a
natureza dos anjos falsos, e a razão pela qual têm o poder de adular em algumas
coisas aos que não os desprezam com o poder total da fé, e por que existem com
o objetivo de enganar e perverter os homens. Aprenderá também o juízo da
Providência divina a respeito de cada coisa individual; e de todos os eventos
que acontecem aos homens, e que nenhum acontece por casualidade ou acidente,
mas de acordo com um plano cuidadosamente considerado, e tão estupendo que não
é superado nem pelo número de cabelos da cabeça, não só dos santos, mas de
todos os seres humanos, e o plano que o governo providencial amplia até preocupar-se
com a venda de dois pardais por um denário, quer se entenda isso em sentido
figurado ou literal. Agora, certamente, esse governo providencial ainda é tema
de investigação, mas um dia se manifestará totalmente.
De tudo isso devemos supor que não haverá de passar pouco tempo até
que conheçamos a razão daquelas coisas terrenas que merecem ser recordadas depois
que abandonemos essa vida. Então, aquela atmosfera localizada entre o céu e a
terra não está desprovida de habitantes, e de uma classe racional, como disse o
Apóstolo: “Outrora andastes nessas faltas e pecados, seguindo o modo de pensar
deste mundo, seguindo o príncipe do poder do ar, o espírito que agora age nos
homens desobedientes[174]”.
E em outro lugar: “Seremos arrebatados às nuvens para recebermos o Senhor nos
ares, e assim estaremos sempre com o Senhor[175]”.
7.
As moradas celestiais
Devemos supor, portanto, que os santos permanecerão ali até que
reconheçam o duplo modo de governo daquelas coisas que são realizadas nos ares.
E quando digo ‘o duplo modo’, quero dizer o seguinte: quando estávamos na
terra, víamos animais ou árvores, e contemplávamos as diferenças entre eles, e
também a grande diversidade entre os homens; mas mesmo que tenhamos visto essas
coisas, não entendíamos as razões delas; e isso nos foi sugerido unicamente
pela diversidade visível, para que examinássemos e investigássemos por meio de
qual princípio foram criadas ou diversamente ordenadas.
O zelo ou desejo de conhecimento que concebemos na terra receberá
plena satisfação do pleno entendimento e compreensão que nos serão concedidos
depois da morte. Então, cumpridos os anseios do desejo pela verdade,
entenderemos de maneira dupla aquilo que vimos sobre a terra. Algo parecido
devemos sustentar quanto a essa morada nos ares. Penso que todos os santos que
partem dessa vida permanecerão em algum lugar situado sobre a terra, a que a
Santa Escritura chama de Paraíso, como um lugar de instrução, e por assim
dizer, uma classe ou escola de almas, onde os santos serão instruídos quanto às
coisas que viram sobre a terra, e também receberão alguma informação sobre as
coisas que se seguirão no futuro, como aquelas que nessa vida haviam obtido por
algumas indicações sobre acontecimentos futuros, ainda que por “um cristal,
misteriosamente”, de tudo o que será revelado distinta e claramente aos santos
no tempo e lugar apropriados.
Se alguém é verdadeiramente puro de coração, santo demente e
experiente na percepção, fará progressos mais rápidos, ascendendo com prontidão
a um lugar nos ares até alcançar o reino do céu, por meio daquelas moradas nos
diferentes lugares que os gregos chamaram de esferas, isso é, globos, mas que a
Santa Escritura chama de céus; e em cada um deles primeiro verá claramente o
que se faz ali, e em segundo lugar descobrirá a razão pela qual são feitas
essas coisas; e assim irá passando em ordem por todas as gradações, seguindo
Aquele que transpassou os céus, Jesus, Filho de Deus, que disse: “Que onde eu
estiver, estejam eles comigo[176]”.
É dessa diversidade de lugares que ele nos fala, quando diz: “Na casa
de meu Pai existem muitas moradas”. Ele mesmo está em todos os lugares, e passa
rapidamente por todas as coisas; então não entenderemos mais como existindo nos
estreitos confins em que fomos limitados para nosso bem, vale dizer, não
estaremos mais circunscritos àquele corpo que tivemos sobre a terra, morando
entre os homens, segundo o qual poderíamos nos considerar como reclusos em um
lugar.
8.
Crescimento constante na visão de Deus
Quando os santos alcançarem as moradas celestes verão com clareza a
natureza das estrelas uma por uma, e entenderão se estão dotadas de vida, e
qual é sua condição.
Compreenderão também as demais razões para as obras de Deus, que Ele
mesmo revelará. Porque Deus lhes mostrará, como a crianças, as causas de todas
as coisas e o poder de sua criação, e lhes explicará porque essa estrela foi
colocada em seu lugar específico no céu, e porque foi separada de outra por um
espaço intermédio tão grande; qual, por exemplo, teria sido a consequência de
ter sido posta mais próxima ou mais distante, ou como, se essa estrela fosse
maior, a totalidade das coisas não teria permanecido igual, e tudo teria se
transformado numa condição diferente de ser. E assim, depois de terminados
todos os assuntos relacionados com as estrelas e com as revoluções celestiais,
veriam as coisas que não se veem, ou aquelas das quais só ouvimos o nome, e as
coisas invisíveis, que o apóstolo Paulo nos informa que são numerosas, ainda
que não possamos imaginar com nosso débil intelecto o que sejam, ou que
diferenças existem entre elas.
E assim, crescendo por cada degrau individual, a natureza racional, não
como cresceu na carne nessa vida, no corpo e na alma, mas aumentada em
entendimento e em poder de percepção, se levantará como uma mente perfeita até
um conhecimento perfeito, sem os impedimentos dos sentidos carnais, mas
acrescentada em crescimento intelectual, e sempre contemplando de forma pura,
por assim dizer, cara a cara, as causas das coisas, obterá sua perfeição,
primeiro por ascender até a verdade, e segundo, por nela habitar, tendo os
problemas e o entendimento das coisas e as causas dos eventos como alimento com
que festejar.
Porque, se nessa vida nossos corpos cresceram fisicamente até se
tornar o que são, graças à suficiência de alimento na infância, que supriram os
meios de crescimento, depois de alcançar o devido peso, esses alimentos já não
se utilizam para crescer, mas para viver e perseverar nessa vida. Penso que
assim também a mente, depois de alcançada a perfeição, se alimenta de comida
adequada e apropriada em tal grau, que nada lhe seja deficiente ou supérfluo.
Em todas as coisas devemos entender essa comida como sendo a
contemplação e o entendimento de Deus, que constituem a medida apropriada e
adequada para essa natureza que foi feita e criada. Essa medida deve ser
observada e deve ser própria de cada um dos que começam a ver a Deus, vale
dizer, a entendê-lo mediante a pureza do coração[177].
[1]
Jeremias 23: 24.
[2]
Isaías 66: 1.
[3]
Mateus 3: 34.
[4]
Atos 17: 28.
[5] II
Macabeus 7: 28.
[6] Pastor de Hermas, II.
[7]
Salmo 148: 5.
[8] I
Coríntios 15: 53-56.
[9]
Romanos 13: 14.
[10]
Cf. Coríntios 15: 24,28. “Logo virá o fim, quando entregará o reino a Deus Pai,
quando houver destruído todo império, toda potência e potestade (...) Mas logo
que todas as coisas lhe sejam submetidas, então o próprio Filho se submeterá ao
que submetei a Ele todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos”.
[11]
Medida romana equivalente a um alqueire.
[12]
Hebreus 9: 26.
[13]
Efésios 2: 7.
[14]
João 17: 22, 24.
[15]
Isaías 3: 24.
[16]
Sabedoria 18: 24.
[17] I
João 5: 19.
[18]
Clemente Romano, Epístola I ad Corínthios,
20.
[19] I
Coríntios 7: 31.
[20]
João 17: 16.
[21]
Mateus 5: 4.
[22]
II Coríntios 4: 18.
[23]
II Coríntios 5: 11.
[24]
Salmo 8: 3.
[25]
Isaías 66: 2.
[26] I
Coríntios 15: 52.
[27]
Mateus 5: 5, 3.
[28]
Salmo 37: 34.
[29]
Mateus 1: 22.
[30]
Mateus 5: 45, 48.
[31]
Mateus 6: 9.
[32]
Mateus 5: 33.
[33]
Isaías 66: 1.
[34]
João 2: 16.
[35]
Mateus 22: 31, 32; cf. Êxodo 3: 6.
[36]
Isaías 46: 9.
[37]
Atos 7: 36.
[38]
Mateus 22: 37-40.
[39]
II Timóteo 1: 3.
[41]
Romanos 1: 1-4.
[42] I
Coríntios 9: 9-10.
[43]
Efésios 6: 2-3; cf. Êxodo 20: 12.
[44]
João 1: 18.
[45]
Colossenses 1: 15.
[46]
João 14: 9.
[47]
Êxodo 33: 20, 23.
[48] I
Timóteo 4: 7.
[49]
Mateus 11: 27.
[50]
Cf. Mateus 21: 33-44.
[51]
Cf. Lucas 19: 11-27.
[52]
Salmo 2: 5.
[53]
Êxodo 20: 5.
[54]
Ezequiel 18: 3-20.
[55]
Lucas 10: 13.
[56]
Mateus 22: 12-13.
[57]
Filipenses 4: 8-9.
[58] I
Pedro 3: 18-21.
[59]
Ezequiel 16: 55.
[60]
Isaías 47: 14.
[61]
Salmo 78: 34.
[62]
Mateus 7: 18.
[63]
Romanos 7: 12.
[64]
Romanos 7: 13.
[65]
Romanos 7: 13.
[66]
Mateus 12: 35.
[67]
Mateus 19: 17.
[68]
Salmo 73: 1.
[69]
Salmo 118: 2.
[70]
Lamentações 3: 25.
[71]
João 17: 25.
[72]
Colossenses 1: 15.
[73]
Colossenses 1: 16, 17.
[74] I
Coríntios 11: 3.
[75]
Mateus 11: 27.
[76]
Mateus 26: 38.
[77]
João 10: 18.
[78] I
Coríntios 6: 17.
[79]
Colossenses 1: 16.
[80]
Mateus 16: 27.
[81]
Gênesis 2: 24.
[82]
Salmo 45: 7.
[83]
Colossenses 2: 9;
[84]
Isaías 53: 9.
[85]
Hebreus 4: 15.
[86]
João 8: 46.
[87]
João 14: 30.
[88]
Isaías 8: 4; 7: 16.
[89]
Lamentações 4: 20.
[90]
Salmo 89: 50-51.
[91]
Colossenses 3: 3.
[92]
II Coríntios 13: 3.
[93]
Lucas 1: 35.
[94]
Hebreus 8: 5.
[95]
Jó 8: 9.
[96]
II Coríntios 5: 16.
[97]
Joel 2: 28; Atos 2: 17.
[98]
Salmo 72: 11.
[99] I
Timóteo 4: 1-2.
[100]
II Coríntios 12: 4.
[101]
I Coríntios 10: 23.
[102]
Cf. I Coríntios 12: 3.
[103]
I João 2: 1-2.
[104]
Gênesis 1: 21.
[105]
Levítico 17: 14.
[106]
Gênesis 1: 24.
[107]
Gênesis 2: 7.
[108]
Levítico 17: 10. A palavra que encontramos no Levítico é “rosto”, como na tradução
da Septuaginta de Sir Lancelot Brenton (1851): “...will even set my face
against that soul that eats blood, and will destroy it from its people”.
[109]
Isaías 1: 13-14.
[110]
Salmo 22: 19,20.
[111]
I Coríntios 2: 14.
[112]
I Coríntios 15: 44.
[113]
I Coríntios 14: 15
[114]
I Pedro 1: 9.
[115]
“Ainda que com precaução infinita, digamos que depois que as almas recebam a
salvação e entrem na vida bem-aventurada, deixarão de ser almas. Porque nosso
Senhor e Salvador veio para buscar e salvar o que se havia perdido, para que
deixasse de ser perdido; assim, a alma que estava perdida, e para cuja salvação
veio o Senhor, deixará de ser alma quando for salva. Da mesma maneira devemos
examinar esse ponto: se o que estava perdido é porque houve um tempo em que não
estava perdido, pode vir um tempo em que já não estará mais perdido. Da mesma
forma, num tempo a alma pode não ter sido alma, e em outro tempo pode deixar de
ser alma de algum modo”. (Jerônimo, Ep. a
Avito)
[116]
Deuteronômio 4: 24.
[117]
Salmo 104: 4.
[118]
Êxodo 3: 2.
[119]
Romanos 12: 11.
[120]
Jeremias 1: 9. As palavras “como fogo” não aparecem no hebraico nem no grego da
Septuaginta; talvez Orígenes una aqui o texto ao de Isaías.
[121]
Mateus 24: 12.
[122]
Isaías 27: 1.
[123]
Amós 9: 3.
[124]
Jó 41: 34.
[125]
Jeremias 1: 14.
[126]
Sabedoria 43: 20.
[127]
Sabedoria 6: 4.
[128]
Ezequiel 18: 4.
[129]
Ezequiel 18: 4.
[130]
Salmo 116: 7. Na Epístola de Justiniano
ao Patriarca de Constantinopla se conserva essa versão: “Ao afastar-se da
vida espiritual e esfriar-se, a alma se converteu naquilo que agora é; mas ela
também é capaz de regressar ao que foi no princípio, o que, creio, está
indicado nas palavras do profeta: “Volta, alma minha, ao teu repouso; porque o
Senhor te fez bem”.
[131]
“O entendimento (nous), de alguma
maneira, se tornou alma, e a alma ao ser restaurada, se tornará entendimento. O
entendimento, ao separar-se se fez alma, e a alma, por sua vez, provida das
virtudes, se fará entendimento. Porque, se examinamos o caso de Esaú, veremos
que ele foi condenado por causa de seus antigos pecado, no decurso de uma vida
pior. E a respeito dos corpos celestes temos que considerar que não foi no
tempo em que o mundo foi criado que a alma do sol, ou como quer que se chame,
começou a existir, mas antes de entrar nesse corpo luminoso e ardente.
Proposições semelhantes temos que fazer sobre a lua e as estrelas, que pelas
mesmas razões foram compelidas, involuntariamente, a submeter-se à vaidade por
conta das recompensas do futuro, e a fazer, não sua própria vontade, mas a
vontade de seu Criador, pelo qual se lhes foram assinalados ofícios diferentes”.
(Jerônimo, Ep. a Avito)
[132]
João 12: 27.
[133]
Mateus 26: 38.
[134]
João 10: 18.
[135]
Mateus 26: 41.
[136]
Salmo 44: 19.
[137]
O original dessa passagem se encontra na Epístola
de Justiniano a Menos, Patriarca de Constantinopla: “Nesse começo que pode
ser compreendido pelo entendimento, Deus, por sua própria vontade, causou a
existência de um grande número de seres inteligentes, tantos quantos
suficientes, porque devemos dizer que o poder de Deus é finito e não, sob a
pretensão de bajular, eliminar sua limitação. Porque se seu poder for infinito,
ele seria incapaz de entender a si mesmo, já que o que é naturalmente ilimitado
não pode ser compreendido. Ele, portanto, fez coisas tão grandes quanto fosse
capaz de apreender e manter sob seu poder, e de controlá-las com sua Providência;
da mesma forma preparou a matéria de tal tamanho que pudesse ele ter poder de
ornamento”.
[138]
Gênesis 1: 1.
[139]
I Coríntios 15: 41.
[140]
Colossenses 1: 16.
[141]
João 1: 1-2.
[142]
Salmo 104: 24.
[143]
Cf. I Coríntios 2: 10. “Deus nos revelou pelo Espírito; porque a tudo o
Espírito esquadrinha, mesmo as profundezas de Deus”.
[144]
Romanos 9: 11-12.
[145]
Romanos 9: 14.
[146]
Ibid.
[147]
Romanos 8: 20.
[148]
II Timóteo 2: 20.
[149]
II Timóteo 2: 21.
[150]
I Coríntios 15: 44.
[151]
I Coríntios 15: 39-42.
[152]
I Coríntios 15: 50.
[153]
“Nós não dizemos que o corpo que se corrompeu retorne à sua natureza
originária, como tampouco o grão de trigo que se corrompeu volta a ser aquele
grão de trigo (...) Dizemos que, assim como do grão de trigo surge a espiga,
também existe no corpo um determinado princípio incorruptível, do qual surge o
corpo em incorrupção” (I Coríntios 15: 37, 42). São os estoicos que dizem que o
corpo que se corrompeu inteiramente volta a recobrar sua natureza originária,
pois eles admitem a doutrina de que existem períodos idênticos. Baseados
naquilo que eles acreditam ser uma necessidade lógica, dizem que tudo irá se
recompor novamente segundo a mesma composição primeira da qual se originou a
dissolução. Mas nós não nos refugiamos num argumento tão pouco acessível, como
o de que tudo é possível para Deus, pois temos consciência de que não
compreendemos a palavra ‘tudo’ aplicada a coisas inexistentes ou inconcebíveis.
Ao contrário, dizemos que Deus não pode fazer algo mau, pois o deus que o
fizesse não seria Deus. “Se Deus faz algo mau, não é Deus”, disse Eurípedes.”
(Orígenes, Contra Celso, V, 23)
[154]
Isaías 50: 11.
[155]
I Coríntios 3: 12.
[156]
Romanos 2: 15-16.
[157]
Deuteronômio, 28.
[158]
Jeremias 25: 15-16. “Assim me disse Javé, o Deus de Israel: Pegue da minha mão
esta taça de vinho da minha ira e faça que bebam dela todas as nações para as
quais eu envio você. Elas beberão, ficarão embriagadas e perderão o juízo
diante da espada que eu mandarei para o meio delas”.
[159]
Jeremias 25: 28-29. “Se recusarem pegar a taça de sua mão para beber, você dirá
a eles: «Assim diz Javé dos exércitos: É claro que vocês beberão! 29 Pois se eu
começo a castigar precisamente a cidade sobre a qual é invocado o meu nome,
pretendem vocês ficar impunes? Não, vocês não ficarão impunes, pois eu
convocarei a espada contra todos os habitantes da terra - oráculo do Senhor dos
exércitos”.
[160]
Isaías 4: 4.
[161]
Isaías 47: 14-15.
[162]
Isaías 10: 17.
[163]
Malaquias 3: 3.
[164]
Mateus 25: 14-30.
[165]
Mateus 18: 10.
[167]
Mateus 26: 29.
[168]
Mateus 5: 6.
[169]
Lucas 19: 19.
[170]
Provérbios 9: 1-5.
[171]
Deuteronômio, 8: 3.
[172]
Lucas 19: 26.
[173]
Filipenses 1: 23.
[175]
I Tessalonicenses 4: 17.
[176]
João 17: 24.
[177]
Cf. Mateus 5: 8. “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário