1
O LIVRE ARBÍTRIO
1.
O problema da liberdade e da vontade
Já que na predicação da Igreja está incluída a doutrina do juízo de
Deus, que, se acreditarmos ser verdadeiro, incita aos que o ouvem a viver
virtuosamente e evitar o pecado custe o que custar, posto que se reconhece
evidentemente que as coisas dignas de louvor ou de condenação estão dentro de
nosso próprio poder, vamos considerar alguns pontos a respeito da liberdade da
vontade, uma das questões mais necessárias de todas. E, para que possamos
entender no que consiste a liberdade da vontade, é necessário estudar e
declarar com precisão o conceito e o objeto que temos diante de nós.
2.
A fantasia e o instinto dos animais
Das coisas que se movem, algumas contém em si a causa de seu
movimento, enquanto que outras só podem ser movidas desde fora. Agora, somente
as coisas portáteis são movidas desde fora, como pedaços de madeira, pedras, e
toda matéria que se mantém unida segundo sua própria constituição. Deixemos de
fora dessas considerações aquilo que se chama de ‘fluxo da mobilidade dos
corpos’, já que não é necessário para nosso objetivo presente.
Assim sendo, os animais e as plantas têm a causa de sua mobilidade
dentro de si mesmos, e em geral tudo é mantido unido pela natureza e uma alma,
a cuja classe, dizem alguns, pertencem também os metais. Ademais desses, o fogo
também se move por si só, e talvez também as fontes de água. Porém, das coisas
que têm em si a causa de sua mobilidade, algumas são movidas desde fora, outras
por si: as coisas sem vida, desde fora, e as coisas animadas, por si mesmas. E,
pelo fato de que as coisas animadas são movidas por si mesmas, brota delas uma
fantasia que as incita ao esforço. Em certos animais essa fantasia se forma para
provocar o esforço, e a natureza da fantasia provoca o esforço de uma maneira
ordenada, como na aranha, em quem a fantasia forma a teia, que ela segue na
tentativa de tecer; e a natureza dessa fantasia incita de modo ordenado o
inseto apenas quanto a isso. Ademais dessa natureza “fantasista”, acredita-se
que mais nada pertença ao inseto. Na abelha, forma-se a fantasia de produzir
cera.
3.
As incitações da natureza
O animal racional, entretanto, possui a razão adicionalmente à sua
natureza “fantasista”. ´por meio da qual ele julga as fantasias e desaprova
umas e aceita outras, para que o animal possa se conduzir segundo elas.
Portanto, já que na natureza da razão existem auxílios para contemplar a
virtude e o vício, selecionamos uma e evitamos o outro, merecendo elogios
quando nos entregamos à prática da virtude, e censuras quando fazemos o oposto.
Não obstante, não devemos ignorar que a maior parte da natureza
assinalada a todas as coisas vivas varia em quantidade entre os animais, em
maior e menor grau; por exemplo, para que o instinto dos cães de caça e dos
cavalos de guerra se aproxime, por assim dizer, em alguma medida, da faculdade
da razão. Agora, submeter-se a algumas dessas causas externas que movem dentro
de nós essa ou aquela fantasia, são coisas que não dependem de nós; mas
determinar que utilizaremos essa ocorrência, de tal ou qual modo diferente, é
prerrogativa da razão que reside em nós, quando se apresenta a ocasião,
despertando esforços que nos incitem ao que é virtuoso, ou a desviarmo-nos ao
seu oposto.
4.
O poder de domínio da razão
Mas, se alguém sustentar que essa causa externa é de tal natureza que
seja impossível resistira ela quando nos assalta, deixemos que dirija sua
atenção aos seus próprios sentimentos e movimentos, e que veja se não existe
aprovação, assentimento e inclinação do princípio de controle em relação a
algum objeto devido a tal ou qual argumento enganoso. Por exemplo, para
ilustrarmos com um caso, se uma mulher aparece diante de um homem que se
determinou a ser casto e abster-se de cópula carnal, e o incita a atuar
contrariamente ao seu propósito, isso não constitui uma causa absoluta ou total
para anular sua determinação. Porque, se estiver totalmente contente com a
atração do prazer, e não desejar oferecer-lhe resistência ou manter seu
propósito, poderá ele cometer o ato licencioso; enquanto que outro homem, por
seu turno, ao lhe acontecer a mesma coisa, mas tendo recebido mais instrução e
autodisciplina, topando com encantos e tentações, rechaça a incitação e
extingue o desejo, por ter a razão reforçada em seu ponto mais alto,
cuidadosamente treinada e confirmada em suas ideias sobre o curso virtuoso a
seguir.
5.
Causas externas e liberdade de decisão
Sendo esse o caso, dizer que somos movidos desde fora e retirar de nós
a responsabilidade, declarando que somos como um pedaço de madeira ou uma
pedra, que são arrastados pelas causas que neles atuam desde fora, não é nem
verdadeiro nem conforme à razão, mas é a declaração de alguém que deseja
destruir o conceito de livre arbítrio. E se lhe perguntarmos o que é a livre
vontade, ele responderia que consiste nisso: que, intencionando fazer alguma
coisa, que nenhuma causa externa intervenha para incitar o oposto.
Culpar a mera constituição do corpo é absurdo; porque a razão disciplinadora,
quando toma os que são mais imoderados e selvagens (se seguem sua exortação),
efetua neles uma transformação, à qual se seguem a alteração e a mudança, e os
homens mais licenciosos com frequência se tornam melhores do que aqueles que
antes não pareciam ser tais por natureza; e os mais selvagens passam a tal
estado de cordura, que os que nunca foram tão selvagens como eles parecem agora
mais selvagens em comparação, tamanho grau de gentileza se produz neles.
E vemos a outros homens, os mais firmes e respeitáveis, expulsos de
seu estado de constância e respeitabilidade por sua relação com maus costumes,
até o ponto de cair em hábitos licenciosos, muitas vezes começando sua maldade
na meia idade, afundando na desordem depois de passada a juventude, sendo essa,
até onde se refere sua natureza, instável.
A razão, pois, demonstra que os acontecimentos externos não dependem
de nós, mas que é nossa responsabilidade utilizá-los de um modo ou de outro,
pois recebemos a razão como se fosse um juiz e um investigador sobre o modo
como devemos enfrentar os acontecimentos que nos chegam desde fora.
6.
Prova bíblica da livre vontade
Agora, já que é nossa tarefa viver virtuosamente, coisa que Deus pede
de nós, não dependemos Dele, nem de ninguém, nem – como pensam alguns – do
destino, mas de nosso próprio trabalho, como mostra o profeta Miqueias, ao
dizer: “Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de ti:
praticar o direito, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o teu Deus[1]”.
E Moisés: “Vê, hoje coloquei diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal;
porque hoje te ordeno que ames ao Senhor teu Deus, que andes em Seus caminhos,
que guardes Seus mandamentos, Seus estatutos e Seus direitos, para que vivas e
sejas multiplicado[2]”.
Também Isaías: “Se quiseres e escutares, comereis o bem na terra; se não
quiseres e fores rebeldes, sereis consumidos a espada; porque a boca do Senhor
o disse[3]”.
E nos Salmos: “Oh, se me houvesse ouvido meu povo, se em meus caminhos tivesse
caminhado Israel! Em um nada eu teria derrubado seus inimigos e colocado minha
mão sobre seus adversários![4]”,
mostrando que estava no poder de seu povo ouvir e caminhar nos caminhos de
Deus.
Também o Salvador, quando ordenou: “[Ouvistes o que foi dito: ‘Olho
por olho e dente por dente!] Mas eu vos digo: não resistais ao mal[5]”.
E: “Quem quer que odeie a seu irmão, será culpado no juízo[6]”.
E: “Quem olha uma mulher com cobiça, já adulterou com ela em seu coração[7]”.
E assim, por qualquer outro mandamento que dê, Ele declara que depende de nós
observar aquilo que nos impôs, e que seremos culpados de condenação se
transgredirmos.
Ele disse mais: “Quem ouve as minhas palavras e as cumpre, a este eu
compararei a um homem prudente, que edificou sua casa sobre a pedra; (...) mas
quem ouve essas palavras e não as coloca em prática, eu o compararei a um homem
insensato, que edificou sua casa sobre a areia[8]”.
E quando disse aos que estão à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, etc.,
porque eu tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber[9]”.
Isso fica manifesto quando Ele faz essa promessa aos que eram dignos de elogio.
Ao contrário, aos outros, por serem culpados de censura em comparação com
aqueles, disse-lhes: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno[10]”.
Observemos que também Paulo nos trata como sendo dotados de livre
vontade, e como responsáveis pela causa de nossa ruína e de nossa salvação. Ele
diz: “Ou será que desprezas a riqueza da bondade de Deus, da Sua paciência e
generosidade, desconhecendo que a bondade dele convida à tua conversão? Por tua
teimosia e a dureza de teu coração, amontoas ira contra ti mesmo para o dia da
ira, quando o justo julgamento de Deus vai se revelar, retribuindo a cada um
conforme as suas próprias ações: a vida eterna para aqueles que perseveram na
prática do bem, buscando a glória, a honra e a imortalidade; pelo contrário,
ira e indignação para aqueles que se revoltam e rejeitam a verdade, para
obedecerem à injustiça. Haverá tribulação e angústia para todo aquele que
pratica o mal, primeiro para o judeu, depois para o grego. Mas haverá glória,
honra e paz para todo aquele que pratica o bem, primeiro para o judeu, depois
para o grego”. Existem, na realidade, inúmeros textos das Escrituras que
estabelecem com sobeja clareza a existência da livre vontade.
7.
Textos bíblicos contrários à livre vontade
Mas já que algumas declarações do Antigo e do Novo Testamento levam à
conclusão oposta, a saber, que não depende de nós guardar os mandamentos e ser
salvos, ou transgredi-los e nos perdermos, vejamo-las uma a uma, e consideremos
a sua explicação, de modo a que, mediante aquilo que aduzimos, qualquer um
possa eleger as passagens que parecem negar a livre vontade, e considere o que
foi dito deles à guisa de explicação.
As declarações sobre o Faraó preocuparam muitos, pois Deus declara
várias vezes: “Endurecerei o coração do Faraó[11]”.
Porque, se ele é endurecido por Deus e comete pecados em consequência do
endurecimento, não é ele causa de pecado; e, se assim for, o Faraó não possui
livre arbítrio.
Alguém poderá dizer, de modo semelhante, que os que se perdem não têm
livre arbítrio, e não se perdem porque querem. A declaração de Ezequiel: “Eu
lhes darei um coração, e um espírito novo colocarei em suas entranhas; e
retirarei o coração de pedra de sua carne, e lhes darei um coração de carne;
para que andem segundo meus mandamentos, para que guardem meus juízos e os
cumpram[12]”,
poderia levar a pensar que é Deus quem dá o poder de seguir Seus mandamentos e
guardar Seus preceitos, ao retirar o obstáculo, ou seja, o coração de pedra, e
implantar um coração melhor, ou seja, de carne.
Vejamos também a passagem do Evangelho na qual o Salvador responde aos
que lhe perguntaram por que se dirigia às multidões através de parábolas: “Para
que olhem, mas não vejam, escutem, mas não compreendam, para que não se
convertam e não sejam perdoados[13]”.
Temos também o texto de Paulo: “Assim, não é do que quer, nem do que corre, mas
de Deus que tem a misericórdia[14]”.
E outras declarações que dizem: “De fato, é Deus que desperta em vós a vontade
e a ação, conforme a Sua benevolência[15]”;
“Portanto, Deus usa de misericórdia com quem ele quer, e endurece a quem ele
quer. Me direis então: Por que Deus ainda se queixa? Quem pode resistir à Sua vontade
dele?[16]”;
“Tal influência não vem daquele que vos chama[17]”;
“Mas, quem és tu, homem, para discutir com Deus? Por acaso, o vaso de barro diz
ao oleiro: Por que me fizeste assim? Por acaso o oleiro não é dono da argila,
para fazer com a mesma massa dois vasos, uma para uso nobre e outro para uso
comum?[18]”.
Essas passagens são suficientes para preocupara massa, como se o homem não
possuísse livre arbítrio, e como se você Deus quem salva ou destrói a quem Ele
quer.
8.
Resolução do problema
Comecemos, pois, com as palavras que se referiram ao Faraó, que foi
endurecido por Deus para que não deixasse sair o povo, e junto com elas
examinaremos também a declaração do Apóstolo: “De maneira que Ele tem
misericórdia de quem quer, e endurece com quem quer[19]”.
E, tão certo quanto é que os que sustentam tais opiniões interpretam mal essas
passagens, também é que esses destroem o livre arbítrio ao introduzir naturezas
arruinadas incapazes de salvação, e outras que são salvas sem possibilidade de
perder-se. O Faraó, dizem, por ser de uma natureza perdida, foi logicamente
endurecido por Deus, que tem compaixão pelo espiritual, mas que endurece com o
terreno. Vejamos o que querem dar a entender.
Perguntaremos a eles se pensam que o Faraó foi uma natureza terrena;
e, quando responderem, lhes diremos que quem é de natureza terrena é totalmente
desobediente a Deus. Mas, se ele era desobediente, que necessidade haveria de
endurecer seu coração, e não uma vez só, mas várias? A não ser, talvez, que lhe
fosse possível obedecer (e em tal caso ele teria certamente obedecido, por não
ser terreno depois de ter sido fortemente pressionado pelos sinais e as
maravilhas), e que Deus necessitasse que ele fosse desobediente num grau
superior, para que pudesse manifestar seus atos poderosos para a salvação do
povo, tornando por isso endurecido seu coração. Essa será nossa resposta, em
primeiro lugar, de modo a derrubar a suposição de que o Faraó seria de natureza
perdida. A mesma resposta pode ser dada no que se refere à declaração do
apóstolo. Porque, a quem endurece Deus? Aos que perecem, como se pudessem
obedecer sem ser endurecidos, ou, manifestamente, aos que seriam salvos por não
possuírem uma natureza perdida? E de quem tem Deus misericórdia? Dos que devem
se salvar? E como pode haver necessidade de uma segunda misericórdia para os
que foram preparados para a salvação, que já são bem-aventurados de todos os
modos devido à sua natureza? A não ser, talvez, que sejam capazes de incorrer
em perdição, caso não recebam a misericórdia; obterão a misericórdia para que
possam não incorrer na destruição de que são capazes, mas para que possam estar
na condição dos que serão salvos. E essa é nossa resposta a tais pessoas.
9.
Deus não pode ser acusado de injustiça
Quanto aos que pensam entender o termo “endurecer”, devemos dirigir a
seguinte pergunta: o que querem dizer ao afirmar que Deus, por sua obra,
endurece o coração, e com que finalidade Ele faz isso? Mas permitamos que sigam
a concepção de um Deus que é em realidade justo e bom; mas, se não nos
concederem isso, deixemos que se lhes conceda de momento que Deus é justo; e
que nos mostrem eles como o Deus bom e justo, ou apenas o Deus justo, parece
justo ao endurecer o coração que perece devido ao seu endurecimento; e como
esse Deus justo se converte em causa de destruição e desobediência, quando os
homens são castigados por Ele devido à sua dureza e desobediência[20].
E por que encontram uma falta no Faraó, quando diz: “Tu te exaltas
contra meu povo, para não deixá-lo ir? (...) Eis que vou matar teu filho, teu
primogênito[21]”.
“Ferirei a todo primogênito na terra do Egito, tanto dos homens como dos
animais[22]”,
e em tudo o que se registra como tendo sido dito por Deus ao Faraó mediante a
intervenção de Moisés. Porque quem crê que as Escrituras são verdadeiras e que
Deus é justo, deve necessariamente tentar, se for honesto, fazer ver que Deus,
ao utilizar tais expressões, deve ser entendido claramente como justo[23].
Mas se alguém se levantar, declarando, com a cabeça descoberta, que o Criador
do mundo estava inclinado à maldade, nós já não necessitamos mais palavras para
contestar-lhe.
10.
A chuva de Deus
Mas, já que eles dizem que consideram a Deus como justo, e nós como
justo e bom ao mesmo tempo, vejamos como o Deus bom e justo poderia endurecer o
coração do Faraó.
Considere, então, se mediante uma ilustração utilizada pelo Apóstolo
na Epístola aos Hebreus, somos capazes de demonstrar que, por meio de uma
operação (energeia), Deus tem
compaixão de um homem ao mesmo tempo em que endurece a outro, ainda que não
tenha tido a intenção de endurecê-lo, mas, tendo um bom propósito, o
endurecimento acontece em consequência de um princípio de maldade inerente a
tais pessoas, de maneira que podemos dizer que “endurece a quem endurecer”.
“De fato, quando uma terra embebida de chuva abundante produz plantas
úteis para quem a cultiva, essa terra tem a bênção de Deus. Mas, se ela produz
espinhos e ervas daninhas, não tem nenhum valor, está a um passo da maldição e
acabará sendo queimada[24]”.
A respeito da chuva existe uma operação (energeia);
e quando ocorre a operação da chuva, a terra que é cultivada produz frutos,
enquanto que a que é descuidada e abandonada produz espinhos. Ora, poderia
parecer profano, em relação Àquele que fez chover, que alguém dissesse: “Eu
produzo os frutos, e os espinhos são da terra”; o que, ainda que profano, seria
verdadeiro.
Porque se a chuva não caísse não haveria frutos nem espinhos, mas, uma
vez que caiu, no tempo propício e com moderação, produz a ambos. A terra, por
sua vez, que bebe da chuva que cai sobre ela e mesmo assim produz cardos e
espinhos, é rechaçada e quase maldita. A bênção da chuva, pois, desceu sobre a
terra inferior, que, por estar descuidada e inculta, produziu cactos e
espinhos. Da mesma forma, as obras maravilhosas de Deus são realizadas como se
fossem chuva, enquanto que os diferentes propósitos são, como dissemos, a terra
cultivada e a terra abandonada – mas sem esquecer que a natureza da terra é a
mesma[25].
11.
As advertências de Deus ao Faraó
E se o sol, se pudesse falar, dissesse “liquefaço e seco”, sendo
coisas opostas a liquefação e a secura, não estaria falando falsamente quanto
ao ponto em questão; a cera se derrete, e a lama seca por causa do mesmo calor;
então a mesma operação, que foi realizada por intermédio da instrumentalização
de Moisés, provou a dureza do Faraó, de um lado, resultado de sua maldade, e,
de outro, sua permissão ao deixar marchar a multidão mista de egípcios que
saíram com os hebreus.
A breve declaração de que o coração do Faraó se abrandou quando disse:
“Eu vos deixarei ir para que sacrifiqueis ao Senhor vosso Deus no deserto,
contanto que não ides muito longe (...) a três dias de marcha[26]”,
deixando suas esposas e criações, cedendo pouco a pouco diante dos sinais,
prova que as maravilhas causaram alguma impressão nele, ainda que não tenham conseguido
obter tudo que poderiam ter obtido.
Ainda assim, nada teria
acontecido, se aquilo que é suposto por muitos – o endurecimento do coração do
Faraó – tivesse sido produzido pelo próprio Deus. E não é absurdo amenizar tais
expressões segundo o uso comum; porque os bons senhores muitas vezes dizem aos
seus servos, quando esses se perdem devido à sua bondade e paciência: “Eu te
prejudiquei, sou eu o culpado de tão enormes ofensas”. Porque devemos atender
ao caráter e à força da frase, e não discutir por sofismas, distorcendo o
significado da expressão[27].
Paulo, por fim, que examinou esses pontos claramente, diz ao pecador:
“Ou será que desprezas a riqueza da bondade de Deus, da Sua paciência e
generosidade, desconhecendo que a bondade dele convida à conversão? Por tua teimosia e tua dureza de coração, amontoas
a ira contra ti mesmo para o dia da ira, quando o justo julgamento de Deus vai
se revelar[28]”.
Agora deixemos que isso que o Apóstolo disse ao pecador se aplique ao Faraó, e
vejamos que as advertências que lhe foram feitas o foram com propriedade, já
que, segundo sua dureza e seu coração impenitente, acumulava ira para o dia da
ira, uma vez que sua dureza nunca havia sido demonstrada, nem posta de
manifesto, caso não se tivessem realizado os sinais e milagres, em tão grande
número e com tal magnificência.
12.
O valor educativo do castigo
Mas se essas narrativas são lentas para assegurar o assentimento, e se
foram consideradas forçadas, consideremos também as declarações proféticas, e
vejamos o que declaram os profetas quanto aos que, ainda que no princípio
tenham experimentado a grande bondade de Deus, não a viveram virtuosamente, mas
caíram no pecado. “Por que, ó Senhor, nos fizeste errar teus caminhos, e
endureceste nosso coração ao teu temor? Volta-te, por amor de teus servos,
pelas tribos da tua herança. Por pouco tempo nossos inimigos se apossaram de
teu povo santo e pisotearam teu santuário[29]”.
E em Jeremias: “Me seduziste, ó Senhor, e me vejo frustrado; foste mais forte
do que eu, e me venceste; sou escarnecido a cada dia; todos se burlam de mim[30]”.
Por que a expressão” Por que, ó Senhor, nos fizeste errar teus caminhos, e
endureceste nosso coração ao teu temor?”, pronunciada por aqueles que pedem
misericórdia, tomada em sentido figurado e moral, quer dizer: por que nos
deixaste tanto tempo e não nos visitaste por causa de nossos pecados, mas nos
abandonaste até que nossas transgressões chegassem ao limite?
A menos que um cavalo sinta continuamente a espora de seu ginete e
tenha sua boca freada pelo bridão, ele se endurece. Uma criança que não seja
disciplinada pelo castigo crescerá até se tornar um jovem insolente, pronto
para cair de cabeça no vício. Por isso Deus abandona e esquece daqueles que Ele
considera indignos de castigo. “Porque o Senhor castiga àqueles a quem ama, e
fustiga aos que recebe como filhos[31]”.
Daí devemos supor que aqueles que foram admitidos na família e no afeto filial
são os que mereceram ser castigados e fustigados pelo Senhor, de maneira a que,
suportando as provas, possam dizer: “Quem nos apartará do amor de Cristo?
Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada?[32]”.
Porque por todas essas coisas se manifesta a resolução de cada qual e a firmeza
de sua perseverança, não tanto com relação a Deus, que conhece todas as coisas
antes que aconteçam, mas com respeito às virtudes celestes e racionais, que
foram obtidas em parte pelo trabalho de procurar a salvação humana, como uma
espécie de assistência e ministros de Deus.
Deus deixa a maior parte da humanidade sem castigo, para que os
hábitos de cada um possam ser examinados em até que ponto dependem de cada um,
e que o virtuoso possa se manifestar em consequência da prova que lhe foi
aplicada; enquanto que os outros, que não escapam ao conhecimento de Deus –
porque Ele conhece todas as coisas antes que existam – mas que podem obter
depois os meios de cura da criação racional e de si mesmos, visto não terem
conhecido o benefício de não ter sido condenados.
Por outro lado, quanto aos que ainda não se ofereceram a Deus com
constância e afeto, e que não estão preparados para entrar a seu serviço e para
preparar suas almas para a prova, desses se diz que foram abandonados por Deus,
vale dizer, que não foram instruídos; já que não se prepararam para receber
instrução, seu treinamento ou cuidado é indubitavelmente adiado para um tempo
posterior. Certamente esses não sabem o que obterão de Deus, a menos que
primeiro sintam o desejo de ser provados, o que finalmente acontecerá. Se um
homem começa por conhecer a si mesmo e sentir seus defeitos, compreenderá de
quem poderá ou deverá obter remédio. Porque quem não conhece de antemão sua
debilidade ou enfermidade, não pode buscar o médico; ou, no mínimo, depois de
recuperar sua saúde, esse homem não será agradecido ao médico que primeiro lhe
fez saber da gravidade de sua doença. A menos que a pessoa seja consciente dos
defeitos de sua vida e da má natureza de seus pecados, tornados públicos pela
confissão de seus lábios[33],
não poderá ser limpo, nem absolvido.
É vantajoso para cada pessoa perceber sua própria natureza específica
e a graça de Deus. Porque quem não percebe sua própria fraqueza e o favor
divino, ainda que receba um benefício, não tendo provado a si mesmo, imagina
que o benefício conferido a ele pela graça de Deus é se próprio mérito. E essa
imaginação, produzindo a vaidade, se torna causa de queda; queda essa que
entendemos como tendo sido o caso do diabo, que atribuiu a si mesmo a
preeminência que possuía quando estava livre do pecado. “Porque quem se exalta
será humilhado, e que se humilha será exaltado[34]”.
E observe que por essa razão as coisas divinas foram ocultas do sábio
e do prudente, para que, como disse o Apóstolo, “nenhuma carne se glorifique na
presença de Deus[35]”,
e foram reveladas às crianças, àqueles que depois da infância voltaram à
humildade e à simplicidade das crianças, para a partir daí avançar para a
perfeição, recordando que não é tanto por seu esforço, mas pela indizível
bondade de Deus, que alcançaram um grau maior possível de felicidade.
13.
O tratamento curativo da alma
Não é sem razão, portanto, que quem é abandonado, é abandonado ao
juízo divino, e que Deus é paciente com certos pecadores; mas para que, já que
é para seu benefício no que diz respeito à imortalidade da alma e ao mundo que
não acabará, não seja rapidamente trazido ao estado de salvação, mas que seja
conduzido mais devagar, depois de haver experimentado muitos males. Porque,
assim como os médicos, que são capazes de curar rapidamente um homem, quando
suspeitam de algum veneno oculto no corpo, fazem o contrário dos casos normais
de cura, sabendo que é mais saudável retardar o tratamento nos casos de
inflamação, deixando fluir os humores malignos para que o paciente possa
recuperar sua saúde mais rapidamente, ao invés de realizar uma cura rápida,
pois essa poderia causar uma recaída na enfermidade e até a destruição da vida,
pois a cura precipitada dura só um momento[36].
Da mesma maneira, Deus, que conhece as coisas secretas do coração, e
que prevê todos os acontecimentos futuros, em sua longanimidade, permite que
ocorram certos acontecimentos, para que, vindo desde fora sobre o homem,
coloquem diante de seus olhos suas paixões e vícios ocultos, para, por meio
disso, limpar e curar o mal escondido, que por descuido ou negligência recebeu
as sementes do pecado, para que, quando chegarem à superfície, possam ser
vomitadas. E ainda que tenha estado profundamente envolvido no mal, possa o
homem ser renovado, depois de obter a cura de sua maldade. Porque Deus não
governa as almas em relação, digamos a uns cinquenta anos da vida presente, mas
com relação a uma idade ilimitada, porque ele fez o princípio pensante – a
substância racional – imortal por sua natureza, e semelhante a Ele; e por
tanto, a alma, que é imortal, não está excluída, por causa da brevidade da vida
presente, dos remédios divinos e das curas[37].
14.
O grande Semeador da humanidade
Vamos agora utilizar a seguinte imagem do Evangelho: existe um
determinado solo rochoso, com pouca terra, no qual, quando cai uma semente,
brota rapidamente, mas, tão depressa quanto aparece se esgota, já que não
possui raízes e o sol a seca e queima[38].
Pois bem, esse solo rochoso é a alma humana, endurecida devido à sua
negligência e convertida em pedra por sua maldade, porque ninguém recebe de
Deus um coração de pedra, mas o torna assim por causa de sua própria maldade.
Se alguém considera culpado o semeador por não haver semeado mais
depressa no solo rochoso, tendo visto que outro solo rochoso recebera a semente
rapidamente, o semeador poderá responder: “Vou semear esse terreno lentamente,
colocando sementes que sejam capazes de se enraizar; esse método mais lento é
melhor para o terreno e mais seguro do que lançar a semente rapidamente, que só
atinge a superfície”. Assim fica respondida a questão pelo semeador, com boa
razão e trabalhada com habilidade. Da mesma forma, o grande Semeador de toda a
natureza posterga os benefícios que poderiam ser prematuros, para que não sejam
superficiais. Pois é provável que exista um propósito nisso. Por que algumas
sementes caem sobre a terra superficial, sendo a alma algo parecido com uma
rocha?
Devemos dizer em resposta a isso, que é melhor para essa alma, que
desejava precipitadamente as melhores coisas (e não pelo caminho que conduz a
elas), que não obtenha seu desejo, para que, condenando a si própria, possa,
depois de um longo tempo, receber a semeadura que seja conforme à sua natureza.
Porque as almas são, como dizem alguns, inumeráveis, assim como seus hábitos,
propósitos, competências e esforços, dos quais só existe um administrador
admirável, que conhece as estações e as ajudas idôneas, as avenidas e os
caminhos, vale dizer, Deus Pai de todas as coisas, que conhece inclusive como
iria se comportar o Faraó diante de eventos tão grandes, e que seria tragado
pelo mar, acontecimento derradeiro que não encerrou o trabalho do
superintendente do Faraó. Porque ele não foi aniquilado quando se afogou, já
que “nas mãos de Deus estamos nós e nossas palavras, nosso conhecimento e
nossas obras[39]”.
Essa é nossa moderada defesa do dito “Deus endureceu o coração do
Faraó”. “De maneira que tem misericórdia de quem quer, e endurece a quem quer[40]”.
15.
Deus retira o coração duro, o homem o pede
Vejamos também a declaração de Ezequiel, que diz: “Retirarei deles o
coração de pedra de sua carne, e lhes darei um coração de carne; para que andem
segundo meus mandamentos, e guardem meus juízos e os cumpram, e sejam para mim
um povo, e Eu seja para ele seu Deus[41]”.
Porque se Deus, quando quer, retira os corações empedrados e implanta corações
de carne para que obedeçam aos seus preceitos e observem seus mandamentos, não
está em nosso poder retirar a maldade. Porque retirar os corações de pedra não
é outra coisa do que retirar a maldade, por cuja causa a pessoa se torna
endurecida. O ato de retirar o coração de pedra e de implantar um coração de
carne conforme Ele queira, para que se guarde seus preceitos e se ande segundo
seus mandamentos, que outra coisa é, senão tornar-se dócil e não resistente à
verdade, tornando-se capaz de praticar suas virtudes?
E, se Deus promete fazer isso, e se antes retira os corações de pedra,
é evidente que não depende de nós livramo-nos da maldade. E se não somos nós
que fazemos algo para implantar um coração de carne, mas que essa é uma obra
divina, não será ato nosso viver conforme a virtude, mas o resultado total da
graça divina. Esse seria o argumento de quem, por trás das meras palavras da
Escritura, quisesse eliminar o livre arbítrio.
Mas contestemos, dizendo que nós deveríamos entender essa passagem
assim: por exemplo, um homem que seja
ignorante e inculto, ao perceber seus próprios defeitos devido à exortação de
seu mestre ou de algum outro, espontaneamente se entregaria a quem ele
considera capaz de introduzi-lo na educação e na virtude; e assim, ao
confiar-se ao instrutor, esse prometerá eliminar sua ignorância e implantar
nele a instrução, não como se ele não precisasse contribuir em nada para sua
educação e a eliminação de sua ignorância, para cuja cura se entregou, mas
porque o instrutor prometeu melhorar a quem deseja a melhora; assim, da mesma
maneira, a Palavra de Deus promete retirar a maldade, que é chamada de “coração
de pedra”, daqueles que acodem a Deus. Não seria assim se eles estivessem
indispostos, mas apenas porque se submetem ao Médico dos enfermos, como nos
Evangelhos os enfermos procuravam o Salvador, perguntando, pedindo e obtendo a
cura.
E deixem-me dizer, a recuperação da vista do homem cego é, na medida
em que este expressou seu pedido, o ato dos que creem que são capazes de se
curar; mas quanto à restauração da vista, é obra de nosso Senhor. Assim, pois,
a Palavra de Deus promete implantar o conhecimento nos que o buscam, retirando
o coração duro e difícil, que é a maldade, para que a pessoa possa andar
seguindo os mandamentos divinos e guardando seus preceitos.
16.
O propósito das parábolas para os “de fora”
Encontramos no Evangelho, depois da passagem sobre o semeador, a
menção de que o Salvador falava em parábolas para os “de fora” pela seguinte
razão: “Para que olhem, mas não vejam, escutem, mas não compreendam, para que
não se convertam e não sejam perdoados[42]”.
Agora nosso oponente dirá: “Se algumas pessoas são sem dúvida convertidas pelas
palavras que escutam com grande clareza, para que sejam dignas da remissão dos
pecados, mas se não depende delas ouvir essas palavras com clareza, mas sim
daquele que as ensina, e se este, por essa razão, não as anuncia mais
claramente, para que vejam mas não entendam, não está neles o poder de ser
salvos; e, se assim for, então não possuímos o livre arbítrio quanti à nossa
salvação ou condenação”.
Eficaz, de verdade, seria a resposta a tais argumentos, se não fosse
por essa adição: “Para que não se convertam e não sejam perdoados”. A saber: o
Salvador não desejou que aqueles que não iriam se tornar bons e virtuosos
entendessem as partes mais místicas de seu ensinamento, e por esse motivo falou
em parábolas; mas agora, devido às palavras: “para que não se convertam e não
sejam perdoados”, a defesa é mais difícil.
Em primeiro lugar, pois, devemos notar a passagem em sua aceitação
pelos hereges, que buscam as partes do Antigo Testamento onde se expõe, como
atrevidamente afirmam eles próprios, a crueldade do Criador do mundo e seu
objetivo de vingança e castigo do ímpio (ou por qualquer outro nome que desejem
designas tal sentimento), falando assim para dizer apenas que não existe
bondade no Criador. Porque não julgam os Evangelhos com a mesma mente e
sentimentos, e não observam se declarações desse tipo se encontram no
Evangelho, as quais condenam e censuram quando aparecem no Antigo Testamento.
Porque é evidente, segundo o Evangelho, que o Salvador, como eles
próprios admitem, não fala claramente, e por uma razão: para que os homens não
possam se converter, e, uma vez convertidos, recebam a remissão dos pecados.
Agora, se essas palavras forem entendidas apenas segundo a letra, nada menos,
certamente, se encontrará nelas do que o que contêm aquelas passagens que eles
refutam no Antigo Testamento.
E, se buscam defender o Evangelho de semelhantes expressões, devemos
perguntar-lhes se não estão agindo dessa maneira culpável, ao tratar de modo
diferente as mesmas questões, e, enquanto não se escandalizam com o Novo
Testamento, mas buscam defendê-lo, apresentam uma acusação ao Antigo Testamento
em pontos similares, nos quais poderiam oferecer uma linha de defesa semelhante
ao que fazem com o Novo.
Portanto nós os obrigaremos, devido às semelhanças, que considerem
tudo como Escrituras do mesmo Deus. Vamos, pois, com o melhor de nossa
capacidade, oferecer uma resposta à pergunta que eles fizeram.
17.
Os tempos de Deus para a salvação
Já afirmamos, falando do caso do Faraó, que às vezes uma cura rápida
não é vantajosa para os que precisam ser curados, sobretudo se a enfermidade
está nas partes interiores do corpo. Menosprezar o mal porque parece de cura
fácil, e não permanecer de guarda contra um segundo assalto, é ser presa do
mesmo outra vez. Portanto, no caso de tais pessoas, Deus, que conhece todas as
coisas antes de que existam, em conformidade com sua bondade, retarda sua
assistência urgente e, por assim dizer, os ajuda não os ajudando, com vistas ao
seu bem.
É provável, então, que aqueles “de fora” de quem falamos, tendo sido
previamente conhecidos pelo Salvador, segundo nossa suposição, e que poderiam ser
levados a uma rápida conversão ao receber com mais clareza as palavras que lhes
eram ditas, tenham sido tratados pelo Senhor de modo a que não escutassem com
entendimento as coisas profundas de seu ensinamento, para evitar que, depois de
uma conversão rápida e de ter sido sanados, obtendo a remissão de seus pecados,
menosprezassem as feridas da maldade, como se se tratasse de algo leve e de
fácil remediação, e assim recaíssem neles, nos pecados, com facilidade. Talvez,
também, tenham sofrido o castigo por suas transgressões anteriores contra a
virtude, cometidos quando se esqueceram dela, e não houvessem ainda completado
seu tempo, de forma a que, abandonados pela direção divina, e cheios até ao
máximo com os próprios males que semearam, pudessem ser chamados depois a um
arrependimento mais estável, evitando ser rapidamente enredados outra vez
naqueles males nos quais haviam sido implicados quando trataram com insolência
as exigências da virtude e se dedicaram a coisas piores.
Aqueles, pois, de quem se disse serem “de fora” – evidentemente por
oposição aos “de dentro” – não estando muito distantes dos “de dentro” – que
ouviam claramente – ouviram de modo encoberto, porque se lhes falava em
parábolas; mas, não obstante, ouviam.
Outros, mais uma vez, “de fora”, chamados tírios, embora se soubesse
há muito tempo que haviam se arrependido vestindo-se de sacos e cobrindo-se de
cinzas, caso o Salvador tivesse chegado até suas fronteiras, sequer teriam
escutado as palavras ouvidas pelos “de fora”[43].
Por essa razão, creio que a maldade foi mais grave e pior em uns do que em
outros, pois alguns “de fora” ouviram a palavra, ainda que em parábolas; e
talvez sua cura tenha se retardado para que em outro tempo, depois de ser mais
tolerável para eles do que para os que não receberam a palavra (dentre os quais
também os tírios foram mencionados), pudessem, ouvindo a palavra num tempo mais
apropriado, obter um arrependimento mais duradouro.
Mas observe-se se, além de nosso desejo de investigar a verdade, nos
esforçamos por manter uma atitude de piedade em tudo o que se refere a Deus e a
Cristo, visto que tratamos de provar por todos os meios que, em assuntos tão
grandes e peculiares a respeito da múltipla providência de Deus, Ele
supervisiona a alma imortal. E se alguém perguntasse sobre aquelas objeções que
nos foram feitas: por que aqueles que viram as maravilhas e ouviram as palavras
divinas não se beneficiaram, enquanto que os habitantes de Tiro se
arrependeram, e por que o Salvador fez e disse tais coisas àquelas pessoas,
para seu próprio prejuízo, considerando sua falta ainda mais grave? A isso
devemos dizer, àqueles que justificam as posições dos que encontram falhas na
Sua providência (alegando que [os “de fora”] não creram por não ter-lhes sido
permitido ver o que outros viram, nem ouvir o que outros ouviram), que, para
demonstrar que sua defesa não se fundamenta na razão, Deus concede essas
vantagens a eles mesmos que culpam sua administração: para que, depois de obter
essas vantagens, tornem-se réus da maior impiedade por não terem sequer renunciado
ao benefício, e que possam parar com tal audácia e, sendo livres em relação a
esse ponto, possam aprender que às vezes Deus, ao conferir benefícios a certas
pessoas, retarda e adia conceder a visão e o entendimento daquelas coisas vistas
e ouvidas, que, por serem vistas e ouvidas, teriam tornado o pecado dos
incrédulos, depois de maravilhas tão grandes e peculiares, muito mais grave e
sério.
18.
“Não depende do que quer, nem do que corre”
Vejamos agora a seguinte passagem: “Não é do que quer, nem do que
corre, mas de Deus, que tem misericórdia[44]”,
já que aqueles que encontram erros dizem: “se não depende do que quer, nem do
que corre, mas de Deus, que tem misericórdia”, a salvação não depende de nós,
mas do arranjo feito por Aquele que nos fez tal como somos, ou, no mínimo,
depende de uma decisão sua mostrar-se misericordioso com quem melhor lhe
pareça. Agora, temos que fazer algumas perguntas a essas pessoas: é bom ou
vicioso desejar o que é bom? Ou, o desejo de correr até a meta para alcançar o
que é bom, é digno de elogio ou de censura? Se responderem que é digno de
censura, oferecerão uma resposta absurda, já que todos os santos desejam correr
e, manifestamente, ao fazê-lo não fazem nada que seja indigno. Mas se disserem
que é virtuoso desejar o bem e correr atrás dele, lhes perguntaremos como uma
natureza perdida pode desejar coisas melhores, porque seria como uma árvore má
que produzisse bons frutos, já que é um ato virtuoso desejar coisas melhores.
Talvez eles nos ofereçam uma terceira resposta, que o desejo de correr
atrás do que é bom é uma coisa indiferente, nem boa, nem má. A isso devemos
dizer que se o desejo de correr atrás do que é bom for uma coisa indiferente,
então o oposto também será indiferente, a saber, desejar o mal e correr atrás
dele. Mas desejar o mal e correr atrás dele não é uma coisa indiferente.
Portanto, desejar o bem e persegui-lo tampouco será indiferente. Tal é, pois, a
defesa que podemos oferecer quanto à afirmação: “Não é do que quer, nem do que
corre, mas de Deus, que tem misericórdia”.
19.
“Se o Senhor não edificar a casa, em vão
trabalham os que a edificam”
Salomão disse no Livro dos Salmos: “Se o Senhor não edificar a casa,
em vão trabalham os que a edificam[45]”.
A intenção dessas palavras não é de nos afastar do esforço para edificar, ou de
abandonar toda vigilância e cuidado com a cidade que é nossa alma. Estaremos
corretos se dissermos que um edifício é obra de Deus, mais do que do
construtor, e que a salvaguarda da cidade ante um ataque inimigo é mais obra de
Deus do que dos guardas.
Mas quando falamos assim, estamos supondo que o homem tem sua parte
naquilo que se leva a cabo, ainda que o atribuamos agradecidos a Deus, que é
quem nos garante o êxito. De maneira semelhante, o homem não é capaz de
alcançar seu fim por si mesmo. Este só pode ser obtido com a ajuda de Deus, e
assim é verdadeiro “que não é do que quer, nem do que corre”. Da mesma maneira,
deveríamos dizer aquilo que se diz da agricultura, segundo está escrito: “Eu
plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento. Assim, nem o que planta é
algo, nem o que rega, mas somente Deus, que dá o crescimento[46]”.
Quando um campo produz boas e ricas colheitas maduras, ninguém afirmará piedosa
e logicamente que o granjeiro produziu os frutos, mas é forçoso reconhecer-se
que esses foram produzidos por Deus; da mesma forma, nossa obra de perfeição
não amadurece se ficarmos inativos e ociosos, e no entanto não obteremos a
perfeição apenas por nossa própria atividade. Deus é o agente principal para
levá-la a cabo. Podemos explicar isso com um exemplo retirado da navegação.
Numa navegação feliz, a parte que depende da perícia do piloto é muito pequena
se comparada aos influxos dos ventos, do tempo, da visibilidade das estrelas,
etc. Os próprios pilotos, normalmente, não se atrevem a atribuir à sua própria
diligência a segurança do barco, mas atribuem tudo a Deus. Isso não quer dizer
que não tenham dado sua contribuição: mas a providência divina desempenha um
papel infinitamente maior do que o que fazemos nós, e, penso, que é por isso
que se disse: “Não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deis, que tem
misericórdia”. Porque, da maneira como eles explicam, os mandamentos são
supérfluos e é em vão que Paulo culpa os que se afastam da verdade e elogia os
que permanecem na fé; nem haveria propósito algum em dar certos preceitos e
instruções às Igrejas, se fosse vão desejar e lutar pelo bem. Mas é certo que
essas coisas não são feitas em vão, e também que os apóstolos não deram
instruções em vão, nem o Senhor Suas leis em vão.
Daí segue, pois, que declaremos ser em vão que os hereges falam mal
dessas boas declarações.
20.
“Deus é aquele que em vós opera tanto o
querer como o fazer”
Ademais dessas, temos a passagem que diz: “Deus é aquele que em vós
opera tanto o querer como o fazer, por sua boa vontade[47]”.
Se for assim, dizem alguns, Deus é o responsável pela nossa má vontade, e nós
não temos verdadeira liberdade; e, por outro lado, dizem, não existe mérito
algum em nossa boa vontade e em nossas boas obras, já que o que parece ser
nosso é ilusão, sendo na realidade uma imposição da vontade de Deus, sem que
nós tenhamos verdadeiramente liberdade.
A isso podemos responder observando que o Apóstolo não diz que o
querer o bem ou querer o mal procedem de Deus, senão simplesmente que o querer,
em geral, procede de Deus. Assim como nossa existência enquanto animais ou
enquanto homens procede de Deus, também nossa faculdade de querer em geral, ou
nossa faculdade de nos mover. Como animais, temos a faculdade de mover nossas
mãos e nosso pés, mas não seria exato dizer que qualquer movimento específico,
como matar, por exemplo, ou destruir, ou roubar, proceda de Deus. A faculdade
de nos mover procede Dele, mas nós podemos empregá-la para fins bons ou maus.
Da mesma forma, provém de Deus o querer e a capacidade de levar a cabo, mas
podemos empregá-la para fins bons ou maus[48].
21.
“Vasos de honra, vasos de desonra”
DE qualquer modo, a declaração do Apóstolo parece nos conduzir à
conclusão de que possuímos liberdade de vontade, ao objetar a si mesmo: “Portanto,
Deus usa de misericórdia com quem Ele quer, e endurece a quem Ele quer. Direis
então: “Por que Deus ainda se queixa? Quem pode resistir à Sua vontade dele?”.
Mas, quem és tu, homem, para discutires com Deus? Por acaso, o vaso de barro
diz ao oleiro: “Por que me fizeste assim?”. Por acaso o oleiro não é dono da
argila, para fazer com a mesma massa dois vasos, uma para uso nobre e outro
para uso comum?[49]”.
Se o ceramista faz do mesmo barro vasos de honra e outros de desonra,
e se Deus assim forma alguns homens para a salvação e outros para a perdição,
então a salvação ou a perdição não dependem de nós, nem nós possuímos livre
arbítrio
Agora devemos perguntar a quem interpreta desse modo essas passagens,
se é possível conceber que o Apóstolo contradiga a si mesmo. Suponho que
ninguém se atreverá a dizê-lo. Assim, se o Apóstolo não se contradiz, como pôde
censurar logicamente – segundo quem o entende dessa maneira – o indivíduo de
Corinto que cometeu fornicação, ou aos que não se arrependeram de sua impureza
e comportamento licencioso? E como pôde bendizer aos que elogiou por terem
feito o bem, como fez com a casa de Onesífero com as palavras: “Que o Senhor
conceda misericórdia à família de Onesíforo, porque ele muitas vezes me
confortou e não se envergonhou de eu estar preso; ao contrário, quando chegou a
Roma, ele me procurou com insistência, até me encontrar. Que o Senhor lhe
conceda misericórdia junto a Deus naquele Dia[50]”.
Não é consistente para o mesmo Apóstolo culpar, de um lado, o pecador
digno de reprovação e elogiar o que fez o bem como merecedor de aprovação, e,
por outro lado, dizer, como se nada dependesse de nós, que a causa é o Criador,
que teria formado um vaso para a honra e outro para a desonra. E como pode ser
correta a declaração: “De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal
de Cristo, a fim de que cada um receba a recompensa daquilo que tiver feito
durante a sua vida no corpo, tanto para o bem, como para o mal[51]”?
- já que os que fizeram o mal avançaram
para esse abismo de maldade por terem sido criados como vasos de desonra,
enquanto que os que viveram virtuosamente terão feito o bem porque foram
criados desde o princípio para isso, como vasos de honra.
E mais uma vez: como pode estar em desacordo a afirmação feita em
outra parte com a opinião que essas pessoas extraem das palavras citadas (que é
culpa do Criador que um vaso seja de honra e outro de desonra), a saber: “Numa
casa grande, não há somente vasos de ouro e prata; há também de madeira e
barro. Alguns são para uso nobre, outros para uso comum. Aquele que se
purificar desses erros será vaso nobre, santificado, útil para o seu dono e
preparado para toda boa obra[52]”,
porque, se quem purifica a si mesmo se torna vaso de honra, e quem se permite
permanecer sujo se torna vaso de desonra, então, nhoque se refere a isso, o
Criador não tem culpa alguma.
Porque o Criador não fez vasos de honra e vasos de desonra desde o
princípio segundo seu conhecimento prévio, já que Ele não condena nem justifica
de antemão, mas torna vasos de honra aos que se purificam, e vasos de desonra
aos que se permitem permanecer impuros; assim é o resultado de causas antigas
que operam na formação de vasos de honra e desonra.
Mas uma vez que admitimos que havia certas causas antigas operando na
formação de um vaso de honra ou de desonra, o que há de absurdo em regressar ao
tema da alma e supor que havia uma causa mais antiga para que Jacó fosse amado
e Esaú detestado, anterior a que Jacó assumisse um corpo e antes que Esaú fosse
concebido no seio de Rebeca?
22.
Causas antecedentes do destino das almas
Ao mesmo tempo, está dito claramente que, no que diz respeito à
natureza subjacente, existe um pedaço de argila na mãos do ceramista, de cuja
massa são feitos vasos de honra e de desonra; da mesma forma, a natureza de
cada alma está nas mãos de Deus e, por assim dizer, sua existência é uma massa
de seres racionais, e certas causas de tempo anterior levam alguns seres a ser
criados como vasos de honra e outros de desonra.
Mas a linguagem do Apóstolo pressupõe uma censura, quando ele diz:
“Quem és tu, para discutires com Deus?”, ensinando-nos que quem tem confiança
em Deus é fiel, e viveu virtuosamente, de modo que não ouvirá as palavras “Quem
és tu, para discutires com Deus?”, mas, como Moisés, escutará, por exemplo:
“Moisés falava, e Deus lhe respondia com uma voz[53]”,
da maneira como Deus responde também aos santos. Mas a quem não possui essa
confiança, ou porque a perdeu, ou porque investiga esses assuntos não por amor
ao conhecimento, mas por um desejo de encontrar falhas, se lhe diz: “Quem és
tu, para buscar faltas em Deus?” e “Por que, quem resistiu à Sua vontade?”, e
ele terá merecido a linguagem de censura que diz: “Quem és tu, para discutires
com Deus?”.
Àqueles que introduzem naturezas diferentes, e que utilizam a
declaração do Apóstolo para apoiar suas opiniões, deve-se dar a seguinte
resposta. Se sustentarem que os que se perdem e os que se salvam são formados
da mesma massa, e que o Criador dos que se salvam é também o Criador dos que se
perdem, e se está certo que Ele crie não apenas naturezas espirituais, como
também terrenas (pois isso se deduz de sua doutrina), é, não obstante, possível
que um, como consequência de certos atos anteriores de justiça, seja feito
agora vaso de honra, enquanto outro (depois) que não agiu de maneira similar,
nem fez coisas próprias de um vaso de honra, seja convertido em outro mundo em
vaso de desonra.
Por outro lado, é possível que quem, devido a causas mais antigas do
que as da vida presente, seja aqui um vaso de desonra, possa, depois de se
reformar, converter-se na nova criação em “vaso de honra, santificado e útil
para o uso do Senhor, preparado para toda boa obra”.
E talvez os que agora são israelitas, não tendo vivido com a dignidade
de seus antepassados, sejam privados de seu grau e transformados, por assim
dizer, de vasos de honra em vasos de desonra; e muitos dos egípcios presentes,
e idumeus, que se aproximam de Israel, quando deem fruto em abundância,
entrarão na Igreja do Senhor, já não sendo considerados egípcios ou idumeus,
mas israelitas. Assim, de acordo com essa visão, é devido a vários propósitos
que alguns avancem de uma condição melhor para outra pior, e outros de uma pior
para outra melhor, enquanto que outros ainda perseveram em seu curso virtuoso,
ou ascendem do bom para o melhor; e outros, ao contrário, permanecem no curso
do mal, ou do mal vão a pior, segundo flua sua maldade.
23.
Reconciliação da vontade divina com a humana
Mas em determinado lugar o Apóstolo não leva em conta o que concerne a
Deus no tocante a que resultem vasos de honra ou desonra, mas o atribui a nós
mesmos, dizendo: “Se alguém se limpar dessas coisas, será vaso de honra,
santificado e útil para o uso do Senhor, preparado para toda boa obra[54]”,
enquanto que em outro lugar não leva em conta o que se refere a nós, mas parece
atribuir tudo a Deus, dizendo: “Por acaso o oleiro não é dono da argila, para
fazer com a mesma massa dois vasos, uma para uso nobre e outro para uso comum?[55]”.
Não pode haver contradição entre essas expressões do mesmo Apóstolo,
mas devemos conciliá-las e por meio delas chegar a uma interpretação que tenha
pleno sentido.
Nem o que está em nosso poder, está sem o conhecimento de Deus, nem o
conhecimento de Deus nos força a avançar se de nossa parte não contribuímos em
nada para fazer o bem; nem ninguém se torna digno de honra ou de desonra por si
mesmo, sem o conhecimento de Deus e sem ter esgotado aqueles meios que estão ao
nosso alcance, nem ninguém se torna digno de honra ou de desonra apenas pela
obra de Deus, mas porque oferece como base para essa diferenciação o propósito
de sua vontade, que se inclina para o bem ou para o mal.
Que essas observações sejam suficientes sobre o tema do livre
arbítrio.
2
AS POTÊNCIAS ADVERSAS
1.
O diabo no Antigo Testamento
Temos que considerar, de acordo com as declarações da Escritura, o
modo como as potências adversas, ou o próprio diabo, competem com o ser humano,
numa disputa na qual incitam e instigam os homens a pecar.
Em primeiro lugar, no Livro do Gênesis, a serpente é descrita como
tendo seduzido a Eva. Na obra intitulada A
Ascensão de Moisés (um pequeno tratado que o apóstolo Judas menciona em sua
epístola), o arcanjo Miguel, na disputa com o diabo sobre o corpo de Moisés,
diz que a serpente, inspirada pelo diabo, foi a causa da transgressão de Adão e
Eva.
Alguns também converteram em matéria de investigação o texto onde se
diz que um anjo falou a Abrahão desde o céu: “Nesse momento, o anjo do Senhor o
chamou do céu e disse: ‘Abrahão, Abrahão!’. Ele respondeu: ‘Aqui estou!’. O
anjo continuou: ‘Não estenda a mão contra o menino! Não lhe faça nenhum mal!
Agora sei que você teme a Deus, pois não me recusou seu filho único’[56]”.
Quem era esse anjo? Evidentemente um anjo que sabia que Abrahão temia a Deus e
que não havia recusado seu filho querido, ainda que não se tenha dito que foi
por causa de Deus que Abrahão tenha feito isso, mas por causa do que falou:
“não me recusaste teu filho”.
Também devemos averiguar quem é aquele de quem se diz no Livro do
Êxodo que desejou matar a Moisés: “Durante a viagem, numa hospedaria, Javé foi
ao encontro de Moisés e procurava matá-lo[57]”,
ao qual depois se chamou de “anjo exterminador”: “Porque Jeová passará ferindo
os egípcios[58]”.
O anjo que no Livro do Levítico se chama em grego Apopompeus, isso é, “O que retira”, de quem a Escritura diz: “Uma
sorte para Jeová, outra sorte para Azazel[59]”.
No Primeiro Livro de Reis, também se diz que um espírito mau
estrangulava Saul: “Outro dia aconteceu que um espírito mau da parte de Deus tomou
Saul, e se mostrava em sua casa, com delírios de profeta[60]”,
e no Terceiro Livro, o profeta Miqueias diz: “Eu vi Javé sentado em Seu trono,
e todo o exército do céu estava em pé, à direita e à esquerda de Javé. E Javé
perguntou: ‘Quem poderá enganar Acab, para que ele vá e morra em Ramot de
Galaad?’ Uns diziam uma coisa, e outros diziam outra. Então um espírito se
aproximou, ficou diante de Javé, e disse: ‘Eu posso enganá-lo’. Javé lhe
perguntou: ‘De que modo?’ Ele respondeu: ‘Irei e me transformarei em oráculo
falso na boca de todos os profetas’. Javé lhe disse. ‘Você conseguirá
enganá-lo. Vá e faça isso’. Como se pode ver, Javé colocou oráculos falsos na
boca de todos esses profetas do rei, porque Javé decretou a ruína do rei[61]”.
Essa citação mostra claramente que um certo espírito, por sua própria vontade e
opção, decidiu enganar a Acab dizendo uma mentira, para que o Senhor, pudesse
levar ao rei à morte que ele merceia receber.
No Primeiro Livro de Crônicas, também se diz: “Satanás se levantou
contra Israel e incitou a Davi que contasse a Israel[62]”.
Nos Salmos, ademais, diz-se que um anjo do mal acossa certas pessoas. No Livro
do Eclesiastes, também, Salomão diz: “Se o espírito do príncipe se exaltar
contra ti, não deixes teu lugar; porque a mansidão fará cessar grandes ofensas[63]”.
Em Zacarias lemos que o diabo estava na mão direita de Josué e lhe resistia: “E
me mostrou a Josué, o grande sacerdote, o qual estava diante do anjo de Jeová;
e Satanás estava em sua mão direita para ser-lhe adversário[64]”.
Isaías diz que a espada do Senhor se levanta contra o dragão, a serpente
retorcida: “Naquele dia Jeová visitará com sua espada dura, grande e forte,
contra Leviatã, serpente escorregadia, serpente retorcida; e matará o dragão
que está no mar[65]”.
E que dizer de Ezequiel, que em sua segunda visão profetiza sem dar margem a
erro a respeito do príncipe de Tiro com relação a uma potência adversa, e diz
ainda que o dragão habita nos rios do Egito[66]?
De quem se ocupa toda a obra de Jó, senão do diabo, que solicita permissão
e poder sobre tudo o que Jó possui: filhos, lar e até sua própria pessoa? E
ainda assim o diabo é vencido pela paciência de Jó. Nesse livro o Senhor
distribuiu muita informação com suas respostas sobre o poder do dragão que nos
combate.
Estas são as afirmações que são feitas no Antigo Testamento, até onde
podemos recordar, sobre o tema dos poderes hostis citados na Escritura, ou dos
que se diz que se opõem à raça humana, sujeitos a um castigo posterior.
2.
O diabo no Novo Testamento
Vejamos agora o Novo Testamento, onde Satanás se aproxima do Salvador
para tentá-lo, onde também se diz que existem espíritos maus e demônios
impuros, que haviam se apossado de muitos e foram expulsos pelos Salvador dos
corpos da vítimas, a quem Cristo libertou.
Inclusive Judas, quando o diabo colocou em seu coração que traísse o
Mestre, recebeu-o totalmente, segundo está escrito: “E junto com o pedaço [de
pão] Satanás entrou nele[67]”.
E o apóstolo Paulo nos ensina que não devemos dar espaço para o diabo, mas que
devemos “tomar a armadura de Deus, para poder resistir no dia mau, e estar
firmes, depois de tudo acabado”, assinalando que os santos “não devem lutar
contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades,
contra os senhores do mundo: governadores das trevas, contra as malícias
espirituais nos ares[68]”.
Ele chega a dizer que o Salvador foi crucificado pelos príncipes desse mundo,
que, não obstante, serão aniquilados[69].
Mediante todas essas coisas, a Escritura nos ensina que existem certos
inimigos invisíveis que lutam contra nós, e contra os quais ela nos ordena que
nos armemos. Daí, também, que os mais simples dos crentes no Senhor Cristo
opinam que todos os pecados que os homens cometeram foram causados pelos
esforços persistentes desses poderes adversos, exercidos sobre a mente dos
pecadores, porque nessa luta invisível eles estão numa posição de superioridade
em relação ao homem. Porque, por exemplo, se não existisse o diabo, nenhum ser
humano seria extraviado.
3.
A parte da natureza e a parte de Satanás
Não obstante, nós, que vemos as razões das coisas com mais clareza,
não apoiamos essa opinião, levando em conta aqueles pecados que provêm
evidentemente como consequência de nossa constituição corporal.
Devemos realmente supor que o diabo seja a causa de nossa sensação de
fome e de sede? Ninguém, penso eu, se atreveria a sustentar isso. Se, então,
ele não é a causa da sensação de fome ou de sede, onde reside a diferença entre
isso e o indivíduo que, tendo alcançado a idade da puberdade entra nesse período
em que são provocados os incentivos do calor natural? Seguir-se-á,
indubitavelmente, que, assim como o diabo não é a causa de nossas sensações de
fome e de sede, tampouco o será dessa apetência que surge naturalmente no
momento da maturidade, a saber, o desejo da relação sexual. É certo que essa
causa não é posta em movimento pelo diabo, de modo que estaríamos enganados se
fôssemos obrigados a supor que nossos corpos não possuiriam esse desejo de
relação sexual se não existisse o diabo.
Consideremos, em segundo lugar, se a comida é desejada pelos seres
humanos, não por sugestões do diabo, como já mostramos, mas por uma espécie de
instinto natural, e assim, se não houvesse o diabo, seria possível para a
experiência humana exibir continência na hora de comer, para não exceder os
limites apropriados, ou seja, não tomar mais do que o requerido no momento, ou
o que ordene a razão, cujo resultado seria que, em relação à medida e à
moderação no comer, ela (a experiência humana) nunca se equivocaria? Não creio,
realmente, que os homens possam observar uma moderação tão grande (ainda que
não houvesse instigação do diabo incitando à gula), nem que indivíduo algum, ao
participar do alimento, deixe de ir além dos limites previstos, a menos que
tenha aprendido a se conter, graças ao costume e à experiência.
Qual é, então, o estado do caso? No tema do comer e do beber, é
possível nos excedermos, mesmo sem nenhuma incitação do diabo, se acontecer que
sejamos menos moderados e cuidadosos do que se supõe que devêssemos ser. Sendo
assim, no nosso apetite por relações sexuais, ou em relação à restrição de
nossos desejos naturais, não será nossa condição algo similar?
Opino que a mesma linha de raciocínio deve ser aplicada a outros
movimentos naturais como a cobiça, a cólera, a dor, e a todos aqueles que,
geralmente pelo vício da intemperança, excedem os limites naturais da
moderação.
4.
As sementes do pecado e a oportunidade dos
demônios
Existem, portanto, razões manifestas para sustentar a opinião de que,
assim como nas coisas boas a vontade humana é por si mesma fraca para realizar
qualquer coisa boa (porque é pela ajuda divina que se obtém a perfeição em
tudo), do mesmo modo, nas coisas de natureza oposta recebemos certos elementos
iniciais, como se fossem sementes de pecado, daquelas coisas que usamos
conforme a natureza; mas quando nos comprazemos além do que é apropriado, e não
resistimos aos primeiros movimentos da intemperança, então o poder hostil,
tomando a oportunidade dessa primeira transgressão, nos incita e pressiona com
força por todos os lados, buscando estender nossos pecados por um caminho mais
amplo, equipando, a nós seres humanos, com ocasiões e começos de pecados, que
esses poderes hostis estendem em largura e comprimento, e, se possível, além de
todo limite.
Assim, quando os homens, no princípio, desejam um pouco de dinheiro, a
cobiça começa a crescer na medida em que a paixão aumenta, e, finalmente,
acontece a queda na avareza. Depois disso, quando a cegueira da mente se sucede
à paixão, os poderes hostis, com suas sugestões, apressam a mente, e o dinheiro
desejado agora passa a ser roubado, ou tomado à força, ou mesmo mediante o
derramamento de sangue humano.
Finalmente, uma evidência comprobatória do fato de que os vícios de
tal enormidade procedem dos demônios, se pode ver facilmente no seguinte: que
os indivíduos que são oprimidos pelo amor imoderado, ou pela cólera
incontrolável, ou pela dor excessiva, não sofrem menos do que os que são
fisicamente oprimidos pelo diabo.
Registram-se certas histórias, nas quais alguém cai de um estado de
amor a um estado de loucura, outros de um estado de cólera, não poucos de um
estado de dor, ou mesmo de uma alegria excessiva. Daí resulta, penso eu, que
aqueles poderes adversos, isso é, os demônios que ganharam espaço em nossas
mente – que a intemperança abriu para eles – se apossam por completo de sua
natureza sensível, sobretudo quando nenhum sentimento de glória da virtude lhes
oponha resistência.
5.
As tentações e a Providência divina
Que existem certos pecados, entretanto, que não provêm dos poderes
adversos, mas que têm seus princípios nos movimentos naturais do corpo, isso é
manifestamente declarado pelo apóstolo Paulo: “A carne deseja contra o
Espírito, e o Espírito contra a carne; e essas coisas se opõem uma à outra,
para que façais o que quereis[70]”.
Se, então, a carne deseja contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, às
vezes temos que lutar contra a carne e o sangue, isso é, como homens que vivem
e agem segundo a carne, cujas tentações não são maiores do que as tentações
humanas, já que nos foi dito: “Não fostes tentados além do que podeis suportar,
porque Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças.
Mas, junto com a tentação, ele dará a vós os meios de sair dela e a força para
suportá-la[71]”.
Porque, assim como os que presidem aos jogos públicos não permitem aos
competidores entrar em listas sem critério, ou por casualidade, senão após um
exame cuidadoso, emparelhando-os com imparcial consideração ao tamanho e à
idade – esse indivíduo com aquele outro, jovens com jovens, homens com homens,
que estejam relacionados uns com os outros por idade e força –, também assim
devemos entender o procedimento da Providência divina, que ordena segundo
princípios imparciais tudo o que participa da luta na existência humana,
segundo a natureza do poder de cada um, que só é conhecido Daquele que pesa os
corações dos homens, de modo a que cada qual lute contra as tentações que é
capaz de suportar. A um tenta a carne, a outro a indulgência, a um a ira, a
outro a preguiça. Um fica exposto longo tempo aos inimigos, outro é retirado
logo da batalha. Em todos podemos observar a verdade do que disse o apóstolo: “Deus
é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, junto
com a tentação, ele dará a vós os meios de sair dela e a força para suportá-la”.
Isso é, cada qual é tentado em proporção à sua força e poder de resistência.
6.
Tentação e vitória
Agora, ainda que tenhamos afirmado ser pelo justo juízo de Deus que
cada um é tentado conforme sua força ou resistência, não devemos supor,
entretanto, que quem é tentado deva necessariamente sair vitorioso do conflito.
De maneira parecida, quem compete nos jogos, ainda que emparelhado com
seu adversário sobre um princípio de justo confronto, nem por isso será
necessariamente vencedor. Pois, a menos que a força dos combatentes seja igual,
o prêmio do vencedor não terá sido ganho justamente, nem tampouco se lançará
com justiça a culpa ao perdedor. No caso de Deus, Ele não permite que sejamos tentados
“além do que somos capazes”, mas na proporção de nossas forças. E está escrito
que juntamente com a tentação Ele nos mostrará a saída para que possamos
resistir. Mas depende de nós usarmos o poder que nos foi dado, com energia ou
debilidade.
Não há dúvida de que em cada tentação temos um poder de resistência,
se empregarmos corretamente a força que nos é concedida. Mas não é a mesma
coisa possuir o poder de conquistar e sair vitoriosos, como o próprio Apóstolo
nos mostrou numa linguagem cautelosa, ao dizer: “Deus dará juntamente com a
tentação a sápida, para que possais aguentar[72]”
– não que o façamos sempre, já que muitos entram em tentação e são vencidos por
ela.
Pois bem, Deus não nos capacita para não entrarmos em tentação, pois
nesse caso não haveria luta, mas ele nos outorga o poder de resistir-lhe.
Esse poder que nos é dado para poder vencer pode ser usado, conforme
nossa faculdade de livre arbítrio, de uma maneira diligente, e então sairemos
vitoriosos; ou de uma maneira displicente, e terminaremos derrotados. Porque se
nos fosse dado o poder total de vencer apesar de tudo, que razão haveria para
permanecer numa luta na qual não se pode ser vencido? Ou que mérito existe numa
vitória na qual se retira o poder de resistência? Mas a possibilidade de
conquistar é conferida igualmente a todos, e, se está em nosso próprio poder o
modo de usar essa possibilidade, a saber, com diligência ou negligência, então
o derrotado será com justiça censurado, e o vencedor, merecidamente elogiado.
Desses pontos de que falamos, como melhor o podemos, penso que fica
claramente evidente que existem certas transgressões que jamais cometemos sob a
pressão de poderes malignos, enquanto que existem outras às quais somos
incitados por instigação de sua parte, por causa de nossa indulgência excessiva
ou imoderada. Daí se segue que devemos nos informar acerca de como os poderes
adversos produzem essas incitações dentro de nós.
7.
O conflito das sugestões satânicas
No que concerne aos pensamentos que provêm de nosso coração, ou à
recordação das coisas que fizemos, ou à contemplação de qualquer coisa ou
causa, encontramos que às vezes essas coisas procedem de nós, e às vezes são
originadas por poderes adversos; e que, não poucas vezes, são também sugeridas
por Deus ou pelos santos anjos.
Essa declaração pode parecer incrível, a menos que seja confirmada
pelo testemunho da Santa Escritura. Que os pensamentos surgem de nós mesmos,
Davi o declara nos Salmos, dizendo: “O pensamento do homem Te confessará, e o
resto de seu pensamento observará Tuas festas[73]”.
Que eles também podem ser causados pelos poderes adversos, nos mostra Salomão
no Livro do Eclesiastes: “Se o espírito do príncipe se exaltar contra ti, não
abandones teu lugar; porque a mansidão fará cessar grandes ofensas[74]”.
Também o apóstolo Paulo dará testemunho sobre o mesmo ponto com as
palavras: “Destruímos conselhos, e qualquer altura que se levante contra a
ciência de Deus, e obrigamos todos os intentos à obediência de Cristo[75]”.
Que esse efeito é devido a Deus, declara-o Davi, quando diz nos Salmos:
“Bem-aventurado o homem que tem sua fortaleza em Ti, em cujo coração estão os
Teus caminhos[76]”.
E o Apóstolo diz que: “Deus colocou no coração de Tito[77]”.
Que certos pensamentos são sugeridos aos corações dos homens por anjos
bons e maus, isso é mostrado, em ambos os casos, pelo anjo que acompanhou
Tobias[78],
e pelo texto do profeta, no qual diz: “E me disse o anjo que falava comigo[79]”.
O Livro do Pastor declara a mesma
coisa, dizendo que cada indivíduo é atendido por dois anjos, e que, sempre que
surgem bons pensamentos em nossos corações, isso se deve ao anjo bom, mas
quando surgem pensamentos de uma classe oposta, isso se deve à instigação do
anjo mau[80].
O mesmo declara Barnabé em sua Epístola,
na qual diz que existem dois caminhos, um de luz e outro de trevas, nos quais
diz ele que certos anjos são colocados: os anjos de Deus no caminho de luz, os
anjos de Satanás no caminho da escuridão.
Mas não vamos imaginar que qualquer outro resultado acompanhe o que é
sugerido ao nosso coração, seja bom ou mau, salvo apenas uma comoção mental e
uma incitação que nos inclina para o bem ou para o mal. Porque está dentro do
nosso alcance, quando um poder maligno começa a incitar-nos ao mal, afastar
para longe as más sugestões e nos opormos aos estímulos vis, e não fazermos
nada que seja merecedor de culpa. E, por outro lado, é possível, quando um
poder divino nos chama a coisas melhores, não obedecer ao chamado. E em ambos
os casos nossa liberdade é preservada.
Nas páginas anteriores dissemos que certas recordações de ações boas e
más podem nos ter sugeridas por um ato da providência divina ou pelos poderes
adversos, como se mostra no Livro de Ester, quando Artaxerxes não se lembrou
dos serviços do justo Mardoqueu, mas que quando, cansado de suas noites de
vigília, Deus colocou em sua mente que pedisse que fossem lidos os anais onde
estavam registrados os grandes feitos, recordou os benefícios recebidos de
Mardoqueu e ordenou que seu inimigo Aman fosse enforcado, e que ele recebesse
esplêndidas honrarias, bem como a impunidade em relação ao perigo que o
ameaçava, concedido a toda a nação santa.
Por outro lado, entretanto, devemos supor que pela influência hostil
do diabo se introduziu nas mentes do sumo sacerdote e dos escribas a sugestão
que fizeram a Pilatos, quando se apresentaram a ele dizendo: “Senhor,
lembramo-nos de que aquele enganador disse, quando ainda estava vivo: Depois de
três dias ressuscitarei[81]”.
Também o desígnio de Judas, a respeito da traição de nosso Senhor e Salvador,
não proveio apenas da maldade de sua mente, já que a Escritura declara que “o
diabo já havia colocado em seu coração traí-lo[82]”.
Por isso Salomão ordena corretamente: “Acima de toda coisa guardada, guarda teu
coração[83]”.
E o apóstolo Paulo nos adverte: “Portanto é mister que com mais diligência
atendamos às coisas que temos ouvido, para que não percamos o rumo[84]”.
E quando diz: “Não dês lugar ao diabo[85]”,
ele mostra com essa prescrição que é por meio de certos atos, ou por uma
espécie de preguiça mental, que se cede espaço ao diabo, de modo que, se ele
penetrar uma vez em nosso coração, se apossará de nós, ou ao menos contaminará
a alma, se não a dominar por completo, atirando sobre nós seus dardos ardentes,
pelos quais somos às vezes profundamente feridos, e que às vezes nos
incendeiam. Raramente, na verdade, e só em poucos casos, esses dardos podem ser
apagados a ponto de não encontrar lugar para ferir – exceto quando a pessoa se
cobre com o escudo forte e poderoso da fé.
A declaração na Epístola aos Efésios: “Nós não devemos lutar contra a
carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades, contra os
senhores do mundo: governadores das trevas, contra as malícias espirituais nos
ares[86]”,
deve ser entendida como significando esse “nós” como “eu-Paulo, vós-efésios”, e
todos os que lutam não contra a carne e o sangue, já que temos que lutar contra
principados e potestades, contra os senhores do mundo, contra os governadores
das trevas, não como os coríntios, cuja luta era ainda contra a carne e o
sangue, e aos quais ainda não sucedera nenhuma tentação que não as que são
comuns aos homens.
8.
O poder de Cristo para vencer
Mas não vamos supor, entretanto, que cada indivíduo tenha que lutar
contra todos esses adversários. Porque é impossível a qualquer homem, ainda que
seja santo, manter batalhas contra todos eles ao mesmo tempo. Se esse fosse
realmente o caso de alguma maneira, o que certamente seria impossível, a
natureza humana não poderia suportá-lo sem ser totalmente destruída. Mas, por
exemplo, se fosse ordenado a cinquenta soldados que enfrentassem outros
cinquenta, essa ordem não seria entendida como se um só deles devesse enfrentar
os cinquenta, mas cada um deles diria: “nossa guerra é contra os cinquenta”; da
mesma forma devemos entender o significado do apóstolo Paulo, de que todos os
atletas e soldados de Cristo devem lutar e guerrear contra todos os adversários
enumerados, mas que a luta, mantida contra todos, é levada a cabo por
indivíduos isolados e com poderes individuais, ou ao menos da maneira como for
determinada por Deus, que preside o combate.
Pois sou de opinião de que existe um limite nos poderes da natureza
humana, ainda que sejam os de Paulo, de quem foi dito: “Esse é o instrumento
escolhido por mim[87]”;
ou de Pedro, contra quem as portas do inferno não prevalecem[88];
ou de Moisés, o amigo de Deus. Ainda assim, nenhum deles seria capaz de
sustentar o assalto simultâneo dos poderes adversos sem ser destruídos, a não
ser que neles operasse a força única Daquele que disse: “Coragem, eu venci o
mundo[89]”.
Por isso, Paulo exclamou confiante: “Tudo posso em Cristo que me fortalece[90]”.
E outra vez: “Trabalhei mais do que todos eles; mas não sou eu, mas a graça de
Deus que está comigo[91]”.
Com base nesse poder, cuja operação certamente não é de origem humana,
Paulo poderia dizer: “Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os
anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem as
forças das alturas ou das profundidades, nem qualquer outra criatura, nada nos
poderá separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor[92]”.
Penso que a natureza humana sozinha não pode manter uma contenda com
anjos, com os poderes excelsos e profundos, ou com qualquer outra criatura; mas
quando sente a presença do Senhor que mora dentro dela, a confiança na ajuda
divina a leva a dizer: “O Senhor é minha luz e salvação: de quem terei medo? O
Senhor é a fortaleza da minha vida: frente a quem tremerei? Quando os
malfeitores avançam contra mim para devorar minha carne, são eles, meus adversários
e inimigos, que tropeçam e caem. Que um exército acampe contra mim! Meu coração
não tremerá! Que uma guerra estoure contra mim! Ainda assim estarei confiante![93]”.
Saí deduzo que talvez um homem nunca seja capaz de vencer um poder adverso, a
menos que conte com o socorro da assistência divina. Daí, também, que se diga
que o anjo lutou contra Jacó. Aqui, porém, entendo que o cronista dá a entender
que não é a mesma coisa para um anjo lutar contra Jacó e este haver lutado
contra ele; mas sim que o anjo que lutou com ele é o que esteve presente com
ele para garantir sua segurança, o qual, depois de conhecer também seu
progresso moral, lhe deu ademais o nome
de Israel[94],
isso é, “o que combate com Deus” ou “Deus combate”, e o assiste na contenda; pois
vê-se que ali houve indubitavelmente outro anjo com quem lutou, e contra quem
ele teve que prosseguir na luta. Finalmente, Paulo não disse que lutamos contra
príncipes, ou poderes, mas contra principados e potestades. Daí que, tendo Jacó
lutado, foi incontestavelmente contra algum desses poderes que resistem à raça
humana e a todos os santos, segundo declara Paulo. Portanto, finalmente, diz a
Escritura que “lutou com o anjo, e tinha o poder de Deus”, de modo que a luta
foi apoiada pela ajuda do anjo, mas o prêmio do êxito conduziu o conquistador a
Deus.
9.
A permissão divina das provas
Na verdade, não devemos supor que as lutas desse tipo se sustentam
pelo exercício corporal e pelas artes das lutas, mas que o espírito combate com
o espírito, segundo a declaração de Paulo, de que a nossa luta é contra os
principados e potestades, contra os senhores das trevas desse mundo. Ou antes,
devemos entender o seguinte a respeito da natureza dessa luta: quando, por
exemplo, perdas e perigos nos atingem, ou se nos fazem calúnias e falsas
acusações, o objetivo dos poderes hostis não é apenas que soframos essas
provas, mas que, por meio delas sejamos levados ao excesso de ira ou de dor, ou
ao fundo do desespero; ou, coisa que é um pecado ainda maior, que sejamos
forçados a nos queixarmos contra Deus, quando estamos fatigados e vencidos por
alguma moléstia, como se ele não administrasse justa e equitativamente a vida
humana. A consequência disso pode ser a debilitação da fé, a decepção de nossa
esperança, o abandono da verdade das nossas opiniões, ou o acolhimento de
sentimentos antirreligiosos contra Deus.
A esse respeito foram escritas certas coisas sobre Jó, depois que o
diabo solicitou de Deus de Deus o poder de tirar-lhe todos os bens que possuía.
Com isso aprendemos também que não é por nenhum ataque acidental que somos
assaltados, ainda que soframos alguma perda de propriedade; também não se deve
ao acaso que alguém seja levado prisioneiro, ou quando o edifício onde moram
entes queridos rui e desaba sobre eles, causando sua morte. A tudo isso,
devemos responder: “nenhum poder terias sobre mim, se não te houvesse sido
concedido do alto[95]”.
Observe que a casa de Jó não caiu sobre seus filhos enquanto o diabo
não recebeu primeiro o poder sobre eles; tampouco os ladrões teriam irrompido
em três esquadrões, levando seus camelos e bois e todo o seu gado, se não
tivessem primeiro se entregado como servos da vontade do espírito que os
instigava. Nem o fogo ou o raio, ao que parece, não teria caído sobre as
ovelhas do patriarca, se antes disso o diabo não tivesse dito a Deus: “Tu mesmo
puseste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens.
Abençoaste os trabalhos dele e seus rebanhos cobrem toda a região. Estende,
porém, a mão e mexe no que ele possui. Garanto que ele te amaldiçoará na cara![96]”.
10.
Nada é operado diretamente por Deus, e nada
sem Ele
O resultado de todos os comentários precedentes consiste em mostrar
que todos os acontecimentos do mundo que são considerados de um tipo
intermediário, tanto afortunados como desafortunados, não são causados por Deus
e, certamente, tampouco sem Ele. Por outro lado, Deus não só não impede os
poderes maus e adversos que desejam trazer desgraças sobre nós para alcançar
seus objetivos, como permite sua livre atuação, ainda que só em certas ocasiões
e em casos muito particulares, como com Jó, por exemplo, que durante um tempo
caiu sob seu poder e revê sua casa roubada por pessoas injustas.
A Santa Escritura, portanto, nos ensina a receber tudo o que acontece
como coisas enviadas por Deus, sabendo que sem Ele nada ocorre. Como podemos
duvidar que seja assim, vale dizer, que nada acontece ao homem sem a vontade de
Deus, quando nosso Senhor e Salvador declara: “Não se vendem dois pardais por
um quarto? Contudo, nenhum deles cai por terra sem vosso Pai.[97]”?
A necessidade desses casos nos afastou em nossa extensa digressão
sobre o tema da luta empreendida pelos poderes hostis contra o homem, e
daqueles tristes acontecimentos que acontecem na vida humana, isso é, as
tentações, segundo a declaração de Jó: “Não é a vida inteira do homem sobre a
terra uma tentação?[98]”,
para que o modo como acontecem e o espírito com que os enfrentamos possam se
manifestar claramente.
Notaremos a seguir como o homem cai no pecado do falso conhecimento,
ou com que objetivo os poderes adversos tentam nos implicar nesse conflito.
3
A TRÍPLICE SABEDORIA
1.
A sabedoria superior de Deus
O santo Apóstolo, desejando ensinar-nos alguma verdade grande e oculta
a respeito da ciência e da sabedoria, diz na primeira Epístola aos Coríntios: “Na
realidade, é aos perfeitos na fé que falamos de uma sabedoria que não foi dada
por este mundo, nem pelos príncipes deste século, que se desfazem. Falamos de
uma sabedoria oculta de Deus em mistério, uma sabedoria oculta, aquela que ele
projetou desde o princípio do mundo para nos levar à sua glória. Nenhuma
autoridade do mundo conheceu tal sabedoria, pois se a tivessem conhecido não
teriam crucificado o Senhor da glória[99]”.
Nessa passagem, desejando descrever os diferentes tipos de sabedoria, o
Apóstolo indica que existe uma sabedoria deste mundo e uma sabedoria dos
príncipes deste século, e outra sabedoria de Deus. Mas quando ele usa a
expressão “sabedoria dos príncipes deste século”, não penso que signifique uma
sabedoria comum a todos os príncipes deste mundo, mas uma que seria peculiar a
alguns indivíduos dentre eles. Da mesma forma, quando ele diz: “Falamos de uma
sabedoria oculta de Deus em mistério, uma sabedoria oculta, aquela que ele
projetou desde o princípio do mundo para nos levar à sua glória”, devemos nos
perguntar qual seja o seu significado, se é a mesma sabedoria de Deus que
esteve oculta em outros tempos e outras gerações, sem que fosse dada a conhecer
aos filhos dos homens do modo como foi agora revelada aos santos apóstolos e
profetas, e que foi também a sabedoria de Deus antes do advento do Salvador,
por meio da qual Salomão adquiriu sua sabedoria, e em referência à qual o
próprio Salvador declara que a ensinou mais do que Salomão: “Aqui está quem é
maior do que Salomão[100]”
– palavras que mostram que os que foram instruídos pelo Salvador foram
instruídos em algo mais elevado do que o conhecimento de Salomão. E se alguém
afirmar que o Salvador, na verdade, possuía maior conhecimento do que Salomão,
mas que não o comunicou aos outros mais do que o fez Salomão, como poderá
colocar-se de acordo com a declaração seguinte: “No dia do julgamento, a rainha
de Sabá se levantará contra esta geração, e a condenará. Porque ela veio de uma
terra distante para ouvir a sabedoria de Salomão. E aqui está quem é maior do
que Salomão[101]”.
Existe, portanto, uma sabedoria deste século, e também, provavelmente,
uma sabedoria que pertence a cada príncipe deste século individualmente. Mas no
que diz respeito à sabedoria que só Deus possui, percebemos que isso está
indicado que atuou em grau menor em tempos anteriores e mais antigos, e que
depois se revelou e se manifestou mais plenamente por meio de Cristo. Mas
examinaremos a sabedoria de Deus em lugar apropriado.
2.
A sabedoria do mundo
Agora, já que estamos falando da maneira como os poderes adversos
fomentam disputas, mediante as quais introduzem o falso conhecimento na mente
dos homens e extraviam suas almas – enquanto que esses imaginam ter descoberto
a sabedoria – penso que é necessário distinguir a sabedoria deste mundo, e dos
príncipes deste mundo, para que assim possamos descobrir quem são os pais dessa
sabedoria, ou melhor, dessas classes de sabedoria. Sou de opinião, portanto,
conforme declarei acima, de que existe outra sabedoria deste mundo ao lado das
diferentes classes de sabedoria que pertencem aos príncipes deste mundo, e por
essa sabedoria parece que são entendidas e compreendidas as coisas que
pertencem a este mundo.
Essa sabedoria, porém, não possui em si mesma nenhuma propriedade que
permita formar uma opinião sobre as coisas divinas ou sobre o plano de governo
do mundo, ou sobre qualquer outro tema de importância para uma vida boa e
feliz; mas ela é a que trata da arte e da poesia, por exemplo, da gramática, da
retórica, da geometria, da música, dentre as quais, talvez, a medicina deva ser
também classificada. Em todos esses temas devemos supor que se inclui a
sabedoria deste mundo.
Como sabedoria dos príncipes deste mundo entendemos a que se apresenta
como a filosofia secreta e oculta, como eles a chamam, dos egípcios, a
astrologia dos caldeus e dos hindus, que dizem possuir o conhecimento de coisas
elevadas, e também a múltipla variedade de opiniões que prevalece entre os
gregos quanto às coisas divinas. Por conseguinte, nas Santas Escrituras
encontramos que existem príncipes sobre nações específicas: como elemos em
Daniel, onde se fala de um príncipe do reino da Pérsia e outro príncipe do
reino da Grécia, que claramente são mostrados, pela natureza das passagens em
que são citados, não como seres humanos, mas como determinados poderes[102].
Nas profecias de Ezequiel, o príncipe de Tiro é mostrado sem dúvidas como uma
espécie de poder espiritual[103].
Quando esses e outros da mesma classe, possuidores cada qual de sua própria
sabedoria, e aumentando suas próprias opiniões e sentimentos, contemplariam
nosso Senhor e Salvador, professando e declarando que Ele havia vindo a esse
mundo com o propósito de destruir todas as opiniões da ciência (falsamente
chamada) deles, e não sabendo o que havia sido oculto Nele, imediatamente
tentaram armar-lhe uma armadilha: “Os reis da terra se revoltaram e os
príncipes conspiraram unidos contra o Senhor e contra Seu Ungido[104]”.
Mas seus truques foram descobertos e os planos que haviam proposto se
manifestaram quando crucificaram o Senhor da glória. Por isso disse o Apóstolo:
“Falamos da sabedoria de Deus entre os perfeitos; sabedoria, não deste século,
nem dos príncipes deste século, que se desfazem; mas falamos da sabedoria de
Deus em mistério, da sabedoria oculta, que Deus predestinou antes dos séculos
para nossa glória; daquela que nenhum dos príncipes deste século conheceu,
porque, se a houvessem conhecido, nunca teriam crucificado do Senhor da glória[105]”.
3.
Príncipes e poderes espirituais deste mundo
Certamente devemos procurar averiguar se aquela sabedoria dos
príncipes deste mundo, que eles procuram incutir nos homens, é introduzida em
suas mentes pelos poderes adversos, com o propósito de prendê-los ou
prejudicá-los, ou apenas com o intuito de enganá-los, isso é, sem o propósito
de fazer-lhes algum mal; mas, como os príncipes deste mundo consideram que tais
opiniões são verdadeiras, eles desejam dar aos outros aquilo que eles mesmos
acreditam ser a verdade; essa é a opinião que me inclino a adotar. Porque, para
dar um exemplo, certos autores gregos, ou dirigentes de algumas seitas
heréticas, depois de haver inculcado um erro de doutrina em vez da verdade, e
tendo chegado à conclusão em suas próprias mentes que que tal seja a verdade,
procedem, as seguir, tentando convencer os demais da correção de suas opiniões.
Assim, do mesmo modo, devemos supor que procedem os espíritos deste mundo, no
qual certas nações foram entregues a determinadas potências espirituais, razão
pela qual são eles chamados de “príncipes deste mundo”.
Além desses príncipes, existem certas energias específicas desse
mundo, vale dizer, poderes espirituais que causam certos efeitos, que eles
mesmos escolhem produzir, em virtude de sua livre vontade. A esses pertencem
aqueles príncipes que praticam a sabedoria deste mundo, sendo, por exemplo, uma
energia e um poder peculiar o inspirador da poesia, outro o da geometria, e
assim por diante, para cada uma das artes e profissões dessa classe.
Finalmente, muitos escritores gregos opinaram que a arte da poesia não
pode existir sem a loucura; por isso se conta muitas vezes em suas histórias,
que aqueles que são chamados poetas (vates)
foram repentinamente acometidos por uma espécie de espírito de loucura. E que
diremos daqueles a quem eles chamam de adivinhos, os quais, pela ação dos
demônios que os dominam, respondem em versos cuidadosamente construídos? E
também existem aqueles a que chamam de magos ou malévolos, os quais, ao invocar
os demônios sobre crianças de tenra idade, com frequência as fazem repetir
composições poéticas que são a admiração e o espanto de todos.
Devemos supor que todos esses efeitos são produzidos da seguinte
maneira: assim como as almas santas e imaculadas, depois de se dedicarem por
completo a Deus em afeto e pureza, e depois de se terem mantido livres de todo
contagio de espíritos maus e de terem sido purificadas por uma longa
abstinência, cheias de uma educação santa e religiosa, assumem por esse meio
uma porção da divindade e adquirem a graça da profecia e outros dons divinos,
da mesma forma devemos supor que os que se colocam no caminho dos poderes
adversos, a quem deliberadamente admiram, adotando sua maneira de vida e seus
hábitos, recebem deles sua inspiração, e se tornam partícipes de sua sabedoria
e doutrina. O resultado disso é que são possuídos pelo poder desses espíritos a
cujo serviço se submeteram.
4.
Energias, sugestões e livre vontade
Com relação aos que ensinam de um modo diferente do que o que a regra
da Escritura permite no que concerne a Cristo, não será tarefa ociosa averiguar
se é com um propósito traidor que os poderes adversos, em sua luta para impedir
a crença em Cristo, inventaram certas doutrinas fabulosas e ímpias; ou se,
tendo ouvido a palavra de Cristo, e sendo incapazes de tirá-la do secreto de
sua consciência, e tampouco de retê-la pura e santa, utilizam de instrumentos
convenientes para seu uso e introduzem erros mediante seus profetas, se é que
podemos chamá-los assim, contrários à regra da verdade cristã.
Antes, devemos supor que o apóstata e os poderes do refugiado, que se
separaram de Deus pela própria maldade de sua mente e de sua vontade, ou por
inveja dos que estão preparados para receber a verdade e ascender ao nível que
eles tinham antes de cair, inventam todos esses erros e ilusões da falsa
doutrina, com o fim de impedir qualquer progresso em direção à verdade.
Está claramente estabelecido por muitas provas que, enquanto a alma do
homem existe nesse corpo, pode admitir energias diferentes, isso é, operações
de uma diversidade de espíritos bons e maus. Agora, os espírito maus têm um
duplo modo de proceder, a saber, quando tomam posse completa e total da mente,
sem permitir aos seus cativos o poder de compreender ou sentir (como é o caso,
por exemplo, dos que são comumente chamados de possessos, aos quais vemos
privados de razão e como que loucos, como os que o Senhor curou, segundo
relatado nos Evangelhos), ou quando, por suas más sugestões, depravam uma alma
sensível e inteligente com pensamentos de várias classes, persuadindo-a a
seguir o mal, de que Judas é uma ilustração, pois ele foi induzido pela
sugestão de um diabo a cometer o crime da traição, conforme declara a
Escritura: “o diabo colocou no coração de Judas a traição[106]”.
Mas um homem recebe a energia, ou seja, o poder de operar, de um
espírito bom, quando está animado e incitado ao bem e se inspira em coisas
celestiais ou divinas, como os santos anjos. O próprio Deus operou nos
profetas, despertando-os e exortando-os por suas santas sugestões a um melhor
modelo de vida, ainda que, certamente, tenha permanecido na vontade e no juízo
dos indivíduos estar dispostos ou indispostos a seguir a chamada divina e as
coisas celestiais.
Dessa manifesta distinção se vê como a alma é movida pela presença de
um espírito melhor, isso é, se não encontra nenhuma perturbação ou alienação
mental da inspiração iminente, nem perde o controle de sua vontade; é o caso,
por exemplo, de todos, profetas ou apóstolos, que ministraram as respostas
divinas sem nenhuma perturbação em suas mentes. Mais ainda, pela sugestão de um
bom espírito a memória do homem desperta a lembrança de coisas melhores, como
já mostramos em exemplos anteriores, quando mencionamos o caso de Artaxerxes e
Mardoqueu.
5.
Causas anteriores ao nascimento da alma no
corpo
Penso que depois deveríamos investigar quais são as razões pelas quais
uma alma humana é às vezes operada por um espírito bom e outras por um espírito
mau, cujo fundamento eu suspeito que seja anterior ao nascimento corporal do
indivíduo, como João Batista mostrou ao saltar e regozijar-se ainda no seio de
sua mãe, quando a voz da saudação de Maria chegou aos ouvidos de sua mãe
Isabel. Da mesma forma, o profeta Jeremias declara que foi conhecido por Deus
antes de ter sido formado no seio de sua mãe, e santificado antes de nascer,
recebendo depois a graça da profecia quando ainda era um menino.
Por outro lado, já se mostrou sem sombra de dúvida, que alguns foram
possuídos por espíritos hostis desde o começo de suas vidas; isso é, alguns
nasceram com um mau espírito, e outros, segundo histórias críveis, praticaram a
adivinhação desde a infância. Outros estiveram sob a influência do demônio
chamado Píton, ou seja, do espírito ventríloquo, desde o começo de sua
existência.
Para os que sustentam que todo o mundo está sob a administração da
Divina Providência (como cremos também), todos esses casos, me parece, podem
não ter nenhuma resposta, de modo que, para demonstrar que nenhuma sombra de
injustiça recai sobre o governo divino, devemos sustentar que existem algumas
causas de existência prévia, em consequência das quais as almas, antes de seu
nascimento no corpo, podem ter contraído uma certa dose de culpa em sua
natureza sensitiva, ou em seus movimentos, em razão da qual foram consideradas
dignas pela Providência Divina de ser colocadas nessa condição. Porque uma alma
sempre está de posse do livre arbítrio, tanto estando no corpo como fora dele;
e a liberdade de vontade sempre se dirige para o bem ou para o mal.
Nenhum ser racional e senciente, ou seja, a mente ou a alma, pode
existir sem algum movimento, seja ele bom ou mau. E é provável que esses
movimentos criem razões para o mérito, mesmo antes que se faça qualquer coisa
nesse mundo. Dessa forma, com base nesses méritos, eles – os seres racionais e
sencientes - podem ser, imediatamente ao
nascimento ou mesmo antes, ser, por assim dizer, classificados pela Divina
Providência para resistir ao bem ou ao mal.
Deixemos, então, que sejam essas as nossas opiniões sobre esses
encargos que caem sobre os homens, sejam imediatamente depois do nascimento,
seja antes de entrar na luz. Mas quanto às sugestões que são feitas à alma,
vale dizer, à faculdade do pensamento humano, por espíritos diferentes, que
despertam nos homens ganas de realizar atos bons ou maus, mesmo nesse caso
devemos supor que às vezes existam ali certas causas anteriores ao nascimento
corporal.
Porque ocasionalmente a mente, quando vigilante, ao afastar de si todo
o mal, pede ajuda ao bom; mas ao contrário, se for negligente e preguiçosa,
isso dá lugar, por causa da precaução insuficiente, a que esses espíritos, que
esperam secretamente como ladrões, busquem a maneira de se precipitar sobre as
mentes dos homens quando percebem uma moradia ali preparada pela preguiça, como
diz o apóstolo Pedro: “Vosso adversário, o diabo, qual leão que ruge, anda ao
redor buscando a quem devorar[107]”.
Com base nisso, nosso coração deve ser guardado com todo esmero, de dia e de
noite, sem dar nenhum espaço ao diabo. Devemos fazer todo o possível para que
os ministros de Deus – os espíritos que são enviados a administrar os herdeiros
da salvação – possam encontrar um lugar em nós, e entrar encantados na morada
de hóspedes de nossa alma. E que assim, morando conosco, possam guiar-nos com
seus conselhos, se, de verdade, encontrarem a morada de nosso coração adornada
com a prática da virtude e da santidade. Esperamos que tenha sido suficiente o
que dissemos, como melhor pudemos, sobre os poderes hostis à raça humana.
4
AS TENTAÇÕES
1.
Teorias sobre a natureza da alma
Na minha opinião, o tema das tentações humanas não deve ser passado
por alto, nem mantido em silêncio nesse contexto. A tentação surge às vezes do
sangue e da carne, ou da sabedoria da carne e do sangue, que, como se diz, são
hostis a Deus[108].
E, se é ou não verdadeira a declaração que alguns alegam, a saber, que cada
indivíduo tem como que duas almas, isso iremos determinar depois de explicar a
natureza das tentações, que, como se diz, são mais poderosas do que tudo o que
tem origem humana, isso é, as que sustentamos “contra os principados, as
potestades, contra os senhores deste mundo, governadores dessas trevas, contra
as malícias espirituais nos ares[109]”,
ou aquelas a que somos submetidos por espíritos impuros e demônios de maldade.
Na investigação desse tema, penso que devemos inquirir segundo um
método lógico, se existe em nós, seres humanos compostos de alma, corpo e
espírito vital, algum outro elemento que possua incitação própria, e que evoque
um movimento na direção do mal. Porque existem alguns que costumam discutir
esse tipo de questão do seguinte modo: em primeiro lugar, se, segundo se diz,
duas almas coexistem dentro de nós, uma será mais divina e espiritual e a
outra, inferior; em segundo lugar, se, pelo fato mesmo de estarmos inseridos
numa natureza corporal que, segundo sua natureza própria está morta e
desprovida de vida – pois nosso corpo material extrai sua vida de nossa alma, e
ele é contrário e hostil ao espírito – somos levados e atraídos à prática dos
espíritos maus que se conformam ao corpo; em terceiro lugar – que foi a opinião
dos filósofos gregos – ainda que nossa alma seja uma substancia, consiste ela
em vários elementos, uma parte chamada racional e uma irracional, sendo que a
parte irracional se divide por sua vez em dois afetos, a saber a ira e a
concupiscência. Essas três opiniões em relação à alma, que estabelecemos agora,
nós as temos encontrado sustentadas por pessoas, mas aquela que dissemos ser
própria dos gregos, a saber, que a alma é tripartite, não vejo que seja
fortemente confirmada pela autoridade da Santa Escritura, enquanto que a
respeito das outras encontramos um número considerável de passagens nas
Escrituras que podem ser-lhes aplicadas.
2.
A teoria das duas almas, uma celestial e
outra terrena
Dessas duas opiniões, discutamos primeiro aquela que alguns sustentam,
de que existem em nós uma alma boa celestial e outra terrena e inferior, e que
a alma melhor é implantada em nós a partir do céu, como foi o caso de Jacó
quando ainda estava no ventre de sua mãe, e que recebeu o prêmio da vitória ao
suplantar a seu irmão Esaú; ou o caso de Jeremias, que foi santificado desde
seu nascimento; ou de João, que esteve cheio do Espírito Santo desde o sei o
materno.
Ao contrário, alega-se que a alma inferior é produzida juntamente com
a própria semente do corpo, de onde se deduz que ela não pode viver ou
subsistir sem o corpo, razão pela qual se diz também que ela é frequentemente
chamada de carne. Porque eles tomam a expressão “a carne conspira contra o
Espírito[110]”
não para ser aplicada à carne, mas à alma, que é propriamente a alma da carne.
Por essas palavras, ademais, buscam validar a declaração do Levítico: “A alma
de toda carne, sua vida, está no sangue[111]”.
Porque, pelo fato da difusão do sangue por todas as partes da carne, produzindo
a vida na carne, eles afirmam que essa alma, da qual se diz ser a vida de toda
a carne, está contida no sangue.
Ademais, com a afirmação de que “a carne conspira contra o espírito, e
o espírito contra a carne”, e a seguinte, de que “a alma de toda carne, sua
vida, está no sangue”, segundo os escritores, simplesmente a sabedoria da carne
está sendo chamada por outro nome, porque se trata de uma espécie de espírito
material, que não está sujeito às leis de Deus, nem pode estar, porque tem
desejos terrenos e corporais. É a respeito disso que eles pensam que o apóstolo
pronunciou as palavras: “Vejo outra lei em meus membros, que se rebela contra a
lei de meu espírito, e que me traz cativo à lei do pecado que está em meus
membros[112]”.
Mas é possível objetar a isso que essas palavras se referem à natureza do
corpo, que de acordo com a particularidade de sua natureza está morto mas
possui sensibilidade, ou sabedoria, e que é hostil a Deus, ou que luta contra o
espírito. E se alguém lhes dissesse que, em certa medida, a própria carne está
provida de uma voz, que grita contra qualquer padecimento, seja de fome, de
sede, de frio ou qualquer outro incômodo que surja da abundância ou da pobreza,
eles procurariam diminuir ou contrariar a força de tais argumentos mostrando
que existem muitas outras perturbações mentais que não têm sua origem em nenhum
aspecto da carne, e que ainda assim o espírito luta contra elas , como a
ambição, a avareza, a vanglória, a inveja, o orgulho e coisas semelhantes; e,
vendo que a mente humana ou o espírito sustenta contra eles uma espécie de
competição, eles estabeleceriam como causa de todos esses males nada menos do
que a alma corporal de que falamos, e que é gerada a partir da semente por um
processo de generacionismo[113].
Eles também costumam acrescentar em apoio de sua asserção a declaração
do Apóstolo: “Além disso, as obras da carne são bem conhecidas: fornicação,
impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, discórdia, ciúme, ira,
rivalidade, divisão, sectarismo, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas
semelhantes[114]”,
afirmando que todas elas têm sua origem não nos hábitos ou prazeres da carne,
de maneira que esses movimentos devem ser considerados como inerentes à essa
substância que não possui uma alma, isso é, a alma.
Além disso, a declaração: “Vede, irmãos, vossa vocação, vós que não
sois muito sábios segundo a carne, nem muito poderosos, nem muito nobres[115]”,
pareceria exigir, para ser compreendida, a existência de um tipo de sabedoria
carnal e material e outra segundo o espírito. A primeira não poderias ser realmente
chamada de sabedoria, a menos que exista uma alma da carne, que seja sábia em
relação ao que se chama de sabedoria carnal. Em apoio a essas passagens, eles
aduzem o seguinte: “Porque a carne conspira contra o Espírito, e o Espírito
contra a carne; e essas coisas se opõem uma à outra, para que não façais o que
quereis[116]”.
O que são essas coisas, das quais se diz “para que não façais o que quereis”? é
certo, dizem eles, que o espírito não está entendido aqui, porque a vontade do
espírito não sofre nenhum obstáculo; mas tampouco pode se referir à carne,
porque, se ela não possuir uma alma própria, tampouco possuirá vontade.
Resta pois entender que a vontade dessa alma seja capaz de ter vontade
própria, e que certamente se opõe à vontade do espírito. E se esse for o caso,
fica estabelecido que a vontade da alma é algo intermediário entre a carne e o
espírito, obedecendo e servindo a cada um dos dois que deseje obedecer. Se ela
cede aos prazeres da carne, isso torna os homens carnais; mas quando ela se une
ao Espírito, produz homens do Espírito, que, por essa razão, são chamados de
espirituais. E esse parece ser o significado das palavras do Apóstolo: “Mas vós
não estais na carne, mas no espírito, na medida em que o Espírito de Deus
habita em vós[117]”.
Conforme a isso, temos que investigar o que é essa vontade
intermediária entre a carne e o espírito, além da vontade que se diz pertencer
à carne ou ao espírito. Porque sustenta-se como certo que qualquer coisa que se
diga ser operada pelo espírito é produto da vontade do espírito, e tudo o que
se chama de obra da carne procede da vontade da carne. No que consiste, então,
a vontade da alma, além disso, que recebe um nome separado, e cuja vontade o
apóstolo opõe à “nossa execução”, “para que não façais o que quereis”? Com isso
deveria entender-se que não devemos aderir a nenhum dos dois, isso é, nem à
carne, nem ao espírito. Mas alguém poderá dizer que é melhor para a alma
executar a própria vontade, do que a da carne; e por outro lado, é melhor fazer
a vontade do espírito do que a própria vontade. Como, então, diz o apóstolo:
“para que não façais o que quereis”? Porque nessa competição que é mantida
entre a carne e o espírito, o espírito nunca está seguro da vitória, sendo
manifesto que em muitos indivíduos a carne é quem tem o domínio.
3.
O perigo de ser morno
Mas já que o tema de discussão em que entramos é de grande
profundidade, será preciso considerá-lo em todos os seus sentidos. Vejamos se
algum ponto, como a seguir, não pode ser determinado: assim como é melhor para
a alma seguir o espírito quando este vence a carne, também, se parece ser um
curso pior para a alma seguir a carne em suas lutas contra o espírito, quando
este recorda à alma sua influência, não obstante, pode parecer um procedimento
mais vantajoso para a alma estar sob o domínio da carne do que permanecer sob o
domínio de sua própria vontade. Porque, já que se diz que ela não é nem quente,
nem fria, mas que se encontra numa espécie de condição morna, ela achará a
conversão uma empresa lenta e algo difícil. Se em verdade se unisse à carne,
então, saciada ao extremo, e cheia daqueles males que decorrem dos vícios da
carne, e como que cansada das pesadas cargas do luxo e de luxúria, ela poderia
se converter com facilidade e maior rapidez, da imundície material ao desejo
das coisas divinas e ao gosto pelas graças espirituais.
Devemos supor que, quando o Apóstolo diz: “O Espírito luta contra a
carne e a carne contra o Espírito”, para que não possamos fazer as coisas que
queremos, devemos entender essas coisas como estando além da vontade do
espírito e da carne, ou seja, expressando-o por outras palavras, que é melhor
para o homem estar num estado de virtude ou de malícia, do que em nenhum deles,
porque a alma, antes de sua conversão ao espírito e sua união com ele, aparece,
durante sua união com o corpo e sua meditação em coisas carnais, numa condição
que não é nem boa nem má, mas que se parece, por assim dizer, a um animal.
Não obstante, é melhor para ela, se possível, tornar-se espiritual
pela adesão ao espírito; mas, se não puder fazê-lo, é mais oportuno que siga a
maldade da carne, do que, colocada sob a influência de sua própria vontade,
conservar a posição de uma animal irracional.
Acabamos de discutir esses pontos com maior extensão do que a requerida,
pois foi nosso desejo considerar cada opinião individual, para que não se
suponha que tenha escapado de nossa atenção nenhuma delas, que são geralmente
apresentadas pelos que investigam se dentro de nós existe outra alma distinta
da celestial e racional, que se chama carne, ou sabedoria da carne, ou alma da
carne.
4.
Os “desejos” da carne e seu significado
Vejamos agora a resposta que se dá geralmente às afirmações dos que
sustentam que existe em nós um movimento e uma vida, procedentes de uma só e
mesma alma, cuja salvação ou destruição é atribuída ao resultado de suas
próprias ações.
Em primeiro ligar, vejamos de que natureza são as comoções da alma,
que sofremos quando nos sentimos interiormente arrastados em direções
diferentes, e começa uma espécie de competição de pensamentos em nossos
corações; quando certas possibilidades nos são sugeridas, de acordo com as
quais nos inclinamos ora para um lado, ora para outro, sendo às vezes
convencidos de nosso erro, ou aprovamos o que fazemos. Não é nada espantoso, no
entanto, dizer que os espírito maus têm um juízo variável e conflituoso, sem
harmonia consigo mesmo, já que é isso que encontramos em todos os homens que,
sempre que precisam deliberar a respeito de um acontecimento incerto, pedem
conselho e consideram e consultam sobre qual deve ser o melhor curso a seguir,
e o mais útil. Portanto, não é surpreendente que, quando duas possibilidades se
apresentam e surgem opiniões desencontradas, a mente seja arrastada em direções
contrárias. Por exemplo, se um homem é levado a crer e a temer a Deus, não se
pode dizer que a carne conspira contra o Espírito; mas entre a incerteza do que
possa ser verdadeiro e o que possa ser vantajoso, a mente é arrastada em
direções opostas.
Da mesma forma, quando a carne provoca a indulgência em relação à
luxúria, mas conselhos melhores fazem com que se oponha a esse tipo de atração,
não devemos supor que se trate de uma vida resistindo a outra, mas que é a
tendência da natureza do corpo, que está impaciente por esvaziar e limpar os
lugares cheios de umidade seminal; do mesmo modo, de forma parecida, não se
deve supor que seja algum poder adverso, ou a vida de outra alma, que excita em
nós o apetite da sede, e que nos impele a beber, ou que faz com que sintamos
fome e nos leve a satisfazê-la. Mas, assim como por um movimento natural do
corpo a comida e a bebida são desejadas ou rechaçadas, também a semente
natural, reunida ao longo do tempo nos múltiplos vasos, tem um desejo
impaciente de ser expulsa e lançada, e está muito longe de não ser nunca
removida, a não ser pelo impulso de alguma causa excitante, sendo às vezes
emitida espontaneamente.
Portanto, quando se diz que “a carne conspira (ou luta) contra o
Espírito”, essas pessoas entendem que essa expressão significa que o hábito ou
a necessidade, ou ainda o prazer da carne, movem o homem e o afastam das coisas
divinas e espirituais. Pois, devido à necessidade que o corpo tem de ser
arrastado, não nos é permitido ter tempo ocioso para as coisas divinas, que nos
são benéficas para toda a eternidade. Dessa maneira, a alma, dedicando-se ao
sucesso das coisas divinas e espirituais, e estando unida ao espírito, é vista
como lutando contra a carne, sem permitir que relaxe por indulgência e se torne
instável por influência dos prazeres pelos quais sente um deleite natural.
Da mesma maneira eles dizem entender as palavras: “A sabedoria da
carne é inimizade com Deus[118]”.
Não que a carne tenha realmente uma alma, ou uma sabedoria própria. Mas, como
costumamos dizer, por um abuso de linguagem, que a terra tem sede e deseja
beber água – sendo que o emprego da palavra “desejo” não é próprio, mas
alegórico – ou quando dizemos que uma casa quer ou busca ser reconstruída, e
muitas expressões similares, assim também devemos entender a expressão “sabedoria
da carne”, ou “a carne conspira contra o espírito”.
Geralmente, eles relacionam essa expressão com essa outra: “O sangue
de teu irmão clama a mim da terra[119]”.
Mas o que clama ao Senhor não é propriamente o sangue derramado, mas se diz
impropriamente, alegoricamente, que o sangue pede vingança contra quem o
derramou.
Da mesma forma, a declaração do Apóstolo: “Vejo outra lei em meus
membros, que se revela contra a lei do espírito[120]”,
é entendida por eles como se tivesse sido dito que quem deseja se dedicar à
palavra de Deus se torna, devido aos seus hábitos e necessidades corporais (que
estão estabelecidos em seu corpo como uma espécie de lei), distraído, dividido
e impedido, a não ser que, dedicando-se energicamente ao estudo da sabedoria,
seja capacitado para contemplar os mistérios divinos.
5.
Terá Deus criado aquilo que é hostil a Si
mesmo?
A respeito da seguinte classificação das obras da carne, a saber,
heresias, invejas, contendas e outras, eles entendem que a mente, ao se tornar
mais grosseira devido à sua concessão às paixões do corpo, sendo oprimida pela
massa dos seus vícios e não possuindo sentimentos refinados ou espirituais, se
torna carne, e recebe seu nome daquilo que exibe com mais vigor e força de
vontade.
Eles também se colocam a seguinte pergunta: “Quem poderá ser
encontrado, ou, de quem se poderá dizer que seja o criador desse mau sentido,
chamado de sentido da carne?”. Porque eles defendem a opinião que não existe
nenhum outro criador da alma e da carne senão Deus. E se nós afirmarmos que o
Deus bom criou tudo o que é hostil em sua própria criação, isso parecerá um
manifesto absurdo. Então, se está escrito que “a sabedoria carnal é inimizade
para com Deus”, e se diz que isso é resultado da criação, parecerá que Deus
formou uma natureza hostil a Si mesmo, que não pode ser submetida a Ele nem à
Sua lei, como se fosse, digamos, um animal do qual se afirmam essas qualidades.
E, se admitirmos essa teoria, em que isso será diferente dos que sustentam que
são criadas almas de natureza diferente, as quais, de acordo com sua natureza,
estão destinadas a se perder ou salvar-se?
Mas essa é uma teoria dos hereges somente, os quais, incapazes de
manter a justiça de Deus sobre a base da misericórdia, articulam invenções
ímpias desse tipo. Agora que já expusemos o melhor que pudemos, na pessoa de
cada partido, o que se poderia colocar por via de argumento em relação às
diferentes perspectivas, deixemos que o leitor escolha por si mesmo a que pense
ser a sua preferida.
5
O MUNDO SEU PRINCÍPIO NO TEMPO
1.
Criação e consumação do mundo
Agora, já que é um dos artigos da Igreja, sustentado principalmente em
consequência de nossa crença na verdade de nossa história sagrada, a saber, que
o mundo foi criado e teve seu princípio num determinado tempo e que, em conformidade
com o ciclo de tempo decretado para todas as coisas, será destruído devido à
sua corrupção, não será nada absurdo discutirmos alguns pontos relacionados com
esse tema. E, até onde alcança a credibilidade da Escritura, suas declarações
sobre esse tema são prova suficiente. Até os hereges, ainda que abertamente
opostos a muitas outras coisas, nesse ponto são unânimes, cedendo à autoridade
da Escritura.
A respeito da criação do mundo, pode a Escritura nos fornecer mais
informação do que que Moisés nos transmitiu sobre sua origem? Ainda que ali
estejam compreendidas matérias de significado muito mais profundo do que o que
a mera narrativa histórica parece indicar, e que estejam contidas muitas coisas
que devem ser entendidas espiritualmente, ele emprega a letra como uma espécie
de véu, ao tratar de temas profundos e místicos. Não obstante, a linguagem do
narrador mostra que todas as coisas visíveis foram criadas num determinado
tempo.
Mas no tocante à consumação do mundo, Jacó é o primeiro a dirigir aos
seus filhos essas palavras: “Reuni-vos, e eu vos declararei o que há de
acontecer nos dias derradeiros[121]”,
ou últimos dias. Então, se existem os “últimos dias”, ou um período de “dias
últimos”, os dias que tiveram um princípio necessariamente deverão chegar a um
final. Também Davi declara: “Os céus perecerão, e tu permanecerás; todos, como
uma vestimenta, envelhecerão; como uma roupa que se veste, os mudarás, e serão
mudados. Mas tu és o mesmo, e teus anos não se acabarão[122]”.
Nosso Senhor e Salvador, ao
dizer “Aquele que os fez no princípio, homem e mulher os fez[123]”,
atesta que o mundo foi criado; e outra vez, quando diz: “Passarão o céu e a
terra, mas minhas palavras não passarão[124]”,
assinala que as coisas são perecíveis, e que hão de chegar ao final. O Apóstolo,
ademais, ao declarar que “as criaturas foram sujeitas à vacuidade, não por sua
vontade, mas por causa Daquele que as submeteu com a esperança, de maneira que
as mesmas criaturas serão libertadas da servidão da corrupção na liberdade
gloriosa dos filhos de Deus[125]”,
evidentemente anuncia o final do mundo, do mesmo modo como diz: “A aparência
desse mundo é passageira[126]”.
Pois bem, mediante a expressão utilizada: “as criaturas foram
submetidas à vacuidade”, ele mostra que houve um princípio para esse mundo, já
que, se a criatura foi submetida à vacuidade devido a alguma esperança, isso
certamente aconteceu por alguma causa; e, tendo sido por uma causa,
necessariamente deve ter havido um princípio, porque sem princípio alguma
criatura não poderia ter sido submetida à vacuidade, nem poderia esperar ser
liberada da escravidão da corrupção, à qual não teria começado a servir. E quem
decidir buscar a seu gosto, encontrará numerosas passagens na Santa Escritura,
nas quais é dito que o mundo teve um começo, e que espera pelo final.
2.
Deus abarca todas as coisas com base em seu
princípio
Mas se houver alguém que se oponha à autoridade ou à credibilidade de
nossas Escrituras, eu lhe perguntaria se ele afirma se Deus pode, ou se não
pode abarcar todas as coisas. Afirmar que não pode seria um ato evidente de
impiedade. Se responder, então, que Deus abarca todas as coisas, segue-se que
do próprio fato de sua capacidade de as abarcar, devemos entender que tudo tem
um princípio e um final, sabendo que o que é totalmente sem princípio não pode,
de modo algum, ser abarcado. Porque, por muito que se possa esticar o
entendimento, a faculdade de compreender sem limites desaparece quando se
afirma que não existe princípio.
3.
A criação de múltiplos mundos
Quanto a isso, eles apresentam geralmente a seguinte objeção: “Se o
mundo esteve seu princípio no tempo, o que fazia Deus antes do mundo começar?
É, de imediato, ímpio e absurdo dizer que a natureza de Deus é inativa e
imóvel, ou supor que a bondade não fez o bem durante um tempo, ou que a
onipotência não exerceu seu poder durante um tempo”. Essa é a objeção que se
costuma fazer à nossa declaração de que o mundo teve seu princípio num dado
tempo, e que, de acordo com nossa crença na Escritura, somos capazes de
calcular os anos de sua duração passada.
Considero que nenhum herege possa responder facilmente a essas
proposições, em conformidade com a natureza de suas opiniões. Mas nós podemos
dar uma resposta logica em conformidade com a regra da piedade, se dissermos
que não foi aquela a primeira vez que Deus começou a operar ao fazer esse mundo
visível; mas que, assim como depois de sua destruição haverá outro mundo,
cremos que também existiram outros anteriores ao presente. Ambas as posições
serão confirmadas pela autoridade da Santa Escritura.
Que haverá outro mundo depois desse, é o que ensina Isaías, quando
diz: “Como permanecem diante de mim os novos céus e a nova terra que faço[127]”;
e, que existiram outros mundos anteriores a esse, é dito no Eclesiastes com as
palavras: “O que foi? É o mesmo que será. O que foi feito? O mesmo que se fará;
nada há de novo sob o sol. E se alguém disser: eis aqui algo novo! Isso já
aconteceu nos séculos que nos precederam[128]”.
De acordo com esses testemunhos, fica estabelecido que houve idades [séculos]
antes das nossas, e que haverá outras depois.
No entanto, não devemos supor que os múltiplos mundos existem
imediatamente, mas que, depois do final desse mundo, outros terão seu
princípio; a respeito disso é desnecessário repetir cada opinião particular,
visto que já o fizemos nas páginas precedentes.
4.
A criação desse mundo como “descida”
Esse ponto, em verdade, não deve ser displicentemente passado pro
alto, a saber, que as Santas Escrituras chamaram a criação do mundo por um nome
novo e peculiar, chamando-o katabolé,
que foi muito incorretamente traduzido para o latim como constitutio; porque, em grego, katabolé
significa mais propriamente dejicere,
isso é, “descida”; essa palavra foi erradamente traduzida ao latim, como já
comentamos, na frase constitutio mundi,
como no Evangelho de São João, onde o Salvador diz: “Haverá então grande
aflição, como não se vê desde o princípio do mundo[129]”,
passagem na qual katabolé foi
traduzida como “princípio” (constitutio),
coisa que deve ser entendida conforme explicamos acima.
Também o Apóstolo, na Epístola aos Efésios, emprega a mesma linguagem
ao dizer; “Segundo Ele nos escolheu antes da fundação do mundo[130]”;
ele chama essa fundação de katabolé,
que deve ser entendida no mesmo sentido de antes. Parece então que vale a pena perguntar porque esse termo novo foi proposto; e na verdade eu sou de opinião
que, já que a consumação final dos santos será no “reino do invisível e do
eterno[131]”,
temos que concluir, como temos assinalado nas páginas precedentes, que as
criaturas racionais tiveram um momento inicial semelhante ao que será aquele momento
final, e que, se seu começo foi semelhante ao fim que os espera, em sua
condição inicial terão existido no reino “do invisível e do eterno”. Se for
assim, devemos pensar que não só desceram de uma condição superior a outra
inferior as almas que mereceram tal trânsito por causa da diversidade de seus
impulsos, como também outras que, ainda que contra sua vontade, foram
trasladadas daquele mundo superior e invisível a este inferior e visível, para
benefício de todo o mundo. Porque, com efeito, “a criatura foi submetida à
vacuidade contra sua vontade, por causa Daquele que a submeteu com esperança[132]”.
Desse modo, o sol, a lua, as estrelas ou os anjos de Deus podem cumprir um
serviço no mundo, e esse mundo visível foi feito para essas almas que, pelos
muitos defeitos de sua disposição racional, tiveram necessidade desses corpos
mais grosseiros e sólidos.
A palavra katabolé (que
significa descida e é utilizada na Escritura com referência à constituição do
mundo), parece indicar essa “descida” das realidades superiores a um patamar
inferior. É verdade, sem dúvida, que toda a criação traz consigo uma esperança
de liberdade, para que se veja livre da servidão da corrupção, quando forem
reduzidos à unidade os filhos de Deus que caíram ou foram dispersos, quando
tiverem cumprido nesse mundo as funções que só Deus, artífice de tudo, conhece.
E devemos pensar que o mundo foi feito de tal natureza e magnitude que nele
possam exercitar-se todas as almas determinadas por Deus, bem como todas as
virtudes que estão dispostas para assistir e servir a elas. Mas que todas as
criaturas racionais sejam da mesma natureza, isso é algo que se pode provar com
muitos argumentos; pois só assim pode permanecer a salvo a justiça de Deus em
todas as suas disposições, a saber, colocando em cada uma delas a causa pela
qual ela foi colocada em tal ou qual ordem específica de seres vivos.
5.
Presciência divina e destino humano
Algumas pessoas não souberam compreender essa disposição de Deus, por
que não se deram conta de que Deus dispôs a variedade que vemos por causa das
opções livres – das naturezas racionais –, e que, já desde a origem do mundo,
previu Deus a disposição daqueles que haveriam de merecer ter um corpo devido a
um defeito em sua atitude racional, bem como daqueles que seriam seduzidos pelo
desejo das coisas visíveis, e daqueles que, voluntária ou involuntariamente,
teriam que prestar serviço aos que haviam caído em tal estado, sendo forçados à
sua condição mundana por Aquele que “os submetia com a esperança”. Por isso
ficam buscando como explicação a ação do acaso, ou se diz que tudo o que existe
nesse mundo acontece por necessidade, e que não temos liberdade alguma. Com
isso, é impossível deixar de culpar a providência.
6.
Cristo, restaurador da lei do governo do
mundo
Mas como dissemos que todas as almas que viveram nesse mundo tiveram
necessidade de muitos ministros, governos ou ajudantes, nos últimos tempos,
quando o fim do mundo já é iminente e próximo, e toda a raça humana está à
beira da última destruição – e quando não apenas os que foram os que eram
governados por outros foram reduzidos à debilidade, mas também aqueles a quem
havia sido encomendado seu cuidado e governo – já não será necessária tal
ajuda, nem tais defensores, mas será requerida a ajuda do Autor e Criador para
restaurar em uns a disciplina da obediência, que foi corrompida e profanada, e
em outros a disciplina de governar.
Daí que o Filho Unigênito de Deus, que foi Verbo e Sabedoria do Pai
(quando estava de posse da glória do Pai, a que tinha antes que o mundo
existisse[133]),
se despojou dela e, tomando a forma de servo, “se fez obediente até a morte, e
morte de cruz[134]”,
e, “ainda que fosse Filho, padeceu e aprendeu a obediência; e consumado, veio a
ser a causa de eterna salvação a todos os que o obedecem[135]”.
Ele também restaurou as leis de domínio e governo que haviam sido corrompidas,
ao submeter a todos os inimigos debaixo de seus pés, para, com isso – “porque é
necessário que Ele reine, até colocar a todos os inimigos debaixo de seus pés e
destruir seu último inimigo[136]”
– poder ensinar a moderação em seu governo aos próprios governadores.
Veio, pois, para restaurar não a disciplina de governo somente, mas a
obediência, como dissemos, realizando primeiramente Ele aquilo que desejava que
os outros realizassem; por isso foi obediente ao Pai, não apenas até a morte na
cruz, mas também até o final do mundo, abraçando a todos os que submete ao Pai,
que por meio dele alcançam a salvação. Ele próprio, juntamente com eles, e
neles, se submeterá ao Pai[137];
todas as coisas subsistem Nele, e Ele é a cabeça de todas as coisas[138],
em quem está a salvação e a plenitude dos que obtêm a salvação. Por isso o
Apóstolo disse: “Mas logo que todas as coisas lhe forem submetidas, então
também o próprio Filho se submeterá Àquele que submeteu a ele todas as coisas,
para Deus seja tudo em todos[139]”.
7.
A sujeição do Filho ao Pai
Não sei como os hereges, não entendendo o significado do Apóstolo
nessas palavras, consideram o termo “sujeição” como algo degradante aplicado ao
Filho; porque, se for posta em questão a propriedade do título, pode-se
averiguar facilmente fazendo-se uma suposição contrária. Porque se não fica bem
estar sob sujeição, segue-se que o contrário será bom, ou seja, não estar
sujeito. Agora, a linguagem do Apóstolo, segundo opinam, parece indicar que,
por essas palavras – “quando todas as coisas lhe forem submetidas, então o
próprio Filho se submeterá Àquele que submeteu a ele todas as coisas” – Ele,
que agora não está submetido ao Pai, se submeterá a Ele quando o Pai tiver
primeiro submetido a ele todas as coisas.
Me assombra que se possa conceber que seja esse o significado: que se
imagine que Aquele que não está submetido até que todas as coisas estejam
submetidas, no momento em que tudo lhe tenha sido submetido, e quando houver se
convertido em Rei de todos os homens, seja então submetido, sabendo que Ele nunca
estivera antes sob sujeição. Porque os tais não entendem que a sujeição de
Cristo ao Pai indica que nossa felicidade alcançou sua perfeição, e que a obra
empreendida por Ele alcançou seu vitorioso término, sabendo que não apenas Ele
purificou o poder de governo supremo sobre toda a criação, como ainda apresenta
ao Pai os princípios da obediência e da submissão da raça humana numa condição
corrigida e melhorada.
Portanto, se sustentamos que essa submissão do Filho ao Pai é boa e
saudável, é uma inferência sumamente lógica e racional deduzir que a sujeição
dos inimigos, que, como se diz, hão de se submeter ao Filho de Deus, deve
também ser entendida como saudável e benéfica, como se, ao dizermos que o Filho
se submeterá ao Pai, esteja implicada a restauração perfeita da criação em sua
totalidade. Da mesma forma, quando se diz que os inimigos serão submetidos ao
Filho de Deus, devemos compreender que a salvação consiste na salvação dos
conquistados e na restauração dos perdidos.
8.
Os que se deixam ensinar a salvar
Essa sujeição, no entanto, se realizará de certa maneira, e depois de
certa educação e num certo tempo; porque não devemos imaginar que a submissão
será causada pela pressão da necessidade – e menos ainda que o mundo inteiro
seja submetido a Deus pela força –, mas pela palavra, a razão e a doutrina; por
um chamado a um curso melhor das coisas, mediante os melhores sistemas de
educação, pelo emprego de ameaças convenientes e apropriadas, que se derramarão
sobre os que desprezam qualquer cuidado ou atenção por sua salvação e
utilidade. Numa palavra, na educação de nossos servos ou filhos, nós, homens,
também os refreamos mediante ameaças e medo, enquanto ainda são, devido à sua
pouca idade, incapazes de usar sua razão; mas quando começam a entender o que é
bom, útil e honrado, termina o medo do castigo e consentem em tudo o que é bom
pela pressão moral das palavras e da razão.
Mas o modo como deveria regrar-se as pessoas consistentemente com a
preservação do livre arbítrio em todas as criaturas racionais; e quem são os
que o Verbo de Deus encontra e educa, como se já estivessem preparados e
capacitados para tal; quem são os que serão deixados para um tempo posterior;
de onde são aqueles que estão totalmente ocultos; quem está situado tão longe
que não consegue ouvir; quem são os que desprezam a palavra de Deus quando lhes
é anunciada e predicada, e quem é levado à salvação por uma espécie de
corrupção e castigo, cuja conversão é em certa medida exigida e reclamada; quem
são aqueles a quem são concedidas certas oportunidades de salvação de maneira a
que, demonstrando sua fé com uma única resposta, obtêm inquestionavelmente sua
salvação; e a partir de que causa ou em que ocasiões tiveram lugar esses
resultados; ou o que a sabedoria divina vê dentro deles, ou que movimentos de
sua vontade leva a Deus a arranjar as coisas assim – tudo isso e muito mais só
é conhecido por Deus, por Seu Filho Unigênito, por meio de quem todas as coisas
criadas serão restauradas, e pelo Espírito Santo, por quem todas as coisas são
santificadas, e que procede do Pai, a quem se deve a glória para sempre. Amém.
6
O FIM DO MUNDO
1.
Da imagem à semelhança de Deus
Com relação ao fim do mundo e à consumação das coisas, já dissemos nas
páginas precedentes, com o melhor de nossa capacidade e até onde nos permite a
autoridade da Santa Escritura, o que consideramos suficiente para o propósito
de instrução; aqui só acrescentaremos alguns comentários de advertência, já que
a ordem de nossa investigação nos devolveu o tema.
O maior bem, cujo fim perseguiam todas as naturezas racionais, que é
também chamado de fim de toda bênção, é definido por muitos filósofos como
segue: o maior bem dizem, é se tornar semelhante a Deus, tanto quanto seja
possível. Mas considero que essa definição não é tanto um descobrimento seu,
como é nosso, derivado da Santa Escritura. Porque muito antes dos filósofos,
quando Moisés falou da primeira criação do homem, ele disse essas
significativas palavras: “Disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme
a nossa semelhança[140]”,
e acrescentou: “E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou;
homem e mulher o criou, e o abençoou Deus[141]”.
A expressão “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou”, sem
mencionar a palavra “semelhança”, não tem outro significado senão que o homem
recebeu a dignidade da imagem de Deus em sua primeira criação, mas que a
perfeição de sua semelhança foi reservada para a consumação, as saber, para que
pudesse adquiri-la pelo exercício de sua própria diligência na imitação de
Deus, tendo sido a possibilidade de alcançar essa perfeição concedida desde o
princípio pela dignidade da imagem divina, e a realização perfeita da
semelhança divina podendo ser alcançada ao final por meio do cumprimento das
obras necessárias.
Que isso é assim o apóstolo João o ensina mais claramente e sem deixar
dúvidas, quando faz a seguinte declaração: “Meus amados, agora somos filhos de
Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser; mas sabemos que, quando
Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é[142]”.
Por meio dessa expressão ele mostra com extrema clareza que não é só o fim de
todas as coisas que esperamos, e que disse ser-lhe desconhecido, como também a
semelhança de Deus, que será concedida em proporção à perfeição de nossos atos.
O próprio Senhor não só declara no Evangelho que esses resultados serão
futuros, como ainda que serão alcançados por meio de sua própria intercessão.
Ele mesmo ora para que possa obtê-los do Pai para seus discípulos, dizendo:
“Pai, aqueles que me deste, quero que, onde eu estiver, estejam eles também
comigo[143]”.
Se podemos nos expressar assim, a semelhança divina parece avançar de uma mera
similaridade a uma semelhança real, porque indubitavelmente será na consumação,
ou no fim, que Deus será “tudo em todos”.
Com referência a isso, alguns se perguntam se a natureza da matéria
corporal, ainda que limpa, purificada e tornada totalmente espiritual, não
representará um obstáculo para conseguir a dignidade da semelhança divina, ou
para o sucesso da unidade, porque uma natureza corporal não parece ser capaz de
nenhuma semelhança com a natureza divina, que é certamente incorpórea, e
tampouco ela pode ser considerada como certa e merecidamente una com essa
natureza, em especial porque a verdade de nossa religião ensina que somente
aquilo que é uno, a saber, o Pai com o Filho, pode se referir à particularidade
da natureza divina.
2.
Nem todas as coisas estarão em Deus no final
Já que se promete que no final Deus será tudo em todos, não devemos
supor que os animais, ovelhas ou outro gado, se incluam nesse final, para não
implicar que Deus habitou inclusive os animais, ou pedaços de madeira ou
pedras, como se Deus estivesse neles também.
Do mesmo modo, não devemos supor que qualquer coisa injusta alcance
esse final, porque, ainda que se diga que Deus está em todas as coisas, não se
pode dizer que esteja também em um vaso de injustiça. Porque se nós afirmamos
que Deus está em todas as partes, com base em que nada pode estar vazio de
Deus, também dizemos que Ele não é “todas as coisas” nas quais está.
Assim, devemos considerar com muito cuidado o que é que denota a
perfeição da bem-aventurança e o fim das coisas, que não diz simplesmente que
Deus está em todas as coisas, mas que Ele será “tudo em todas as coisas”.
Vamos, pois, verificar o que são essas coisas nas quais Deus será tudo.
3.
Deus, “tudo em todos”
Sou de opinião que a expressão com a qual se diz que Deus será “tudo
em todos” significa que Ele é “tudo” em cada pessoa individualmente. Agora, Ele
será “tudo” em cada indivíduo do seguinte modo: quando todo entendimento
racional, limpo da imundície de todo tipo de vício e varrido completamente de
toda nuvem de maldade, possa sentir, entender ou pensar, ele será totalmente
Deus, e se não puder reter ou manter nada senão Deus, sendo Deus a medida e
modelo de todos os seus movimentos, então Deus será “tudo”, porque já não
haverá distinção entre o bem e o mal, visto que o mal já não existirá em parte
alguma, porque Deus será tudo em todos, e não existe mal Nele. Tampouco
persistirá o desejo de comer do fruto da árvores do conhecimento do bem e do
mal da parte de quem estará sempre na posse do bem, e para quem Deus é tudo.
Assim, quando o fim tiver
restaurado o princípio, e a terminação das coisas seja comparável ao seu
começo, a condição em que a natureza racional foi colocada será restabelecida,
quando não houver necessidade de comer do fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal; e assim, quando for retirado todo sentimento de malícia, o
indivíduo, purificado e limpo, aquele que é somente o bom Deus será “tudo” para
ele – e isso, não no caso de alguns poucos indivíduos, mas de um números
considerável.
Quando a morte não mais existir em parte alguma, nem o aguilhão da
morte, nem mal algum em absoluto, então, certamente Deus será “tudo em todos”.
Mas alguns opinam que a perfeição e a bem-aventurança das naturezas ou
criaturas racionais só podem permanecer nessa condição se uma natureza corporal
não impedir essa união. De outro modo, pensam, a glória da bem-aventurança mais
excelsa será impedida pela mescla de uma substância material. Mas esse tema já
foi discutido de maneira extensa, como se pode ver nas páginas precedentes.
4.
O corpo espiritual e a unidade de todas as
coisas
E agora, como encontramos o Apóstolo fazendo menção a um corpo
espiritual[144],
consideremos, com o melhor de nossa capacidade, que ideia devemos formar de tal
coisa. Até aqui, tanto quanto nosso entendimento é capaz de compreender,
pensamos que o corpo espiritual deve ser de tal natureza que seja habitado não
apenas pelas almas santas e perfeitas, como também pelas de todas aquelas
criaturas que serão libertas da escravidão da corrupção. “Temos de Deus uma
morada, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus[145]”,
disse o Apóstolo referindo-se às mansões dos bem-aventurados. A partir dessa
declaração podemos formar uma conjectura sobre o quão puras, quão refinadas e
quão gloriosas serão as qualidades daquele corpo, se os compararmos com os que,
ainda que corpos celestes de refulgente esplendor, foram entretanto feitos por
mãos e são visíveis à nossa visão. Mas daquele corpo, está dito que é uma casa
não feita por mãos, mas eterna e no céu.
“Porque as coisas que se veem são temporais, mas as que não se veem
são eternas[146]”;
todos os corpos que vemos, seja na terra ou no céu, visíveis e feitos por mãos,
não são eternos, e estão muito longe de superar em glória o que não é visível,
nem feito por mãos, mas eterno. Dessa comparação podemos conceber o quão grande
pode ser a beleza, o esplendor e a lucidez do corpo espiritual, e quanto é
verdade que “as coisas que o olho não viu, nem o ouvido escutou, nem subiram ao
coração do homem, são as que Deus preparou para aqueles que o amam[147]”.
Entretanto, não devemos duvidar que a natureza desse nosso corpo presente pode,
pela vontade de Deus que o fez, ser elevado a essas qualidades de refinamento,
pureza e esplendor que caracterizam o corpo espiritual, segundo requeira a
condição das coisas e o exija o merecimento de nossa natureza racional.
Finalmente, quando o mundo requereu variedade e diversidade, a matéria
se ofereceu com toda docilidade ao Criador em todas as diversas aparências e
espécies de coisas que seu Senhor e formador pudesse extrair de suas várias
formas em seres celestes e terrestres. Mas quando as coisas começarem a se
apressar para aquela consumação na qual poderão ser uma, como o Pai é um com
seu Filho, podemos entender, como uma inferência racional, que, onde todos são
um, não haverá mais nenhuma diversidade.
5.
A ressurreição da carne
Ademais, o último inimigo que é chamado de morte, será destruído[148],
porque nada de uma classe tão triste como a morte poderá existir, nem nada
adverso, quando não houver inimigo. Pela destruição do último inimigo não se
deve entender que sua substância, que foi criada por Deus, tenha que
desaparecer; o que desaparecerá será sua má intenção e sua atitude hostil, que são
coisas que não têm sua origem em Deus, mas em si mesmo. Sua destruição significa,
pois, não que deixará de existir, mas que deixará de ser inimigo e de ser
morte. Nada é impossível à onipotência divina; nada que não possa ser sanado
por seu Criador. O Criador fez todas as coisas para que existissem, e, se as
coisas foram feitas para existir, não podem deixar de existir.
Por essa razão também haverá mudança e variedade para serem colocadas
segundo seus méritos, seja em posição melhor ou pior; mas nenhuma destruição de
substância poderá acontecer àquelas coisas que foram criadas por Deus para
permanecerem. Sobre aquelas coisas que a opinião comum acredita que perecerão,
a natureza de nossa fé e de nossa verdade não nos permite supor que serão
destruídas.
Finalmente, alguns homens ignorantes e incrédulos supõem que nossa
carne se destrói depois da morte de tal maneira que não conserva nenhum resto
de sua substância anterior. Nós, no entanto, que acreditamos na ressurreição,
entendemos que na morte só se produz sua corrupção, mas que sua substância
certamente permanece; e, pela vontade de seu Criador, no tempo designado, será
restaurada a vida; e pela segunda vez haverá uma mudança, de maneira que aquilo
que primeiro foi a carne formada do pó da terra e depois dissolvida pela terra
e reduzida a pó e cinzas – “Tu és pó, e ao pó tornarás[149]”
– se levantará da terra e, depois disso, segundo os méritos da alma que a
habitava, avançará para a glória de um corpo espiritual.
6.
A identidade do corpo para a eternidade
Nessas condições, pois, devemos supor que toda a nossa substância
corporal será recuperada, quando todas as coisas forem restabelecidas num estado
de unidade e Deus for tudo em todos. O
restabelecimento final dessa unidade não deve ser concebida como algo que vá
acontecer de repente, mas que irá se fazendo por estágios sucessivos,
gradualmente, ao longo de um tempo inumerável. A correção e a purificação se
fará pouco a pouco em cada um dos indivíduos. Alguns irão adiante, e chegarão
primeiro às alturas com um rápido progresso; outros os seguirão de perto,
outros, de longe. Dessa forma multidões de indivíduos e incontáveis seres irão
avançando e se reconciliando com Deus, de quem antes era inimigos. Finalmente caberá
a vez ao último inimigo, chamado morte, que será destruído para deixar de ser
inimigo.
Então, quando todos os seres racionais tenham sido restaurados, a
natureza desse nosso corpo será transmutada na glória do corpo espiritual.
Assim como as almas que foram pecadoras serão reconciliadas com Deus e entrarão
num estado de felicidade depois de sua conversão, devemos considerar que nosso
corpo, do qual agora fazemos uso num estado de miséria, corrupção e debilidade,
não será diferente do que possuiremos num estado de incorrupção, poder e
glória, mas será o mesmo corpo, que terá lançado longe as enfermidades que
agora o assolam, e será transmutado a uma condição de glória, convertido em
espiritual, para que um vaso de desonra, sendo limpo, se torne um vaso de honra
e uma morada de felicidade.
Devemos também crer que, pela vontade do Criador, nosso corpo
permanecerá para sempre sem mudança nessa condição, como se confirma pela
declaração do Apóstolo, que disse: “Temos uma casa eterna no céu, não feita por
mãos”. Porque a fé da Igreja não admite a opinião de certos filósofos gregos,
de que, além do corpo composto por quatro elementos, existe um quinto corpo,
que é diferente em todas as suas partes, e diverso desse nosso corpo presente; pois
ninguém pode deduzir da Escritura nem o menor traço dessa crença, nem nenhuma
inferência racional das coisas permite a aceitação dessa ideia, em especial
quando o Apóstolo declara manifestamente que não será um novo corpo que será
dado aos que ressuscitarem dos mortos, mas que receberão o mesmo e idêntico
corpo que possuíram em vida, transformado de sua condição pior para uma melhor.
Porque suas palavras são: “Semeado em corrupção, se levantará na incorrupção;
semeado na vergonha, se levantará em glória[150]”.
Como, portanto, existe uma espécie de progresso no homem, que de um
animal primeiro, sem entender o que pertence ao Espírito de Deus, alcança,
mediante a instrução, a etapa de se converter num ser espiritual, e de julgar
todas as coisas, enquanto que não é julgado por ninguém, da mesma forma
acontecerá com o corpo, pois esse mesmo corpo de agora, que com base no serviço
que presta à alma, é considerado um corpo animal, alcançará, por meio de um
certo progresso (quando a alma unida a Deus se torne um só espírito com Ele),
uma qualidade e condição espiritual, principalmente porque a natureza do corpo
foi formada pelo Criador para passar facilmente por qualquer condição que
deseje ou demande o caso. Então, até o corpo servirá ao espírito perante Deus.
7.
Deus faz e refaz tudo de novo
Todo esse raciocínio se reduz ao seguinte: Deus criou duas naturezas
gerais, uma visível, isso é, a natureza corpórea, e outra invisível, que é
incorpórea. Essas duas naturezas permitem duas permutações diferentes. A natureza
visível e racional se transforma em mente e propósito, porque está dotada de
livre vontade, e é sobre esse fundamento que ela às vezes se ocupa da prática
do bem, outras do mal. Mas a natureza corpórea admite uma mudança de
substância; daí que também Deus, que ordena todas as coisas, tem o serviço
dessa matéria à sua disposição para moldar, fabricar ou retocar qualquer forma
ou espécie que deseje, segundo demande o merecimento de cada coisa. O profeta contemplou
isso com clareza, ao dizer: “Eis que faço uma coisa nova[151]”.
8.
Os tempos da salvação
Agora nosso ponto de investigação será se, quando Deus for tudo em
todos, a natureza corporal, na consumação de todas as coisas, consistirá de uma
espécie, e a única qualidade do corpo será a de brilhar na glória indescritível
que devemos considerar como a posse futura do corpo espiritual. Se entendemos
corretamente a questão, quando Moisés disse no princípio de seu Livro: “No princípio
criou Deus os céus e a terra[152]”,
esse é o começo de toda a criação; a esse começo deve se referir o fim e a
consumação de todas as coisas, a saber, que o céu e a terra podem ser o lar e a
morada de descanso do justo; de modo a que todos os santos e os mansos podem
herdar a terra, já que isso é o que ensinam a lei, os profetas e o Evangelho. E
nessa terra eu creio que existem as formas verdadeiras e vivas daquela adoração
que Moisés transmitiu sob a sombra da lei, da qual foi dito: “Os quais servem
de esboço e sombra das coisas celestiais[153]”.
Ao mesmo tempo, também foi dada a Moisés a seguinte prescrição: “Olha e faz
conforme o modelo que te foi mostrado no monte[154]”.
Por isso, me parece que nessa terra a lei foi uma espécie de mestre para os que
iriam ser levados a Cristo, de modo que sendo instruídos e exercitados nela,
pudessem depois receber com muito mais facilidade os princípios mais perfeitos
de Cristo; da mesma forma, a terra receptora de todos os santos pode primeiro
incutir-lhes e moldar neles as instruções da lei verdadeira e eterna, para que
possam com mais facilidade tomar posse das perfeitas instruções do céu, às
quais nada se pode acrescentar. Ali estará, certamente, o Evangelho que se
chama eterno, e aquele Testamento, sempre novo e nunca velho.
9.
A consumação final
Consequentemente, devemos supor que, quando da consumação e
restauração de todas as coisas, aqueles que conseguirem um avanço gradual, e
aqueles que ascenderem na escala da perfeição, chegarão na medida prevista e
ordenada àquela terra e àquela educação que ela representa, onde possam ser
preparados para instituições melhores às quais nenhuma adição possa ser feita. Porque,
depois de seus agente e servos, o Senhor Cristo, que é Rei de todos, assumirá o
reino; vale dizer que, depois da instrução das virtudes santas Ele mesmo
instruirá os que forem capazes de recebê-Lo, enquanto sabedoria, reinando neles
até que os tenha submetido ao Pai, que submeteu todas as coisas a Ele; ou seja,
quando eles estiverem aptos para receber a Deus, Deus poderá ser tudo em todos.
Então, como uma consequência necessária, a natureza corporal obterá
sua mais alta condição, à qual nada mais poderás ser acrescentado. Tendo considerado
a qualidade da natureza corporal ou corpo espiritual até esse ponto, deixamos à
eleição do leitor determinar o que considera melhor. E aqui podemos concluir
esse terceiro livro.
[1]
Miqueias 6: 8.
[2]
Deuteronômio 30: 15-16.
[3]
Isaías 1: 19-20.
[4]
Salmo 81: 13-14.
[5]
Mateus 5: 38-39.
[6]
Mateus 5: 22.
[7]
Mateus 5: 28.
[8]
Mateus 7: 24, 26.
[9]
Mateus 25: 34.
[10]
Mateus 25: 41.
[11]
Êxodo 4: 21; 7: 3.
[12]
Ezequiel 11: 19-20.
[13]
Marcos 4: 12; Lucas 8: 10.
[14]
Romanos 9: 16.
[15]
Filipenses 2: 13.
[16]
Romanos 9: 18-19.
[17]
Gálatas 5: 8.
[18]
Romanos 9: 20-21.
[19]
Romanos 9: 18.
[20]
“Aqueles que pretendem que haja outro Deus além do Criador, querem que esse
último seja justo e não bom, pois, por incapacidade e impiedade juntas, foram
arrastados a separar a justiça da bondade e a pensar que se pode encontrar em
alguém justiça sem bondade e bondade sem justiça. Ora, mesmo dizendo isso,
admitem, contradizendo sua própria concepção de Deus justo, que Ele endureceu o
coração do Faraó, e que o dispôs para obedecer-Lhe (...) De acordo com a
interpretação dessas pessoas, Deus contribuiu para fazer do Faraó o mais
injusto dos homens.” (Orígenes, Comentários
ao Êxodo)
[21]
Êxodo 9: 17; 4: 23.
[22]
Êxodo 12: 12.
[23]
“Com efeito, é indigno de um Deus causar um endurecimento no coração de alguém
e provocá-lo depois para que desobedeça a vontade Daquele que o endureceu.
Acaso – dizem – não é absurdo que Deus atue sobre alguém para fazê-lo
desobedecer à sua vontade?” (Orígenes, Comentários
ao Êxodo)
[24]
Hebreus 6: 7-8.
[25]
“Sobre toda a terra, pela operação da mesma chuva, o terreno que é cultivado
produz frutas úteis que abençoam os cultivadores diligentes e cuidadosos,
enquanto que o terreno endurecido pela negligência do granjeiro só traz
espinhos e cardos. Consideremos, portanto, aqueles sinais e milagres feitos por
Deus, como a chuva enviada do alto; e os objetivos e desejos dos homens, como o
terreno cultivado ou inculto, que são da mesma natureza, como é cada terreno
comparado entre si, mas não em estado de mesmo cultivo. Daí se segue que a vontade
de cada um, se inexperiente, ou feroz, ou bárbaro, é endurecido pelos milagres
e maravilhas de Deus, crescendo ainda mais selvagem e espinhoso do que
anteriormente; ou então se torna mais flexível e produtiva graças à obediência
e à limpeza do vício em sua mente, submetida à educação divina.” (Versão latina
de Rufino)
[26]
Êxodo 8: 24, 23.
[27]
“Aqueles senhores que são notáveis pela bondade pera com seus servos, com
frequência dizem a eles, quando, por sua paciência e indulgência, se tornam
insolentes e indignos: ‘Sou eu que te fiz mal; sou culpado de teus hábitos
perversos e maus, porque não te castiguei imediatamente por cada delito teu,
segundo mereceste’. Porque primeiro devemos atender ao significado figurado da
linguagem, para ver a força da expressão e não colocar reparos com palavras
cujo significado interior não averiguamos”. (Versão latina de Rufino)
[28]
Romanos 2: 4-5.
[29]
Isaías 63: 17.
[30]
Jeremias 20: 7.
[31]
Hebreus 12: 6.
[32]
Romanos 8: 35.
[33]
Cf. Romanos 10: 9. “Se confessares com tua boca ao Senhor Jesus, e creres em
teu coração que Deus se levantou dos mortos, serás salvo”.
[34]
Lucas 14: 11.
[35] I
Coríntios 1: 29.
[36]
“A palavra de Deus é um médico para a alma, que utiliza os métodos terapêuticos
mais variados, os mais oportunos e mais adaptados aos enfermos. Esses meios
produzem sofrimentos e tormentos maiores ou menores aos que seguem o
tratamento. Igualmente, os remédios são mais ou menos rápidos; podem ser
aplicados, seja depois que os pacientes se fartaram do pecado, ou depois de,
por assim dizer, tê-lo apenas degustado (...) Talvez Deus abandone as almas
quando essas ambicionam os bens do corpo, considerados como fontes de prazer,
até que, saciadas, se voltem às realidades a que aspiram, como se quisessem
vomitá-las e não recair nelas, visto que, quanto mais se fartam, mais
castigadas são. E com lentidão são conduzidas à cura as almas que, se fossem
liberadas rapidamente de seus males, menosprezariam o perigo de uma recaída nos
mesmos. Deus Criador conhece as disposições de cada um e, correspondendo isso à
Sua própria vontade, pode fazer o tratamento com sabedoria, conhecendo o que é
necessário fazer a cada um, e quando”. (Orígenes, Comentários ao Êxodo)
[37]
“Com a mesma intenção, na minha opinião, Deus disse: ‘Endurecerei o coração do
Faraó”. Em primeiro lugar, isso aconteceu para a salvação do povo, fortalecido
em sua fé graças aos numerosos prodígios; em seguida, para a salvação dos
egípcios que, cheios de espanto pelos acontecimentos, seguiram em grande número
aos hebreus (Êxodo 12: 38). Mas, de um modo mais secreto e mais oculto, talvez
isso tenha sucedido para benefício do próprio faraó: ele já não ocultou seu
veneno, mas o extraiu e o manifestou à luz do dia”. (Orígenes, Comentários ao Êxodo)
[38]
Cf. Mateus 13: 5-6.
[39]
Sabedoria 7: 16. Em seu Comentários ao Êxodo,
Orígenes escreve: “Talvez, atuando, o elimine de tal maneira que, depois de
haver expelido completamente o mal presente nele, possa daí para frente deixar
sem forças a árvore portadora de males. Pode inclusive acontecer que,
finalmente, se seque o mal, engolido pelo mar; isso não acontece para que seja
totalmente destruído, mas para que, rechaçando seus pecados e aliviado deles,
desça ao Hades em paz, ou, ao menos, se que sua alma encontre um grande
conflito. Provavelmente nossos leitores dificilmente se convencerão, e pensarão
que nossa explicação é forçada, ao dizermos que foi útil ao Faraó ter o coração
endurecido, e que todos os acontecimentos relatados, incluindo seu afogamento,
lhe foram favoráveis”.
[40]
Romanos 9: 18.
[41]
Ezequiel 11: 19-20.
[42]
Marcos 4: 12.
[43]
Cf. Mateus 11: 21-22. “Ai de ti, Corazin! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em
Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres que foram feitos no meio de
vós, há muito tempo elas teriam feito penitência, vestindo-se de cilício e
cobrindo-se de cinzas. Pois bem! Eu vos digo: no dia do julgamento, Tiro e
Sidônia terão uma sentença menos dura do que vós”.
[44]
Romanos 9: 16.
[45]
Salmo 127: 1.
[46] I
Coríntios 3: 6.
[47]
Filipenses 2: 13.
[48]
“Certamente, Deus não poderia afirmar da mesma maneira o seguinte: “O homem não
tem liberdade para voar”, ou “O homem não é livre para ser virtuoso”. O homem
carece da faculdade de voar, mas possui a de ser virtuoso ou licencioso. Posto
que essas duas faculdades existem, aquele que não escuta os chamados à
conversão e as palavras educativas se entrega à má faculdade, e aquele que
busca o bem e decide adequar sua vida a ele busca a faculdade boa. O primeiro
não busca a verdade, porque tende ao prazer. O segundo a busca com cuidado,
obtendo-a por meio das noções comuns e das palavras de exortação. O primeiro
elege o prazer, não porque seja incapaz de fazer-lhe frente, mas por não lutar;
o segundo despreza o prazer, pois enxerga a vergonha a que este conduz”.
(Orígenes, Comentários ao Gênesis)
[49]
Romanos 9: 18-21.
[50]
II Timóteo 1: 16-18.
[51]
II Coríntios 5: 10.
[52]
II Timóteo 2: 20-21.
[53]
Êxodo 19: 19.
[54]
II Timóteo 2: 21.
[55]
Romanos 9: 21.
[56]
Gênesis 22: 11-12.
[57]
Êxodo 4: 24.
[58]
Êxodo 12: 23.
[59]
Levítico 16: 18. Azazel, da raiz azal,
“retirar”.
[60] I
Samuel 18: 10.
[61] I
Reis 22: 19-23.
[62] I
Crônicas 21: 1.
[63]
Eclesiastes 10: 4.
[64]
Zacarias 3: 1.
[65]
Isaías 27: 1.
[66]
Ezequiel 28: 12ss.
[67]
João 13: 27.
[68]
Efésios 6: 12.
[69]
Cf. I Coríntios 2: 6-8. (N.T.: referência não encontrada)
[70]
Gálatas 5: 17.
[71] I
Coríntios 10: 13.
[72] I
Coríntios 10: 13.
[73]
Salmo 76: 10, LXX.
[74]
Eclesiastes 10: 4.
[75]
II Coríntios 10: 5.
[76]
Salmo 84: 5.
[77]
II Coríntios 8: 16.
[78]
Tobias, capítulos 5-6.
[79]
Zacarias 1: 14.
[80] Pastor de Hermas 6: 2.
[81]
Mateus 27: 63.
[82]
João 13: 2.
[83]
Provérbios 4: 23.
[84]
Hebreus 2: 1.
[85]
Efésios 4: 27.
[86]
Efésios 6: 12.
[87]
Atos 9: 15.
[88]
Mateus 16: 18.
[89]
João 16: 33.
[90]
Filipenses 4: 13.
[91] I
Coríntios 15: 10.
[92]
Romanos 8: 38-39.
[93]
Salmo 27: 1-3.
[94]
Gênesis 32: 38.
[95]
João 19: 11.
[96]
Jó 1: 10-11.
[97]
Mateus 10: 29.
[98]
Jó 7: 11.
[99] I
Coríntios 2: 6-8.
[100]
Mateus 12: 42.
[101]
Ibid.
[102]
Daniel, 10.
[103]
Ezequiel, 26.
[104]
Salmo 2: 2.
[105]
I Coríntios 2: 6-8.
[106]
João 13: 2.
[107]
I Pedro 5: 8.
[108]
Romanos 8: 7; Gálatas 5: 17.
[109]
Efésios 6: 12.
[110]
Gálatas 5: 17.
[111]
Levítico 17: 14.
[112]
Romanos 7: 23.
[113]
Processo segundo o qual se supõe que a alma humana se transmite de pais a
filhos desde o começo da humanidade.
[114]
Gálatas 5: 19-21.
[115]
I Coríntios 1: 26.
[116]
Gálatas 5: 17.
[117]
Romanos 8: 9.
[118]
Romanos 8: 7.
[119]
Gênesis 4: 10.
[120]
Romanos 7: 23.
[121]
Gênesis 49: 1.
[122]
Salmo 102: 26-27.
[123]
Mateus 19: 4.
[124]
Mateus 24: 35.
[125]
Romanos 8: 20-21.
[126]
I Coríntios 7: 31.
[127]
Isaías 66: 22.
[128]
Eclesiastes 1: 9-10.
[129]
Mateus 24: 21.
[130]
Efésios 1: 4.
[131]
II Coríntios 4: 18.
[132]
Romanos 8: 20-21.
[133]
Cf. João 17: 5.
[134]
Filipenses 2: 8.
[135]
Hebreus 5: 8-9.
[136]
I Coríntios 15: 25.
[137]
I Coríntios 15: 28.
[138]
Colossenses 1: 17-18.
[139]
I Coríntios 15: 28.
[140]
Gênesis 1: 26.
[141]
Gênesis 1: 27-28.
[142]
I João, 3: 2.
[143]
João 17: 24.
[144]
I Coríntios 15: 44.
[145]
II Coríntios 5: 11.
[146]
II Coríntios 4: 18.
[147]
I Coríntios 2: 9.
[148]
I Coríntios 6: 26.
[149]
Gênesis 3: 19.
[150]
I Coríntios 15: 42-43.
[151]
Isaías 43: 19.
[152]
Gênesis 1: 1.
[153]
Hebreus 8: 5.
[154]
Êxodo 25: 40.
Nenhum comentário:
Postar um comentário