segunda-feira, 4 de junho de 2018

Orígenes - Tratado sobre os Princípios - Livro I






Orígenes, cognominado Orígenes de Alexandria ou Orígenes de Cesareia ou ainda Orígenes, o Cristão (Alexandria, Egito, c. 185 — Cesareia, ou, mais provavelmente, Tiro, 253), foi um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e é um dos Padres gregos. Foi um dos primeiros a sistematizar os ensinamentos apostólicos, estando na base de toda a teologia Ortodoxa que foi desenvolvida nos séculos posteriores. Restaram pouquíssimas de suas inúmeras obras, dentre as quais destaca-se esse breve “Tratado sobre os Princípios”, dividido em quatro livros, dos quais reproduzimos o primeiro volume a seguir, partindo da versão de Alfonso Ropero baseada na coleção da Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers, vol. 4, dirigida por Philip Schaff.

PREFÁCIO

1.       Proposições dos temas que serão tratados

Todos aqueles que creem e que têm a convicção de que a graça e a verdade nos foram dadas por Jesus Cristo, sabem que Cristo é a verdade, como ele próprio disse: “Eu sou a verdade[1]”, e que a sabedoria que induz os homens a viver bem e alcançar a felicidade não provém de outro lugar que não das próprias palavras e ensinamentos de Cristo. Como palavras de Cristo não entendemos apenas aquelas que Ele mesmo pronunciou quando se fez homem e habitou a carne, já que, antes desse tempo, a Palavra de Deus estava em Moisés e nos Profetas. Porque, sem a Palavra de Deus, como poderiam eles ter sido capazes de profetizar a Cristo?

Se não fosse nosso propósito manter o presente tratado dentro dos limites da maior concisão possível, não seria difícil mostrar, como prova dessa afirmação, com as Santas Escrituras, como Moisés e os profetas falaram e fizeram o que fizeram por estarem cheios do Espírito de Cristo. Para tanto, penso que é suficiente citar o testemunho de Paulo na Epístola aos Hebreus, onde está dito: “Pela fé, Moisés, já homem feito, recusou ser chamado de filho da filha do Faraó; preferindo ser maltratado com o povo de Deus do que desfrutar dos prazeres temporais do pecado, considerou riquezas maiores o vitupério de Cristo do que os tesouros dos egípcios[2]”. Ademais, depois de sua ascensão ao céu, Cristo falou aos seus apóstolos, como nos mostra Paulo com essas palavras: “Pois buscais uma prova de que Cristo fala em mim[3]”.

2.       A regra de fé e a doutrina da Igreja

Todavia, muitos dos que professam crer em Cristo não estão de acordo entre si, não só nas coisas pequenas e insignificantes, como nas grandes e importantes, como naquelas que se referem a Deus, ao próprio Jesus Cristo ou ao Espírito Santo: e não apenas quanto a esses assuntos, como também em relação a outros, como as existências criadas, a saber, os poderes e as virtudes santas; por isso, parece que a respeito de todas essas questões devemos seguir uma linha segura e uma regra clara; a partir daí poderemos fazer investigações a respeito do restante. Do mesmo modo como, embora muitos dentre os gregos e bárbaros prometam a verdade, nós já deixamos de buscá-la entre eles, posto que só tinham opiniões falsas, e chegamos a crer que Cristo é o Filho de Deus e que é d’Ele que temos que aprender a verdade, assim também, entre os muitos que pensam ter os sentimentos de Cristo, existem alguns que opinam de maneira distinta dos demais, é assim preciso preservar a doutrina da Igreja, que provém dos apóstolos por intermédio da tradição sucessória, e que permanece na Igreja até o tempo presente, e só devemos dar crédito àquela verdade que em nada se afasta da tradição eclesiástica e apostólica.

3.       No que é preciso crer e o que é preciso buscar

Todavia, devemos notar que os santos apóstolos que predicaram a Cristo, comunicaram algumas coisas que claramente consideravam necessárias para todos os fiéis, mesmo para aqueles que se mostravam preguiçosos em seu interesse pelas coisas do conhecimento de Deus, deixando, em troca, que as razões de suas afirmações fossem investigadas pelos que se fizessem merecedores dos dons superiores, em especial os que tivessem recebido do mesmo Espírito Santo o dom da palavra, da sabedoria e da ciência. A respeito de determinadas coisas, afirmaram ser assim, mas não deram explicações sobre como nem porquê, sem dúvida para que seus sucessores mais diligentes, mostrando amor à sabedoria, tivessem com que se exercitar e fazer frutificar seu engenho, sendo esses sucessores obrigados a se preparar para ser receptores aptos e dignos da sabedoria.

4.       Os pontos essenciais da fé sobre Deus Pai, Cristo e o Espírito Santo

Os pontos específicos claramente entregues no ensinamento dos apóstolos são os seguintes:

§     Primeiro, que existe um Deus, que criou e ordenou todas as coisas, o qual, quando nada existia, chamou todas as coisas à existência. Deus, desde o princípio da criação e da fundação do mundo; o Deus de todos os justos, de Adão, Abel, Set, Enós, Enoch, Noé, Sem, Abrahão, Isaac, Jacó, os doze Patriarcas, Moisés e os Profetas; e que esse Deus, nos últimos dias, como havia anunciado de antemão por seus profetas, enviou nosso Senhor Jesus Cristo para chamar em primeiro lugar a Israel de volta para Si, e em segundo lugar aos gentios, depois da infidelidade do povo de Israel. Esse Deus justo e bom, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Ele próprio deu a lei e os profetas, e também os Evangelhos, sendo também o Deus dos apóstolos e dos dois Testamentos, o Velho e o Novo.
§     Em segundo lugar, o próprio Jesus Cristo, que veio ao mundo, nasceu do Pai antes de todas as criaturas; e depois de ter sido o servidor do Pai na criação de todas as coisas (“Todas as coisas foram feitas por ele[4]”), nos últimos dias, despojando-se de si mesmo (de Sua glória), se fez homem, e se encarnou mesmo sendo Deus, e enquanto foi homem permaneceu sendo o mesmo Deus que era; e assumiu um corpo como o nosso, distinguindo-se de nós apenas porque nasceu de uma virgem e do Espírito Santo; assim é que esse Jesus Cristo nasceu realmente e realmente sofreu, e não suportou essa morte apenas na aparência, senão que morreu realmente e realmente ressuscitou dentre os mortos; e que, depois de sua ressurreição, Ele falou com seus discípulos, e retornou para o alto (no céu).
§     Em terceiro lugar, os apóstolos contam que, depois da Ascensão, o Espírito Santo associou-se ao Pai e ao Filho em honra e dignidade. Mas a respeito dele não podemos dizer claramente se deve ser considerado como sendo gerado (nato) ou não gerado (inato), ou se é ou não Filho de Deus; esses são pontos que devem ser investigados a partir da Escritura Sagrada, segundo o melhor de nossa capacidade, e que exigem uma investigação cuidadosa. E que esse Espírito inspirou a cada um dos santos, tanto profetas como apóstolos; e que não houve um Espírito nos homens da antiga Aliança e outro nos que foram inspirados pelo advento de Cristo, coisa que se ensina com muita clareza em todas as igrejas.

5.       A alma e sua liberdade

Depois desses pontos, o ensinamento apostólico também consiste em que a alma, por possuir uma substância e vida próprias, depois de sua saída do mundo, será recompensada segundo seus méritos, sendo destinada a receber sua herança de vida eterna e felicidade, se suas ações mereceram isso, ou a ser entregue ao fogo eterno e ao castigo, se a culpa de seus crimes a levou a isso; e também, que virá um tempo de ressurreição dos mortos, quando esse corpo, que agora “está semeado na corrupção, semeado na desonra se elevará em glória[5]”.

O ponto a seguir também está definido pela predicação eclesiástica: toda alma racional está dotada de livre arbítrio e de vontade; e está em luta com o diabo e seus anjos, e com as potências adversas, que se esforçam para carregá-la de pecados; mas, se vivermos correta e sabiamente, devemos procurar sacudir-nos e nos livrar de tal tipo de carga.

Daí segue, portanto, que entendemos que não estamos submetidos à necessidade e que não somos forçados de todos os modos nem contra a nossa vontade a operar seja o mal, seja o bem. Dotados como estamos de livre arbítrio, algumas potências podem nos empurrar para o mal e outras ajudar-nos a operar nossa salvação; não obstante, não estamos constrangidos pela necessidade a operar bem ou mal.

Pensam o contrário os que dizem que o curso e os movimentos das estrelas são a causa de atos humanos, não apenas dos que não dependem de nosso livre arbítrio, como também daqueles que estão em nosso poder.

Mas no que diz respeito à alma, se a alma se propaga por meio do sêmen, de maneira a que sua essência e substância se encontrem no próprio sêmen corporal, ou mesmo se tiver outra origem por geração ou sem ela, ou se for ou não infundida no corpo desde o exterior, nada disso está suficientemente detalhado na predicação apostólica.

6.       O diabo e seus anjos

Quanto à existência do diabo e de seus anjos, e também das potências adversas, a predicação apostólica não expôs com suficiente clareza sua natureza e modo de ser. Muitos são de opinião de que o diabo foi um anjo e que, tendo se tornado apóstata, convenceu numerosos anjos a segui-lo em seu afastamento; por isso, até hoje esses últimos são chamados de seus anjos.

7.       A criação do nada no tempo

Isso também é parte do ensinamento da Igreja, que o mundo foi feito e teve seu princípio num determinado tempo, e que será destruído devido à sua maldade. Mas o que possa ter existido antes desse mundo, ou o que existirá depois dele, muitos não o sabem com certeza, porque não existe nenhuma declaração clara sobre isso no ensinamento da Igreja.

8.       As Escrituras inspiradas divinamente

Então, finalmente, diz-se que as Escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus, e que têm um significado, não só o que é evidente à primeira vista, como também outro, que escapa ao conhecimento da maioria. Porque aquelas palavras que estão escritas são as formas de certos mistérios e as imagens das coisas divinas. A esse respeito existe uma opinião universal em toda a Igreja, de que toda a lei é verdadeiramente espiritual; mas que o significado espiritual que a lei encerra não é conhecido por todos, mas unicamente por aqueles a quem é concedida a graça do Espírito Santo nas palavras de sabedoria e conhecimento.

O termo asoomaton, ou seja, incorpóreo, está em desuso e é desconhecido, não apenas em muitas outras escrituras, como nas nossas próprias. E se alguém a cita a partir do pequeno tratado intitulado Doutrina de Pedro, onde o Salvador parece dizer aos seus discípulos: “Não sou um espírito (daemonium) sem corpo”, sou obrigado a contestar, primeiramente porque essa obra não está incluída entre os livros eclesiásticos, já que podemos mostrar que ela não foi composta nem por Pedro nem por ninguém inspirado pelo Espírito de Deus. Mas ainda que eu admitisse esse ponto, a palavra asoomaton não tem ali o mesmo significado que é requerido pelos autores gregos e gentios quando a natureza incorpórea é discutida por filósofos. Porque no pequeno tratado mencionado, se usa a frase “espírito incorpóreo” para denotar que aquela forma ou contorno de corpo espiritual, seja o que for, não se parece com esse corpo nosso, palpável e visível; mas, de acordo com a intenção do autor do tratado, devemos entender que Cristo queria dizer que Ele não tinha um corpo como o que os espíritos têm, que é naturalmente fino (sutil) e delgado, como que formado por ar (por essa razão é considerado ou chamado por muitos de incorpóreo), mas que Ele tinha um corpo sólido e palpável. Agora, segundo o costume humano, tudo o que não é dessa natureza é chamado de incorpóreo pelos simples e ignorantes; como se alguém tivesse que dizer que o ar que respiramos é incorpóreo, porque o ar não é um corpo de tal natureza que possa ser agarrado e sustentado, ou que possa oferecer resistência à pressão.

9.       O tema da incorporidade de Deus

Investigaremos ainda se aquilo que os filósofos chamam de asoomaton, “incorpóreo”, aparece na Sagrada Escritura sob outro nome. Pois também deve ser um tema de investigação saber se o próprio Deus deve ser entendido como corpóreo ou composto de alguma maneira, ou se ele é de uma natureza diferente da dos corpos; esse é um ponto que não está claramente indicado em nosso ensinamento. E as mesmas averiguações devem ser feitas quanto a Cristo e o Espírito Santo, bem como a respeito de cada alma e de tudo o que possui uma natureza racional.

10.   Os anjos, ministros de Deus para a salvação humana

Também isso faz parte do ensinamento da Igreja, de que existem certos anjos de Deus, e certas influências boas, que são seu servos no cumprimento da salvação dos homens. Todavia, quando foram criados, ou qual é sua natureza, ou como existem, não está dito com clareza. A respeito do sol, da lua e das estrelas, se são criaturas vivas ou sem vida, não há nenhuma afirmação característica.

Cada um, portanto, deve aproveitar os elementos e fundamentos dessa classe, segundo o preceito: “Acendei em vós a luz do conhecimento[6]”. E assim construir uma série e um corpo de doutrinas a partir das razões e de tudo isso, para aprofundar, com a ajuda de premissas claras e necessárias à verdade de cada ponto, um só corpo de doutrina, amparando-se em comparações e afirmações que sejam encontradas nas Sagradas Escrituras ou que tenham sido descobertas, buscando a consequência lógica e seguindo um raciocínio reto.

LIVRO I
1
DEUS

1.       Deus não possui corpo em nenhum sentido

Sei que alguns pretendem dizer, apoiando-se inclusive em nossas Escrituras, que Deus é um corpo, alegando o que encontram escrito em Moisés: “Nosso Deus é um fogo devorador[7]”, e no Evangelho de João: “Deus é espírito, e os que o adoram, é preciso que o adorem em espírito e verdade[8]”. O fogo e o espírito, segundo eles, não podem ser entendidos senão como um corpo. Agora, eu gostaria de perguntar a essas pessoas o que elas dizem do que está escrito: “Deus é Luz e nele não existem trevas[9]”, como diz João em sua Epístola. Realmente Ele é aquela luz que ilumina o entendimento de todos os que são capazes de receber a verdade, conforme se diz nos Salmos: “Em tua luz veremos a luz[10]”. E que outra coisa podemos chamar de luz de Deus, essa coisa na qual vemos a luz, senão a virtude de Deus, iluminados pela qual conhecemos seja a verdade de todas as coisas, seja o próprio Deus, que se chama Verdade? Tal é, pois, o sentido das palavras: “Em tua luz veremos a luz”, isto é, em teu Verbo e tua sabedoria, que é teu Filho, Nele mesmo, vemos a Ti, o Pai. Acaso por que se chama luz, devemos crê-la semelhante à luz do nosso sol? Como poderá acontecer que um intelecto, por leve que seja, receba dessa luz corporal a causa de seu conhecimento e por meio dela alcance o entendimento da verdade?

2.       Deus é fogo devorador no sentido moral-espiritual

Se então eles consentirem nessa nossa afirmação sobre a natureza dessa luz, que a própria razão demonstra, e confessarem que Deus não pode ser entendido como um corpo, segundo a intelecção dessa luz, o mesmo raciocínio poderá ser aplicado ao “fogo que consome (devora)”. Porque, o que consumirá Deus enquanto fogo que é? Será crível, por acaso, que consuma a matéria corporal, como a lenha, o feno ou a palha? E, se Deus é um fogo consumidor de matérias dessa índole, que poderá haver que mereça o louvor de Deus? Consideremos, por outro lado, que Deus certamente consome e extermina, mas que ele consome os maus pensamentos das mentes, consome as ações vergonhosas, consome os desejos do pecado quando se introduz nas mentes dos fiéis, e dessas almas, tornadas capazes de receber seu Verbo e sua sabedoria e serem habitadas juntamente com seu Filho (segundo o que foi dito: “Eu e o Pai viremos a ele e nele faremos nossa morada[11]”), faz um templo puro para si e digno de si, consumindo nele todos os vícios e paixões.

E àqueles que, por estar dito que Deus é espírito, julgam que Deus é corpo, penso que deve ser-lhes respondido dessa maneira: é costume da Sagrada Escritura, quando quer significar algo contrário a esse corpo crasso e sólido, denominá-lo “espírito”, e assim se diz: “A letra mata, mas o espírito dá a vida[12]”, significando, sem dúvida, por “letra” o corporal, e por “espírito” o intelectual, que também chamamos espiritual. O Apóstolo diz também: “Até o dia de hoje, quando leem Moisés, um véu permanece estendido sobre seus corações; mas quando se voltarem para o Senhor o véu será retirado. O Senhor é espírito, e onde está o espírito do Senhor está a liberdade[13]”. Porque, enquanto os homens não se converterem à inteligência espiritual, um véu cobrirá seus corações e, por causa desse véu, vale dizer, pela inteligência crassa, se diz e se considera velada a própria Escritura; e por isso se diz que um véu cobria o rosto de Moisés quando falava ao povo, ou seja, quando lia a lei publicamente[14]. Mas se nos convertermos ao Senhor, em que está também o Verbo de Deus e onde o Espírito Santo revela a ciência espiritual, então será retirado o véu, e, com o rosto descoberto, contemplaremos nas Santas Escrituras a glória do Senhor.

3.       O Espírito Santo não é um corpo

E ainda que muitos santos participem do Espírito Santo, não se pode entender o Espírito Santo como um corpo que, dividido em partes corpóreas, seja recebido por cada um dos santos, mas sim que ele é um poder santificante no qual, diz-se, têm participação todos os que mereceram ser santificados por sua graça. E para que se possa compreender mais facilmente o que dizemos, tomemos ainda um exemplo a partir de coisas distintas: muitos são os que participam da arte da medicina; por acaso devemos entender que a todos os que participam da medicina é oferecido um corpo chamado medicina e que esses se tornam participantes dele, levando cada qual uma porção consigo? Ou devemos entender, por outra, que participam da medicina todos aqueles que, com mentes aptas e dispostas, percebem a intelecção dessa arte e dessa disciplina? Não se deve entender, todavia, que esse exemplo seja absolutamente semelhante quando comparamos a medicina ao Espírito Santo, mas ele é adequado somente para se provar que não se deve considerar como corpo aquilo de que muitos participam: porque o Espírito Santo difere muito, tanto da ciência, como da disciplina da medicina: o Espírito Santo é uma existência intelectual, e subsiste e existe por si, enquanto que a medicina não é nada parecido com isso.

4.       Deus é espírito

Mas passemos às próprias palavras do Evangelho onde está escrito que “Deus é espírito[15]”, e mostremos como devem ser entendidas essas palavras de acordo com o que dissemos. Perguntemos, pois, quando nosso Salvador disse isso, a quem Ele disse, e em resposta a que. Encontraremos que Ele pronunciou as palavras “Deus é espírito” quando falava à mulher samaritana, aquela que acreditava que se devia adorar a Deus no monte Gerizim, segundo a opinião dos samaritanos. Com efeito, a mulher samaritana perguntava, crendo que Jesus era um dos judeus, se se devia adorar a Deus em Jerusalém ou nesse monte, e falava assim: “Nossos pais adoraram nesse monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar[16]”. Assim, àquilo em que acreditava a samaritana, pensando, segundo a prerrogativa dos lugares corpóreos, se Deus seria adorado mais ou menos reta e devidamente pelos judeus em Jerusalém ou pelos samaritanos no monte Gerizim, respondeu o Salvador que quem quer seguir o Senhor deve evitar todo preconceito sobre os lugares corpóreos, falando assim: “Chegou a hora, e é essa, quando os verdadeiros adoradores adorarão ao Pai em espírito e verdade. Deus é espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade[17]”. E note-se quão consequentemente Ele associou a verdade ao espírito, de modo que empregou o nome de ‘espírito’ para estabelecer uma distinção em relação aos corpos, e o de ‘verdade’ para estabelecer uma distinção em relação às sombras ou imagens. Com efeito, os que adoravam em Jerusalém, servindo à sombra ou à imagem das coisas celestes, não adoravam a Deus em verdade, nem em espírito, como tampouco os que O adoravam no monte Gerizim.

5.       Deus é incompreensível e incomensurável

Tendo pois refutado, na medida do possível, todos os significados que poderiam sugerir que pensamos algo corpóreo de Deus, diremos que realmente Deus é incompreensível e incomensurável, pois se existe algo que podemos sentir ou entender a respeito de Deus, é que devemos crer necessariamente que Deus é infinitamente melhor do que sentimos. Com efeito, se víssemos um homem que com dificuldade pudesse olhar para uma faísca de luz ou para a chama de uma lamparina, e se quiséssemos fazer compreender a alguém, cuja vista não conseguisse suportar mais luz do que isso, a claridade e o esplendor do sol, não deveríamos dizer-lhe que o esplendor do sol é indizível e incalculavelmente melhor e mais excelente do que toda luz que ele vê? Do mesmo modo nossa mente, por estar encerrada na prisão da carne e do sangue, e por ter se tornado embotada e obtusa por sua participação nessa matéria (ainda que possa ser considerada muito superior em comparação com a natureza corpórea), ocupa apenas o lugar de uma chispa ou de uma luzinha quando se esforça para compreender o incorpóreo e quando procura contemplá-lo. Mas, o que existe entre todos os objetos intelectuais, ou seja, incorpóreos, que seja tão superior aos demais e que seja em relação a eles tão indizível e incalculavelmente superior como Deus? A agudez da mente humana, por mais pura e clara que seja, não pode alcançar nem contemplar a natureza divina.

6.       Deus é homogêneo e indivisível

Mas não parecerá absurdo se empregarmos outra comparação para tornar mais evidente a explicação de nosso objeto: nossos olhos não podem contemplar a natureza própria do sol, isto é, sua substância; mas, contemplando seu esplendor, ou os raios que penetram pelas janelas ou por outros pequenos receptáculos de luz, podemos considerar qual será a magnitude do próprio lugar e fonte da luz corpórea. E assim as obras da divina providência e a arte desse universo são como raios da natureza de Deus, em comparação com sua própria substância e natureza. E devido ao fato de que nossa mente, por si mesma, não pode contemplar o próprio Deus tal como Ele é, entende o Pai do universo partindo da beleza de suas obras e da beleza de suas criaturas. Por conseguinte, não se deve pensar que Deus é corpo, nem que está em um corpo, senão que ele é uma natureza intelectual simples que não admite em si mesma nenhuma adição; de modo que não se pode crer que tenha em si algo superior e algo inferior, mas que é mônada em todas as suas partes (por assim dizer: unidade), e que é mente, e a fonte da qual toda a natureza intelectual ou mente recebem seu princípio.

Por ouro lado, a mente, para seus movimentos e operações, não tem necessidade de nenhum espaço físico, nem de magnitude sensível, nem de hábito corporal, ou de cor, nem de nenhuma outra coisa das que são próprias ao corpo e à matéria. Por isso aquela natureza simples que é toda mente, para mover-se a operar algo, não pode ter dilação ou demora alguma, para que a simplicidade da natureza divina não se restrinja ou se circunscreva em nenhuma medida, por uma adição desse gênero, de sorte que aquilo que é princípio de todas as coisas resulte ser composto e diverso, e que aquilo que deve ser alheio a toda mescla corpórea não seja muitas coisas, mas uma só, e que possa assim consistir, por assim dizer, na espécie divina única.

Que a mente não necessita de lugar para se mover segundo sua natureza é coisa segura, ainda partindo da consideração de nossa mente. Já que, se a mente permanece em sua própria medida e não está embotada por causa alguma, nunca sofrerá demora na execução de seus movimentos em consequência da diversidade de lugares, nem tampouco adquirirá, em virtude da qualidade dos lugares, aumento ou incremento algum. E se alguém pretende o contrário, fundamentando-se, por exemplo, em que os navegantes agitados pela ondulação do mar têm uma mente bastante menos vigorosa do que quando estão em terra, não devemos crer que isso lhes acontece por causa da diversidade do lugar, mas pela comoção e a agitação do corpo, ao qual a mente está ligada ou no qual está inserida. Porque o corpo humano parece viver no mar contra a natureza, e suportar então os movimentos da mente desordenadamente, como se fosse por certa incapacidade sua, seguindo de um modo mais obtuso o compasso daquela. O mesmo acontece em terra quando se sofre um ataque de febre: é indubitável que, se pela violência da febre a mente não desempenha o que se espera dela, isso não é culpa do lugar, mas devemos acusar disso a enfermidade do corpo, que, turvando-o e confundindo-o, não lhe permite prestar à mente os serviços costumeiros pelas vias conhecidas e naturais; pois nós, os seres humanos, somos animais compostos pela união de um corpo e uma alma. E foi isso que tornou possível habitarmos sobre a terra. Mas não se pode considerar que Deus, que é o princípio de todas as coisas, seja um composto, porque resultariam anteriores ao próprio princípio os elementos dos quais se compõe tudo aquilo (seja lá o que for) a que chamamos composto. Tampouco a mente tem necessidade de uma tamanho corporal para fazer algo, ou para mover-se, como o olho que se expande para contemplar os corpos grandes, mas se contrai e se comprime para ver os pequenos e reduzidos. A mente, sem dúvida, necessita uma magnitude inteligível que não cresça corporalmente, mas inteligivelmente. Com efeito, a mente não cresce junto com o corpo quando acontece o crescimento corporal, até os vinte ou trinta anos de idade, mas pela instrução e o exercício vai se aperfeiçoando a agudez do engenho, e as faculdades que se encontram nele como em germe são atiçadas pela inteligência, tornando-se capazes de uma compreensão maior, não porque aumente o crescimento corporal, mas porque ela se aperfeiçoa pelo exercício da instrução. E ela não é susceptível disso na infância desde o nascimento, porque a contextura dos membros de que a mente se serve como de instrumentos de seu próprio exercício ainda é débil e frouxa, e não pode sustentar a força da operação da mente, nem oferecer a possibilidade de aprender uma disciplina.

7.       A mente como imagem intelectual de Deus

Mas se alguém pensa que a própria mente e a alma são corpos, gostaria que me respondessem como é possível que se possa abarcar as razões e asserções de tantas coisas, e de coisas tão difíceis e sutis. De onde lhe vem o poder da memória? De onde a faculdade de contemplar as coisas invisíveis? De onde a compreensão que um corpo possa ter do incorpóreo? Como uma natureza corpórea investiga os processos das diversas artes, e contempla os motivos das coisas? De onde lhe vem o poder de entender e sentir as verdades divinas, que são evidentemente incorpóreas? Poder-se-ia pensar que, assim como nossa forma corporal, e a própria conformação das orelhas e dos olhos, contribuem numa certa medida para o ouvido e a vista, e que todos os membros formados por Deus têm certa adaptação que deriva da mesma qualidade de sua forma para aquilo a que estão naturalmente destinados a fazer, da mesma forma a configuração da alma e da mente deve ser entendida como apta e adequadamente formada para sentir e entender todas as coisas, e para ser movida pelos movimentos vitais. Mas não vejo como se poderia descrever ou expressar a cor da mente, enquanto mente que se move inteligivelmente.

Para confirmação e explicação do que dissemos sobre a mente ou a alma, partindo de sua superioridade em relação a toda natureza corpórea, podemos acrescentar ainda o seguinte: a cada sentido corporal corresponde como própria uma substância sensível para a qual o mesmo sentido se dirige.

Por exemplo, para a vista, as cores, a configuração, o tamanho; para o ouvido, as vozes e os sons; para o olfato, os vapores e os odores bons e maus; para o gosto, os sabores; para o tato, o quente e o frio, o duro e o macio, o áspero e o liso. Pois bem, é claro para todos que o sentido da mente é muito superior a todos esses sentidos que mencionamos. Como, pois, não parecerá absurdo que esses sentidos inferiores tenham, como correlatos seus, substâncias, e que ao sentido da mente, que é uma faculdade superior, não corresponda correlato substancial algum, mas que a faculdade da natureza intelectual seja um mero acidente ou consequência (com o que os que afirmam isso ofendem, sem dúvida, a substância mais excelente que existe neles; e, o que é pior, o menosprezo alcança o próprio Deus, quando creem que ele pode ser compreendido por meio da natureza corpórea, porque, segundo eles, é corpo igualmente o que se pode sentir ou compreender por meio do corpo)?. Eles não querem compreender que existe um certo parentesco entre a mente e Deus, de quem a própria mente é a imagem intelectual; e por isso ela pode sentir algo da natureza da divindade, sobretudo se está purificada e afastada da matéria corporal.

8.       Diferença entre ver e conhecer a Deus

Mas talvez essas declarações possam parecer ter menos autoridade para aqueles que querem se instruir sobre as coisas divinas partindo das sagradas Escrituras, e que procuram também convencer-se por meio delas da supremacia da natureza de Deus com relação à corpórea. Considerem, pois, se não é isso que afirma o próprio Apóstolo quando fala de Cristo, ao dizer: “Ele que é a imagem de Deus invisível, primogênito de toda criatura[18]”.

A natureza de Deus não é, como creem alguns, visível para uns e invisível para outros, pois o Apóstolo não disse “a imagem de Deus invisível” para os homens ou invisível para os pecadores, senão que com grande firmeza fez uma declaração sobre a própria natureza de Deus, dizendo: “imagem do Deus invisível”. Da mesma forma, em seu Evangelho, João, ao dizer que “jamais alguém viu a Deus[19]”, declara manifestamente a todos os que são capazes de entender, que não existe nenhuma natureza para a qual Deus seja visível; e não porque sendo visível escape e exceda à visão da criatura demasiado frágil, mas porque é naturalmente impossível que seja visto. E se você me perguntar qual é minha opinião sobre o próprio Unigênito, e eu lhe disser que tampouco para Ele é visível a natureza de Deus (que é naturalmente invisível), não se apresse em julgar essa resposta ímpia ou absurda. Logo lhe direi a razão. Uma coisa é ver, e outra é conhecer; ser visto e ver são coisas próprias dos corpos; ser conhecido e conhecer é próprio da natureza intelectual. Por conseguinte, o que é próprio dos corpos não se deve pensar nem do Pai, nem do Filho. Por outro lado, o que pertence à natureza da divindade é comum ao Pai e ao Filho. Finalmente, tampouco ele próprio disse no Evangelho que ninguém viu o Pai, senão o Filho, nem o Filho senão o Pai, mas disse: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho[20]”. Com isso fica claramente indicado que aquilo que entre duas naturezas corpóreas se chama ser visto e ver, entre o Pai e o Filho se chama conhecer e ser conhecido, pela faculdade do conhecimento, e não pela fragilidade da visualização. Por conseguinte, como da natureza incorpórea e invisível não se diz propriamente que vê nem que é vista, por isso não se diz no Evangelho que o Pai é visto pelo Filho, nem o Filho pelo Pai, mas que são conhecidos.

9.       A Deus se vê e conhece pela mente

E se alguém nos perguntar porque foi dito: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus[21]”, nossa posição, em minha opinião, se afirmará muito mais com isso, pois, que outra coisa é ver a Deus com o coração, senão entendê-lo e conhecê-lo com a mente, segundo o que acabamos de expor? Com efeito, muitas vezes os nomes dos membros sensíveis se referem à alma, de modo que dizemos que se vê com os olhos do coração, isto é, que se compreende algo intelectual com a faculdade da inteligência. Assim também se diz que se ouve com os ouvidos quando se adverte o sentido da inteligência mais profunda. Assim dizemos que a alma se serve de dentes quando come, e que come o pão da vida que desceu do céu. Igualmente dizemos que se serve de ouvidos e dos demais membros que, trasladados de seu sentido corporal, se aplicam às faculdades da alma, como diz também Salomão: “Encontrarás o sentido divino[22]”.  E ele sabia que existem duas classes de sentidos em nós: um mortal, corruptível e humano; outro imortal e intelectual, que nessa passagem ele chamou de divino. Por conseguinte é com esse sentido divino, não com o dos olhos, mas com o do coração puro, que é a mente, que Deus pode ser visto por aqueles que são dignos. Com efeito, você encontrará que em todas as Escrituras, tanto antigas como novas, o termo “coração” se usa com frequência em lugar de “mente”, isto é, da faculdade intelectual.

Dessa maneira, portanto, ainda que muito abaixo da dignidade do tema, falamos da natureza de Deus, como os que a entendem sob a limitação do entendimento humano. No próximo ponto, veremos o que se pode dizer com relação ao nome de Cristo.

2
CRISTO

1.       Exame da natureza de Cristo, Filho unigênito de Deus

Em primeiro lugar, devemos notar que a natureza daquela divindade que está em Cristo com relação a ser Filho unigênito de Deus, é uma coisa, e que a natureza humana assumida por Ele nos últimos dias com o propósito da dispensação da graça é outra. Portanto, primeiro temos que averiguar o que é o Filho unigênito de Deus, visto que ele é chamado por muitos nomes diferentes, segundo as circunstâncias e as opiniões individuais. Ele é chamado de Sabedoria, segundo a expressão de Salomão: “O Senhor me possuía no princípio do caminho, antes de suas obras. Eternamente tive o principado, desde o princípio, antes da terra. Antes dos abismos fui gerada; antes que existissem as fontes das muitas águas. Antes que fossem fundados os montes. Antes dos desfiladeiros, eu fui gerada[23]”.

Ele também é chamado de Primogênito de toda criatura, como o Apóstolo declarava: “O primogênito de cada criação[24]”. O primogênito, todavia, não é por natureza uma pessoa diferente da Sabedoria, mas é uma e a mesma com ela. Finalmente, o apóstolo Paulo diz que “Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus[25]”.

2.       Cristo não foi gerado no tempo, mas na eternidade

Que ninguém imagine que queremos dizer algo impessoal quando chamamos a Cristo de sabedoria de Deus; ou suponha, por exemplo, que o entendemos não como um ser vivo dotado de sabedoria, mas como algo que torna sábios os homens, dando-se a si mesmo e implantando-se nas mentes dos que são capazes de receber suas virtudes e inteligência. Se então entendemos corretamente que o Filho unigênito de Deus é sua sabedoria existindo hipostaticamente, não sei se nossa curiosidade deveria avançar além desse ponto, ou abrigar a suspeita de que a hipóstase ou substância contenha algo de uma natureza corporal, já que tudo o que é corpóreo se distingue pela forma, ou a cor, ou a magnitude. E quem, em seu sentido cabal, alguma vez já buscou a forma, a cor ou o tamanho da sabedoria? E quem, capaz de ter sentimentos ou pensamentos respeitosos sobre Deus, poderá supor que Deus Pai alguma vez existiu, mesmo que por um instante de tempo, sem que tenha gerado essa sabedoria? Pois nesse caso deveríamos dizer que Deus foi incapaz de gerar a sabedoria antes de que a tivesse produzido, de modo que Ele chamou depois à existência aquilo que antes não existia, ou que Ele possuía o poder certamente, mas – coisa que não se pode dizer de Deus sem impiedade – não estava disposto a usá-lo; ambas as suposições são evidentemente ímpias e absurdas, já que isso significaria que Deus avançou de uma condição de inabilidade para uma de capacidade, e que, ainda que possuísse o poder, ocultou-o e postergou a geração da sabedoria. Mas nós sempre sustentamos que Deus é o Pai de Seu Filho unigênito, que certamente nasceu dele e que dele extrai aquilo que é, mas sem começo nem princípio, não apenas começo ou princípio que possam ser medidos por qualquer divisão do tempo, como aqueles que só a mente pode contemplar dentro de si mesma, ou que possa observar, por assim dizer, com os poderes desnudos do entendimento.

Portanto, devemos crer que a Sabedoria foi gerada antes de qualquer princípio que possa ser compreendido ou expressado. E, já que todo o poder criativo da futura criação estava incluído na própria existência da Sabedoria (tanto daquelas coisas que têm um original, como das que têm uma existência derivada), tendo sido [a criação] formada de antemão e organizada pelo poder da presciência; por causa das criaturas que descrevemos, e pelo fato de que estivessem elas prefiguradas na própria Sabedoria, disse a Sabedoria, nas palavras de Salomão, que ela havia sido criada no princípio dos caminhos de Deus, posto que ela continha em si os princípios, ou as formas, ou as espécies de toda a criação.

3.       Cristo, Verbo revelador de Deus

Do mesmo modo como entendemos que a Sabedoria foi o princípio dos caminhos de Deus, e se diz que foi criada, formando de antemão e contendo dentro de si as espécies e os princípios de todas as criaturas, devemos entender que ela é a Palavra (Verbo) de Deus, devido à sua revelação a todos os demais seres, isso é, à criação universal, da natureza dos mistérios e dos segredos que estão contidos na sabedoria divina; e por essa razão ela é chamada de Palavra, porque é, por assim dizer, o intérprete dos segredos da mente. Portanto, essa linguagem que encontramos nos Atos de Paulo[26], onde se diz que “aqui está a palavra de um ser vivo”, me parece corretamente utilizada. Não obstante, João, com mais sublimidade e propriedade, diz no começo de seu Evangelho, definindo a Deus mediante especial definição, que Ele é a Palavra: “E Deus era a Palavra. E esta estava no princípio com Deus[27]”. Deixemos, então, que quem assinalar um princípio ao Verbo ou à Sabedoria de Deus, tenha o cuidado de não ser culpado de impiedade contra o Pai não-gerado, vendo que Ele sempre foi Pai, tendo gerado a Palavra e possuído a sabedoria em todos os períodos precedentes, sejam esses chamados de tempos ou de idades, ou por qualquer outro título que se queira dar a eles.

4.       Cristo é a razão de tudo o que existe

Consequentemente, esse Filho é também a verdade e a vida de tudo o que existe. E com razão. Porque, como poderiam existir (“ser”) aquelas coisas que foram criadas vivas, a menos que tivessem extraído seu ser da vida? Ou, como poderiam ser aquelas coisas que verdadeiramente existem, a menos que procedessem da verdade? Ou como poderiam existir seres racionais, a não ser que a Palavra ou a razão tivesse existido previamente? Ou como poderiam haver sábios sem a existência da sabedoria? Mas, já que haveria de ocorrer que também alguns caíssem da vida e acarretassem sua própria morte por causa de seu próprio declínio – porque a morte não é outra coisa do que separar-se da vida – e como deveria acontecer que aquilo que uma vez foi criado para gozar da vida perecesse completamente, foi preciso que, antes da morte, existisse um poder que destruísse a morte vindoura e que, assim, houvesse a ressurreição – cujo protótipo estava em nosso Senhor e Salvador – e que essa ressurreição tivesse seu fundamento na sabedoria, na Palavra e na vida de Deus.

Então, em segundo lugar, já que alguns dos que foram criados não iriam estar sempre dispostos a permanecer imutáveis e inalteráveis na calma e no gozo moderado das bênçãos que possuíam, mas que, em consequência de que o bom que neles havia não era seu por natureza ou essência, mas por acidente, deveriam eles se perverter e se transformar, e cair de sua posição, foi para tanto que a Palavra e a Sabedoria de Deus fizeram o Caminho. E ele foi chamado assim porque conduz ao Pai aos que andam por Ele.

5.       A geração distinta das criaturas e do Filho

Qualquer coisa que tenhamos predicado a respeito da sabedoria de Deus, deve ser entendida e ser aplicada de maneira apropriada ao Filho de Deus, em virtude de seu ser: Vida, Palavra, Verdade e Ressurreição; pois todos esses títulos foram extraídos de seu poder e de suas operações, e em nenhum deles se encontra a menor razão para que sejam entendidos de modo corporal, que possa denotar tamanho, forma ou cor, essas coisas por meio das quais os filhos dos homens que aparecem entre nós (ou os que descendem de outras criaturas vivas), correspondem às sementes daqueles que os geraram, ou derivam daquelas mães em cujas matrizes foram formados e nutridos, independentemente daquilo que trazem para essa vida e levam consigo quando nascem.

É coisa blasfema e inadmissível pensar que a maneira como Deus Pai gera o Filho e lhe dá seu ser seja igual à maneira como se gera um homem ou qualquer outro ser vivo. Ao contrário, trata-se necessariamente de algo muito particular e digno de Deus, com o qual absolutamente nada pode ser comparado. Não existe pensamento ou imagem humana que permita chegar a compreender como o Deus não-gerado vem a ser Pai do Filho unigênito. Porque se trata, com efeito, de uma geração desde sempre e eterna, ao modo como o esplendor procede da luz. O Filho não se constituiu como tal de uma maneira extrínseca, por adoção, mas é verdadeiramente Filho por natureza[28].

6.       Confirmação da Escritura

Vamos examinar agora de que modo aquelas declarações que expusemos são sustentadas pela autoridade da Santa Escritura. O apóstolo Paulo diz que o Filho unigênito é “a imagem do Deus invisível” e “o primogênito de toda a criação[29]”, e, escrevendo aos Hebreus, diz dele que é “o esplendor de sua glória, e a própria imagem de sua substância[30]”. Agora, encontramos no tratado chamado Sabedoria de Salomão a seguinte descrição da sabedoria de Deus: “Ela é o sopro do poder de Deus, e o fluxo mais puro da glória do Todo-poderoso[31]”. Nada que seja contaminado, portanto, pode ser encontrado nela. Porque ela é o esplendor da luz eterna e o espelho imaculado da obra de Deus, a imagem de sua bondade. Por isso dizemos, como antes, que a Sabedoria não adquire sua existência em parte alguma, senão Nele, que é o princípio de todas as coisas; de onde deriva também que é sábio, porque Ele próprio é o único que é Filho por natureza e, portanto, é chamado de Unigênito.

7.       Cristo, imagem do Deus invisível

Vejamos agora como devemos entender a expressão “a imagem visível”, de modo que possamos dessa maneira perceber porque Deus é corretamente chamado de Pai de seu Filho. Em primeiro lugar, tiremos nossas conclusões daquilo que costumamos chamar de ‘imagens’ entre os homens. Às vezes se chama de imagem a algo que está pintado ou esculpido em alguma substância material, como a madeira ou a pedra; e às vezes se diz de uma criança que é a imagem de seu pai, quando, sob todos os aspectos, seus traços não negam a semelhança com seu pai. Penso, portanto, que o homem que foi formado à imagem e semelhança de Deus pode ser devidamente comparado à primeira ilustração. A respeito Dele, de qualquer maneira, veremos com mais precisão, se Deus quiser, quando tratarmos de expor a correspondente passagem do Gênesis.

Mas a imagem do Filho de Deus, de quem falamos agora, pode ser comparada ao segundo dos exemplos acima, inclusive no que diz respeito a isso: que Ele é a imagem invisível do Deus invisível, do mesmo modo como dizemos, segundo a história sagrada, que a imagem de Adão é seu filho Set. As palavras são: “e Adão gerou a Set à sua semelhança, conforme sua imagem[32]”. Agora, essa imagem contém a unidade de natureza e de substância pertencentes ao Pai e ao Filho. Porque, se o Filho faz, da mesma maneira, todas as coisas que faz o Pai, em virtude desse fazer [do Filho] semelhante ao Pai, forma-se a imagem do Pai no Filho, nascido Dele, como um ato de Sua vontade procedente de sua mente. Não sou, portanto, de opinião de que apenas a vontade do Pai deveria ser suficiente para a existência de tudo o que Ele deseja que exista. Porque, no exercício de sua vontade, Ele não emprega nada senão o que se dá a conhecer pelo conselho de sua vontade. Assim, da mesma forma, a existência do Filho é gerada por Ele. Esse ponto deve ser mantido acima de todos os demais por aqueles que não admitem que algo possa ser não-gerado, isso é, nonato, salvo Deus Pai exclusivamente.

Devemos ter cuidado para não cairmos no absurdo dos que imaginam certas emanações, para dividir a natureza divina em partes, e assim dividir a Deus Pai tanto quanto podem, pois sustentar a mais remota suspeita de tal coisa em relação a um ser incorpóreo é não apenas o máximo da impiedade, como sinal de uma grande loucura; e é o que mais distante está de qualquer concepção inteligente que se possa fazer sobre a divisão física de uma natureza incorpórea. Ao contrário, [a geração] enquanto ato de vontade, provém do entendimento, e não corta, separa ou divide parte alguma, como supõem alguns na geração do Filho pelo Pai, à sua própria imagem, a saber, que o que é invisível por natureza gera uma natureza invisível. Porque o Filho é a Palavra e, portanto, não devemos entender que qualquer coisa nele seja reconhecível pelos sentidos.

Ele é sabedoria, e na sabedoria não pode haver nenhuma suspeita de algo corpóreo. Ele é a luz verdadeira “que ilumina a todo homem que vem a esse mundo[33]”; mas Ele não tem nada em comum com a luz do sol. Nosso Salvador, portanto, é a imagem do Deus invisível, posto que, comparado com o Pai, Ele é a verdade; e comparado conosco, a quem nos revela o Pai, é a imagem por meio da qual chegamos ao conhecimento do Pai, ao qual ninguém conhece, “salvo o Filho, e aquele a quem o Filho o queira revelar[34]”. E seu método de revelação é pelo entendimento. Por meio Dele, por quem o próprio Filho é entendido, entende-se, por conseguinte, também o Pai, segundo suas próprias palavras: “Quem me viu, viu o Pai[35]”.

8.       Deus de luz e doador de luz

Mas, já que citamos a linguagem de Paulo em relação a Cristo, onde ele diz ser Ele “o esplendor da glória de Deus, e a própria imagem de sua substância[36]”, vamos agora considerar que ideia devemos formar a partir daí. Segundo João, “Deus é luz[37]”. O Filho unigênito, portanto, é a glória dessa luz, procedendo inseparavelmente do próprio Deus, como o esplendor procede da luz, e iluminando toda a criação. Porque, de acordo com o que explicamos a respeito da maneira pela qual Ele é o Caminho, e que conduz ao Pai, pela qual Ele é a Palavra (interpretando os segredos da sabedoria e os mistérios do conhecimento, dando-os a conhecer à criação racional), e pela qual é também Verdade, Vida e Ressurreição, da mesma maneira devemos entender o significado de seu esplendor: porque é por intermédio do esplendor que entendemos e sentimos o que é a luz. E esse esplendor, apresentando-se cuidadosa e suavemente aos olhos frágeis e débeis dos mortais, educa-os gradualmente e acostuma-os a suportar o esplendor da luz – quando vier a retirar deles todo obstáculo e obstrução da vista, segundo o preceito do Senhor: “retira primeiro a viga do teu olho[38]”, para torná-los capazes de aguentar o esplendor da luz – tornando-se, também nesse sentido, uma espécie de mediador entre os homens e a luz.

9.       Imagem da mesma pessoa ou substância de Deus

Mas já que o Apóstolo o chama não apenas de esplendor de Sua glória, como também de imagem mesma de sua pessoa ou substância[39], não custa perguntarmos como se pode dizer que algo é a imagem mesma de uma pessoa, exceto da própria pessoa de Deus, independentemente de qual seja o significado de pessoa e substância. Considere, então, se o Filho de Deus, sabendo que é sua Palavra e Sabedoria, o único que conhece o Pai e O revela a quem Ele o deseja – vale dizer, aos que são capazes de receber sua palavra e sabedoria – não pode, com relação a esse aspecto de revelar e dar a conhecer a Deus, ser chamado de imagem de sua pessoa e substância; ou seja, quando aquela Sabedoria, desejando dar a conhecer a outros os meios pelos quais Deus é reconhecido e entendido, antes de tudo descreve a si mesmo, podendo ser assim chamada como a própria imagem de Deus.

Com vistas a alcançar um entendimento maior da maneira pela qual o Salvador é a imagem da pessoa ou substância de Deus, utilizaremos um exemplo que, ainda que não descreva o tema que tratamos de modo total ou apropriado, pode, não obstante, ser empregado com o propósito único de mostrar que o Filho de Deus, que existia na forma de Deus, se despojou de si mesmo (de sua glória) e, por meio desse mesmo despojamento, nos mostrou a plenitude de sua divindade. Por exemplo, suponhamos que existisse uma estátua tão colossal que preenchesse o mundo inteiro, e que, por essa razão, ninguém pudesse vê-la; e que outra estátua fosse feita, parecendo-se a ela totalmente, na forma de seus membros, nos traços de seu semblante, e feita com material da mesma natureza, mas sem a mesma imensidão de tamanho, para que aqueles que eram incapazes de contemplar aquela de enormes proporções, ao ver a segunda, reconhecessem ter visto a primeira, porque a menor conservara dela todos os traços dos membros e do semblante, e até a mesma forma e material, tão estreitamente que seria indistinguível dela. Por meio de tal similaridade, o Filho de Deus, despojando-se de sua igualdade com o Pai, e mostrando-nos o caminho para o conhecimento Dele, foi feito à própria imagem da Sua pessoa, para que nós, incapazes de ver a glória daquela maravilhosa luz quando se apresenta na grandeza de sua divindade, pudéssemos obter, pelo fato de que a luz se fez entre nós, os meios de contemplar a luz divina mediante a contemplação de seu esplendor.

Essa comparação de estátuas, é claro, na medida em que pertence a coisas materiais, não é empregada com nenhum outro propósito senão o de mostrar que o Filho de Deus, mesmo colocado na forma insignificante de um corpo humano, por causa da semelhança de suas obras e de seu poder com o Pai, mostrou haver nele uma grandeza imensa e invisível, conforme disse a seus discípulos: “Quem viu a mim, viu o Pai[40]”, e “Eu e o Pai somos um[41]”, ou “O Pai está em mim, e eu estou no Pai[42]”.

10.   O poder do poder

Vejamos agora qual é o significado da expressão que se encontra na Sabedoria de Salomão, onde se diz da Sabedoria que “é uma espécie de sopro do poder de Deus, o fluxo mais puro da glória do Onipotente, o esplendor da luz eterna; o espelho sem mancha da obra ou do poder de Deus; a imagem de Sua bondade[43]”. São essas as definições dadas de Deus, assinalando com cada uma os atributos que pertencem à Sabedoria de Deus, chamando de ‘sabedoria’ o poder, a glória, a luz eterna, a obra e a bondade de Deus.

Salomão não diz, porém, que a sabedoria seja o sopro da glória do Onipotente, nem da luz eterna, nem da atuação do Pai, nem de sua bondade, já que não era apropriado atribuir nenhum desses atributos ao sopro; mas, com toda propriedade, ele diz que a sabedoria é o sopro do poder de Deus. Agora, como ‘poder de Deus’ devemos entender aquilo pelo que Deus é forte: aquilo por meio de que Ele designa, refreia e governa todas as coisas visíveis e invisíveis; que é suficiente para todas aquelas coisas que Ele governa com sua providência; e entre as quais Ele está presente, como se fosse um indivíduo. E, ainda que o sopro de todo esse poder forte e incomensurável, e o vigor produzido por sua existência mesma, procedam do próprio poder, como a vontade procede da mente, inclusive essa própria vontade de Deus, não obstante, foi feita para ser o poder de Deus.

Consequentemente é produzido um outro poder, que existe com as propriedades de si mesmo, uma espécie de sopro, como diz a Escritura, do poder primeiro e não-gerado de Deus, que Dele extrai seu ser, e que nunca deixa de existir em tempo algum. Porque, se alguém afirmar que não existiu anteriormente, mas que veio à existência depois, perguntaremos por que razão o Pai, que lhe deu o ser, não o fez antes. E se essa mesma pessoa conceder que existiu uma vez um princípio, quando aquele sopro proveio do poder de Deus, perguntaremos outra vez, por que não antes do princípio, que Ele próprio concedera? E, desse modo, recuando sempre para uma data mais recuada, e prosseguindo com nossas interrogações, chegaremos a essa conclusão: de que, como Deus sempre possuiu o poder e a vontade, nunca existiu razão alguma, seja de propriedade ou qualquer outra, pela qual Ele não tenha possuído a bênção desejada.

Fica assim demonstrado que o sopro do poder de Deus sempre existiu, não tendo começo algum senão o próprio Deus. Tampouco era apropriado que tivesse outro princípio senão Deus, do qual deriva seu nascimento. De acordo com o que disse o Apóstolo, Cristo é “poder de Deus[44]”, e deveria chamar-se não apenas de sopro do poder de Deus, mas de poder do poder.

11.   O Pai e o Filho são um mesmo Deus

Vamos agora examinar a expressão: “a Sabedoria é o fluxo mais puro da glória do Onipotente[45]”. Consideremos em primeiro lugar o que é a glória do Deus Onipotente, e então entenderemos no que consiste seu sopro ou fluxo. Assim como ninguém pode ser pai sem ter um filho, nem ser senhor sem possuir criado, o próprio Deus não pode ser chamado de Onipotente a menos que existam aqueles sobre os quais exerça seu poder; portanto, para que Deus se mostre onipotente, é preciso que existam todas as coisas. Pois, se alguém tivesse momentos ou porções de tempo – ou como quer que os chame – que houvessem deixado de ser, enquanto que as coisas que viriam a ser depois ainda não existiam, ficaria indubitavelmente demonstrado que durante aqueles anos ou períodos Deus não era onipotente, mas que se converteu em onipotente depois daquilo, ou seja, a partir do momento em que começou a ter pessoas sobre as quais exercesse seu poder; e, desse modo, parecerá ter recebido um certo aumento, e ter-se elevado de um estado inferior a outro superior, já que não há dúvidas de que é melhor ser onipotente do que não sê-lo.

E como não parecer absurdo que Deus não possuísse algo que lhe convinha possuir, porque, por alguma espécie de progresso, iria entrar de posse dela, mas depois? Mas, se jamais houve um tempo em que ele não tivesse sido onipotente, aquelas coisas em função das quais ele recebe esse título deveriam existir também; e desde sempre ele possuía aquelas coisas sobre as quais exercesse seu poder, às quais governava como o rei ou o príncipe – coisa que trataremos com mais detalhes adiante, quando tratarmos do tema das criaturas.

Mas, mesmo agora, creio que é necessário dizer uma palavra de advertência, ainda que muito por alto, já que a questão que teremos adiante consiste em saber como a sabedoria é “puro fluxo” da glória do Onipotente, para que ninguém pense que esse título seja anterior em Deus ao nascimento da Sabedoria, pela qual Ele é chamado de Pai, sabendo que a Sabedoria, que é o Filho de Deus, é o puro fluxo da glória do Todo-poderoso. Quem sustentar essa suspeita ouça essa declaração indubitável da Escritura, que diz: “Fizeste todas as coisas com sabedoria[46]”. E o ensinamento do Evangelho: “Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito teria sido feito[47]”; entenda assim que o título de Deus Onipotente não pode ser mais antigo do que o de Pai, já que é pelo Filho que o Pai é Todo-poderoso.

No que se refere à expressão “a glória do Todo-poderoso”, da qual a Sabedoria constitui o fluxo, devemos entender que a Sabedoria, por cuja causa Deus é chamado de Onipotente, participa da glória do Todo-poderoso. Porque é por meio da Sabedoria, que é Cristo, que Deus tem poder sobre todas as coisas, não só por sua autoridade de senhor, como também pela obediência voluntária de seus súditos. E para que você entenda que a onipotência do Pai e do Filho são a mesma, assim como Deus e o Senhor são um e o mesmo com o Pai, escute o modo como João fala no Apocalipse: “Assim diz o Senhor, que era, que é e que há de ser, o Todo-poderoso[48]”. Pois, quem há de vir, senão Cristo?

E, assim como ninguém deve se ofender ao ver que Deus é o Pai, e que o Salvador também é Deus, tampouco deve se espantar de que o Filho seja considerado Onipotente, assim como o Pai é chamado de Onipotente. Desse modo se cumprirá o dito verdadeiro que proclama: “Tudo o que é meu é teu, e todo o teu é meu; e eu fui glorificado neles[49]”. Agora, se todas as coisas que são do Pai são também de Cristo, seguramente dentre essas coisas está a onipotência do Pai; e indubitavelmente o Filho unigênito deve ser Onipotente, para que o Filho possa ter também todas as coisas que o Pai possui. “E eu fui glorificado neles”, declara, “para que diante do nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão no céu, na terra e debaixo da terra; e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai[50]”.

12.   A glória e a soberania de Cristo

Portanto, Ele é o fluxo da glória de Deus nesse sentido, de que Ele é Onipotente – a própria Sabedoria pura e sem mancha –, glorificado como o fluxo da onipotência e da glória. E para que se entenda com mais clareza no que consiste a glória da onipotência, acrescentaremos o seguinte. Deus Pai é Onipotente, porque tem poder sobre todas as coisas, isso é, sobre o céu e a terra, o sol, a lua, as estrelas e todas as coisas que existem neles. E Ele exerce seu poder sobre eles mediante sua Palavra, porque diante do nome de Jesus todo joelho se dobrará, no céu, na terra e debaixo da terra. E se todo joelho se dobrará diante de Jesus, então, sem dúvida, é a Jesus que todas as coisas estão submetidas, e é ele quem exerce poder sobre todas as coisas; por meio dele todas as coisas estão sujeitas ao Pai, já que é por meio da sabedoria, ou seja, pela palavra e a razão – não pela força e a necessidade – que todas as coisas estão sujeitas. Portanto, sua glória consiste nisso, que Ele possui todas as coisas, e essa é a glória pura e imaculada da onipotência, que, pela razão e a sabedoria, não pela força e a necessidade, submete todas as coisas.

A glória ‘pura e imaculada’ da sabedoria é uma expressão adequada para distinguir da glória que não pode ser chamada de pura nem sincera. Pois qualquer natureza que possa ser alterada e mudar, ainda que glorificada por trabalhos de justiça e de sabedoria, pelo fato mesmo de que a justiça e a sabedoria são qualidades acidentais suas – e já que tudo o que é acidental pode desaparecer –, essa glória não pode ser chamada de ‘pura e sincera’. Mas a Sabedoria de Deus, que é seu Filho unigênito, e que em todos os sentidos é incapaz de mudança ou alteração, e contendo em Si como uma essência toda qualidade boa, tal que não possa alterar-se nem mudar, sua glória, portanto, é chamada de pura e sincera.

13.   Luz de Luz

Em terceiro lugar, a sabedoria é chamada de “esplendor da luz eterna[51]”. Nas páginas precedentes explicamos a força dessa expressão, quando introduzimos a similaridade entre o sol e o esplendor de seus raios, e mostramos a melhor maneira de se entender isso. Vamos acrescentar ao que dissemos apenas uma breve observação. Chama-se corretamente de eterno aquilo que não tem princípio de existência, e que tampouco pode algum dia deixar de ser o que é. É essa ideia que está expressa em João, quando diz que “Deus é luz[52]”.

Agora, sua sabedoria é o esplendor dessa luz, não só por ser luz, mas também por ser luz eterna, para que sua sabedoria seja seu esplendor eterno e para sempre. Se isso for totalmente entendido, ver-se-á claramente que a existência do Filho é derivada do Pai, mas não no tempo, nem em qualquer outro princípio, exceto, como dissemos, no próprio Deus.

14.   Cristo, espelho do Pai

Mas a sabedoria também é chamada de “espelho sem mancha do agir (energeia) de Deus[53]”. Deveremos entender em primeiro lugar, então, o que é o agir de Deus. Trata-se de uma espécie de vigor, por assim dizer, por meio do qual Deus trabalha na criação, na providência e no juízo, ou na disposição e no arranjo das coisas individuais, cada qual em seu tempo. Assim como a imagem formada num espelho reflete infalivelmente todos os atos e movimentos daquele que o olha, do mesmo modo devemos entender a Sabedoria, quando esta é chamada de “espelho sem mancha da atuação do Pai”; é como o próprio Senhor Jesus Cristo, que é a Sabedoria de Deus, declara a respeito de si mesmo: “Tudo o que Ele faz, o Filho também faz conjuntamente[54]”, logo depois de dizer: “O Filho não pode fazer nada por si mesmo, senão o que vê o Pai fazer”. Portanto, o Filho não se diferencia em nenhum aspecto do Pai, quanto a poder e operar, e em nada difere do Pai, sendo um único e mesmo movimento em todas as coisas, por assim dizer, e por isso é chamado de “espelho sem mancha”, para que, por meio de tal expressão, fique entendido que não existe em absoluto dissemelhança alguma entre o Filho e o Pai.

Como então, em verdade, podem estar de acordo com as Escrituras as opiniões dos que dizem que algumas coisas foram feitas conforme o modo como um discípulo se parece ou imita a seu mestre, ou a dos que dizem que o Filho realiza em matéria corpórea aquilo que primeiro o Pai conformou em sua essência espiritual, sendo que no Evangelho se diz que o Filho não faz coisas similares, mas que faz as mesmas coisas de maneira similar?

15.   Bondade da Bondade

Resta investigarmos o que é “a imagem de sua bondade[55]”; e penso que aqui devemos entender o mesmo que expressei mais acima, ao falar da imagem formada por um espelho. Porque Ele é a bondade primeira, da qual, indubitavelmente, nasceu o Filho, o qual, em todos os sentidos, é a imagem do Pai, e que pode ser chamado, com toda propriedade, de imagem de sua bondade. Porque não existe nenhuma outra bondade que exista no Filho, senão a que está no Pai. Por isso, também o Salvador disse corretamente no Evangelho: “Não há ninguém bom, senão Deus Pai[56]”. Com essa expressão podemos entender que o Filho não possui uma bondade diferente, senão a mesma que existe no Pai, de quem se diz que é a imagem, porque Ele não provém de nenhuma outra fonte que não daquela bondade primeira, e também para que não pareça que possa haver no Filho uma bondade diferente da que existe no Pai. Não existe nenhuma diferença ou dissemelhança de bondade no Filho. Portanto, não se deve imaginar como uma blasfêmia o que dizem as palavras: “não existe ninguém bom, fora Deus”, como se aqui se negasse que Cristo e o Espírito Santo sejam bons.

Mas, como já dissemos, a primeira bondade deve ser entendida como residindo em Deus Pai, de quem o Filho nasce e o Espírito Santo procede, conservando neles, sem nenhuma dúvida, a natureza daquela bondade que se encontra na fonte da qual derivam. E, se na Escritura existem outras coisas que são boas, como um anjo ou um homem, um criado ou um tesouro, um bom coração, uma boa árvore, todas essas coisas são assim chamadas impropriamente, já que sua bondade é acidental e não essencial.

Requereria muito tempo e trabalho colocarmos todos os títulos do Filho de Deus, tais como, por exemplo, luz verdadeira, porta, justiça, santificação, redenção e incontáveis outros, e ainda mostrar como e por quais motivos cada um deles é dado. Satisfeitos, pois, com que já colocamos, seguiremos nossa investigação nos assuntos a seguir.

3
O ESPÍRITO SANTO

Deveremos a partir de agora investigar de forma tão sucinta quanto possível o tema do Espírito Santo. Todos aqueles que, de algum modo, percebem a existência da Providência, confessam que Deus, que criou todas as coisas, é não-gerado, e o reconhecem como Pai do universo.

1.       A autoridade única e superior das Escrituras

Agora, que Ele possui um Filho, é uma declaração que não foi feita por nós, ainda que isso possa parecer uma asserção suficientemente maravilhosa e incrível aos que têm reputação de filósofos entre os gregos e os bárbaros, alguns dos quais, porém, podem ter concebido uma ideia de sua existência ao reconhecer que todas as coisas foram criadas pela palavra ou a razão de Deus. Não obstante, nós, conforme nossa crença na doutrina (que consideramos divinamente inspirada), cremos que não é possível explicar e trazer para dentro do alcance o entendimento humano essa razão mais elevada e mais divina do Filho de Deus, de nenhuma outra maneira senão por meio das Santas Escrituras, as únicas que foram inspiradas pelo Espírito Santo, isso é, os Evangelhos, as Epístolas, a lei e os profetas, segundo a declaração do próprio Cristo.

Ninguém suspeitava da existência do Espírito Santo, salvo os que estão familiarizados com a lei e os profetas, ou os que professam uma crença em Cristo. Porque ainda que ninguém seja capaz de falar com certeza a respeito de Deus Pai, é no entanto possível adquirir alguma conhecimento de Deus mediante a criação visível e os sentimentos naturais da mente humana; e também é possível confirmar esse conhecimento pelas Sagradas Escrituras. Com relação ao Filho de Deus, ainda que “ninguém conheça o Filho, a não ser o Pai”, é também a partir da Sagrada Escritura que a mente é ensinada sobre como pensar o Filho; e não apenas no Novo, como no Antigo Testamento, mediante aquelas coisas que, ainda que tenham sido efetuadas pelos santos, referem-se figurativamente a Cristo, e nas quais é possível descobrirmos sua natureza divina e a natureza humana que Ele assumiu.

2.       O Espírito só é conhecido pela Escritura

Agora, no que consiste o Espírito Santo, isso nos é ensinado em muitas passagens da Escritura, como quando Davi diz: “E não retires de mim Teu Espírito Santo[57]”. Ou por Daniel, quando diz: “O Espírito Santo que está em Ti[58]”. No Novo Testamento temos testemunhos abundantes, como quando o Espírito Santo é descrito descendo sobre Cristo, e quando o Senhor assoprou sobre seus apóstolos após Sua ressurreição, dizendo: “Recebei o Espírito Santo[59]”. E na saudação do anjo a Maria: “O Espírito Santo virá sobre Ti[60]”. A declaração de Paulo, de que ninguém pode chamar ‘Senhor’ a Jesus, exceto pelo Espírito Santo[61]. E nos Atos dos Apóstolos, o Espírito Santo é dado pela imposição das mãos dos apóstolos no batismo[62].

De tudo isso aprendemos que a pessoa do Espírito Santo possuía tamanha autoridade e dignidade, que o batismo salvífico não ficava completo a não ser pela autoridade do que existe de mais excelente na Trindade, vale dizer, pelo nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, unindo ao Deus não-gerado, o Pai, seu Filho unigênito e também o nome do Espírito Santo. Quem, pois, não ficará espantado ao ouvir que aquele que disser uma palavra contra o Filho do Homem poderá ter ainda esperança de perdão, mas quem for culpado de blasfêmia contra o Espírito Santo não terá perdão nesse mundo presente, nem no mundo futuro[63]!

3.       O Espírito Santo é incriado

Que todas as coisas foram criadas por Deus, e que não há criatura que exista sem que extraia Dele seu ser, isso está estabelecido em muitas declarações da Escritura; ficam assim refutadas e rechaçadas aquelas asserções falsamente alegadas por alguns a respeito da existência de uma matéria coeterna com Deus, ou de almas não-geradas, nas quais Deus não tivesse que implantar tanto poder da existência, como a igualdade e a ordem.

Pois até no pequeno tratado chamado O Pastor (ou O Anjo do arrependimento), composto por Hermas, lemos o seguinte: “Em primeiro lugar, cremos que existe um Deus que criou e ordenou todas as coisas; o qual, quando nada existia anteriormente, causou para que todas as coisas fossem; em quem todas as coisas estão contidas, mas que não é contido por coisa alguma”.

E no Livro de Enoch temos também descrições similares. Até agora não encontrei nas Escrituras passagem alguma que sugira que o Espírito Santo seja um ser criado, nem sequer no sentido no qual, como já expliquei, Salomão fala da Sabedoria como tendo sido criada, ou no sentido em que devem ser entendidas as denominações do Filho como “vida” ou “palavra”. Portanto, concluo que o Espírito de Deus, que “se movia sobre as águas[64]” não é outro senão o Espírito Santo. Essa parece ser a explicação mais razoável; mas não devemos mantê-la como sendo fundamentada diretamente na narração da Escritura, mas no entendimento espiritual da mesma.

4.       O Espírito escrutina as profundezas de Deus

Alguns dos nossos precursores observaram que no Novo Testamento, toda vez que o Espírito é chamado sem aquele adjetivo que denota qualidade, ele deve ser entendido como sendo o Espírito Santo; tal é o caso, por exemplo, da expressão: “Mas o fruto do Espírito é amor, alegria e paz[65]”, e também: “Tendo começado pelo Espírito, agora voz aperfeiçoais pela carne?[66]”.

Somos de opinião de que essa distinção também pode ser observada no Antigo Testamento, como onde se diz: “Aquele que dá respiração ao povo que mora sobre a terra, e Espírito aos que por ela andam[67]”. Porque, sem dúvida, todo aquele que caminha sobre a terra (isso é, todo ser terreno e corpóreo), é também partícipe do Espírito Santo, recebendo-o de Deus. Meu mestre hebreu também costumava dizer que os dois Serafins de Isaías, descritos com seis asas cada um, e que cantam “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos[68]” devem ser entendidos como se referindo ao Filho unigênito de Deus e ao Espírito Santo.

E pensamos que a expressão que aparece no hino de Habacuc: “No meio dos dois seres vivos, ou das duas vidas, te deste a conhecer[69]”, também deve ser entendida como sendo Cristo e o Espírito Santo. Porque todo o conhecimento do Pai é obtido pela revelação do Filho e pelo Espírito Santo, de modo que ambos, chamados pelo profeta de “seres vivos”, ou seja, “vidas”, existem como fundamento do conhecimento de Deus Pai.

Assim como se diz do Filho, que “ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o queira revelar[70]”, o mesmo é dito do Espírito Santo, quando o Apóstolo declara: “Deus no-lo revelou a nós pelo Espírito; porque o Espírito a tudo escrutina, mesmo as profundezas de Deus[71]”. E no Evangelho, quando o Salvador fala das partes divinas e mais profundas de seus ensinamentos – que seus discípulos ainda não eram capazes de receber – Ele lhes diz: “Ainda tenho muitas coisas para dizer-vos, mas agora não sois capazes de as receber; mas quando vier o Espírito de verdade, ele vos guiará a toda verdade; ele vos recordará todas as coisas que vos disse[72]”.

Devemos entender, portanto, que, assim como o Filho é o único que conhece o Pai e o revela a quem quiser, também o Espírito Santo, que escrutina as profundezas de Deus, revela a Deus a quem Ele desejar: “Porque o Espírito sopra onde Ele quer[73]”. Não devemos supor, todavia, que o Espírito deriva seu conhecimento da revelação do Filho. Pois se o Espírito Santo conhecesse o Pai pela revelação do Filho, ele passaria de um estado de ignorância a um estado de conhecimento; mas é tão ímpio como absurdo confessar o Espírito Santo e, mesmo assim, atribuir-lhe ignorância.

Porque ainda que existisse algo além, antes do Espírito Santo, não teria sido por um avanço progressivo que este chegou a se tornar o Espírito Santo, como se alguém se atrevesse a dizer que no tempo em que ainda não era Espírito Santo ele ignorava o Pai, e que só depois de ter recebido o conhecimento teria se tornado o Espírito Santo. Pois, se fosse esse o caso, o Espírito Santo não deveria ser contado na Unidade da Trindade, ou seja, alinhado com o Pai e o Filho imutáveis – a não ser, que não tivesse sido sempre o Espírito Santo.

Quando empregamos termos como “sempre”, “era” ou “foi”, ou qualquer outra designação de tempo, essas coisas não devem ser tomadas em sentido absoluto, mas com a devida concessão; porque, enquanto que o significado dessas expressões se relaciona com o tempo, os sujeitos de que falamos são concebidos por uma extensão da linguagem como se existissem no tempo, embora, em sua verdadeira natureza, ultrapassem todo conceito do entendimento finito.

5.       As operações do Espírito

Não obstante, parece apropriado nos perguntarmos por que motivo, quando um homem renasce para a salvação que vem de Deus, é preciso invocar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, de modo que a salvação não seria assegurada sem a cooperação de toda a Trindade; e por que razão é impossível participar do Pai ou do Filho sem o Espírito Santo. Para responder a isso será necessário, sem dúvida, definir as operações particulares do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Na minha opinião, as operações do Pai e do Filho se estendem não apenas a todos os santos, mas também aos pecadores, e não só aos homens racionais, como também aos animais e às coisas inanimadas; vale dizer, a tudo o que possui existência. Mas a operação do Espírito Santo não alcança de modo algum as coisas inanimadas, nem os animais desprovidos de fala; nem sequer podemos discerni-lo naqueles que, embora dotados de razão, se entregam à maldade e não se orientam para as coisas melhores. Em suma, a ação do Espírito Santo é limitada aos que se orientam para as coisas melhores, e que andam nos caminhos de Jesus Cristo, a saber, os que se ocupam das boas obras e permanecem em Deus.

6.       Participantes da natureza divina

Que as operações do Pai e do Filho atuam tanto nos santos como nos pecadores, fica claro no seguinte: que todos os seres racionais participam da palavra, isso é, da razão, e, por intermédio dela, carregam consigo implantadas algumas sementes de sabedoria e justiça, que são Cristo. e todas as coisas, sejam lá o que forem, participam daquilo que existe realmente, a respeito do que Moisés disse: “Eu sou o que sou[74]”: essa participação em Deus Pai é compartilhada por justos e pecadores, pelos seres racionais e os irracionais, e por todas as coisas que universalmente existem.

O apóstolo Paulo também mostra que todos têm uma participação em Cristo, ao afirmar: “Não digas em teu coração: quem subirá ao céu (isso é, para trazer Cristo para baixo), ou quem descerá ao abismo (isso é, para trazer outra vez a Cristo de entre os mortos). Mas o que diz a Escritura? A palavra está perto de você, em tua boca e em teu coração[75]”. Paulo quer dar a entender que Cristo está no coração de todos, em virtude de sua palavra ou razão, na medida em que participa dos que são os seres racionais.

Também essa declaração do Evangelho, que diz: “Se eu não tivesse vindo, nem vos tivesse falado, não teríeis pecado; mas agora não tendes desculpa para o vosso pecado[76]”, torna patente e manifesto a todos os que possuem um conhecimento racional, desde quanto tempo permanece um homem sem pecado, e a partir de quando passa a ser responsável por pecar; e de que maneira, por participarem da palavra ou razão, os homens pecaram, vale dizer, desde o momento em que se tornaram capazes de entendimento e conhecimento, quando a razão implantada em seu interior lhes indicou a diferença entre o bem e o mal; assim, só depois de conhecer o que vem a ser o mal é que se tornam culpados de pecado, caso o cometam. Esse é o significado da expressão “não tendes desculpa para seu pecado”, ou seja: a partir do momento em que a palavra ou a razão divina começou a lhes mostrar interiormente a diferença entre o bem e o mal, devem evitar e se proteger da malícia e de tudo o que é mau: “O pecado está naquele que sabe fazer o bem e não o faz[77]”.

Ademais, que nenhum homem está sem comunhão com Deus, isso é ensinado no Evangelho mediante as palavras do Salvador: “O reino de Deus não virá ostensivamente; nem se dirá: ‘aqui está ele, ali está ele’; porque eis que o reino de Deus está em vós[78]”. Mas aqui devemos observar se isso não possui o mesmo significado que a expressão do Gênesis: “E soprou em seu nariz um sopro de vida; e o homem se tornou uma alma viva[79]”. Porque se isso for entendido como se referindo a todos os homens em geral, então todos os homens têm uma participação em Deus.

7.       Participação no Espírito

Mas se isso for entendido como uma referência ao Espírito de Deus, já que Adão também profetizou algumas coisas, não se pode tomar como uma aplicação geral, mas limitada apenas aos santos. Também nos dias do Dilúvio, quando toda carne corrompeu seu caminho perante Deus, está escrito que Deus falou assim aos homens indignos e pecadores: “Meu espírito não permanecerá com o homem para sempre[80]”.

Por essas coisas vemos que o Espírito de Deus foi retirado de todos os que são indignos. Também nos Salmos está escrito: “Se escondes teu rosto, se turvam; se lhes retiras o espírito, deixam de ser, e se tornam pó. Envias teu espírito, tudo se cria; e renovas a face da terra[81]”. Isso indica manifestamente o Espírito Santo, o qual, depois de que os pecadores e os ímpios foram deixados e destruídos, cria para si um novo povo e renova a face da terra, povo que, deixando de lado, pela graça do Espírito, o velho caminho com seus feitos, começa a caminhar em novidade de vida[82]. Portanto, essa expressão se aplica corretamente ao Espírito Santo, porque Ele terá sua morada, não em todos os homens, não nos que são carne, mas apenas naqueles nos quais a terra tenha sido renovada.

Finalmente, é por essa razão que a graça e a revelação do Espírito Santo foram concedidas mediante a imposição das mãos dos apóstolos depois do batismo. Também nosso Salvador, depois da ressurreição – quando as coisas velhas passaram e todas se fizeram novas – sendo Ele próprio um homem novo e o primogênito dos mortos[83], tendo sido seus apóstolos renovados pela fé na sua ressurreição, disse: “Recebei o Espírito Santo[84]”. Sem dúvida foi isso que o Senhor quis assinalar no Evangelho, quando disse que o vinho novo não pode ser colocado em odres velhos, ordenando que também os odres sejam novos, isso é, que os homens devem andar em novidade de vida para que possam receber o vinho novo, ou seja, a novidade da graça do Espírito Santo.

É dessa maneira, pois, que atua o poder de Deus Pai e do Filho, estendendo-se sem distinção a toda criatura; mas uma participação no Espírito Santo só a encontrarão os santos. Por isso foi dito: “Ninguém pode chamar ‘Senhor’ a Jesus, se não for no Espírito Santo[85]”.

Numa dada ocasião, até os apóstolos foram considerados dignos apenas de ouvir as palavras: “Mas recebereis a virtude do Espírito Santo que virá sobre vós[86]”. Por essa razão, também, penso que se deduz que quem pecou contra o Filho do Homem pode receber o perdão: porque, se quem participa da palavra ou razão de Deus deixa de viver em conformidade com ela, parece haver caído num estado de ignorância ou loucura, e por isso merece perdão; mas quem foi considerado digno de participar do Espírito Santo e recai, por causa desse próprio ato, é declarado culpado de blasfêmia contra o Espírito Santo.

8.       Graça especial e graça geral da Trindade

Que ninguém imagine que, por afirmarmos que o Espírito Santo é concedido apenas aos santos, e que os benefícios e operações do Pai e do Filho se estendem a bons e maus, a justos e injustos, estamos dando preferência ao Espírito Santo sobre o Pai e o Filho, ou que estamos afirmando que sua dignidade seja maior, o que seria certamente uma conclusão muito ilógica. Porque o que estamos descrevendo é a peculiaridade de sua graça e de suas operações.

Ademais, não se pode dizer que na Trindade algo seja maior ou menor, já apenas a fonte da divindade contém todas as coisas por sua palavra e razão, e pelo Espírito de sua bica santifica todas as coisas que são dignas de purificação, conforme está escrito no Salmo: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito de sua boca[87]”.

Também existe uma obra especial de Deus Pai, além daquela pela qual Ele concede a todas as coisas o dom da vida natural.

Da mesma forma, existe um ministério especial do Senhor Jesus Cristo aos que Ele confere por natureza o dom da razão, por meio do qual eles são capazes de ser corretamente aquilo que são.

Existe também outra graça do Espírito Santo, que é concedida em merecimento, em proporção aos méritos daqueles que são considerados capazes de recebê-la. Isso é claramente indicado pelo apóstolo Paulo quando, ao demonstrar que o poder da Trindade é um e o mesmo, diz: “Existe uma diversidade de dons; mas sempre o mesmo Espírito. E existe uma divisão de ministérios; mas sempre o mesmo Senhor. E existe uma divisão de operações; mas é sempre o mesmo Senhor que opera todas as coisas em todos. Mas a cada qual é dada uma manifestação do Espírito para seu proveito[88]”. Daí se deduz claramente que não existe diferença nenhuma na Trindade, senão que o que é chamado de dom do Espírito é dado a conhecer por meio do Filho, e operado por Deus Pai. “Mas em todas as coisas opera um único e mesmo Espírito, repartindo a cada qual como quer[89]”.

9.       Recapitulação e exortação

Tendo feito essas declarações a respeito da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, voltemos à ordem em que começamos nossa discussão.

Deus Pai concede a existência a todos: a participação destes em Cristo, por ser Ele palavra de razão, os torna seres racionais. Daí se deduz que merecem elogio ou reprovação, conforme sejam capazes de virtude ou de vício. Sobre essa base, portanto, está presente a graça do Espírito Santo, para que aqueles seres que não são santos em sua essência possam se tornar santos mediante sua participação Nele.

Vemos, então, em primeiro lugar, que os seres derivam sua existência de Deus Pai; em segundo lugar, sua natureza racional da Palavra (Verbo); em terceiro lugar, sua santidade do Espírito Santo. Aqueles que foram previamente santificados pelo Espírito Santo são novamente tornados capazes de receber a Cristo, já que Ele é a justiça de Deus; e os que ganharam previamente esse grau de santificação pelo Espírito Santo, obterão não obstante o dom da sabedoria segundo o poder e a operação.

Considero ser esse o significado das palavras de Paulo, quando diz que “a uns dá palavra de sabedoria, a outros palavra de conhecimento, segundo o mesmo o Espírito[90]”. E enquanto assinala a distinção individual dos dons, o Apóstolo reporta a totalidade deles à fonte de todas as coisas, com as palavras: “Existe diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera todas as coisas em todos[91]”. Daí também a obra do Pai, que confere existência a todas as coisas, se revela mais gloriosa e magnífica, na medida em cada qual, por sua participação em Cristo enquanto sabedoria, conhecimento e santificação, progride e avança aos graus mais altos da perfeição; e, sendo que é com vistas a participar do Espírito Santo que cada um se torna mais puro e mais santo, obterá este, ao se tornar digno, a graça da sabedoria e do conhecimento, a fim de que, depois de limpar e eliminar toda mancha de contaminação e ignorância, possa realizar esse grande avanço em santidade e pureza, para que a natureza que recebeu de Deus possa se tornar, tal como é, digna Daquele que a deu para ser pura e perfeita, de modo a que o ser que existe possa ser tão digno quanto Aquele que o chamou à existência.

Desse modo, quem é do modo como seu Criador deseja que seja, receberá de Deus poder para existir para sempre. Que possa ser esse o caso; e que aqueles que Ele criou possam estar sem cessar e inseparavelmente presentes Nele, que é Aquele que é, essa é a obra da Sabedoria: que os instrua e treine, para trazê-los à perfeição mediante a confirmação de seu Espírito Santo e a incessante santificação; pois só assim serão capazes de receber a Deus. Desse modo, portanto, pela renovação da incessante operação do Pai, do Filho e do Espírito Santo em nós, em suas várias etapas de progresso, seremos, quem sabe, capazes em algum tempo futuro, e não sem dificuldade, de contemplar a vida santa e bem-aventurada, na qual (já que só a podemos alcançar depois de muitas lutas) nós deveremos sempre e sempre prosseguir, para que nenhuma saciedade daquela felicidade nos detenha alguma vez; de modo a que, quanto mais percebermos sua felicidade, mais aumente e se intensifique em nós o desejo dela, enquanto nós, com cada vez mais prontidão e liberdade seguimos recebendo e nos agarrando ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Mas se a saciedade ou o cansaço por acaso se apossarem dos que estão de pé sobre o cume alto e perfeito dessa meta, não creio que sejam esses depostos de repente de sua posição e caiam, mas sim que irão regredindo gradativamente, pouco a pouco; mas pode acontecer às vezes de que ocorra um breve lapso de tempo, no qual o indivíduo rapidamente se arrepende e volta a si, não caindo assim completamente, mas regressando sobre seus passos de volta ao lugar de onde começou, para de novo fazer direito o que havia perdido por sua negligência.

4
A SEPARAÇÃO OU AFASTAMENTO

Para expor a natureza da separação ou do afastamento da parte daqueles que vivem sem a devida atenção, não parecerá descabido fazer uso de uma similaridade à guisa de ilustração.

Suponhamos, então, o caso de alguém que vai se introduzindo gradualmente na arte ou na ciência, seja ela a geometria ou a medicina, até que alcance a perfeição, depois de se ter treinado em seus princípios e prática durante um tempo prolongado, até chegar a obter um domínio completo de sua arte. Essa pessoa jamais irá imaginar que, depois de dormir, desperte no dia seguinte num estado de ignorância.

Nosso objetivo aqui não é o de aduzir ou notar aqueles acidentes que são ocasionados por feridas ou debilidade, já que eles não se aplicam à nossa ilustração presente. Segundo nosso ponto de vista, enquanto nosso geômetra ou médico continue a se exercitar no estudo de sua arte e na prática de sua ciência, o conhecimento de sua profissão permanecerá nele; mas se ele se retirar de sua prática e deixar de lado seus hábitos de trabalho, então, por sua negligência, algumas coisas irão escapando, no princípio gradualmente, e a seguir pouco a pouco, mas cada vez mais, e com o passar do  tempo ele acabará esquecendo tudo o que sabia, até que se apague completamente de sua memória. É possível, naturalmente, que no começo, quando começar a se afastar de seus estudos e a ceder à influência corruptora de uma negligência que ainda é pequena, possa ele despertar e voltar rapidamente a si, reparar as perdas ainda recentes e recuperar aquele conhecimento que até então só havia se apagado um pouco de sua mente;

Agora apliquemos isso a quem tenha se dedicado ao conhecimento e à sabedoria de Deus, cujos estudos e diligência superam incomparavelmente qualquer outra educação; e contemplemos, segundo a forma de similaridade empregada, no que consiste a aquisição do conhecimento, ou o que significa sua desaparição, sobretudo quando ouvimos do Apóstolo que somente os perfeitos contemplarão cara a cara a glória do Senhor na revelação dos mistérios.

Mas em nosso desejo de mostrar os benefícios divinos que nos foram concedidos pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo, cuja Trindade é fonte de toda santidade, caímos, com o que dissemos, em uma digressão, porque consideramos que o tema da alma, que por acaso veio a nós, deveria ser mencionado, ainda que por alto, já que estávamos tratando de um tópico relacionado com a natureza racional. Consideraremos, não obstante, com a permissão de Deus e por Jesus Cristo e o Espírito Santo, de forma mais conveniente e em local apropriado o tema de todos os seres racionais, que se classificam em três gêneros e espécies.

5
AS NATUREZAS RACIONAIS

Depois dessa dissertação que levamos a cabo sucintamente com o melhor de nossa capacidade, quanto ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, cabe oferecermos alguns poucos comentários sobre o tema das naturezas racionais, suas espécies e ordens; sobre as incumbências dos poderes santos e as dos poderes malignos, e também sobre os que ocupam uma posição intermediária entre esses poderes do bem e do mal, e que ainda estão situados num estado de luta e provas.

1.       Poderes e domínios

Na Santa Escritura encontramos numerosos nomes de certas ordens e ofícios, não apenas de seres santos, como também de seus opostos, que estabeleceremos em primeiro lugar, procurando apresentar seus significados em segundo lugar, tanto quanto o permita nossa capacidade de averiguação.

Existem certos anjos de Deus a quem Paulo chama de “espíritos administradores, enviados a serviço dos que serão herdeiros da salvação[92]”. Nos escritos de Paulo também encontramos outros que ele designa, segundo alguma fonte desconhecida, como tronos e domínios, principados e poderes[93]; e, depois dessa enumeração, como se soubesse que ainda haveria ofícios racionais e ordens além daqueles mencionados, disse do Salvador: “Sobre todo principado, potestade, potência e soberania, e todo nome que se pode nomear, não apenas nesse século, como no século vindouro[94]”. Daí se deduz que existem outros seres além dos que Paulo mencionou, que podem ser nomeados nesse mundo, mas que não foram enumerados por ele naquele momento, e que talvez não fossem conhecidos por mais ninguém; e que ali estavam ainda outros que não poderiam ser nomeados nesse mundo, mas que serão nomeados no mundo por vir.

2.       O diabo, seus anjos e a luta espiritual

Então, sem segundo lugar, devemos saber que cada ser que está dotado de razão e que transgride seus estatutos e limitações, indubitavelmente se encontra implicado em pecado, por ter-se desviado da retidão e da justiça. Toda criatura racional, pois, é capaz de receber elogio e censura; elogio, se em conformidade com a razão que possui, avança na direção do melhor; censura, se se aparta do plano e do curso da retidão, sendo por essa razão submetido a dores e penas.

E isso também devemos crer que se aplica ao próprio diabo e àqueles que são como ele, e que são chamados de seus anjos. Esses seres precisam ser explicados para que possamos saber quem são.

O nome de Diabo, de Satanás e de Iníquo, também descrito como Inimigo de Deus, é mencionado em muitos lugares da Escritura. Além disso são mencionados alguns anjos do diabo, e também um ‘príncipe deste mundo’, que vem a ser o próprio diabo ou algum outro não claramente manifesto. Existem também certos príncipes desse mundo, dos quais se fala como possuidores de uma espécie de sabedoria que dá em nada; mas, se estes são aqueles príncipes que são também os principados contra os quais devemos lutar, ou outros seres, me parece um ponto sobre o qual não é fácil a ninguém se pronunciar.

Depois dos principados, são mencionados certos poderes com os quais também temos que lutar, e manter uma luta inclusive com os príncipes deste mundo e com os governadores das trevas.

Também são mencionados por Paulo poderes espirituais de maldade em lugares celestes. E o que devemos dizer, ademais, dos espíritos impuros mencionados no Evangelho? Pois temos também certos seres celestes chamados por um nome similar que, como está dito, dobram ou dobrarão o joelho diante do nome de Jesus.

Seguramente, num lugar onde estamos falando do tema das naturezas racionais, não é apropriado passar sob silêncio a nós mesmos, seres humanos chamados de animais racionais; inclusive esse é um ponto que não deve ser passado por alto, já que até entre nós seres humanos são mencionadas certas ordens diferentes, segundo as palavras: “A parte do Senhor é seu povo; Jacó é a corda de sua herança[95]”. Outras nações são chamadas de ‘parte dos anjos’, já que “quando o Altíssimo dividiu as nações e dispersou os filhos de Adão, fixou as fronteiras das nações segundo o número dos anjos de Deus”. Portanto, junto com outras naturezas racionais, também deveremos examinar a fundo a razão da alma humana.

3.       Criação, determinismo e liberdade

Depois da enumeração de tantos e tão importantes nomes de ordens e ofícios, nos quais fica implícita a certeza de que existem existências pessoais, investiguemos se Deus, criador e fundador de todas as coisas, criou certo número delas santas e felizes, de modo a que não pudessem admitir nenhum elemento de classe oposta, e outro para que pudessem ser capazes de virtude e de vício; ou então, se devemos supor que Deus criou alguns seres para que sejam totalmente incapazes de virtude, e outros totalmente incapazes de maldade, mas com poder de permanecer apenas em estado de felicidade; e outros, capazes de ambas as condições.

Para que nossa primeira investigação possa começar com os próprios nomes, consideremos se os santos anjos, desde o período de sua primeira existência, foram sempre santos (e são santos ainda, e serão sempre santos), jamais tendo admitido ou tido o poder de admitir qualquer ocasião de pecado. Então, em segundo lugar, consideremos se os que se chamam de principados santos, começaram, desde o momento de sua criação por Deus, a exercer poder sobre aqueles que lhes estavam submetidos, e se estes últimos foram criados com tal natureza, e formados com o objetivo de serem submetidos e subordinados. Da mesma maneira, também se aqueles que são chamados de poderes foram criados com tal natureza e com o propósito expresso de exercer poder, ou se sua chegada a esse poder e a essa dignidade foi uma recompensa e merecimento por sua virtude.

Ademais, se os que se chamam tronos também ganharam a estabilidade da felicidade ao mesmo tempo de sua vinda ao ser, de modo a que tenha posse disso pela simples vontade do Criador; ou se os que se chamam dominações receberam seu domínio não como uma recompensa por sua habilidade, mas como um privilégio especial de sua criação, de modo que isso constitui algo que em certo grau é natural e inseparável deles. Mas se adotarmos a opinião de que os santos anjos e os poderes santos os tronos benditos e as virtudes gloriosas, e as dominações magníficas, devem ser considerados como possuidores dos poderes, dignidades e glórias em virtude de sua natureza, seguir-se-á indubitavelmente que os seres mencionados como sendo propriedade dos ofícios de uma classe oposta devem ser considerados da mesma maneira: ou seja, que aqueles principados com os quais temos que lutar, sejam vistos, não como tendo recebido seu espírito de oposição e resistência ao bem num período posterior, ou como tendo caído do bem pela liberdade da vontade, mas como tendo isso em si como a essência de seu ser, desde o princípio de sua existência.

De maneira parecida também, é o mesmo caso dos poderes e virtudes, em nenhum dos quais a maldade tenha sido subsequente ou posterior à sua primeira existência. Também é o caso daqueles a quem o Apóstolo chamou de senhores e príncipes das trevas deste mundo, dos quais se diz, a respeito de seu governo e ocupação das trevas, que não caíram por perversidade ou intenção, mas pela necessidade de sua criação. O raciocínio lógico nos obrigará a adotar a mesma postura em relação aos espíritos maus e malignos e aos demônios impuros. Mas se parece absurdo sustentar essa opinião quanto aos poderes malignos e contrários, assim como é absurdo que a causa de sua maldade seja retirada do objeto de sua própria vontade e atribuída ao seu Criador, por que não seremos também obrigados a uma confissão similar a respeito dos poderes bons e santos, a saber, que o bem que há neles não é seu por essência? Já mostramos evidentemente que esse é o caso apenas de Cristo e do Espírito Santo e, sem dúvida, do Pai também.

Porque ficou provado que nunca houve nada composto na natureza da Trindade, de maneira a que essas qualidades pudessem pertencer a nós como consequências acidentais. Segue-se daí que, no caso das criaturas, isso é resultado de suas próprias obras e movimentos, quando aqueles poderes que parecem dominar a outros ou exercer poder e domínio, foram preferidos e colocados sobre os que governam ou exercem poder, e não como consequência de um privilégio especial inerente às suas constituições, mas devido ao mérito.

4.       O Testemunho da autoridade das Escrituras

Mas, para que não pareça que construímos nossas asserções sobre temas de tal importância e dificuldade fundamentando-nos apenas na inferência, ou que requeremos o consentimento de nossos leitores a coisas puramente conjecturais, vejamos se podemos obter algumas declarações da Santa Escritura, por cuja autoridade essas posições possam ser sustentadas de maneira crível.

Em primeiro lugar, aduziremos aquilo que a Santa Escritura contém com respeito aos poderes maus; depois seguiremos nossa investigação com relação aos outros, enquanto o Senhor quiser nos ilustrar, para que em assuntos de tal dificuldade possamos averiguar o que está mais próximo da verdade, ou qual deveria ser nossa opinião de acordo com a norma da religião.

5.       As profecias de Ezequiel e a natureza dos poderes celestiais

No profeta Ezequiel encontramos duas profecias escritas sobre o príncipe de Tiro, sendo que a primeira delas poderia parecer, a quem não tivesse ouvido a segunda, referir-se a algum homem que tenha sido príncipe dos tírios. Por isso, no momento não trataremos da primeira profecia; porque, como a segunda é manifestamente de tal espécie que não pode ser entendida a respeito de um homem, mas de um poder superior que tenha caído de uma posição mais alta e tenha sido reduzido a uma condição inferior e pior, tomaremos desta uma ilustração por meio da qual possamos demonstrar com maior clareza que os poderes opostos malignos não foram formados como tais, ou assim criados, por natureza, mas sim que caíram de uma posição melhor a outra pior, convertendo-se assim em seres maus; e que tampouco os poderes benditos são de tal natureza que são incapazes de admitir o oposto de seu ser, caso tivessem inclinação para isso, tornando-se negligentes ou preguiçosos e descuidando de guardar com cuidado a bem-aventurança de sua condição.

Porque, se na profecia relata-se que aquele que é chamado de príncipe de Tiro contava-se entre os santos, e era sem mácula, tendo sido colocado no paraíso de Deus e adornado com uma coroa atraente e bela, devemos supor que tal personagem não poderia ser em nenhum grau inferior aos santos. E como ele é descrito como tendo sido adornado com uma coroa atraente e bela, e como alguém que andava sem mácula no paraíso de Deus, como poderia alguém supor que tal ser não fosse um daqueles poderes santos e benditos, colocado num estado de felicidade, e que devemos supor dotado de uma hora não inferior a esses?

Mas deixemos que as próprias palavras da profecia nos ensinem: “Recebi a palavra do Senhor, que dizia: Filho do homem, entoe lamentações sobre o rei de Tiro, e diz a ele: assim disse o Senhor: tu eras o selo da perfeição, cheio de sabedoria e perfeito em beleza. Estiveste no Éden, no jardim de Deus; toda pedra preciosa era tua vestimenta: rubi, topázio, diamante, crisólito, cornalina, jaspe, lápis-lazúli, turquesa e berilo; e de ouro eram trabalhados seus pingentes e joias. Os primores de teus tamborins e pífaros estavam preparados para ti no dia de tua criação. Tu, grande querubim, protetor; eu te coloquei no santo monte de Deus, e ali estiveste; andaste no meio das pedras de fogo. Eras perfeito em todos os teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se encontrou maldade em ti. Por causa dos teus numerosos contratos, te encheste de iniquidade e pecaste; por isso te expulsei do monte de Deus, e te lancei entre as pedras de fogo, ó querubim protetor. Teu coração se engrandeceu por causa de tua beleza, e corrompeste tua sabedoria por causa de teu esplendor; eu te lançarei por terra; colocar-te-ei diante dos reis, para que te olhem. Maculaste teu santuário com a multidão de tuas maldades e com a iniquidade de tuas contratações; eu então fiz brotar dentro de ti um fogo que te consumiu, e te lancei em cinzas sobre a terra aos olhos de todos os que te veem. Todos os que te conheceram entre os povos se maravilharão de espanto ao ver-te; e para sempre deixarás de ser[96]”.

Vendo assim que tais são as palavras do profeta, dizendo: “tu eras o selo da perfeição, cheio de sabedoria e perfeito em beleza” e “no dia de tua criação (...) eu te coloquei no santo monte de Deus”, quem poderia diminuir o significado dessas expressões para supor que tal linguagem se refere a algum homem santo, para não dizer do príncipe de Tiro? De qual homem se poderá dizer que tenha andado “em meio a pedras de fogo”? E quem podemos imaginar ter sido sem mácula desde o próprio dia de sua criação, tendo depois a maldade se mostrado nele, e que foi lançado sobre a terra?

O significado disso tudo é que aquele que ainda não estava sobre a terra foi lançado sobre ela, de cujos lugares santos se diz que estão contaminados. Já mostramos que a menção do profeta Ezequiel a respeito do príncipe de Tiro se refere a um poder adverso, e com isso demonstra-se claramente que aquele poder era antes santo e bem-aventurado; que ele caiu desse estado de felicidade e foi lançado à terra; e que isso não aconteceu por causa de sua natureza ou criação. Somos da opinião, portanto, de que essas palavras se referem a um determinado anjo que recebeu o ofício de governar a nação dos tírios, e ao qual foi confiado também o cuidado com suas almas. Mas, para sabermos a que Tiro se refere a profecia, ou de quais almas de Tiro ela fala, deveríamos investigar se se trata da Tiro que está situada dentro das fronteiras da Fenícia, ou de alguma outra, da qual essa Tiro terrestre que conhecemos é apenas uma imagem. Quanto às almas dos tírios, quer sejas as de habitantes anteriores ou as que pertencem a Tiro entendida espiritualmente, essa não parece ser uma questão cujo exame caiba aqui; não devemos investigar de maneira superficial assuntos de tamanho mistério e importância, e que exigem assim um tratamento e um trabalho especial.

6.       A profecia de Isaías sobre Lúcifer

O profeta Isaías também nos ensina a respeito de outro poder contrário: “Como caíste do céu, ó estrela, filho da manhã! Você foi aturado por terra, tu que debilitavas as pessoas. Tu, que dizias em teu coração: subirei ao céu, no alto, junto das estrelas de Deus colocarei meu trono, e no monte do testemunho me sentarei, dos lados do setentrião; sobre as alturas das nuvens subirei, e serei semelhante ao Altíssimo. Mas agira estás derrubado no sepulcro, no meio das ossadas. Aqueles que o virem, inclinar-se-ão sobre ti e te olharão, dizendo: é esse aquele varão que fazia tremer a terra, que transtornava os reinos, que transformou o mundo num deserto, que assolou suas cidades, que nunca abriu o cárcere aos prisioneiros? Todos os reis dos povos, todos descansam com honra, cada um em sua casa. Mas tu foste expulso de teu sepulcro como um tronco abominável, como vestido de mortos passados à espada, que desceram ao fundo da sepultura; como um corpo morto pisoteado. Não serás contado com eles na sepultura, porque destruíste tua terra, mataste teu povo. Não será nunca mais mencionada a semente dos malignos. Preparaste os filhos para o matadouro por causa da maldade de seus pais: que não se levantem, nem possuam a terra, nem encham a face do mundo de cidades. Porque eu me levantarei sobre eles, diz o Senhor dos exércitos, e rasparei da Babilônia o nome e as relíquias, os filhos e os netos, diz o Senhor[97]”.

Com essas palavras, ensina-se claramente que quem caiu do céu anteriormente foi Lúcifer, que costumava surgir pela manhã. Porque, se como alguns pensam, sua natureza era de trevas, como se pode dizer que Lúcifer tenha existido antes? Ou como poderia ele surgir pala manhã, se não tivesse em si nenhuma luz? Mas até o próprio Salvador nos ensinou isso, ao falar do diabo: “Eu via Satanás cair do céu, como um relâmpago[98]” – isso porque, durante um tempo, ele foi luz.

Além disso nosso Senhor – o que é verdade – comparou o poder de sua própria vinda gloriosa ao relâmpago, com essas palavras: “Porque, assim como o relâmpago sai do oriente e se mostra até o ocidente, assim também será a vinda do Filho do Homem[99]”. E não obstante, ele o compara ao relâmpago e diz que caiu do céu, para mostrar que ele havia estado no céu durante um tempo e que teria tido seu lugar entre os santos, desfrutando de uma parte daquela luz da qual todos os santos participam, por meio da qual se tornam anjos de luz, e por cuja causa os apóstolos foram chamados pelo Senhor de luz do mundo[100].

Dessa maneira, portanto, este ser existiu uma vez como luz, antes de se perder e cair de seu lugar, convertendo sua glória em pó, que é marca característica dos maus, conforme disse o profeta; e por esse motivo também ele é chamado de príncipe deste mundo, ou seja, de uma morada terrestre; e, sendo assim ele exerce seu poder sobre os que são obedientes à sua maldade, pois “todo esse mundo (porque o profeta chamou de ‘mundo’ à terra) está submetido ao maligno[101]”, que é um apóstata.

Que ele é um apóstata, vale dizer, um fugitivo, o próprio Senhor o disse no livro de Jó: “Submeterás com um gancho o falso dragão”, isso é, o fugitivo[102]. É certo que como ‘dragão’ devemos entender o próprio diabo. Portanto, se esses são chamados de poderes contrários, e se, como foi dito, alguma vez existiram sem mancha – ainda que a pureza absoluta só exista no ser essencial do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e como uma qualidade acidental em todas as coisas criadas –, e uma vez que o acidental pode sempre desaparecer, e posto que aqueles poderes opostos foram uma vez irreprocháveis, tendo existido entre os que ainda agora permanecem sem mancha, é evidente a partir de tudo isso que ninguém existe que seja puro por essência ou natureza, assim como contaminado por natureza.

A consequência disso é que está em nós e em nossas ações o sermos felizes e santos, ou, por preguiça e negligência, cairmos da felicidade para a maldade e a ruína, em tal proporção que, pela grande habilidade na malícia (por assim dizer, se é possível a um homem ser culpado de tão grande negligência), será possível descer até o estado em que a pessoa se transforma naquilo que chamamos de ‘poder oposto’.

6
O FINAL OU CONSUMAÇÃO

1.       Preconceito, dogma e discussão

O final ou consumação parece ser uma indicação da perfeição e do término das coisas. Isso nos recorda aqui que, se existir alguém cheio de desejo pela leitura e entendimento de assuntos de tal dificuldade e importância, deveria complementar seu esforço com um entendimento perfeito e instruído, para que, não tendo tido experiência em questões dessa classe, possam essas parecer-lhe vãs e supérfluas; ou, se sua mente está cheio da preconceitos sobre outros pontos, pode julgar que esse são heréticos e opostos à fé da Igreja, cedendo assim, não tanto às convicções da razão humana, mas ao dogmatismo do preconceito.

Esses temas, certamente, tem sido tratados por nós com grande solicitude e precaução, como uma investigação e uma discussão, mais do que como uma decisão já fixada e certa. Por isso já advertimos nas páginas precedentes aquelas questões que devem ser expostas em proposições dogmáticas claras, como penso ter feito com o melhor de minha capacidade ao tratar da Trindade. Mas no momento presente nosso exercício deve ser conduzido como melhor pudermos, mais ao estilo de uma discussão do que de uma definição restrita.

2.       A submissão final a Cristo

O fim do mundo, portanto, e a consumação final, ocorrerá quando cada qual for submetido ao castigo por seus pecados; esse é um tempo que só Deus conhece, quando ele outorgará a cada um o que merece. Pensamos, na verdade, que a bondade de Deus em Cristo levará a todas as suas criaturas a um final, e até seus inimigos e adversários serão conquistados e submetidos. Porque a Santa Escritura diz: “O Senhor disse a meu Senhor: senta-te à minha direita, enquanto coloco teus inimigos por escabelo de teus pés[103]”. E se o significado das palavras do profeta é pouco claro, podemos verificar o que diz o apóstolo Paulo, que fala abertamente assim: “Porque é necessário que Ele reine, até colocar seus inimigos debaixo de seus pés[104]”. Mas, se mesmo essa inegável declaração do Apóstolo não nos informa suficientemente sobre o significado de “colocar seus inimigos debaixo de seus pés”, escutemos o que está dito nas palavras: “todos os seus inimigos debaixo de seus pés”. No que consiste, então, esse “colocar debaixo”, por meio de que todas as coisas se submeterão a Cristo?

Penso que isso consiste na mesma submissão por meio da qual todos desejamos nos submeter a Ele, pela qual foram submetidos os apóstolos, e todos os santos que foram seguidores de Cristo. Porque o termo de ‘submissão’, pelo qual nos submetemos a Cristo, indica a salvação que provém Dele e que pertence aos seus servos, segundo a declaração de Davi: “Somente em Deus está submetida minha alma; Dele vem minha salvação[105]”.

3.       Conhecer o princípio e o fim

Sabendo, assim como será o final, quando todos os inimigos serão submetidos a Cristo, e quando a morte, o último inimigo, for destruída, e quando o reino for entregue por Cristo (a quem todas as coisas estão submetidas) a Deus Pai, contemplemos, digo eu, a partir do final o começo das coisas.

Porque o final é sempre como o princípio; e, portanto, como existe um fim de todas as coisas, devemos entender que houve um princípio; e, assim como existe um final de muitas coisas, assim também brotam de um princípio muitas diferenças e variedades, que, mais uma vez, pela bondade de Deus, pela submissão a Cristo e pela unidade do Espírito Santo, serão chamadas a um final, que será como o princípio: todos os que dobram o joelho diante do nome de Jesus, dando assim a conhecer sua submissão a Ele; e esses são os que estão no céu, na terra e debaixo da terra, indicando dessa maneira as três classes de todo o universo, a saber, aqueles que desde o princípio foram dispostos, cada qual segundo a diversidade de sua conduta, entre as diferentes ordens, e  conforme suas ações; porque não havia ali nenhuma bondade essencial neles, como a que existe em Deus, em Cristo e no Espírito Santo. Porque somente na Trindade, que é autora de todas as coisas, existe a bondade em virtude de seu ser essencial, enquanto que todos os demais a possuem como uma qualidade acidental e perecível, e esses só desfrutam da felicidade quando participam da santidade, da sabedoria e da própria divindade. Mas se se descuidam e desprezam essa participação, cada um, por culpa de sua própria preguiça, uma mais depressa, outro mais devagar, em maior ou menor grau, causam sua própria queda.

E, como já comentamos, o lapso pelo qual um indivíduo cai de sua posição se caracteriza por uma grande diversidade, segundo os movimentos da mente e da vontade, um com mais facilidade, outro com mais dificuldade, todos caem para uma posição inferior; nisso devemos ver o juízo justo da providência de Deus, que faz com que aconteça a cada um segundo a diversidade de sua conduta, na proporção de seu declínio e abandono.

4.       A unidade final

Os que perderam seu primeiro estado de bem-aventurança não o perderam irreparavelmente, mas foram postos sob a regra das ordens santas e benditas que descrevemos, para que, servindo-se de seu auxílio, sejam remodelados pelos princípios da disciplina, e assim possam se recuperar e ser restaurados em sua condição de felicidade. Por isso sou da opinião, até onde consigo ver, que essa ordem da raça humana foi designada para que no mundo futuro, ou na era por vir profetizada por Isaías, quando haverá um novo céu e uma nova terra, possa ela ser restaurada nessa unidade prometida pelo Senhor Jesus em sua oração a Deus Pai, em nome de seus discípulos: “Mas não pelo apenas por esses, mas também pelos que irão crer em mim pela palavra deles. Para que todos sejam uma só coisa; como tu, Pai, em mim, e eu em Ti, que também sejam eles em nós uma coisa só[106]”. Isso é confirmado também na linguagem do apóstolo Paulo: “Até que cheguemos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus[107]”. E o mesmo Apóstolo nos exorta: “Que digais todos a mesma coisa, e que não haja dissensões entre vós, antes sejais perfeitamente unidos numa mesma mente e num mesmo parecer[108]”, pois na vida presente estamos colocados na Igreja, na qual está a forma do reino que virá, em semelhança de unidade.

5.       Especulação sobre a condenação e a salvação final

De qualquer maneira, devemos levar em conta que alguns seres desse princípio do qual falamos, mergulharam em tamanha profundidade de indignidade e maldade, que parecem ser totalmente indignos desse treinamento e instrução (por meio dos quais a raça humana, enquanto existe na carne, é treinada e instruída com a assistência dos poderes divinos), e sigam, pelo contrário, num estado de inimizade e oposição em relação aos que recebem essa instrução e esse ensinamento. Saí que a totalidade dessa vida mortal está cheia de lutas e provas, causadas pela oposição e a inimizade dos que caíram de uma condição melhor sem olhar para trás, os quais são chamados de ‘diabo e seus anjos’, bem como as demais ordens do mal, que o Apóstolo classifica entre os poderes opostos.

Mas se alguma dessas ordens atua sob o governo do diabo e obedece aos seus mandamentos malignos, se ela poderá ser convertida à justiça num mundo futuro devido a possuir a faculdade do livre arbítrio, ou se sua maldade persistente e empedernida se transformou em natureza pelo poder do hábito, esse é um resultado que o próprio leitor poderá verificar: se, em algum dos mundos presentes, que podem ser vistos e que são temporais, ou nos que não podem ser vistos e são eternos, aquela parte vai se diferenciar totalmente da unidade final e da salvação das coisas. Mas em todos os mundos temporais que vemos e nos eternos que não vemos, todos os seres estão organizados segundo um plano regular, pela ordem e o grau de seus méritos, de maneira a que alguns, no princípio dos tempos, outros depois, e outros só nos últimos tempos, depois de terem sofrido castigos mais pesados e mais severos, suportados durante longos períodos e por muitas eras, melhoram, por assim dizer, por meio desse severo método de treinamento, e são restaurados pela instrução dos anjos (e posteriormente por poderes de um grau mais alto), e assim, avançando por etapas a uma melhor condição, alcancem aquilo que é invisível e eterno, tendo atravessado, por meio de uma espécie de educação, cada um dos ofícios dos poderes divinos. Por tudo isso, penso, podemos deduzir, como uma inferência necessária, que cada natureza racional, ao passar de uma ordem a outra e avançar por todas e cada qual, enquanto está submetidas aos vários grais de habilidade e fracasso segundo suas próprias ações e esforços, goza do poder de seu livre arbítrio.

6.       A renovação e a conservação da matéria

Mas, já que Paulo disse que certas coisas são visíveis e temporais, e outras invisíveis e eternas[109], vamos investigar como são essas coisas que podem ser vistas e são temporais, se não haverá ali nada em absoluto depois dos períodos do mundo por vir (no qual a dispersão e a separação do princípio sofrem um processo de restauração em direção ao único e mesmo final e semelhança), ou se, enquanto que a forma das coisas passa, sua natureza essencial não está sujeita a nenhuma corrupção. E Paulo parece confirmar essa última ideia, quando diz: “A aparência desse mundo passa[110]”. Davi também parece afirmar a mesma coisa nas palavras: “Os céus são obra de tuas mãos. Eles passarão, e tu permanecerás; todos eles envelhecerão como uma vestimenta; como uma vestimenta os mudarás, e eles serão transformados[111]”. Porque se o céu será transformado, sem dúvida o que é transformado não falece, e, se a aparência do mundo passa, isso não constitui de modo algum um caso de aniquilação ou de destruição de sua substância material, mas de uma espécie de mudança de qualidade e transformação da aparência. Também Isaías, ao declarar profeticamente que haverá um novo céu e uma nova terra, sugere indubitavelmente uma ideia similar. E essa renovação do céu e da terra, essa transmutação da forma do mundo presente e essa mudança dos céus, serão sem dúvida preparados para os que andam ao longo do caminho que indicamos e que têm como meta a felicidade, da qual se diz que mesmos os inimigos serão submissos, quando Deus for “tudo em todos[112]”.

E se alguém imaginar que no final o material, isso é, a natureza corpórea, será completamente destruída, não terá este entendido minha ideia, de como os seres tão numerosos e poderosos sejam capazes de viver e existir sem corpos, já que isso é um atributo exclusivo da natureza divina, ou seja, do Pai, do Filho e do Espírito Santo, vale dizer, existir sem nenhuma substância material e sem participar de nenhum grau de corporeidade.

Outros, talvez, poderão dizer que no final cada substância corporal será tão pura e refinada como o éter, de uma pureza e claridade celeste. Porém, como será tudo isso só é conhecido com certeza por Deus e pelos que são seus amigos por Cristo e o Espírito Santo.

7
OS SERES INCORPÓREOS E CORPÓREOS

1.       Preâmbulo

Os temas considerados no capítulo anterior foram tratados em uma linguagem geral, a natureza dos seres racionais foram tratados mais por via de inferência lógica do que por uma definição dogmática estrita, com exceção do lugar onde tratamos, o melhor que pudemos, das pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Agora devemos averiguar no que consistem essas questões para que sejam tratadas de forma apropriada nas páginas seguintes segundo nossa crença dogmática, ou seja, de acordo com o credo da Igreja. Todas as almas e todas as naturezas racionais, sejam santas ou pecadoras, foram formadas ou criadas, e todas elas, segundo sua própria natureza, são incorpóreas; mas mesmo sendo incorpóreas elas foram criadas, porque todas as coisas foram feitas por Deus por intermédio de Cristo, como ensina João de modo geral no seu Evangelho: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No começo ele estava em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e, sem Ele, nada do que foi feito teria sido feito[113]”. O apóstolo Paulo, ademais, além de descrever as coisas criadas por espécies, números e ordens, fala como segue, mostrando que todas as coisas foram feitas por Cristo: “Porque por Ele foram criadas todas as coisas que estão nos céus, e as que estão na terra, visíveis e invisíveis; sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por Ele e para Ele. E Ele existia antes de todas as coisas, e por Ele todas as coisas subsistem, e Ele é a cabeça do corpo[114]”. Portanto, Paulo declara manifestamente que em Cristo e por Cristo todas as coisas foram feitas e criadas, sejam as visíveis, que são corpóreas, sejam as invisíveis, que não considero como outra coisa do que os poderes incorpóreos e espirituais. Mas quanto às coisas que ele chamou genericamente de corpóreas ou incorpóreas, me parece, pelas palavras que se seguiram, que elas enumeram as várias classes, a saber, tronos, dominações, principados, poderes e influências.

Esses assuntos foram citados por nós, em nosso desejo de seguir de maneira organizada a investigação do sol e da lua, e deduzir por inferência lógica, e averiguar se também eles devem ser contados entre os principados, devido ao fato de que foram criados para dominar o dia e a noite; ou se devem ser considerados como dominando o dia e a noite apenas por seu ofício de iluminação, não sendo, na realidade, senhores dessa ordem dos principados.

2.       A natureza astral é mutável

Quando se diz que todas as coisas foram feitas por Ele, e que Nele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, não cabe dúvida de que também Ele criou as coisas que estão no firmamento, que é chamado de céu, no qual esses luminares foram colocados e estão incluídos dentre o número das coisas celestes.

Em segundo lugar, vendo que no decurso dessa discussão fomos descobrindo manifestamente que todas as coisas foram feitas ou criadas, e que dentre as coisas criadas não há nenhuma que não posa admitir o bem e o mal, e ser capaz de um ou de outro, que diremos da opinião que certos amigos sustentam quanto ao sol, à lua e às estrelas, a saber, que são imutáveis e incapazes de se converterem no oposto do que são? Outro bom número de pessoas sustentam a mesma opinião com relação aos santos anjos, e certos hereges também, em relação às almas, que eles chamam de naturezas espirituais.

Primeiro, pois, vejamos que razão podemos descobrir sobre o sol, a lua e as estrelas, se é correto que sua natureza seja imutável, e que primeiro ofereçamos as declarações da Escritura Sagrada, na medida do possível.

Jó parece afirmar que as estrelas não somente podem pecar, como na realidade não estão limpas do contágio do pecado. Suas palavras são as seguintes: “Eis que nem mesmo a lua é resplandecente, nem as estrelas são limpas diante de seus olhos[115]”.  Isso deve ser entendido a respeito do resplendor de sua natureza ou substância física, como se estivéssemos falando, por exemplo, que uma roupa está limpa; porque se for esse o significado, então a acusação de falta de limpeza no resplendor de sua substância corporal implicaria um reflexo prejudicial sobre seu Criador. Já que, se elas são incapazes, apesar de esforços diligentes, de adquirir para si um corpo de maior resplendor, ou, por preguiça, tornar menos puro o que têm, como poderiam receber censura por ser estrelas não limpas, se tampouco recebem elogios por serem assim?

3.       As estrelas, criaturas vivas

Mas para chegar a um entendimento mais claro sobre esses assuntos, deveríamos inquirir primeiro sobre um ponto: se é aceitável supor que as estrelas vivem e são seres racionais; depois, se suas almas nasceram ao mesmo tempo que seus corpos, ou se são anteriores a eles; e também se, depois do final do mundo, devemos entender que elas estarão liberadas de seus corpos; e se, assim como nós deixamos de viver, também elas cessarão de iluminar o mundo. Ainda que essa investigação posa parecer algo atrevida, como estamos movidos pelo desejo de averiguar a verdade tanto quanto seja possível, não me parece nenhum absurdo a tentativa de investigar um tema, conforme a graça do Espírito Santo.

Pensamos, portanto, que elas podem ser descritas como criaturas vivas, porque se diz que recebem mandamentos de Deus, o que costuma ser o caso apenas dos seres racionais. “Manda que o sol não se levante, e apaga as estrelas[116]”. O que são esses mandamentos? São o seguinte, a saber, que cada estrela, na sua ordem e curso, devem derramar sobre o mundo a quantidade de resplendor que lhe tenha sido confiado. Quanto aos que são chamados de ‘planetas’, em relação ao movimento de suas órbitas de uma classe, e aos que são chamados ‘aplaneis’, o caso é diferente.

Agora, de tudo isso se conclui manifestamente que o movimento de um corpo ocorre sem uma alma, e também que os seres vivos não podem estar um só momento sem se mover. E sendo que as estrelas se movem com tal ordem e regularidade que seus movimentos nunca parecem estar sujeitos à decomposição, não seria o cúmulo da loucura dizer que uma observação tão ordenada em método e plano poderia ser feita ou efetuada por seres irracionais?

Nas escrituras de Jeremias, certamente, a lua é chamada de rainha do céu[117]. Se as estrelas vivem e são seres racionais, então, indubitavelmente, entre elas deve se produzir avanço e retrocesso. As palavras de Jó, “nem as estrelas são limpas diante de seus olhos”, me parecem sugerir essa ideia.

7.       Quando é criada a alma?

Agora devemos investigar se aqueles seres que no decurso de nossa discussão descobrimos serem possuidores de vida e razão, se foram dotados de uma alma juntamente com seus corpos no tempo mencionado na Escritura, quando Deus fez “luminares no firmamento do céu, para separar o dia da noite (...) para iluminar a terra (...) fez também as estrelas[118]”; ou se seu espírito foi implantado neles, não no momento da criação de seus corpos, mas sem eles, depois de terem sido feitos. De minha parte, suspeito que o espírito foi implantado neles desde fora; mas vale a pena demonstrá-lo com a Escritura, porque é muito fácil fazer afirmações com base em meras conjecturas, enquanto que é mais difícil estabelecê-las com base no testemunho das Escrituras. Ora, isso pode ser estabelecido conjeturalmente do seguinte modo. Se a alma de um homem, que é certamente inferior enquanto alma de homem, não foi formada juntamente com seu corpo, mas, conforme está escrito, foi implantada estritamente desde fora, muito mais deve ser o caso daquelas criaturas vivas que são chamadas de celestes.

Porque, no caso do homem, como poderia a alma (por exemplo a de Jacó, que suplantou a seu irmão na matriz) aparecer formada juntamente com seu corpo? Ou como poderia uma alma, ou suas imagens, ser formada juntamente com o corpo, em quem se encheu do Espírito Santo, quando ainda estava dentro da matriz de sua mãe? Refiro-me a João, que saltou dentro da matriz de sua mãe e se regozijou porque a saudação de Maria chegara aos ouvidos de sua mãe Izabel. Como poderia sua alma ter sido formada juntamente com o corpo, se antes de ter sido criado na matriz, se diz que conhecia a Deus e que havia sido santificado por Ele antes de seu nascimento? Alguém poderá talvez pensar que Deus enche os indivíduos com seu Espírito Santo, não com base na justiça e segundo seus méritos, mas sem vistas ao merecimento. E como poderemos evitar essa declaração: “Pois o que diremos? Que existe injustiça em Deus? De modo algum[119]”. Ou: “Pois Deus não faz distinção de pessoas[120]”. Pois essa é a defesa daqueles que sustentam que as almas nascem juntamente com seus corpos. Creio que podemos formar uma opinião ao comparar a condição do homem e manter que o mesmo se aplica corretamente aos seres celestiais, que a própria razão e autoridade da Escritura nos mostra ser o caso dos homens.

8.       A submissão das criaturas

Mas vejamos se podemos encontrar na Escritura alguma indicação que se aplique corretamente a essas existências celestes. Eis a seguinte declaração de Paulo: “Entregue ao poder do nada (vaidade[121]) – não por sua própria vontade, mas por vontade daquele que a submeteu –, a criação abriga a esperança, pois ela também será liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus[122]”. A qual ‘vaidade’ foi submetida a criação, ou a qual criação se refere o Apóstolo, e porque ele diz “não por sua própria vontade”, e “abriga a esperança”, esperança de que? E de que maneira será a criação libertada da escravidão da corrupção? Em outro lugar, o Apóstolo diz: “A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus[123]”. E em outra passagem: “Sabemos que a criação toda geme e sofre dores de parto até agora[124]”. Daí que devemos nos perguntar o que são esses gemidos e essas dores. Vejamos então, em primeiro lugar, no que consiste o ‘nada’ ao que a criação foi submetida.

Eu suspeito que não seja outra coisa senão o corpo; já que, ainda que o corpo das estrelas seja etéreo, é não obstante material. Por isso também Salomão caracteriza toda a natureza corpórea como uma espécie de carga que debilita o vigor da alma, quando diz: “Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, tudo é vaidade. Eu contemplei todas as obras que são feitas sob o sol; e eis que tudo é vaidade e aflição de espírito[125]”. A essa vaidade estão sujeitas as criaturas, especialmente essa criatura que, sendo sem dúvida a maior desse mundo, sustenta também um principado distinto de trabalho, a saber, o sol, a lua e as estrelas. Diz-se que estão sujeitas à vaidade, porque são revestidas de corpos, e colocadas à parte para o ofício de dar luz à raça humana. Por isso, Paulo comenta que essas criaturas foram submetidas contra sua vontade[126]. Porque não empreenderam um serviço voluntário por vaidade, mas porque essa foi a vontade de quem as submeteu, e devido à promessa que fez Aquele que as submeteu a essa obediência involuntária, de que, quando o ministério de seu grande trabalho tivesse sido realizado, elas seriam libertas dessa escravidão da corrupção e vaidade, quando chegar o tempo da redenção gloriosa dos filhos de Deus. E toda a criação, tendo recebido essa esperança, e aguardando o cumprimento dessa promessa, enquanto não chega aquele dia, como que sentindo afeto pelos que servem, geme juntamente com eles, e com eles sofre pacientemente, esperando o cumprimento da promessa.

Veremos se as seguintes palavras de Paulo podem ser aplicadas aos que, ainda que de boa vontade, se conformam com a vontade Daquele que os submeteu, e que, na esperança da promessa, se submeteram à vaidade, quando diz: “Porque desejo ser desatado, e estar com Cristo, o que é muito melhor[127]”. Porque penso que o sol poderia dizer, de forma parecida: “Desejo ser desatado e estar com Cristo, que é muito melhor”. Paulo, na verdade, acrescenta: “No entanto, permanecer na carne é necessário por causa de vós”, enquanto que o sol poderia dizer: “Permanecer nesse corpo brilhante e celeste é mais necessário, devido à manifestação dos filhos de Deus”. As mesmas ideias podem ser aplicadas à lua e às estrelas.

Vejamos agora no que consiste a liberdade da criatura, ou o fim de sua escravidão. Quando Cristo houver entregue o reino a Deus Pai, então também aqueles seres vivos que primeiro foram expulsos do reino de Cristo, serão entregues juntamente com a totalidade do reino à regra do Pai, quando Deus for tudo em todos; também eles, já que são parte das coisas, poderão ter a Deus consigo, como Ele está em todas as coisas.

8
OS ANJOS

1.       A atribuição de cada anjo

Ao tratarmos do tema dos anjos, seguiremos um método similar, e não devemos supor que seja resultado de um acidente que um ofício particular seja atribuído a um anjo específico, como a cura a Rafael, a direção das guerras a Gabriel, o atendimento das orações e súplicas do mortais a Miguel.

Não devemos imaginar que eles obtiveram esses ofícios de outro modo que não por seus próprios méritos e pelo zelo e as excelentes qualidades que mostraram em separado antes da formação desse mundo, para que depois, na ordem dos arcanjos, lhes fossem atribuídos esses ou outros ofícios; outros, por sua vez, foram arrolados na ordem dos anjos, para atuar segundo esse ou aquele arcanjo, ou a esse ou aquele líder ou cabeça de uma ordem. Todas essas coisas não foram dispostas, como eu disse, sem critério ou casualmente, mas por uma decisão justa e apropriada de Deus, que os estabeleceu segundo seus merecimentos, conforme sua própria aprovação e julgamento; para que a um anjo fosse confiada a igreja dos Efésios, e a outros a de Esmirna. Um anjo deveria estar com Pedro, outro com Paulo; e assim, com cada pequenino dos que estão na Igreja, porque esses anjos, que diariamente contemplam o rosto de Deus, são designados a cada um deles[128]. E também deve haver um anjo que acampe ao redor dos que temem a Deus[129]. Todas essas coisas, devemos crer que não foram realizadas por casualidade ou acidente, mas para aquilo por que os anjos foram criados – a menos que nessa questão o Criador seja acusado de parcialidade; mas devemos crer que eles foram conferidos por Deus, o Juiz justo e imparcial de todas as coisas, de acordo com seus méritos e boas qualidades, e conforme o vigor mental de cada espirito individual.

2.       Fábulas sobre diferentes criadores e personalidades

Digamos agora algo sobre aqueles que sustentam a existência de uma diversidade de naturezas espirituais, para que possamos evitar cair nas fábulas ridículas e ímpias como as dos que pretendem que exista tal diversidade, tanto entre as existências celestes como nas almas humanas; pois, por esse motivo, eles alegam que elas foram chamadas à existência por criadores diferentes. Porque, me parece, se é realmente absurdo que se possa atribuir ao próprio Criador a criação de diferentes naturezas de seres racionais, eles ignoram a causa daquela diversidade. Isso porque dizem que parece inconsistente que o mesmo Criador, sem nenhuma razão de mérito, confira a alguns seres o poder de domínio enquanto submete outros à autoridade; conceda o principado a uns, e torne outros subordinados ao seu comando.

Essas opiniões são facilmente rechaçadas, em minha opinião, se seguirmos o raciocínio já explicado acima, por meio do qual mostramos que a causa da diversidade e da variedade entre esses seres é devida à sua conduta, a qual pode ter sido marcada pela seriedade ou a indiferença, segundo a bondade ou maldade de sua natureza, e jamais à parcialidade por parte do Dispensador. Para que se possa mostrar que esse é o caso dos seres celestes, tomemos emprestada uma ilustração do que se fez ou se faz entre os homens, para que, a partir das coisas visíveis, possamos extrair como consequência a contemplação das coisas invisíveis.

Está inequivocamente demonstrado que Paulo e Pedro foram homens de natureza espiritual. Quando Paulo atuou contrariamente à religião, ao haver perseguido a Igreja de Deus, e quando Pedro cometeu um pecado tão grave ao ser identificado pela criada e negar com juramento que não conhecia a Cristo, como é possível que esses de quem falamos fossem espirituais e caíssem em pecados dessa natureza, sobretudo – conforme eles diziam com frequência – na medida em que uma árvore boa não pode dar maus frutos?

Mas, se uma árvore boa não podem produzir mau fruto, como, segundo eles mesmos, Pedro e Paulo se afastaram da raiz da boa árvore, e como produziram tão maus frutos? E, se nos respondem com a asserção inventada, de que não foi Paulo quem perseguiu a Igreja, mas outra pessoa, e que não foi Pedro quem negou, mas algum outro indivíduo, como poderia Paulo dizer, se não tivesse pecado, que “eu não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus[130]”? Ou, por que chorou Pedro amargamente, se foi outro que pecou? Daí se deduz que todas essas asserções ridículas não têm fundamento.

3.       Toda natureza é capaz de bem e de mal

Segundo nosso ponto de vista, não existe nenhuma criatura racional que não seja capaz de bem e de mal. Mas disso não segue que, pelo fato de dizermos que não há natureza que não possa admitir o mal, sustentemos que toda natureza tenha admitido o mal, isso é, que tenha se tornado má. Assim como podemos dizer que a natureza de cada homem admite que ele seja marinheiro, daí não segue que todo homem se converterá em marinheiro; ou porque seja possível a cada um aprender gramática ou medicina, não fica demonstrado que cada homem seja gramático ou médico. Assim, se dizemos que não existe nenhuma natureza que não possa admitir o mal, não necessariamente estamos indicando que todas o tenham admitido. Porque, segundo nos parece, nem o próprio diabo é incapaz de ser bom, mas, ainda que seja capaz de admitir o bem, nem por isso o deseja, e não faz nenhum esforço em direção à virtude.

Porque, como nos ensinam as passagens que emprestamos dos profetas, houve um tempo em que o diabo era bom, quando andava no paraíso de Deus junto com os Querubins. Naquele tempo ele tinha o poder de receber o bem ou o mal, mas caiu de seu caminho virtuoso e se voltou para o mal com todos os poderes de sua mente; assim como outras criaturas, que, tendo capacidade para uma ou outra condição, no exercício de sua livre vontade, fugiram do mal e se refugiaram no bem.

Não existe, pois, nenhuma natureza que não possa admitir o bem ou o mal, exceto a natureza de Deus – fonte de todas as coisas boas – e de Cristo; pois Ele é a sabedoria, e a sabedoria não pode admitir a loucura; Ele é a justiça, e a justiça não pode admitir o que é injusto; Ele é a Palavra e a Razão, que certamente não pode ser tornada irracional; é também luz, e é certo que as trevas não recebem a luz. Da mesma forma, também a natureza do Espírito Santo, que é santo, não admite contaminação; porque ele é santo por natureza, vale dizer, em seu ser essencial. E se existe alguma outra natureza que seja santa, ela possuirá essa propriedade de ser santa pela recepção ou inspiração do Espírito Santo, não porque a tenha por natureza, mas por uma qualidade acidental, razão pela qual ela pode perder essa qualidade – por ser ela acidental.

Da mesma forma um homem pode possuir uma justiça acidental, da qual sempre é possível cair. Mesmo a sabedoria que um homem possui é acidental, ainda que esteja dentro de nosso poder nos tornarmos sábios, se nos dedicarmos à sabedoria com zelo e esforço por toda a vida; e, se seguirmos estudando, sempre poderemos participar da sabedoria; e esse resultado prosseguirá em maior ou em menor grau, segundo os atos de nossa vida ou a paixão de nosso zelo. Porque a sabedoria de Deus, como é digno Dele, incita e atrai tudo para aquele final feliz, onde a dor, a tristeza e o sofrimento deixarão de existir e desaparecerão.

4.       A imparcialidade e a justiça de Deus

Sou de opinião, até onde posso vislumbrar, de que a discussão precedente demonstrou de modo suficiente que não é por discriminação, nem por qualquer causa acidental, que os principados mantêm seu domínio, ou que as demais ordens de espíritos obtiveram seus respectivos ofícios, nas que receberam os graus de sua categoria devido aos seus méritos, ainda que não seja nosso privilégio saber ou inquirir quais atos foram esses, por meio dos quais cada qual ganhou seu lugar numa determinada ordem. Isso é suficiente para demonstrar a imparcialidade e a justiça de Deus conforme a declaração do apóstolo Paulo: “Porque não existe distinção de pessoas para Deus[131]”, o qual bem dispõe a tudo segundo as obras e o progresso moral de cada indivíduo.

Assim pois, o ofício angelical não existe senão em consequência de suas obras; tampouco os poderes exercem seu poder, exceto em virtude de seu progresso moral; nem os que se chamam ‘tronos’, ou seja, os poderes para julgar e governar, administram seus poderes senão por seu mérito; nem as dominações governam imerecidamente, porque essa ordem tão elevada e distinta das criaturas racionais entre as existências celestes, é ordenado em uma variedade gloriosa de ofícios.

E a mesma opinião devemos manter a respeito daquelas potências contrárias que atribuíram a si mesmas tais lugares e ofícios, derivados da propriedade por meio da qual foram feitos os principados e poderes, no caso, ou os governadores das trevas do mundo, ou os espíritos de maldade, os espíritos malignos, os demônios impuros – não por sua natureza essencial, nem por terem sido criados assim, mas porque obtiveram esses graus no mal em proporção à sua conduta e ao progresso que fizeram na maldade. E essa é uma segunda ordem de criaturas racionais, que se dedicaram à maldade com tamanha precipitação, que se tornaram indispostas, para não dizer incapazes, de recordar a si mesmas; a sede de mal se tornou para elas uma paixão que lhes traz prazer.

A terceira ordem de criaturas racionais é a daquelas que Deus considera aptas a multiplicar a raça humana, ou seja, as almas dos homens, assumidas em consequência de seu progresso moral na ordem dos anjos, dos quais vemos que alguns foram assumidos em número, ou seja, aqueles que se tornaram filhos de Deus, ou filhos da ressurreição, ou os que abandonaram as trevas e preferiram a luz, tornando-se filhos da luz; também os que, triunfando em cada luta, e tornando-se homens de paz, se fizeram filhos da paz e filhos de Deus; ou os que, mortificando seus membros na terra, se elevam acima não só da natureza corpórea, como até dos incertos e frágeis movimentos da alma, e se unem ao Senhor, tornando-se totalmente espirituais, de modo a que possam ser eternamente um só espírito com Ele, discernindo com Ele cada coisa individual, até que alcancem a condição de espiritualidade perfeita e possam discernir todas as coisas por sua perfeita iluminação com toda santidade de palavra e sabedoria divina, e sejam totalmente indistinguíveis por alguém.

Pensamos que em nenhum caso devem ser admitidas aquelas ideias que alguns quiseram colocar e manter desnecessariamente, a saber, que as almas descem a tal abismo de degradação que se esquecem de sua natureza racional e sua dignidade, e caem à condição de animais irracionais, sejam grandes ou pequenos. Em apoio a essas asserções, geralmente são citadas algumas pretensas declarações da Escritura, tais como que um animal, que tenha sido contra a natureza prostituída por uma mulher, deve ser considerada tão culpada quanto a mulher, e condenada a morrer apedrejada; ou como um touro, que golpeia com seu chifre, deve ser morto da mesma maneira. Chega a ser mencionado o caso da mula de Balaam, quando Deus abriu sua boca, e a besta de carga muda protestou com voz humana reprovando a loucura do profeta[132].

Não apenas não acolhemos essas ideias, como as rechaçamos e refutamos como contrárias à nossa ciência. Depois da refutação e repúdio de tão perversas opiniões, mostraremos, no tempo e lugar apropriados, como devem ser entendidas essas passagens nas Sagradas Escrituras.





[1] João 14: 6.
[2] Hebreus 11: 24-26.
[3] II Coríntios 13: 3.
[4] João 1: 3.
[5] I Coríntios 15: 42, 43.
[6] Oséias 10: 12.
[7] Deuteronômio 4: 24.
[8] João 4: 24.
[9] I João 1: 5.
[10] Salmo 35: 10.
[11] João 14: 23.
[12] II Coríntios 3: 6.
[13] II Coríntios 3: 15-17.
[14] Êxodo 34: 36.
[15] João 4: 24.
[16] João 4: 20.
[17] João 4: 23-24.
[18] Colossenses 1: 15.
[19] João 1: 18.
[20] Mateus 11: 27.
[21] Mateus 5: 8.
[22] Provérbios 2: 5.
[23] Provérbios 8: 22-25.
[24] Colossenses 1: 15.
[25] I Coríntios 1: 24.
[26] Eusébio menciona essa obra em sua História Eclesiástica III, 3, 25, como pertencendo aos escritos apócrifos que circulavam pelas igrejas. Não confundir com os Atos de Paulo e Tecla.
[27] João 1: 1.
[28] “Devemos entender – escreve Orígenes em outro Tratado – que a luz eterna não é outra coisa senão o próprio Deus Pai. Pois bem, a luz nunca acontece sem que juntamente com ela aconteça o esplendor, já que é inconcebível uma luz que não tenha seu próprio esplendor. Se é assim, não se pode dizer que houve um tempo em que não existiu o Filho; e, não obstante, ele não era não-gerado, mas era como um esplendor de uma luz não-gerada, que era seu princípio e fonte, na medida em dela procedia. Assim sendo, não houve um tempo em que (o Filho) não tenha existido”. (In He. fr. 1)
[29] Colossenses 1: 15.
[30] Hebreus 1: 3.
[31] Sabedoria 7: 25
[32] Gênesis 5: 3.
[33] João 1: 10.
[34] Mateus 11: 27.
[35] João 14: 9.
[36] Hebreus 1: 3.
[37] I João 1: 5.
[38]  Lucas 6: 42.
[39] Hebreus 1: 3.
[40] João 14: 9.
[41] João 10: 30.
[42] João 10: 38.
[43] Sabedoria 7: 25-26.
[44] I Coríntios 1: 24.
[45] Sabedoria 7: 25.
[46] Salmo 104: 24.
[47] João 1: 3.
[48] Apocalipse 1: 8.
[49] João 17: 10.
[50] Filipenses 2: 10-11.
[51] Sabedoria 7: 26.
[52] I João 1: 5.
[53] Sabedoria 7: 26.
[54] João 5: 19.
[55] Sabedoria 7: 26.
[56] Lucas 18: 19.
[57] Salmo 51: 11.
[58] Daniel 4: 8.
[59] João 20: 22.
[60] Lucas 1: 35.
[61] I Coríntios 12: 3.
[62] Atos 8: 18.
[63] Cf. Mateus 12: 32; Lucas 12: 10.
[64] Gênesis 1: 2.
[65] Gálatas 5: 22.
[66] Gálatas 3: 3.
[67] Isaías 4: 25.
[68] Isaías 6: 3.
[69] Habacuc 3:2. A versão da Septuaginta seguida por Orígenes (e pelos apóstolos) se afasta do original hebraico, que diz: “Aviva tua obra no meio dos tempos, no meio dos tempos torna-a conhecida”.
[70] Mateus 11: 27; Lucas 10: 22.
[71] I Coríntios 2: 10.
[72] João 16: 12-13; 14: 26.
[73] João 3: 8.
[74] Êxodo 3: 14.
[75] Romanos 10: 6-8.
[76] João 15: 22.
[77] Tiago 4: 17.
[78] Lucas 17: 20-21.
[79] Gênesis 2: 7.
[80] Gênesis 6: 3.
[81] Salmo 104: 29-30.
[82] Cf. Romanos 6: 4. “Porque fomos sepultados juntamente com ele para a morte pelo Batismo; para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos em novidade de vida”.
[83] Colossenses 1: 18; Apocalipse 1: 5.
[84] João 20: 22.
[85] I Coríntios 12: 3.
[86] Atos 1: 8.
[87] Salmo 33: 6.
[88] I Coríntios 12: 4-7.
[89] I Coríntios 12: 11.
[90] I Coríntios 12: 8.
[91] I Coríntios 12: 6.
[92] Hebreus 1: 14.
[93] Colossenses 1: 16. “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito, anterior a qualquer criatura; porque nele foram criadas todas as coisas, tanto as celestes como as terrestres, as visíveis como as invisíveis: tronos, soberanias, principados e autoridades. Tudo foi criado por meio dele e para ele”.
[94] Efésios 1: 21.
[95] Deuteronômio 32: 9.
[96] Ezequiel 28: 11-19.
[97] Isa\ías 14: 12-22.
[98] Lucas 10: 18.
[99] Mateus 24: 27.
[100] Mateus 5: 14.
[101] I João 5: 19.
[102] Jó 40: 10.
[103] Salmo 110: 1; Hebreus 1: 13.
[104] I Coríntios 15: 25.
[105] Salmo 62: 1 (Septuaginta).
[106] João 17: 2-23.
[107] Efésios 4: 13.
[108] I Coríntios 1: 10.
[109] Cf. II Coríntios 4: 18.
[110] I Coríntios 7: 31.
[111] Salmo 102: 25.
[112] I Coríntios 15: 28.
[113] João 1: 1-3.
[114] Colossenses 1: 16-18.
[115] Jó 25: 5.
[116] Jó 9: 7.
[117] Jeremias 7: 18.
[118] Gênesis 1: 14-16.
[119] Romanos 9: 14.
[120] Romanos 2: 11.
[121] Ou “daquilo que é desprovido de conteúdo”. (Gr.: mataioths, “fútil, vaidoso, inútil”)
[122] Romanos 8: 20-21.
[123] Romanos 8: 19.
[124] Romanos 8: 22.
[125] Eclesiastes 1: 2, 14.
[126] Romanos 8: 20.
[127] Filipenses 1: 23.
[128] Cf. Mateus 18: 10.
[129] Cf. Salmo 34: 7.
[130] I Coríntios 15: 9.
[131] Romanos 2: 11.
[132] Números 2: 21-30.

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