O asceta em estado de contemplação vê realidades que permanecem
misteriosas para a maior parte dos homens, e que difíceis de comunicar;
traduzidas para a linguagem humana, elas podem ser deformadas e mesmo traídas.
As palavras e os conceitos não possuem mais do que uma limitada possibilidade
de transmitir um estado espiritual, e a condição indispensável para que nesse
domínio uma pessoa possa compreender a outra é a identidade de experiências,
ou, no mínimo, a semelhança. Na falta disso, não se estabelecerá uma
compreensão recíproca, já que o valor de uma noção é função do dado vivido que
essa noção contém. Assim, por um lado, todos os homens falam línguas distintas;
mas, por outro, a palavra pode provocar às vezes, graças à consubstancialidade
do gênero humano, uma experiência autêntica no espírito do interlocutor e
suscitar nele uma nova vida.
Se isso acontece no que diz respeito às relações humanas, quanto
quando o próprio Deus atua! A palavra divina, aproveitando o instante em que a
alma está em posição de recebê-la, realmente traz a ela uma nova vida, a vida
eterna incluída nessa mesma palavra. “As palavras que vos disse são espírito e
vida[1]”.
Dito isso, vamos nos deter sobre aquele “encontro-oração” de tão
estranha aparência, a que nos referimos anteriormente, e em especial sobre as
palavras: “Mantém teu espírito no inferno e não te desesperes”.
Os leitores do Evangelho devem ter certamente percebido a
transformação imprevisível que costuma acontecer nos encontros com Cristo, seja
o de Nicodemo, o da Samaritana, ou com os discípulos na Santa Ceia. Não se
percebe a princípio uma sequência lógica. É que a atenção de Cristo está fixada
mais no coração de seus interlocutores do que nas suas palavras, em suas
necessidades secretas, em sua capacidade de compreensão.
De modo análogo, o “encontro-oração” do Starets oferece pouco sentido
aparentemente, e poderia ser qualificado por alguns como um “delírio
incoerente”. Mas se a revelação contida nele nos fosse revelada em todo o seu
poder, é certo que nosso coração ficaria profundamente comovido.
O Starets passou dezenas de anos de sua vida pedindo ardentemente ao
Senhor que o mundo conhecesse a Deus. Se os homens, pensava – e sua oração
abarcava todas as nações – pudessem conhecer o amor e a humildade de Deus,
abandonariam, a exemplo de Paulo, como barro[2],
como jogo de crianças, suas ilusões e preocupações atuais; e com todas as
forças, dia e noite, não aspirariam a outra coisa do que a essa humildade e esse
amor. Se assim fosse, dizia o Starets, o destino de cada homem mudaria e o
mundo inteiro seria transfigurado. Tão grande é o poder da humildade de Cristo.
Os anciãos e escribas de Israel se admiraram da “segurança de Pedro e
João”, “homens simples e ignorantes”, quando Pedro, referindo-se a Cristo,
proclamou: “Não existe sob o céu outro Nome dados aos homens, por meio do qual
possamos ser salvos[3]”.
Ainda hoje isso nos surpreende e desejaríamos saber de que maneira Padro, “que
não havia estudado”, e que provavelmente ignorava a história das culturas e
religiões da China, da Índia e das demais civilizações, poderia saber quais
nomes teriam sido dado sob o céu. Não existe outra resposta a essa pergunta
senão a plenitude da revelação concedida a Pedro no Monte Tabor e no dia do
Pentecostes.
Ao “ignorante e simples” Silouane, durante aquela noite de seu
“encontro-oração”, os “mistérios ocultos aos sábios e aos inteligentes” foram
igualmente mostrados. Aquela noite teve uma importância excepcional em sua
vida. O mundo está submerso nas trevas da ignorância espiritual. O caminho da
vida eterna é pregado sem cessar em todas as línguas, mas os que o conhecem
verdadeiramente são poucos em cada geração.
***
“Mantém teu espírito no inferno e não te desesperes”.
Exortação ininteligível. O que pode significar “manter o espírito no
inferno”? isso não se reveste imaginativamente de modo simplista, como vemos às
vezes nos quadros grosseiramente realistas criados pela ingênua imaginação dos
homens? Não é esse o caso. Ao Padre Silouane, como a alguns dos Padres mais
eminentes (Antônio, Sisóes, Macário, Poêmio), foi concedido viver na terra os
tormentos do inferno. Tratava-se de um estado cuja intensidade acabava por
deixar nos corações uma marca tão profunda que eles podiam renová-lo mediante
um movimento interior apropriado, quando queriam. E eles podiam recorrer a esse
ato ascético quando alguma paixão, em especial o orgulho, a mais sutil e
enraizada de todas, surgia-lhes na alma.
A luta contra o orgulho é efetivamente a última etapa no caminho que
conduz à impassibilidade. No princípio, o asceta está ao alcance das grosseiras
paixões da carne, depois da irritabilidade, e ao final do orgulho, e esse
último combate é sem dúvida o mais doloroso. O asceta, convencido, depois de
uma longa experiência, de que o orgulho põe a perder a graça, desce
conscientemente, ao vê-lo nascer, ao inferno e desse modo paralisa qualquer
movimento passional.
Essa forma de combate nos foi legada por Santo Antônio, fundador do
Monaquismo, e o Starets Silouane notara que a maior parte dos monges se assusta
e fraqueja quando chega essa etapa. Por esse motivo o grande Sisóes disse:
“Quem poderá suportar o pensamento de Antônio?”.
Sisóes, pensava o Starets, aludia aqui ao pensamento ascético que
Antônio aprendeu de um sapateiro de Alexandria. Santo Antônio havia suplicado a
Deus que lhe mostrasse alguém igual a ele. Deus lhe fez saber que ele não havia
alcançado a “estatura” de certo sapateiro de Alexandria. Antônio deixou o
deserto, dirigiu-se à casa desse homem e perguntou a ele como vivia. O
sapateiro respondeu-lhe que entregava um terço de seus ganhos à Igreja e outro
aos pobres, guardando o resto para si. Isso não pareceu extraordinário a
Antônio, já que ele havia renunciado a todos os seus bens e vivia no deserto,
numa pobreza maior do que a do sapateiro. Não estava ali, portanto, a
superioridade desse último. Antônio lhe disse: “O Senhor me enviou para ver
como vives”. O humilde artesão, que venerava a Antônio, confiou-lhe então o
segredo de sua alma: “Não faço nada de especial; apenas, quando trabalho, olho
os passantes e penso: todos se salvarão, só eu perecerei”.
Antônio, preparado por um longo e extraordinário esforço ascético, que
enchera de admiração a todo o Egito, penetrou pela graça de Deus no sentido
dessas palavras e compreendeu realmente que não havia alcançado a altura
daquele sapateiro.
Voltando ao deserto, dedicou-se a esse exercício e o ensinou aos
eremitas capazes de absorver, “não o leite, mas o alimento sólido[4]”.
Os Padres da Igreja transmitiram essa lição, desde então, como um legado
inestimável. Cada qual, é certo, lhe dará uma forma distinta. Assim, Poêmio o
Grande dizia aos seus discípulos: “Creiam-me, filhos meus, onde Satanás
estiver, ali eu serei deixado”. O exercício, porém, é essencialmente o mesmo.
“Mantém teu espírito no inferno”. Essa expressão parece refletir um
extremo desespero. Mas o Starets dizia que o asceta experimentado, seguro do
amor de seu Senhor, se mantém sabiamente na beira do abismo e não desespera.
Se a exposição do “encontro-oração” do santo Starets é simples, como o
foram as palavras do sapateiro de Alexandria, o poder e o mistério desse
exercício permanecerão incompreensíveis para aqueles que não viveram de modo
parecido, tanto os sofrimentos do inferno, como os grandes dons da graça.
***
A partir daquela noite, a prolongada ascese do Starets foi uma busca
ardente da humildade. E, se quisermos penetrar no segredo de seu caminho para a
humildade, devemos escutar seu “cântico” preferido: “Logo morrerei e minha alma
miserável descerá ao inferno; ali, sofrendo sozinho na prisão tenebrosa,
chorarei amargamente: minha alma busca ao Senhor e eu o busco com lágrimas.
Como não buscá-lo? Foi ele quem primeiro me encontrou e que apareceu a mim, pecador”.
Quando o Starets dizia “minha alma descerá ao inferno”, não era
somente uma expressão: os tormentos do inferno, realmente vividos, ficaram
gravados em seu coração, de modo que ele podia revivê-los mediante um movimento
consciente de seu espírito; e, quando todo pensamento passional era aniquilado,
ele opunha ao efeito destruidor desse sofrimento a ação salvadora de Cristo,
porque a levava também em seu coração.
Raros são os ascetas capazes desse exercício espiritual. A alma que
persevera vai se acostumando a ele e adquire uma resistência especial: a
lembrança do inferno se torna tão familiar que quase nunca a abandona. E essa
perseverança é necessária, pois o homem “que vive no mundo e suporta a carne”
está submetido continuamente às tentações do pecado e deve se defender
revestindo-se da couraça da humildade.
O Starets dizia: “Com sua resposta – ‘mantém o espírito no inferno e
não desesperes’ – o Senhor me ensinou como é necessário humilhar-se. É assim
que vencemos os inimigos. Mas quando permito ao meu espírito que saia do fogo,
os pensamentos voltam a recuperar sua força”.
No começo desse exercício, o asceta desce em espírito ao inferno e
permanece parcialmente em seu poder como prisioneiro. Mas esse exercício
conduz, em seu desenvolvimento posterior, à impassibilidade, e o inferno se
transforma em “inferno do amor de Cristo”, algo essencialmente diferente.
O que é a “descida de Cristo ao inferno”? Não devemos conceber o
inferno como uma porção do espaço, como uma região física onde os pecadores se
encontram detidos, mas como um estado espiritual da criatura que se afastou do
amor divino.
Como é possível que aquele que é a Luz inacessível e o Amor sem
medidas se rebaixe até o nível das trevas do ódio?
Encontraremos uma explicação em São Paulo quando escreve: “Assim, a
morte trabalha em nós e a vida em vós[5]”.
Tal é o poder do Amor: mudar as vidas. Aquele que ama vive a existência do
amado como sendo sua, até o ponto de lhe transmitir a força e a luz de seu
amor, assumindo em troca suas trevas e sua morte.
***
Sabemos da necessidade de que nossa vida reproduza em linhas gerais
aquilo que o Filho do homem realizou durante sua vida terrestre. Esse caminho é
o mesmo para todo cristão, segundo a palavra do Senhor: “Eu sou o Caminho”, e,
ademais, não existe outro caminho, pois “ninguém chega ao Pai senão por mim[6]”.
Se o Senhor foi tentado[7],
também nós devemos inevitavelmente atravessar o fogo das tentações. Se o Senhor
foi perseguido, seremos perseguidos pelos mesmos poderes que perseguiram a
Cristo[8].
Se o Senhor foi transfigurado, também nós o seremos, e já desde agora, na
terra, desde que as nossas aspirações sejam parecidas com as suas. Se o Senhor
foi crucificado, deveremos também sofrer, seremos como ele crucificados, ainda
que sobre cruzes invisíveis – se é que o seguimos verdadeiramente. Se o Senhor
teve que morrer, todos os que nele creem passarão por uma morte semelhante à
sua[9].
Se o Senhor, por sua Ressurreição num corpo glorioso, “subiu aos Céus e
sentou-se à direita do Pai[10]”,
também nós seremos “filhos da Ressurreição[11]”,
subiremos ao Céus pelo poder do Espírito Santo e seremos convertidos em
“coerdeiros de Cristo[12]”.
***
Ao se condenar ao inferno, aniquilando assim toda paixão, o homem
deixa seu coração livre para receber o amor divino[13].
Só quando esse amor houver preenchido totalmente o homem, ser-lhe-á revelado o
mistério da descida redentora de Cristo aos infernos, e sua semelhança com Deus
estará realizada. Deus o abraça por inteiro, incluindo o inferno, pois não
existe domínio algum do universo no qual sua presença esteja excluída. Por isso
mesmo, “os Santos vão ao inferno”, dizia o Starets, “mas o inferno não tem poder
sobre eles”.
“Mantém teu espírito no inferno e não desesperes”.
Sem essa experiência de descida ao inferno, é impossível conhecer
verdadeiramente o que é o amor de Cristo, seu Gólgota e sua ressurreição.
A salvação, entendida como deificação, começa aqui na terra. Onde está,
todavia, o critério tangível de que tal deificação nos tenha sido realmente
concedida? Ele se encontra na proporção de nossa semelhança para com Deus, tal
como ele se manifestou na terra por meio do ato da Encarnação; segundo a mesma
medida, nos tornaremos semelhantes a ele na Eternidade.
***
Nossa sucinta exposição não
permite conhecer esse caminho em toda sua plenitude; sua majestade, no fundo,
não pode ser descrita, pois nela se reúnem maravilhosamente o extremo
sofrimento e a felicidade extrema, misturando-se um ao outro de maneira
estranha. Se não houvesse mais do que sofrimento, seria impossível suportá-lo. Se
não houvesse senão felicidade, seria igualmente impossível suportá-la.
[1]
João 6: 83.
[2]
Filipenses 3: 7-8.
[3]
Atos 4: 12-13.
[4]
Hebreus 5: 12-14.
[5] II
Coríntios 4: 12.
[6]
João 14: 6.
[7]
Mateus 4: 1; Hebreus 2: 18.
[8]
João 15: 21; I Timóteo 3: 12.
[9]
Romanos 6: 4-5.
[10]
Marcos 16: 19.
[11]
Lucas 20: 36.
[12]
Romanos 8: 17.
[13]
Romanos 9: 1-3.
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