“Orai sem cessar.”
(I Tessalonicenses 5:
17)
1. Comunidade e retiro
Existe uma dualidade essencial da existência Cristã.
O Cristianismo está alicerçado numa fé pessoal e num compromisso, e no
entanto a existência Cristã é intrinsecamente coletiva: ser Cristão significa
viver na Comunidade, na Igreja e da Igreja. Todavia, a personalidade jamais
deve simplesmente submergir no coletivo. A Igreja consiste em pessoas
responsáveis. A similaridade com o Corpo jamais deve ser mal interpretada e
levada ao extremo. A Igreja é composta por personalidades únicas e
insubstituíveis que não podem nunca ser vistas meramente como elementos ou
células de um todo, porque cada indivíduo está em comunhão direta e imediata
com Cristo e com Seu Pai – o pessoal não deve ser dissolvido no coletivo. O
coletivo Cristão, no qual estão “todos juntos” não deve degenerar numa espécie
de impersonalismo.
Os primeiros seguidores de Jesus, nos “dias de Sua carne”, não eram
indivíduos isolados engajados em buscas pessoais da verdade. Eles eram
Israelitas – e o próprio nosso Senhor costumava declarar que Ele “não fora
enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel[1]”;
e os Doze receberam ordens Suas no sentido de irem precisamente a essas ovelhas
perdidas, evitando os Gentios e os Samaritanos[2].
Os primeiros seguidores de Jesus eram membros regulares de uma Comunidade
estabelecida e instituída – a “Casa de Israel”, o “povo escolhido” de Deus – e
eles estavam esperando pela “consolação de Israel”, de acordo com a Profecia e
a Promessa. Num certo sentido, a “Igreja” já existia quando Jesus começou Seu
ministério. Ela era Israel, o Povo da Aliança. Sua pregação foi de início
dirigida aos membros dessa Comunidade. Ele nunca se dirigiu a indivíduos
enquanto indivíduos. A Aliança existente formava um constante pano de fundo
para Sua pregação. O Sermão da Montanha não foi dirigido a uma multidão casual
de ouvintes acidentais, mas a um “círculo interno” formado por aqueles que já
seguiam a Jesus na antecipação – ou com a convicção – de que Ele era “Aquele
que deveria vir”, ou seja, o Messias. O “Pequeno Rebanho”, essa comunidade que
Jesus reunira ao Seu redor, era, de fato, os fiéis “Remanescentes” de Israel,
um “Povo de Deus” reconstituído. Ele fora reconstituído pelo Chamado de Deus,
pelo anúncio do Reino, pela “Boa Nova” da salvação. E mesmo para esse chamado
cada pessoa deveria responder individualmente, por um ato de fé pessoal. Essa
resposta pessoal pela fé, naturalmente, incorporava o fiel na Comunidade. Ou
antes, havia um pré-requisito existencial de incorporação que era efetivado e
completado no Batismo, pela graça de Deus. Porém era preciso q eu a pessoa
primeiro acreditasse e se comprometesse com um voto de lealdade, para então ser
batizada. A “fé da Igreja” deve ser sempre apropriada pessoalmente, e mantida
continuamente por meio de um esforço espiritual.
Os dois aspectos da existência Cristã – o pessoal e o coletivo – estão
unidos inseparavelmente. A pessoa só pode ser salva na Comunidade, e, no
entanto, a salvação é sempre mediada pela fé pessoal e a obediência.
A dualidade básica da existência Cristã reflete-se de forma visível no
campo da adoração. A adoração Cristã é antes de tudo pessoal e coletiva, embora
às vezes esses aspectos possam estar em tensão um com o outro.
Existem nos Evangelhos duas passagens significativas relativas à
prece, e elas parecem guiar o fiel em direções opostas.
No Sermão da Montanha a multidão é exortada a orar “em segredo”, em
reclusão ou em solidão. Claro, essa injunção estava dirigida primeiramente
contra os “hipócritas”, contra aqueles que demonstravam uma pretensiosa
ostentação no ato de adorar – “nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos
homens”; e uma advertência semelhante foi estendida ainda às esmolas. Mas
existe uma dimensão mais profunda nesse convite ao “segredo”, ou à privacidade,
na prece. De fato, orar é um ato intrinsecamente pessoal, ou antes uma ação
pessoal. É sempre uma pessoa que ora. Trata-se de um encontro íntimo com o Deus
Vivo, e, obviamente, não devem haver testemunhas nesse encontro: “entra em teu
quarto (...) fecha a porta...”. A pessoa deve se colocar diante de Deus a sós,
face a face: “ora ao teu Pai que está no
secreto...”. A pessoa deve se retirar para adorar, ou mesmo isolar-se. E no
entanto, paradoxalmente, mesmo nesse retiro e nesse isolamento, na solidão de
seu quarto, a pessoa só pode orar enquanto membro de uma Comunidade salvífica,
seja o antigo Israel, seja a Igreja de Cristo. Inclusive, nenhum verdadeiro
fiel jamais pode esquecer de que seu
Pai é também o Pai comum a todos os
fiéis e de toda a raça humana. Como Cristãos nós somos instruídos a orar ao Pai Nosso, que é também o Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Nenhum Cristão verdadeiro pode orar apenas por si mesmo, mesmo fechado em seu quarto. A abrangência na
oração é um sintoma de saúde e maturidade espiritual. Em seu âmbito e conteúdo
a prece Cristã nunca deve ser estritamente “provada”, embora deva sempre ser
pessoal. Mais do que isso, os Cristãos devem estar totalmente conscientes fundamento
último de seu privilégio de orar – que é precisamente sua participação na
Comunidade, na Igreja de Cristo.
Em outra ocasião nosso Senhor estava falando aos seus discípulos sobre
o mistério da oração conjunta. Os fiéis – “dois ou três” deles – devem “concordar”
em orar por certas coisas em comum. E então o maior mistério do culto é
revelado: “pois onde dois ou três estiverem reunidos em Meu nome, ali estarei
Eu no meio deles”. Essa “concordância” não constitui um assentimento humano
ocasional. A “reunião” em nome de Cristo é em si um dom do Espírito. E ela
pressupõe um tipo de preparação espiritual, ou treinamento. O coração que ora
deve alargar-se até a medida do amor de Cristo pelos homens. Somente no
espírito do amor de Cristo podem os indivíduos realmente estar reunidos, para
se encontrarem como “irmãos”, ou seja, como irmãos em Cristo.
Orar “em segredo” e orar “em comum” referem-se de fato um ao outro
inseparavelmente como aspectos de um mesmo compromisso e de uma mesma ação
devocional. Não há escolha: eles devem ser praticados juntos. De fato, é a
regra da Igreja que os fiéis devem se preparar para a adoração coletiva por
meio de suas devoções pessoais “em casa”, “no quarto”. É perigoso espiritualmente
ignorar essa regra. Mas também é perigoso ficar tão absorvido na “devoção
caseira” que o impulso de reunir-se com os irmãos no culto coletivo expira, ou
é reduzido ao mínimo: porque o clímax da adoração Cristã – e também seu centro
– é a Santa Comunhão na qual o próprio Cristo surge no meio daqueles que estão
reunidos em Seu nome. Qualquer que seja o caso, como explicava São Cipriano ao
seu rebanho, a prece Cristã é essencialmente a “oração do povo”, uma vez que
“nós, todo o povo, somos um”. Por conseguinte, o objetivo e a medida da
adoração Cristã é a unanimidade –
“com uma só boca e um só coração”. E nós, Cristãos, devemos estar sempre
agradecidos pela graça que nos foi concedida – “de que com uma só mente façamos
nossas súplicas” ao nosso Pai Celestial.
2. Memória e ação de graças
A adoração Cristã é essencialmente um “encontro”. Mais do que isso,
ela é também um “diálogo”. Existem sempre duas pessoas na adoração. O fiel está
sempre esperando uma resposta. “Dê ouvidos, Senhor, à minha prece; e atende à
voz da minha súplica. Nos dias de minha angústia eu chamarei por Ti, porque hás
de me ouvir[3]”. Como
disse o profeta, “Eu sou um Deus próximo, não um Deus distante[4]”.
A iniciativa é divina. Chamamos por Deus porque ele primeiro chamou por nós.
Assim sendo, a adoração Cristã é uma resposta
ao chamado ou ao “desafio” de Deus. Oramos porque Deus tomou a iniciativa, e
nos tornamos cientes dessa iniciativa através do testemunho da Escritura.
Chamamos pelo Deus que se deu a conhecer a nós – porque Ele se revelou através
das eras, em ocasiões especiais, por intermédio de mensageiros específicos, e
finalmente por meio de Seu Filho Unigênito e nosso Senhor Jesus Cristo. Ele
primeiro chamou o povo que Ele criou, e o fez porque criou o homem para Seu
propósito, modelando-o à Sua imagem, imprimindo Sua semelhança em cada homem.
Ele revelou a Si próprio nessa maravilhosa história contada nas páginas da
Sagrada Escritura. Mas Ele fez mais do que isso. O Filho de Deus desceu para
habitar entre os homens para sua salvação. O clímax da revelação de Deus é “o
Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. Trata-se da história de um Encontro,
de uma conversa pessoal com o homem Daquele que era Divino e que para nossa
salvação, "por nós homens e para nossa salvação”, se tornou ou “se fez”
homem. Os Cristãos sempre oram a Deus “através de Jesus Cristo nosso Senhor”. E
essa referência é crucial e decisiva. Só chegamos ao Pai por intermédio do
Filho, “que o revelou[5]”.
Como Cristãos, chamamos pelo Deus a quem
conhecemos – por seus feitos extraordinários para nossa salvação em Cristo.
Por conseguinte, existem sempre duas ênfases principais na adoração Cristã: a memória e a ação de graças – anamnese
e eucaristia. Elas pertencem uma à
outra de modo inseparável.
O ponto de partida do culto Cristão é a comemoração ou a recordação.
A Fé Cristã é em si em primeiro lugar um reconhecimento
obediente e grato dos feitos extraordinários e salvífico de Deus que
culminaram na “descida” do Filho de Deus. Deus agiu de uma vez por todas. Agora
o homem deve agradecer a ação da graça de Deus e dar testemunho de Seu amor e
de Sua glória. A adoração Cristã só é possível no contexto da Revelação histórica de Deus, na
perspectiva de uma “História Sagrada” que é precisamente a “História da
Salvação”. Correspondentemente, ela se acha determinada e caracterizada por
meio de certas “assumpções de fé”, por meio das quais acessamos e
interpretamos, à luz da fé, os feitos de Deus e seus propósitos. Já na Antiga
Lei toda a estrutura do culto Judaico era essencialmente “histórica”. A memória
dos extraordinários feitos de Deus no passado domina o Saltério, esse “Livro de
Orações” exemplar, que manteve seu lugar central também no culto da Igreja
Cristã, tanto público como “privado”. Certamente, essa “memória” foi reavaliada
e reinterpretada à luz da Nova Aliança. Mas o sentido de história permaneceu de
modo enfático. O Deus Vivo a quem os Judeus dirigiam suas preces sob a Lei,
agora revelou seu envolvimento definitivo “nos últimos dias”. O mesmo Deus Vivo
que escolheu Israel para ser Seus servo e Seu povo, finalmente manifestou Seu
infalível amor pelo homem de modo mais perfeito em Cristo Jesus. A Velha
Aliança foi finalmente suplantada pela Nova, mas essa Nova Aliança “em Cristo”
foi, de fato, simplesmente o clímax e a consumação da Antiga. Essa conexão
íntima entre as duas é fortemente enfatizada no Magnificat e no Nunc Dimittis,
esses grandes e triunfantes hinos escriturários da Igreja. O culto da Igreja
foi construído sobre fundações antigas. A Igreja retomou as sagradas memórias
do Antigo Israel, e continuou devotamente relembrando os feitos extraordinários
de Deus sob a Antiga Aliança. As reminiscências da Antiga, entendidas como uma
antecipação profética, reaparecem em muitos hinos e preces Cristãos. Mais do
que isso, a Igreja reteve o velho esquema litúrgico, ou o padrão de “recordação”
e “recital”. Lectio divina, a
recitação da Escritura, continua sendo uma parte integral e orgânica do culto
Cristão, incluindo tanto o Antigo como o Novo Testamento. É significativo que
especialmente nas grandes ocasiões das comemorações litúrgicas estejam
prescritas numerosas leituras do Antigo Testamento – para enfatizar a unidade e
a continuidade da “História Sagrada”. Nesses grandes dias o culto da Igreja
adquire mais visivelmente sua dimensão histórica. A fé Cristã e a esperança
estão enraizadas na História Sagrada. A Profecia e o Evangelho pertencem um ao
outro inseparavelmente, como promessa e consumação. “Nos tempos antigos, muitas
vezes e de muitos modos Deus falou aos antepassados por meio dos profetas. No
período final em que estamos, falou a nós por meio do Filho. Deus o constituiu
herdeiro de todas as coisas e, por meio dele, também criou os mundos[6]”.
O caráter histórico do culto
Cristão fica claramente expresso na estrutura do ano litúrgico. Desde os
primeiros tempos houve na Igreja uma comemoração anual do Triduum crucial – da Cruz à Ressurreição – assim como uma
comemoração semanal da Ressurreição, a cada “Dia do Senhor”. Gradualmente um
amplo esquema de comemorações anuais foi elaborado; de fato, para cada dia foi
estabelecida sua própria “memória”. Esse calendário Cristão possuía obviamente
um significado teológico vital e muitas implicações teológicas. A cada dia a
Igreja olhava o passado. O calendário testifica a santificação do tempo. A Igreja vive numa dimensão de memórias sagradas,
ao mesmo tempo em que olha para o futuro.
Sem dúvida, a consumação foi maior do que a promessa, e seu mistério
ultrapassou todas as expectativas e todo entendimento. Apesar disso, trata-se
precisamente de uma “consumação” e também – num dado sentido – uma
“recapitulação”. Paradoxalmente, ao mesmo tempo ela ab-rogou a Antiga Aliança e
confirmou seu significado perene. A própria natureza da História Sagrada foi
profunda e radicalmente transformada, e ainda assim se mantém como a mesma
história que continua. Abrahão continua sendo o “pai de todos os crentes” não
apenas do Antigo Israel, como também daqueles da Igreja Cristã. Os santos da
Antiga Aliança encontraram seu lugar no calendário Cristão. Desde a vinda de
Cristo, em virtude da Encarnação, Deus guia Seu Povo “desde de dentro” e não
mais “desde fora”, como acontecia sub
umbraculo legis[7]. A
recordação Cristã é muito mais do que uma simples memória ou reminiscência. Na
verdade, os Cristãos são convidados e olhar para trás, para os eventos
prodigiosos que fundaram sua fé e sua esperança: a Encarnação, a Cruz e a
Ressurreição, o Pentecostes. Mas esses acontecimentos isolados do passado
estão, ao mesmo tempo, paradoxalmente presentes na Igreja aqui e agora. A
Encarnação do Verbo é em primeiro lugar um acontecimento histórico do passado
que pode e deve ser “rememorado” da maneira usual, mas também constitui um
presença persistente e eterna do Senhor que pode ser percebida diretamente e
reconhecida em todos os tempos e a qualquer momento específico pelo olho do
fiel, na Igreja. Isso muda completamente o caráter da anamnese da adoração Cristã. Existe aí muito mais do que uma
expansão ou uma extensão da perspectiva histórica comum. O cumprimento da Promessa não constituiu simplesmente um evento extra
na sequência homogênea dos acontecimentos. Claro, foi um “evento”, mas um
evento que nunca passa. Evidentemente
ele pode ser datado com uma boa precisão cronológica e assim contamos hoje “os
anos do Senhor”, anni Domini – a
partir da Natividade de Cristo em Belém, post
Christum natum. E mesmo assim aquilo que está sendo “recordado” está de
fato presente, e estará presente “pelos séculos dos séculos” – até que outra
vez Ele venha. Pois mesmo antes de que Ele venha, Ele já está presente na
Igreja. É precisamente Sua presença perpétua que torna a Igreja o que ela é, ou
seja, o Corpo de Cristo. Assim é que essa misteriosa presença de Cristo – na
Igreja e no mundo – inaugurou-se na história, por uma intervenção soberana de
Deus, por um “terremoto” revelador decisivo, para usarmos a expressão audaciosa
de São Gregório de Nazianze. A consciência da Presença está inseparavelmente
ligada com a memória do Passado. Essa coincidência paradoxal entre Passado e
Presente constitui a característica única e distintiva da “memória” Cristã, que
alcança sua culminação na anamnese Eucarística,
ou “comemoração”.
A Santa Eucaristia é o centro da adoração e do culto Cristão. Um ciclo
elaborado de ofícios diários foi construído, ao longo do tempo, em volta desse
centro de devoção. Mais do que isso, a Eucaristia não é apenas um “ofício”
particular, ou akolouthia[8], mas é primeiramente um sacramento, um mysterion. Ora, o rito Eucarístico é
obviamente uma anamnese, um “Memorial
do Senhor”, realizado “em Sua memória”, de acordo com seu mandamento. Mas, por
outro lado, indubitavelmente, ela não é uma mera comemoração da Última Ceia. De
fato, ela é a própria Última
Ceia. O próprio Cristo está realmente presente no rito sagrado, tanto como seu
supremo e perene oficiante como sua vítima, “pois és Tu que ofereces e és
oferecido”. Nas poderosas palavras de São João Crisóstomo, cada celebração
Eucarística é, realmente, a própria
Última Ceia, em sua realidade plena, sem nenhuma diminuição. “Essa mesa é a
mesma de antes e nada menos[9]”.
“É a mesma oferenda, seja ela oferecida por qualquer homem, ou por Pedro, ou
Paulo. A mesma que Cristo deu aos Seus discípulos, a mesma que o sacerdote
ministra agora. Ela não é de modo algum inferior àquela, porque não é o homem
que a santifica, mas é o Mesmo que a santifica agora como a santificou outrora[10]”.
Não existe diferença, conclui São
João. O Sacramento Eucarístico não constitui nem uma mera recordação, nem uma
“repetição” da Última Ceia. Ants, ela é sua “manifestação”, ou extensão. Os
fiéis, de fato, são conduzidos até a
Sala Superior e se tornam partícipes da mesma Santa Ceia. A natureza paradoxal
da anamnese sacramental, que é ao
mesmo tempo um encontro real e imediato, ou antes uma comunhão, com o Senhor
perpetuamente presente, revela o supremo mistério da existência Cristã. O Corpo
jamais se separa da Cabeça. A Igreja é algo mais do que a assembleia dos
crentes, daqueles que acreditam e confirmam os feitos prodigiosos de Deus “nos
séculos passados”, incluindo os tempos evangélicos. Ela é, acima de tudo, o
Corpo de Cristo, uma corporação daqueles que habitam Nele e nos quais o próprio
Cristo habita perpetuamente, conforme Sua própria e solene promessa. Existe na
Igreja uma misteriosa continuidade entre
Cristo Salvador e os Cristãos – que são salvos exatamente como “membros” de
Seu Corpo – seja lá qual for a maneira como se tente explicar e compreender
esse mistério supremo, o mistério da Igreja. São João Crisóstomo esforçou-se
para descrever esse mistério em palavras, falando na própria pessoa de Cristo:
“Eu o persegui, corri atrás dele, para poder surpreendê-lo. Eu o unifiquei e o prendi
a Mim. Eu o segurei por cima e o enlacei por baixo, eu desci até embaixo. Eu
não apenas me misturei com ele, eu o envolvi completamente. Quando as coisas
são unidas, elas ainda existem dentro de seus próprios limites, mas eu me
entreteci com ele. Não havia mais divisão entre nós. Eu quis que ambos fôssemos
um[11]”.
São João tinha em mente precisamente o mistério da Comunhão.
De fato, a anamnese
Eucarística é também uma koinonia,
uma comunhão, um encontro. Aqueles que “recordam” ou “comemoram” o Senhor, de
acordo com seu mandamento, não estão “fora Dele”, mas “Nele”, in Christo, como os ramos de uma vinha.
Eles pertencem à Sua “plenitude”, ao pleroma
que é a Igreja[12].
Não é possível existir Cristãos do lado de fora. Todos são membros de Cristo. O
culto Cristão consiste na adoração dos que estão dentro. É significativo que
esse grande mistério da Presença de nosso Senhor tenha sido desde os primeiros
Cristãos descrito como Eucaristia, ou
seja, como Ação de Graças. A
principal oração desse rito, a anaphora,
é precisamente uma elaborada anamnese ou
recapitulação do Magnalia Dei[13],
ou seja, da própria Criação até a Última Ceia e a solene declaração de Cristo,
“fazei isso em memória de Mim”. O Sacramento é visto desde uma ampla
perspectiva da História da Salvação. Desse modo, ele é uma anamnese em forma de Ação de Graças. A gratidão é uma resposta
apropriada do homem à benevolência, ou à filantropia,
de Deus. Na medida em que constitui uma resposta do homem à Providência
salvífica de Deus, e em especial ao mistério da Redenção por Jesus Cristo e em
Jesus Cristo, e ainda ao insondável dom da Vida Nova no Espírito, o culto
Cristão é em primeiro lugar uma expressão de agradecimento e reconhecimento, de
louvor e adoração. Ele culmina definitivamente na doxologia. É significativo que sejamos dirigidos a concluir nossas
preces e intercessões com doxologia: “... pois a Ti convém toda glória, honra e
adoração...”. Esse também deve ser nosso ponto de partida: “Louvado seja Teu
Nome...” constitui a primeira petição e a introdução de Oração do Senhor, e
somente depois disso começam as intercessões.
3. Encontro e diálogo
A adoração é a norma da existência Cristã. Ela deveria ser a
disposição constante e a atitude do Cristão. De fato, adorar a Deus significa
precisamente estar ciente de Sua presença, significa habitar constantemente
nessa presença. É por meio da adoração que o “homem novo” é formado dentro do
fiel, e que a graça batismal da adoção é atualizada. O Cristão deve estar
sempre em estado de adoração, seja ela expressa em palavras ou não. Na sua
essência, a adoração consiste numa orientação do homem em direção a Deus: “em
Tuas mãos eu entrego meu espírito”.
A oração é um dever obrigatório dos fiéis. A fé e a adoração não podem
ser separadas. Mas a prece é também um esforço audacioso, ainda mais na medida
em que constitui um impulso espiritual daquele que crê. Sempre se encontra a
Deus com tremor e temor, ainda que com amor e adoração. Durante a oração,
deve-se iniciar com um ato de desligamento – “deixar de lado todos os cuidados
dessa vida”. Essa não é de modo algum uma tarefa fácil, especialmente quando
desejamos apresentar exatamente esses “cuidados” – nossas preocupações e
necessidades – a ele, buscando auxílio e iluminação. Por isso somos convidados
a orar “no quarto”, em isolamento, retirados “do mundo”. É claro que as paredes
do quarto, a porta fechada e quaisquer outros muros exteriores não são capazes
por si só de evitar a distração e a dissipação. Isso só se obtém por meio de um
intenso esforço interno, de um treinamento firme e constante, e por uma
reorientação total da vida da pessoa. Mas desligamento não implica indiferença.
O próprio Deus não é indiferente à necessidade humana de “cuidados”.
Tem sido frequentemente sugerido, por muitas autoridades e
experimentados mestres da vida espiritual, que os “livros de oração”, os
formulários fixos do culto, são feitos apenas para os iniciantes. Isso é
verdade, sem dúvida, desde que corretamente entendido. Fórmulas fixas são, é
claro, não mais do que meios em direção a algo bem maior. Mas são meios
apropriados. É espiritualmente perigoso negligenciar os “livros”, dispensá-los
precipitadamente, e entregar-se arbitrariamente em improvisações extemporâneas
de composição pessoal. Trata-se mais do que uma simples questão de disciplina.
As fórmulas estabelecidas não apenas ajudam a fixar a atenção, como ainda
alimentam o coração e a mente dos fiéis, oferecendo tópicos para meditação e
recordação dos feitos admiráveis de Deus. Não há lugar para psicologismos ou
subjetivismo na adoração Cristã. O objetivo e a proposta da adoração é a “prece da mente”, para a completa
exclusão de todas as “paixões”. A medida é a serenidade. Silencie toda carne humana, e com temor e tremor se apresente...
Existe na Igreja uma regra fixa, ou ordem, para a adoração, e mesmo
para a oração “no quarto”. Nossa tarefa é segui-la. Claro, deve haver mais do
que uma mera recitação: as palavras devem vir do coração, e esse deve encontrar
suas próprias palavras. Mas a prece espontânea só acontece depois de um assíduo
treinamento. Deve-se manter um balanço entre “recitação” e “improvisação”
durante a adoração, embora evidentemente não se possa estabelecer uma regra
formal para isso. O objetivo do treinamento consiste em introduzir o fiel numa
“conversa” com Deus, em guiá-lo para um “encontro” com o Deus Vivo. É
significativo que a maior parte dos ofícios da Igreja, incluindo as regras para
a oração doméstica, comecem com um ousado apelo ao Espírito Santo, o Rei
Celestial: Vem e habita em nós. De
fato, trata-se de uma antecipação de nosso propósito último e final – adquirir o Espírito de Deus. Paradoxalmente,
o final é antecipado desde o princípio. A busca pelo Espírito é força que move
a adoração. Pode acontecer que em algum momento durante a adoração o Espírito
comece a falar em nosso coração. Devemos então parar e escutar. “O próprio
Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos de Deus (...) O próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis[14]”.
Nesse ponto, a prece, no sentido comum do termo, desaparece. Como diz São
Serafim de Sarov, a pessoa já não pode pedir “vem e habita em nós”, quando o
Espírito já veio e está falando em nosso coração. Não podemos fazer outra coisa
do que receber essa visita com alegria, e também com humildade. Naturalmente, o
Espírito só se manifesta nas almas que foram preparadas por um longo e firme
exercício de devoção. Não existe espaço para a “improvisação” humana. É o
Espírito quem improvisa.
Nesse ponto, emerge o problema crucial: de que maneira podemos e
devemos relacionar essa devoção pessoal “no quarto” com o culto coletivo em
comunidade? O encontro com Deus, durante a oração “no quarto”, é certamente o
âmago da adoração. Esse é o encontro genuíno e a comunhão com Deus. Então, o
que está faltando? Por que, e como, deve esse encontro íntimo com o Deus Vivo
no secreto do quarto ser suplementado pela participação no culto coletivo e
público da Comunidade? Essas questões não são ociosas ou vãs. Elas têm uma
enorme importância prática, que é ainda mais urgente e candente nos tempos
atuais. Tampouco são questões simples que admitem uma solução geral e
invariável. De fato, existe uma tensão permanente na prática devocional dos
indivíduos Cristãos, entre a “de3voção privada” e o “culto coletivo”, que só
pode ser superada por uma meditação intensa sobre os artigos da fé. Certa
tendência para um tipo peculiar de “individualismo” espiritual parece inerente
à prática da prece solitária, ainda que subconscientemente. É realmente
verdadeiro que é “no quarto” que o fiel entra numa conversa íntima e direta com
o Deus Vivo e adquire o Espírito Santo. É geralmente esse encontro íntimo com
Deus que costuma ser desenvolvido nos manuais da vida espiritual. Ao mesmo
tempo, é claro, assume-se que aqueles que adoram “no quarto” são também membros
da Igreja. Mas esse aspecto da matéria nem sempre é suficientemente enfatizado.
De fato, os Cristãos só estão autorizados a rezar enquanto membros da
Comunidade. Não se trata apenas de um pressuposto objetivo, mas de uma condição
espiritual interna, de uma parte integral de sua orientação devocional. “Devoções privadas” são inevitavelmente tanto
uma preparação como uma consequência da “adoração coletiva”. Uma sempre aponta
para a outra. A oração está
intrinsecamente subordinada aos sacramentos. Ela só é possível com base em
nossa incorporação sacramental no Corpo de Cristo, através do Santo Batismo.
Por conseguinte, o “encontro” definitivo só se realiza de um modo sacramental,
no mistério da Sagrada Eucaristia. Todas as “devoções privadas” devem ser
conscientemente dirigidas para esse objetivo sacramental. É altamente
significativo que Nicolas Cabasilas tenha escrito sua grande obra “Vida em Cristo” na forma de um tratado
sobre os sacramentos – a tríade dos sacramentos de iniciação: Batismo, Crisma,
Eucaristia. Aí residem as raízes da existência Cristã, e também da adoração
Cristã. A esse respeito, devemos recordar ainda os ensinamentos do Padre João
de Kronstadt.
Para Cabasilas, a Eucaristia é o “mistério
definitivo”, uma consumação sacramental, “o objetivo e o termo da vida”. A
Eucaristia é o ápice da peregrinação Cristã. E quando esse estágio final da
vida sacramental é alcançado, não há nada mais a ser desejado ou que seja
necessário. Nesse mistério, ou sacramento, não apenas estão contidos os dons do
Espírito concedidos e recebidos, como está presente o próprio Senhor
Ressuscitado. Não é possível ir mais longe do que isso. Cristo habita nos
comungantes. Esse é o “sacramento perfeito”, mais perfeito do que qualquer
outro, o início e o fim de todas as bênçãos, a meta última de todas as
aspirações humanas. Deus está unido a nós “na mais perfeita união”, e nada pode
haver de mais perfeito do que essa conjunção maravilhosa. Cabasilas segue aqui
os passos de São João Crisóstomo, com seu audacioso realismo Eucarístico. A
mesma experiência de comunhão íntima com Cristo é expressa nessas admiráveis
orações que a Igreja estabelece que devem ser recitadas antes e depois da
comunhão por todos os participantes. Existe aqui mais do que um encontro:
existe união e comunhão.
Na Eucaristia aqueles que se encontram separados e estranhos uns aos
outros pela fragilidade humana são reunidos na perfeita e íntima unidade do
Corpo Único em Cristo. O exclusivismo humano e a impenetrabilidade mútua são
superados. Os fiéis se tornam “co-membros” uns dos outros por intermédio de
Cristo na Igreja, ou antes, “co-corpóreos” uns em relação aos outros e com
Cristo em Seu Corpo, para usarmos a frase de São Cirilo de Alexandria. Na
Eucaristia a unidade essencial dos Cristãos encontra sua expressão mais
perfeita. Essa unidade não está restrita ou confinada àqueles que estão de fato
tomando parte de uma determinada celebração ou em algum dia específico. Cada
celebração é realmente universal, e a Eucaristia é sempre uma. Cristo nunca é
dividido. Cada Liturgia é celebrada em comunhão com toda a Igreja, Católica e
Universal. Ela é celebrada em nome de toda a Igreja, e por sua autoridade.
Espiritualmente, em cada celebração a totalidade da Igreja, “a totalidade das
hostes celestiais” tomam parte, real e invisivelmente. Essa unidade se estende
não apenas s todos os lugares, como a todos os tempos, incluindo todas as
gerações e todas as eras. Os vivos e os que partiram estão aí para juntos “comemorar”
a cada celebração da Divina Liturgia. Não se trata apenas de uma recordação, no
sentido estreito e psicológico da palavra, não apenas um testemunho de nossa
simpatia e comprometimento humanos, mas antes uma percepção, uma visão da
irmandade universal de todos os fiéis, dos vivos e dos que partiram, em Cristo,
o Senhor Ressuscitado comum a todos. Nesse sentido, a Eucaristia é a
manifestação do mistério da Igreja, ou melhor, o mistério do Cristo Total. Como
foi dito, cada celebração é idêntica à Última Ceia. É na Eucaristia que a
Igreja está ciente e consciente de sua unidade profunda, é nela que ela
antecipa sua perfeição final no século futuro. A Eucaristia não é apenas uma
expressão dos laços que unem todos os homens, ou de nossa irmandade humana, mas
é, acima de tudo, uma expressão ou uma imagem do divino mistério de nossa
Redenção. Trata-se de um mistério de Cristo. Toda vez que a Eucaristia é
celebrada, testemunhamos e vivemos essa perfeita unidade, que começou e foi
inaugurada pelo Senhor Encarnado e Ressuscitado. Nós oramos em nome de toda a
humanidade, por todos os que foram chamados e responderam a esse chamado.
Oramos enquanto Igreja – e toda a Igreja está orando conosco, ou antes, em nós e por intermédio de nós.
Naturalmente, é preciso estar preparado espiritualmente para essa
participação no mistério da Igreja Adorante, é preciso estar limpo e
purificado. A adoração "no quarto” é indispensável. Mas ela só pode ser
consumada na celebração comum do mistério definitivo de Cristo, em comunhão com
todos os irmãos.
A história da Redenção não está ainda completa. Enraizados na
comemoração do passado, os Cristãos vivem ainda na expectativa: o Reino ainda
está por vir. Mas, por outro lado, a própria Igreja é o ícone dessa gloriosa
consumação, e desde os primeiros dias ela orou pela sua realização: “Assim como
esse pão dividido foi espalhado sobre as montanhas e foi reunido e se tornou
um, também essa Tua Igreja será reunida desde os confins da terra, no Teu Reino[15]”.
[1]
Mateus 15: 24.
[2]
Mateus 10: 5,6.
[3]
Salmo 85: 6-7.
[4]
Jeremias 23: 23, citado por São Cipriano em seu tratado sobre a Prece do
Senhor.
[5]
João 1: 18.
[6]
Hebreus 1: 1-2.
[7]
“Sob a sombra da Lei”.
[8]
Literalmente: “a descoberto”.
[9] In Matt. Hom. 82.
[10] In II Tim. Hom. 2.
[11] In I Tim. Hom. 15, sub fine.
[12]
Efésios 1: 22-23.
[13]
Literalmente: “a maravilha de Deus”.
[14]
Romanos 8: 16, 26.
[15]
Didaké, IX, 4.
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