quarta-feira, 2 de maio de 2018

Arquimandrita Sofronio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Da Graça e da Formação da Consciência Dogmática






A palavra “graça” é recorrente nos escritos do Starets Silouane. Para uma melhor compreensão do que devemos entender com ela, exporemos brevemente o modo como um monge ortodoxo concebe a graça.

O termo russo para designar a graça é blagodat. Ele provém semanticamente das raízes blag, que significa “bondade” e dat, que significa “dom”. o termo, portanto, expressa de certo modo a noção teológica e a natureza da graça; vale dizer, “dom benfeitor de Deus”, ou “dom da bondade de Deus”, força (“energia”) da Divindade.

O homem foi criado à imagem de Deus, seu Criador. Na natureza criada do homem não se pode encontrar o incriado. A imagem criada de Deus, embora não possa participar da essência divina, está dotada da capacidade de entrar em comunhão com a Divindade incriada mediante o dom da graça. Mesmo que o homem não participe da essência divina, mesmo assim ele se torna partícipe da vida divina pela graça.

A graça, enquanto energia incriada, é a “Divindade”, segundo a concepção ortodoxa. Quando a Divindade, em sua benevolência, se une ao homem, este vê e sente em si a ação da força divina que o transfigura e o torna semelhante a Deus, não só potencialmente – a imagem – mas ainda atualmente – a semelhança – segundo uma participação ontológica. A graça, a Divindade, santifica o homem, o deifica; vale dizer, outorga a ele a existência divina.

O mandamento de Cristo não é, como já assinalamos, uma norma ética, mas é em si mesmo a eterna vida divina. O homem, enquanto natureza criada, não possui a vida em si; ele não pode, portanto, realizar a vontade de Deus, nem, dito de outra maneira, seguir os mandamentos de Deus por suas próprias forças. Mas é da natureza do homem (“conatural ao homem”) tender para Deus e para a felicidade da graça divina. Sua tendência ficaria, porém, frustrada, se a força divina – a graça – não viesse ao seu encontro, essa graça que é o próprio objeto de sua busca.

O asceta cristão que experimentou em sua própria vida a ação da graça, adquire a convicção de que essa só pode ser de origem divina e de que não é algo que pertence à sua natureza. A experiência o certifica, ademais, de que não só o homem busca a Deus, como o próprio Deus busca também o homem e que inclusive o faz numa medida incomparavelmente superior. Deus busca constantemente o homem; por isso, quando o homem manifesta seu desejo do bem e seu esforço para alcançá-lo, a graça já se encontra nele. A ação ou a influência da graça, no entanto, não depende de modo algum da vontade do homem. A graça chega e se retira segundo a vontade de Deus, que é livre e soberana. Faça o que fizer o homem, por si mesmo, ele permanecerá, se Deus não vier em seu auxílio, fora do caminho verdadeiro, fora da luz divina, nas “trevas exteriores”.

Para o monge ortodoxo, que compreendeu isso experimental e profundamente, a vida não tem outro sentido senão a aquisição da graça do Espírito Santo. Todo o foco da vida inteira do Starets Silouane foi o da aquisição da graça; ele aspirava por ela constantemente, falava continuamente dos meios para adquiri-la e dos motivos pelos quais a perdemos.

***

A experiência histórica da Igreja, na qual incluímos a dos Apóstolos e dos Padres antigos e modernos, nos mostra que, quando o homem é enriquecido com grandes dons da graça e de visões, lhe são necessários longos anos de vida ascética para assimilá-los em profundidade. A graça se reveste então da forma de um conhecimento espiritual que convencionamos chamar de “consciência dogmática”, mesmo quando não se refere ao sentido acadêmico do termo. Assim, a primeira carta de São Paulo, dirigida aos Tessalonicenses, foi redigida cerca de quinze anos depois da aparição do Senhor no caminho de Damasco. Para alguns, esse período durou vinte, vinte e cinco, trinta e até mais anos. Os evangelistas e os outros Apóstolos colocaram por escrito seus testemunhos e visões muitos anos depois da Ascensão do Senhor. Os santos Padres, na maioria dos casos, não testemunharam a respeito de suas experiências e visões senão ao final de sua vida ascética. Podemos ver como na vida do Starets Silouane transcorreram mais de trinta anos antes de que ele, com consciência madura e consumada, expusesse por escrito sua experiência. Tão longo é, portanto, o processo de assimilação da graça.

A consciência dogmática que consideramos aqui provém de uma experiência espiritual e não da atividade discursiva de nosso intelecto. Quando os santos Padres traduzem em palavras sua experiência não o fazem à maneira das construções escolásticas, mas como uma manifestação da alma. A palavra sobre Deus e sobre a vida em Deus chega sem reflexão, simplesmente; ela brota por si mesma da alma.

A consciência dogmática do asceta não é resultado de uma reflexão sobre a experiência interior vivida, que seria aliás legítimo de um ponto de vista psicológico. Os ascetas se afastam dos caminhos da especulação, pois esta não apenas relaxa a intensidade da contemplação da luz, como faz cessar mesmo a autêntica contemplação. A alma então afunda nas trevas; já não conserva mais que um conhecimento racional abstrato, desprovido de força vital.

De que serve discutir a ação da graça, se sua ação não é perceptível? Para que declamar a respeito da luz do Tabor, se não se vive existencialmente nela? Que sentido tem fabricar uma sutil teologia trinitária, se não se possui interiormente a santa força do Pai, o doce amor do Filho, a luz incriada do Espírito Santo?

A consciência dogmática, entendida como conhecimento espiritual, é um dom de Deus. Igualmente, uma verdadeira vida em Deus não é possível sem a chegada de Deus. Nem sempre, ou antes nunca, é possível comunicá-la aos demais por meio da palavra oral ou escrita. Quando a benevolência divina repousa sobre um homem, retira-se da alma qualquer desejo de explicitar a experiência vivida mediante conceitos racionais ou construções lógicas. A alma não necessita disso, ela conhece com certeza – sem dúvida, de maneira indemonstrável, mas que tampouco requer demonstração – que vive realmente em Deus. Se ainda lhe restam forças, ela aspira ainda a uma maior plenitude; mas se a ação de Deus as supera, ela permanece silenciosa num bendito esgotamento.

É impossível traduzir a experiência espiritual em termos perfeitamente adequados; as palavras humanas são incapazes de expressara vida do espírito. O que é inexprimível e até inconcebível na esfera do pensamento lógico, pode ser alcançado pela via existencial. Por meio da fé e da comunhão viva, Deus se torna conhecido; mas quando a palavra humana intervém, com todo seu caráter convencional e flutuante, nos vemos expostos a um sem-fim de dúvidas e contradições.

Podemos afirmar com certeza que nenhum Santo jamais tentou expor verbalmente sua própria experiência espiritual – ao contrário, eles guardaram para sempre em silêncio esse “Mistério do século futuro” – a menos de se encontrar diante da tarefa de ensinar ao próximo, e se não houvesse o amor infundido a esperança de que alguém – “ainda que não fosse mais do que uma só alma”, como dizia o Starets – escutando a palavra e seguindo pelo caminho do conhecimento, se salvasse.

Os fundamentos da consciência dogmática são concedidos plenamente a partir da primeira experiência da graça; caso esse aspecto da vida espiritual, uma e indivisível, não seja percebido imediatamente com clareza, isso não é devido a que falte alguma coisa no dom divino, mas a que a assimilação desse dom por parte do homem está unida a um longo processo interior.

O homem que contemple pela primeira vez a luz divina incriada e se vê introduzido no universo da vida eterna, fica desconcertado pela novidade dessa visão, e isso porque o mundo que se lhe descortina é incomensurável e não tem relação alguma com o mundo material que o rodeia. Esse homem permanece numa bendita admiração, que não consegue traduzir em palavras. Ele guardará silêncio e, se as proferir, suas palavras parecerão absurdas. Se sua vocação não for a de divulgar a boa nova, conservará escondidas em seu coração as palavras que escutou e que nenhuma língua humana será capaz de expressar.

Por maior que seja o primeiro dom da graça, na medida em que não tenha sido assimilado, o homem ainda estará sujeito a flutuações e mesmo a quedas. O apóstolo Pedro nos fornece um excelente exemplo disso. Sobre o monte Tabor, ele se encontra num bendito arrebatamento; mas pouco depois, no momento dos sofrimentos de Cristo, ele o nega; anos mais tarde, mencionará em sua epístola a visão do Tabor como tendo sido um poderoso testemunho em favor da verdade.

 A duração do processo de assimilação da graça não é igual para todos. Em linhas gerais, no entanto, ela é como segue: a primeira experiência da visita de Deus marca profunda e inteiramente o ser humano e o impulsiona para a vida interior, para a oração e a luta contra as paixões. Durante esse período o coração está cheio de sensações espirituais e as experiências vividas são tão intensas que atraem para si toda a atenção do intelecto. Durante o período seguinte, a perda da graça submerge o homem numa grande aflição e o leva a uma busca desconcertada das causas dessa perda e dos meios para recuperar o dom de Deus. Só depois de muitos anos de estados espirituais alternados (anos dedicados a ler assiduamente as sagradas Escrituras e as obras dos santos Padres da Igreja, ao trato com mestres espirituais e com outros ascetas, e à luta contra as paixões), o homem redescobrirá em si o luminoso conhecimento dos caminhos da salvação, que chegará silenciosamente, “sem se deixar notar[1]”. Esse conhecimento, que convencionamos chamar de “consciência dogmática”, consiste na vida profunda do espírito, não numa gnose abstrata.

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Deus não é ciumento. Deus ignora o amor próprio e a ambição. Humildemente, pacientemente, busca a cada homem por todos os caminhos de sua vida; por essa razão, cada um de nós pode alcançar em maior ou menor grau o conhecimento de Deus, não apenas na Igreja, como também fora dela; o conhecimento de Deus, porém, não é possível sem Cristo ou fora dele[2].

Fora de Cristo nenhuma experiência mística permite ao homem o conhecimento do ser divino enquanto Objetividade una, absoluta e incompreensível, ou seja, enquanto Trindade indivisível e consubstancial. Mas, em Cristo, essa revelação, esse conhecimento, se converte em luz de vida eterna que ilumina todas as manifestações da vida humana.

Nos escritos do Starets Silouane se vê claramente como ele vivia, sem contradição alguma, essa dimensão de um só Deus em três Pessoas. Em suas orações ele aplicava os mesmos nomes – Pai, Senhor, Mestre, Rei, Criador, Salvador e outros – tanto distintivamente a uma das três Pessoas da Santíssima Trindade, como à Unidade das três Hipóstases.

Segundo o testemunho categórico do Starets, conhecemos a Divindade de Cristo por meio do Espírito Santo. Quem conheceu desse modo a Divindade de Cristo conhecerá, através de sua experiência pessoal, o Mistério da união sem confusão das duas naturezas e das duas vontades. A experiência espiritual, graças também ao Espírito Santo, compreenderá a natureza incriada da luz divina e os demais dogmas de nossa fé. Mas convém advertir cuidadosamente que essa consciência dogmática, que provém da experiência da graça, difere de maneira qualitativa daquela consciência dogmática, apenas semelhante na aparência, que resulta da “fé de ouvido”, da erudição científica, ou mesmo das convicções filosóficas.

“Crer em Deus é uma coisa, conhecê-lo é outra”, dizia o Starets.

As representações intelectuais abstratas podem corresponder à realidade, mas, mesmo quando correspondem, se estiverem separadas da experiência positiva da graça, não constituem o conhecimento de Deus que, na sua essência, é a vida eterna[3]. Essas representações, porém, são também preciosas, pois podem em algum momento ser úteis ao homem, inclusive no âmbito da vida espiritual verdadeira.

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Um teólogo racionalista, referindo-se aos escritos do Starets, talvez diga: “Não encontro aqui a riqueza do pensamento teológico; não observo consciência dogmática”. Ele falará assim porque sua espiritualidade se move em outra esfera da vida religiosa.

O teólogo racionalista está preocupado com numerosos problemas, cuja solução busca pelos caminhos da experiência racional. Sua experiência religiosa muitas vezes é escassa, proveniente sobretudo do nível racional do ser e não de uma comunhão viva com Deus. Ele valoriza como riqueza espiritual sua erudição científica e sua experiência especulativa; atribui a elas tal valor, que qualquer outra experiência se situará, a seus olhos, em um plano inferior.

Para um homem autenticamente espiritual, que busca uma comunhão viva com Deus, os entusiasmos do racionalista são se uma ingenuidade que salta à vista. Ele não chega a compreender como um homem inteligente pode se contentar com conjecturas e construções de sua própria razão; ele prefere o caminho do conhecimento existencial. Esse é o caminho do Starets Silouane. E, em geral, é o caminho da Igreja. A Igreja é forte e rica, não pela sua erudição científica, mas, antes de tudo, pela posse real dos dons da graça. A Igreja vive pelo Espírito Santo, respira por ele. É graças a essa comunhão que ela sabe como atua.

Não consideramos ilegítimas ou artificiais, ao nos expressarmos assim, as dúvidas e interrogações da alma. Não; apenas falamos de caminhos diferentes. Enquanto que um deles se satisfaz e espera resposta do plano racional, o outro, ao contrário, a busca na ordem do Ser verdadeiro. O racionalista constrói sistemas teológico-especulativos sumamente complexos para responder às exigências de sua razão; dedica um trabalho considerável, senão para provar, ao menos para expor e desenvolver dialeticamente no mínimo sua própria visão da natureza das coisas. Muitas vezes consagra a isso a vida inteira, todas as suas forças e faculdades. Mas, coisa estranha, não se dá conta de que falta uma fundamentação segura a todas essas inquirições.

O santo Starets sentira desde sua juventude a necessidade de encontrar a verdadeira vida; buscava com ardor aquela realidade que traz consigo uma prova, irrefutável ao nosso espírito, da vida eterna. Uma prova tão irrefutável como a consciência de nossa própria existência terrestre.

A história do pensamento humano e da experiência espiritual conheceu um momento significativo quando foram pronunciadas essas palavras: “Penso, logo existo”. Um filósofo contemporâneo compreendeu a vida de outro modo: “Eu teria dito: amo, logo existo, pois considero que o amor é o motivo mais profundo para atribuir a ele a conta de nossa existência”.

Todas essas fórmulas derivam da reação racional à pergunta: “Eu existo?”. E no entanto, independentemente de tal reflexão, cada homem já sabe de sua existência no nível de sua consciência pré-racional.

De modo análogo, existem estados espirituais nos quais o homem sabe com certeza e com um conhecimento imediato que não morre, que participa da vida eterna; a saber, quando o Espírito Santo, para falarmos como o Starets, certifica a alma de sua salvação. A busca de tal solução aos problemas que nos aparecem é verdadeiramente digna de um sábio. Esse é o caminho da Igreja, o da experiência da vida divina. O santo Starets era rico nessa experiência da vida eterna, concedida pelo Espírito, e era nela que ele se apoiava.

O Starets dizia: “Espírito Santo... Tu me revelaste um mistério insondável”. E se alguém lhe pedia: “Revela-nos o mistério que o Espírito Santo te deu a conhecer”, sua resposta não era a que se podia esperar. Ele dizia: “O Espírito Santo concede o conhecimento à alma de forma invisível. Ele concedeu a mim conhecer o Senhor, meu Criador; concedeu a mim saber o quanto nos ama o Senhor. É impossível explicá-lo”.

Essa é a pobreza dialética do Starets. No entanto, seria falso atribuí-la a uma falta de instrução. Com efeito, um homem excepcionalmente dotado no plano intelectual e habituado da pensar racionalmente carecerá igualmente de meios expressivos quando toque as realidades às quais se referia o Starets. Não existe aqui lugar para “riquezas” de pensamento ou de conceitos teológicos. A palavra humana é incapaz de expressar a vida a que somos chamados e que Deus nos concede. Mesmo o Senhor se absteve de descrevê-la em palavras ao dizer: “Quando chegar o Espírito da Verdade, ele vos ensinará toda a verdade e, nesse dia, já não me perguntareis nada[4]”.




[1] Lucas 17: 20.
[2] Mateus 11: 27.
[3] João 17: 3.
[4] João 16: 13; 23.

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