Sendo Deus “a Luz na qual não existem trevas”, ele se manifesta sempre
na luz e como luz. A luz divina é a energia incriada. O homem que a contempla
experimenta antes de tudo uma sensação que o penetra inteiramente: a presença
do Deus Vivo. Trata-se de uma sensação imaterial do Imaterial, de uma “sensação
intelectual”, mas não mental. Ela transporta o homem a um universo distinto com
tanta força e ao mesmo tempo com tanta delicadeza, que este não se dá conta do
instante em que lhe ocorreu e tampouco sabe se foi em seu corpo ou fora dele.
Nesse momento, o homem tem uma consciência de seu ser que é mais lúcida e
profunda do que em qualquer momento anterior de sua vida ordinária; ele se
esquece, no próprio tempo, se si e do mundo, imerso como está na doçura do amor
divino. Em espírito, vê o Invisível, respira-o, está por inteiro nele.
Essa sensação supramental do Deus Vivo vem acompanhada de uma luz
radicalmente diferente, por sua própria natureza, da luz física. O homem então
experimenta essa luz, se identifica com ela e já não experimenta nem sua
própria materialidade, nem a do mundo.
A visão sobrevém quando menos se espera, e de modo incompreensível;
ninguém pode dizer se ela provém do interior ou do exterior; mas ela penetra e
envolve inefavelmente o espírito e faz com que ele sinta a irradiação da glória
divina, sem que se possa falar propriamente de “êxtase”, pois não se percebe
que a alma abandone o corpo e a seguir volta para ele. Não existe nisso,
portanto, nada de patológico.
É Deus quem atua, e o homem recebe. O homem não conhece então nem
espaço nem tempo, nem nascimento, nem morte, nem sexo ou idade, nem situação
social ou hierárquica, nem outros condicionamentos ou relações desse mundo.
Deus, Senhor da vida e luz eterna, visitou em sua misericórdia a alma
arrependida.
***
A contemplação da luz divina não depende de condições alheias a ela.
Às vezes a benevolência divina visita o homem sem que suas percepções do corpo
e do mundo sejam abolidas. Nesses casos o homem pode permanecer com os olhos
abertos e ver duas luzes simultaneamente, a natural e a divina. Os Santos
Padres chamam a uma visão com essas características de “visão pelos olhos
naturais”. Isso não quer dizer, porém, que o ato da visão da luz divina seja
análogo ao processo psicofisiológico da visão natural. Não se supõe, em outras
palavras, que a luz divina – seja lá qual for a teoria científica da luz que
aceitemos – produza, tal como a luz física, uma excitação específica do nervo
ótico, que por sua vez se transformaria num processo psicológico da visão, pois
a luz divina é de outra natureza: luz do intelecto, luz do espírito, luz do
amor, luz da vida.
No universo físico, a luz natural é a imagem da luz divina. Assim
sendo, a visão das coisas que nos rodeiam é impossível sem a luz. Se a luz é
fraca, o olho apenas consegue distinguir os objetos; se a luz é mais viva, ela
os vê melhor e, por fim, em plena luz do sol, a visão alcança uma certa
perfeição. O mesmo acontece no mundo espiritual, onde a visão autêntica só é
possível a partir da luz divina. Mas essa luz não é concedida aos homens por
igual: a fé é luz, mas fraca; a esperança também é luz, mas ainda imperfeita;
só na plenitude do amor a luz alcança sua perfeição.
A luz incriada, de modo semelhante ao sol, ilumina o mundo espiritual
e permite ver os caminhos invisíveis do espírito. Sem ela o homem não pode
conhecer nem contemplar, e menos ainda cumprir os mandamentos de Cristo, pois
permanece nas trevas. A luz incriada traz consigo a vida eterna e a força do
amor divino; ou melhor, ela é essa vida eterna e esse divino amor.
Quem nunca contemplou com vigor e certeza a luz incriada não alcançou
a verdadeira contemplação. Aquele que, antes de ter visto a luz incriada, ousa
sondar “com sua inteligência” os mistérios divinos, não apenas não os vê, como
ainda fecha o caminho que conduz a eles, não verá mais do que máscaras ou
espectros da verdade, forjado por si mesmo, ou mesmo suscitados pela energia
hostil das fantasias demoníacas.
A contemplação autêntica provém do alto, doce e suavemente. Não é
abstrata nem intelectual, mas distinta qualitativamente da mais aguda das
intelecções. É a luz da vida, concedida pela benevolência de Deus. O caminho q
eu conduz a ela não é o raciocínio nem um procedimento “psicotécnico”, mas a
compunção.
***
Vida eterna, Reino de Deus, “Energia incriada”, a luz divina não é
algo inerente à natureza criada do homem; sendo de natureza distinta da sua,
ela não pode ser atualizada por ele por esforços ascéticos: é sempre um dom da
misericórdia divina.
Perguntamos ao Starets: “Como pode o homem conhecer isso por
experiência própria?”. O santo Starets dizia que quando Deus aparece na grande
luz, é impossível duvidar que seja o Senhor, o Criador Pantocrator. Mas aquele
que não contemplou senão um “resplendor” dessa luz, e que, em lugar de cimentar
a fé no testemunho dos Padres, interpreta isso a partir de sua própria
experiência, não saberá diferenciar a natureza heterogênea dessa luz em relação
à natureza da alma. Somente as alternâncias de visitas e abandonos lhe
permitirão distinguir entre a ação divina e o mais elevado esforço do espírito.
Quando o homem, no momento da oração, vê pela primeira vez a luz
incriada, aquilo que ele contempla e experimenta é tão novo para ele, tão
insólito, que não é capaz de conceber; sente que os limites de seu ser se
dilatam indizivelmente, que a luz que se mostra a ele o transporta da morte
para a vida, mas a imensidão de sua experiência o surpreende e o enche de estranheza;
somente a repetição dessas visitas lhe revela a magnitude e o sentido do dom.
Durante e depois da visão, a alma permanece embargada por uma paz
profunda e um doce amor divino, que a desapegam de todo desejo terrestre, do
desejo de glória, de riqueza, de felicidade, mesmo do desejo de viver; tudo lhe
parece insípido e ela não aspira a outra coisa senão a infinitude viva de
Cristo, onde não existe começo nem fim, nem trevas, nem morte.
Dentre os modos de contemplação descritos, o Starets preferia aquele
no qual “o mundo fica inteiramente esquecido”, onde o intelecto, vazio de
imagens, é introduzido na luz infinita, pois tal visão revela como maior
plenitude os mistérios do “século futuro”. A alma sente ativamente, nesse
sentido, sua comunhão com a vida divina e participa verdadeiramente da chegada
de Deus, que não é possível expressar com palavras humanas.
Quando, por razões que o homem desconhece, a visão cessa – tão
independente de sua vontade quanto se deu sua chegada – então, com certa preguiça,
a alma retorna à percepção do mundo exterior; e à doce alegria do amor divino
se junta uma dor sutil por ver de novo a luz do sol criado.
***
O homem é a imagem de Deus. Mas nós nos perguntamos: o que é que nele
constitui a imagem de Deus? Ou, em outras palavras, onde está inscrita essa
imagem? No corpo? Na estrutura psíquica ou psicossomática do homem? Na tríade
de potências da alma? Estará ela, de forma genérica, na estrutura ternária de
seu ser? A resposta a essa pergunta é extremamente complexa. As frações e
reflexos da imagem de Deus não estão fora das coisas que acabamos de enumerar,
mas o essencial é o “modo de existência”. O ser criado entra, graças ao dom da
benevolência divina, em comunhão com o ser incriado e eterno. Como isso é
possível? É algo tão incompreensível e insondável quanto o mistério da criação ex nihilo. E no entanto, a benevolência
do Pai eterno para com o homem, criado à sua imagem e semelhança, é tamanha,
que ele lhe concedeu a capacidade de receber a deificação; vale dizer, de se tornar
partícipe da vida divina, de receber o modo de existência divina, de
converter-se em um deus pela graça.
O homem recebe a deificação; ou seja, Deus é o princípio ativo no ato
da deificação, enquanto que o homem é o princípio receptivo. Essa recepção,
porém, não consiste num estado passivo, porquanto o ato deificante não pode se
realizar sem o consentimento do homem; caso contrário, a própria possibilidade
da deificação estaria excluída. Aqui reside a diferença entre o ato inicial da
criação e sua etapa última: a deificação dos seres pessoais.
Se a criação do universo é um mistério de grandeza inconcebível, o
mistério da criação de deuses eternos é incomparavelmente superior em
majestade. Se a vida do mundo inteiro que nos rodeia é um milagre surpreendente,
o milagre divino que se opera quando o homem é introduzido no mundo da luz
incriada é infinitamente mais profundo.
O próprio fato de existir enche o homem de admiração a partir do
momento em que ele cai em si. Conhecemos homens que, elevando-se até a esfera
do intelecto próprio à natureza humana criada, ficaram deslumbrados diante de
seu esplendor luminoso. Mas quando o homem é introduzido no mundo da luz
incriada, sua admiração diante de Deus é indizível e ele não encontra palavras
nem imagens, nem suspiros para expressar sua gratidão.
DA IMPASSIBILIDADE À
IMAGEM DE DEUS
Deus carece de paixão. A luz incriada que dele procede comunica ao
homem, com sua aparição, uma impassibilidade semelhante à de Deus, que
constitui o objetivo final da ascese cristã. Mas podemos nos perguntar: o que é
a impassibilidade? Segundo sua acepção filológica, trata-se de um conceito
negativo – assim, não será então igualmente negativa sua acepção real? Não
suporá uma renúncia à nossa existência? Não, a impassibilidade cristã não
renuncia à existência, antes ela se reveste de uma nova vida, santa, eterna:
vale dizer, de Deus. O apóstolo Paulo diz: “Com efeito, não queremos
despir-nos, mas nos revestirmos com essa segunda vestimenta, a fim de que o
mortal seja absorvido pela vida[1]”.
Em sua busca da impassibilidade, o asceta ortodoxo aspira a uma
comunhão viva e real com Deus, que ele sabe ser impassível. A impassibilidade
de Deus não é algo morto, estático; ela não se caracteriza como uma indiferença
diante da sorte do mundo e do homem. A impassibilidade de Deus não é uma
ausência de movimento, de compaixão, de amor. Mas apenas pronunciamos essas
palavras, que evocam em nosso espírito conceitos tão limitados em seu uso
ordinário, e surge uma porção de problemas insolúveis. Movimento, compaixão,
amor, etc. – não introduzem esses termos um elemento de relatividade no ser divino?
Ao falarmos assim, não estramos aplicando a Deus um antropomorfismo indigno
dele?
Deus é Vida, Amor; Deus é a Luz na qual não existem trevas, vale
dizer, as trevas de sofrimentos entendidos como desintegração e morte, trevas
de ignorância, de não-ser ou de mal, trevas de imperfeições e de contradições
não resolvidas, de rupturas ou de descontinuidades ontológicas. Deus é um Deus
vivo, dinâmico; mas o dinamismo da vida divina é a plenitude de uma Existência
que, por não possuir começo nem fim, exclui qualquer processo teogônico.
A impassibilidade de Deus não implica uma transcendência absoluta que
exclua sua participação na vida da criatura. Deus ama, tem piedade, se
compadece, se alegra; mas nada disso introduz em seu Ser a desintegração, a
relatividade, a paixão. Deus, na sua Providência, se preocupa com sua criatura
até o menor detalhe, com precisão matemática. Salva como um pai, como um amigo;
consola como uma mãe, participa intimamente de toda a história da humanidade,
da vida de não importa qual homem, mas essa participação não implica nem
mudança, nem flutuação, nem processo evolutivo do ser divino.
Deus vive toda a tragédia do mundo, mas isso não significa que no
próprio Deus, no seio da Divindade, se desenrole uma tragédia ou uma luta que
seria consequência de alguma carência sua ou de quaisquer trevas que não
estivessem ainda superadas nele.
Deus ama o mundo: veio ao mundo, se encarnou, sofreu e inclusive
morreu em sua carne, sem deixar de permanecer imutável em seu Ser supracósmico.
Ele realizou a tudo impassivelmente, do mesmo modo como abraça em sua
Eternidade, de modo integral e não espacial, todas as extensões temporais do
ser criado. Em Deus o momento estático e o dinâmico formam uma unidade tão
absoluta que não é possível aplicar ao seu Ser nenhum de nossos conceitos
distintos e separados.
***
Em seu constante esforço para alcançar a impassibilidade divina, o
asceta ortodoxo não concebe essa impassibilidade como “fria indiferença”, nem
como “despreocupação de uma existência ilusória”, nem como uma contemplação
“além do bem e do mal”, mas a concebe como a vida no Espírito Santo.
O impassível está cheio de amor, de compaixão, de participação, mas
tudo isso provém de Deus que atua nele. Podemos definir a impassibilidade como
sendo a “aquisição do Espírito Santo”, como Cristo “vivo em nós”. A
impassibilidade é a luz de uma vida nova, uma vida que faz brotar no ser humano
sentimentos novos e santos, novos pensamentos divinos, uma nova luz do
conhecimento eterno.
Os santos Padres da Igreja definem a impassibilidade como sendo a
“ressurreição da alma antes da ressurreição universal dos mortos[2]”,
como “entrada na infinita Infinitude[3]”.
***
O caminho ordenado da aquisição da impassibilidade passa pelas
seguintes etapas: a primeira é a fé, entendida não como convicção racional, mas
como experiência do Deus Vivo; da fé nasce o temor ao juízo de Deus; do temor,
o arrependimento; do arrependimento, a oração, a confissão, as lágrimas.
Crescendo e se aprofundando, o arrependimento, a oração e as lágrimas realizam
uma primeira libertação das paixões, de onde nasce a esperança. A esperança
redobra os esforços ascéticos, as orações e as lágrimas, afina e aprofunda a
experiência do pecado, coisa que faz crescer o temor, que se transforma em
profundo arrependimento, o qual atrai a misericórdia divina, e então a alma
recebe a graça do Espírito Santo, cheia da luz do amor divino.
Também a fé é amor, mas débil ainda; a esperança é amor, mas
imperfeito. Cada vez que a alma se eleva de um grau inferior a outro superior
passa inevitavelmente pelo crisol do temor. O amor, com sua aparição, afasta o
temor; mas o temor, afastado por um amor débil, renasce de novo na subida da
alma a um amor maior, e novamente é superado pelo amor; somente o amor
perfeito, segundo o testemunho do grande Apóstolo do amor, varre por completo o
temor, que comporta tormentos.
Existe outro temor a Deus, no qual não existem tormentos, mas o sopro
da Eternidade santa. Eis como se expressava o Starets a propósito desse temor
que não abandona o homem durante toda sua existência terrestre: “Diante de
Deus, é necessário viver em temor e amor. Em temor, porque é o Senhor; em
temor, para não ofender o Senhor com maus pensamentos; e em amor, porque o
Senhor é Amor”.
***
O silêncio interior, a hesíquia do monge ortodoxo nasce ordenadamente
de um profundo arrependimento e de seu esforço para observar os mandamentos de
Cristo. Não se trata em absoluto de uma aplicação artificial da teologia
areopagita à vida espiritual. É certo que as teses teológicas do Areopagita não
contradizem os resultados da hesíquia e que, nesse sentido, existem relações e
coincidências com ela. Acreditamos ser indispensável insistir, porém, num ponto
de extrema importância: não é a filosofia abstrata da teologia apofática, mas o
arrependimento e a luta contra “a lei do pecado[4]”
que atua em nós, que está na raiz da hesíquia. E a incognoscibilidade da
Divindade pode ser conhecida precisamente nesse caminho, na aspiração a fazer
dos mandamentos de Cristo a única lei de nossa existência eterna. Nesse
caminho, o espírito humano se despoja de todas as imagens do mundo e o
transcende.
***
Deus é Amor e, enquanto amor infinito, quis se dar por inteiro ao
homem: “Eu lhes dei a glória que me deste[5]”.
E quando essa glória é dada ao homem, embora continue sendo criatura devido à
sua natureza, este, pelo conteúdo de sua vida, se converte verdadeiramente em
um deus, na medida mesma de Cristo, Filho do homem.
Assim como no ato da Encarnação o Verbo coeterno ao Pai, tomando a
forma de ser humano, se encarnou[6],
também o homem toma em Cristo a forma do ser divino em sua infinitude, até
chegar a se identificar com o Criador no ato de sua Existência.
O ser divino, absolutamente atualizado, exclui em si a presença de
potencialidades não realizadas, e nessa medida pode ser chamado de “Ato puro”.
O ser divino, como Ser em si, não tendo uma causa exterior a si mesmo,
sendo absolutamente perfeito desde toda eternidade e excluindo qualquer
processo teogônico, é para o ser criado algo irredutível e pode ser chamado,
nesse sentido, de “Realidade irredutível”.
Enquanto Ato (“energia”), o ser divino é comunicável à criatura
racional em toda sua plenitude e infinitude. Enquanto Realidade irredutível
(“essência”) ele é absolutamente transcendente e incomunicável à criatura, e
segue sendo um Mistério selado para sempre[7].
Que o Ato do ser divino seja comunicável à natureza humana em toda sua
plenitude, isso foi demonstrado pelo “homem Jesus Cristo[8]”,
que é a medida de todas as coisas e o fundamento último de todo juízo. O
apóstolo Felipe disse a Cristo: “Mostra-nos o Pai”, e recebeu a resposta: “Quem
me viu, viu o Pai[9]”.
Mas também se poderia dizer: aquele que viu a Cristo viu a si próprio tal como
deveria ser segundo a intenção do Pai “desde antes da criação do mundo[10]”.
E assim como Cristo, em sua natureza humana, contém “corporalmente a plenitude
da divindade[11]”,
e está “sentado no trono do Pai[12]”,
do mesmo modo todo homem é chamado “ao talhe que convém à plenitude de Cristo[13]”.
É para isso que somos chamados por Cristo: “Sede perfeitos como vosso Pai
celeste é perfeito[14]”.
Os santos, plenamente deificados pelo dom da graça, são introduzidos
no ato divino de modo a que todos os atributos da divindade lhes sejam
outorgados, até a identidade[15],
sendo esta segundo o Ato, porém jamais segundo a Natureza. Por sua natureza,
Deus segue sendo Deus eterna e imutavelmente para os seres criados, até que
esses alcancem a identidade perfeita.
***
Criado à imagem de Deus, o homem é chamado a viver segundo sua
semelhança. A salvação consiste em receber uma vida idêntica à de Deus. Deus é
onipresente e onisciente, e o Espírito Santo outorga aos Santos algo parecido a
essa onipresença e onisciência. Deus é Verdade e Vida, e nele os Santos se
tornam verdadeiros e vivos. Deus é Bondade absoluta e Amor envolvente de tudo o
que tem vida, e no Espírito Santo os Santos abraçam amorosamente o mundo
inteiro. Somente Deus é Santo, e os Santos são santificados pelo Espírito
Santo. A noção de santidade não é de índole ética, mas ontológica. Santo não é
aquele que alcançou um elevado grau no domínio da moral humana, ou uma vida de
ascese, ou mesmo de oração (os fariseus também jejuavam e recitavam longas
orações), mas aquele que leva consigo o Espírito Santo. O Ato do Ser divino é
sem começo, e os deificados, ao participarem desse Ato, tornam-se também sem
começo. Deus é a Luz na qual não existem trevas, e faz dos Santos, que são sua
morada, pura luz. O Ser divino é Ato puro, e o homem, criado no princípio como
simples potencialidade, ao ser deificado, se atualiza por inteiro e se
converte, também ele, em Ato puro. A natureza criada do homem é inteiramente
dependente do Ser absoluto do Criador, mas os partícipes do Ato divino se
tornam tais, não em razão de sua “dependência”, mas por causa de sua livre
determinação no ato do Amor perfeito.
O Ato do Ser divino é Luz pura. Quando o Senhor se digna aparecer ao
homem, ele o faz sempre na luz e como luz. A santa Escritura diz: “Em sua Luz
veremos a Luz[16]”,
pois a visão da luz divina incriada é impossível a menos que se dê num estado
de iluminação pela graça, um estado em virtude do qual o ato de contemplação é,
antes de tudo, de “comunicação com Deus[17]”,
de união com a vida divina. Mas quando o intelecto em estado de contemplação de
Deus busca conhecê-lo em essência, topa com o Mistério absolutamente
infranqueável da Realidade irredutível. A contemplação da incognoscibilidade da
natureza divina é designada simbolicamente como “trevas divinas”. Esse termo se
encontra pela primeira vez na literatura cristã do século IV, quando São
Gregório de Nazianze e São Gregório de Nissa foram obrigados a refutar as
pretensões que tinham alguns hereges de conhecer também a essência divina. Um
deles, Aécio, afirmava conhecer a Deus melhor do que conhecia a si mesmo, e
chegava a pretender estabelecer uma equação matemática de Deus. Outro, Eunômio,
dizia que era possível um conhecimento adequado de Deus e afirmava que ele
conhecia a Deus como o próprio Deus se conhecia.
Os Padres da Igreja chamavam as trevas divinas de “trevas
transluminosas”. A propósito do mesmo tema, São Paulo diz que o “Senhor dos
senhores (...) habita numa Luz inacessível[18]”,
enquanto que, por sua vez, São João o Teólogo proclama: “Ninguém jamais viu a
Deus; o Filho Único, que está no seio do Pai, é quem O revelou[19]”.
O Filho Único “revela” a Deus no Ato de sua existência eterna como Luz em que
não há treva alguma, mas, apesar da Encarnação hipostática, não tornou
conhecida a essência de Deus.
AS TREVAS DA RENÚNCIA
Sendo Deus Luz em que não há trevas, ele aparece sempre na luz e como
luz. Mas na realização da oração em sua forma hesiquiasta, a alma daquele que
ora se encontra com travas de uma natureza particular, cuja descrição será tão
contraditória e paradoxal quanto a de outros aspectos da experiência cristã.
Essa contradição provém, por um lado, da natureza dessa experiência e, por
outro, do ponto de vista desde o qual se considera ou se define o fato
espiritual.
Nessas trevas a alma do asceta submerge interiormente, ao se despojar,
mediante um ato voluntário e recorrendo a métodos ascéticos especiais, de
qualquer representação ou imagem de coisas visíveis, bem como de conceitos e
reflexões mentais; vale dizer, de tudo quanto “contêm” sua inteligência e sua
imaginação; por essa razão, podemos chamá-las de “trevas da renúncia”. É
costume denominar-se “metódica” essa oração, pois ela é praticada seguindo um
método especialmente ordenado a esse fim.
Se quisermos especificar o “lugar espiritual” dessas trevas, é
possível dizer que elas se encontram nos confins da aparição da luz incriada;
mas quando se pratica a oração hesiquiasta sem o arrependimento requerido e sem
que a oração esteja totalmente orientada para Deus, então a alma, desnuda de
representações, pode seguir durante algum tempo nessas “trevas da renúncia” sem
ver a Deus, pois Deus não está nelas.
Permanecendo nas trevas da renúncia, o espírito sente uma doçura e um
repouso de índole particular; se nesse momento retorna a si, pode perceber algo
parecido com a luz, mas que ainda não é a luz incriada da Divindade, mas um
atributo do espírito criado à imagem de Deus. Franqueando os limites da
condição temporal, tal contemplação aproxima o intelecto daquilo que é imutável
e coloca assim o homem na posse de um novo conhecimento. Claro que se trata
ainda de um conhecimento abstrato. Desgraçado daquele que toma essa sabedoria
pelo conhecimento do Deus verdadeiro e essa contemplação pela comunhão com a
vida divina: desgraçado, porque nesse caso a noite da renúncia, situada no
umbral da verdadeira visão de Deus, se transformará numa cortina impenetrável e
num muro que separará de Deus mais do que as trevas das paixões grosseiras,
mais do que as dos combates demoníacos ou que as da perda da graça e do
abandono de Deus; desgraçado, porque isso seria um erro, uma ilusão, já que
Deus se manifesta na luz e como luz.
A ação da luz divina consome as paixões do homem pecador; daí que,
durante certos períodos, possa ser sentida como um fogo devorador. Nenhum
cristão que queira viver na ascese e nma piedade poderá evitar as feridas desse
fogo.
As trevas da renúncia não são o único “lugar” onde se manifesta a luz
incriada da Divindade. Deus pode aparecer também àqueles que o perseguem.
Mediante sua aparição, é certo, ele transporta o homem para fora desse mundo, derivando
daí igualmente, nesse sentido, uma renúncia às imagens sensíveis e aos
conceitos racionais, mas a ordem de sucessão desses estados será inversa. O
homem a quem Deus quis manifestar sua Luz já não será vítima da aberração de
confundir a luz natural do intelecto com a luz incriada da Divindade. Esse
extravio, portanto, só pode se produzir no caso em que o homem alcança as
trevas da renúncia por meio de alguma “técnica” apropriada, antes de haver
contemplado a luz incriada, confiando em si mesmo ao invés de se deixar guiar
pelos Padres.
Quando a luz que aparecera ao homem o abandona, a alma suspira por ela
e a busca de novo por todos os meios ao seu alcance, bem como pelas indicações
dos Padres da Igreja e, dentre essas, pelo método da oração hesiquiasta. O
recurso a essa arte – ou a essa ciência ascética – como o demonstra a
experiência secular, é plenamente legítimo, mas não convém exagerar sua
relevância; do mesmo modo como, em sentido inverso, ele não deve ser
irrefletidamente rechaçado, como querem alguns. Essa arte não constitui uma
condição sine qua non para a
salvação, não consiste mais do que “muletas” para quando a ação da graça, que
une sem esforço o intelecto ao coração, se reduz ou diminui; a união entre o
intelecto e o coração passa então a ser buscada pelo próprio esforço.
Normalmente, a oração hesiquiasta deve conter algo positivo. Vale
dizer, ela dever ser precedida por um sentimento de arrependimento e por um
impulso em direção a Deus. Quando isso não acontece, ela não vai além de uma
ação ascética e negativa, e não pode, nesse sentido, constituir um fim em si
mesma. Poderá no máximo ser considerada como um meio de nossa condição decaída,
quando as paixões nos dominam; em outras palavras, quando o pecado que opera em
nós se converte quase que na lei de nossa existência.
***
O Starets amava o silêncio do intelecto e durante muitos anos recorreu
constantemente ao método de oração hesiquiasta. Isso lhe foi facilitado pelo
fato de que a prece do coração não se interrompeu nele a partir do momento em
que recebeu esse dom da Mãe de Deus. A calma resultante da redução, o mais
completa possível, de todas as impressões sensoriais, e sobretudo a escuridão e
o silêncio, constituem as condições exteriores favoráveis à oração hesiquiasta.
O Starets, do mesmo modo como todos que vivem como hesiquiasta, teve que buscar
ajuda externa. Vamos nos referir, a esse respeito, a alguns breves detalhes de
sua vida. Quando era relativamente jovem, ele obteve permissão do higoumeno
para se dirigir ao Velho Rossikon a fim de viver na solidão. Construiu ali uma
pequena kalyha, não muito distante do
pavilhão da comunidade. Foi ali que ele recebeu a visita do Padre Estratonico.
Ele não permaneceu por muito tempo no Velho Rossikon: logo foi chamado ao
mosteiro e nomeado ecônomo. Nessa época ele se trancava em sua cela e guardava
o despertador no fundo do armário para não escutar o tic-tac; às vezes enfiava
na cabeça seu espesso gorro de lã, de modo a cobrir os olhos e ouvidos. Quando
começou a dirigir o armazém de víveres, que se encontrava fora dos muros, arrumou
no vasto espaço do armazém um canto cômodo para a oração hesiquiasta e ali
passava suas noites, indo à igreja ´para as matinas e a liturgia diária. Nesse
armazém passou muito frio e sofreu muito de reumatismo. Durante os anos
seguintes de sua vida, a enfermidade o obrigou a passar os invernos em sua
cela, onde se aquecia, no interior do mosteiro. Sua última cela estava situada
no mesmo piso que a do higoumeno. Durante a noite ia com frequência a outra
pequena cela onde se guardava lenha; essa se encontrava no mesmo piso, junto a
outras celas parecidas convertidas também em depósitos de lenha, devido à
diminuição do número de monges, e que ficavam num corredor separado, longo e
sem saída cujos muros de pedra eram de uma espessura extraordinária. Nessa espécie
de masmorra, ele desfrutava de maior solidão, e de escuridão e silêncio quase
completos.
Aos olhos de um observador superficial, o Starets foi até o fim de
seus dias um homem “normal”. Vivia como vivem geralmente os bons monges;
cumpria com sua obediência, guardava sobriedade em tudo, observava as regras e
tradições monásticas. Comungava duas vezes por semana; em tempos de jejum, três
vezes. Seu trabalho no armazém não era complicado, mas fácil para sua
constituição; ocupava relativamente pouco do seu tempo, mas exigia sua presença
durante o dia. Até o final de sua vida foi suave e amável, e se manteve à
margem das preocupações mundanas e indiferente às coisas desse mundo. Como
asceta verdadeiramente experiente, sabia não parecê-lo. Permanecendo silenciosamente
diante de Deus, guardava sem cessar no fundo do coração o fogo do amor de
Cristo.
[1] II
Coríntios 5: 4.
[2]
João Clímaco 29, 2.
[3]
Abade Talássio 1, 56.
[4]
Romanos 7: 23.
[5]
João 17: 22.
[6]
Filipenses 2: 6-7.
[7]
Essas categorias palamitas, centrais para a compreensão do hesiquiasmo, não
devem ser identificadas à distinção tomista entre Ato e Essência.
[8] I
Timóteo 2: 5.
[9]
João 14: 8-9.
[10]
Efésios 1: 4.
[11]
Colossenses 2: 9.
[12]
Apocalipse 3: 21.
[13]
Efésios 4: 13; cf. 3: 19.
[14]
Mateus 5: 48.
[15] I
Coríntios 15: 28.
[16]
Salmo 35: 10.
[17] I
João 1: 3.
[18] I
Timóteo 6: 16.
[19]
João 1: 18.
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