O capítulo precedente (*) sobre o “santo hesiquiasmo”, tema que o Starets
Silouane tinha em alta estima, nos leva a examinar a necessidade da luta contra
a imaginação. Esse árduo aspecto da vida espiritual é de tal complexidade que
nosso tratamento não poderá ser exaustivo. Sendo nosso objetivo a exposição de
uma experiência concreta, cremos ser nosso dever nos atermos as perspectivas
que prevaleceram até hoje entre os ascetas do Monte Athos, das quais o Starets
Silouane compartilhava. Deixamos intencionalmente de lado as teorias da
psicologia moderna e nos absteremos de criticá-las ou de confrontá-las com o
ponto de vista da ascese ortodoxa; advertimos apenas que aquelas não concordam
com esta, pois derivam de concepções cosmológicas e antropológicas radicalmente
distintas.
O Starets escreve: “Meus irmãos, esqueçamo-nos da terra e de tudo o
que ela traz, pois nos distrai da contemplação da Santa trindade, inacessível
ao nosso espírito, mas que os Santos contemplam no céu pelo Espírito Santo.
Quanto a nós, perseveremos na oração sem a menor imagem”.
(*) Ver o capítulo: "Da Oração Pura", postagem de 3 de Fevereiro de 2018.
***
A faculdade imaginativa é muito variada em
suas manifestações. O asceta luta contra a imaginação associada às paixões
carnais. Sabe que a cada paixão corresponde uma imagem, pertencente ao mundo
criado, já que qualquer energia puramente cósmica – e, portanto, limitada
–inevitavelmente precisa se revestir de uma forma, de uma imagem, por razões já
expostas, a energia de um desejo, despertado por imagens passionais, não
adquire força suficiente para desencadear o pecado, a não ser que a imagem,
recebida interiormente, atraia para si a atenção do intelecto. Se, ao
contrário, o entendimento declina da oferta da imagem, a paixão não consegue se
desenvolver e, cedo ou tarde, acaba por se apagar. Assim, quando sobrevém o
desejo carnal, por mais que seja fisiologicamente normal, o asceta guarda seu
intelecto ao abrigo de qualquer imagem exterior proposta pela paixão; a paixão,
incapaz de desenvolver sua ação se a imagem não for acolhida pelo intelecto,
não poderá senão morrer. Descobrimos aqui um novo aspecto por meio do qual o
intelecto, faculdade eminentemente ativa, se opõe às flutuações mentais da
razão discursiva: a atenção. Essa “salvaguarda” do intelecto em relação às
imagens passionais explica porque é possível, mesmo a um home robusto,
conservar a castidade durante toda sua vida; isso é garantido por uma
experiência ascética milenar confirmada pelo exemplo do Starets. Se, em câmbio,
o intelecto acolhe com deleite a imagem passional, a energia desta poderá
submeter a uma sujeição tirânica mesmo um corpo esgotado, enfermo e impotente.
O ódio, para
acrescentarmos outro caso, se reveste igualmente de uma imagem sui generis, por exemplo de uma forma mais
ou menos clara de vingança. Desde que o intelecto evite se somar a ela, a
paixão desaparece por si mesma; mas se ele se une a essa imagem, a violência da
paixão crescerá proporcionalmente a essa união, e sua violência poderá chegar
mesmo à obsessão, e até à possessão.
Outra forma de
imaginação com a qual o asceta está habitualmente em conflito é o sonho. O
homem que se afasta do curso normal das coisas não faz mais do que se
estabelecer num mundo imaginário, onde a realidade concreta não é superada, mas
deformada. Com efeito, como a imaginação é incapaz de criar algo “do nada”,
vale dizer, do que nem existe nem preexiste, seus frutos não podem ser alheios
ao mundo que nos rodeia e cuja realidade nos é “dada”. Em outras palavras, seus
ingredientes serão inevitavelmente emprestados ao mundo concreto; isso
acontece, ademais, nos sonhos, e por isso o mundo onírico é relativamente
acessível. Um pobre homem que se imagina rei, profeta ou grande sábio,
participa de certo modo dessas realidades; e a história menciona exemplos de
pessoas que, ocupando o último escalão da hierarquia social, se convertem em
imperadores. Mas não é isso que costuma acontecer aos “sonhadores”.
Pensar na solução
de um problema técnico, por exemplo, e tentar a realização prática por meio de
tal ou qual ideia também coloca em jogo a imaginação. Esse tipo de atividade
intelectual apoiada na imaginação tem um papel importante na cultura e favorece
o desenvolvimento da civilização humana. Mas o asceta, em sua aspiração à
oração pura, tende a se privar de qualquer sucesso, material ou espiritual,
para que a imaginação, inclusive em suas formas superiores, não o impeça de
“oferecer a Deus seu primeiro pensamento e sua primeira energia”, ou seja:
concentrar-se inteiramente em Deus.
Mencionaremos por
último outra atividade interior vinculada com a imaginação, a saber, as
tentativas de penetrar intelectualmente o mistério da existência e de chegar ao
conhecimento do ser divino. As tentativas desse tipo comportam inevitavelmente
uma atividade da imaginação; isso é palpável na ilusão de levar a cabo uma
“criação” de ordem teológica ou filosófica. O asceta hesiquiasta, em sua
aspiração à oração pura, combate resolutamente esse “voo” criador, essa
tentação de se colocar do ponto de vista de Deus, pois ele distingue nisso um
processo oposto à ordem real da existência, uma espécie de imitação fraudulenta
do plano divino, na qual o homem se presta a “criar” a Deus à sua imagem e
semelhança.
O que acabamos de
expor suscitará sem dúvida muitas objeções nas quais pouco poderemos nos deter;
nos interessava tão somente descrever um pouco os fundamentos do hesiquiasmo.
Para o asceta, a
consciência de que fomos criados do nada por Deus é um ponto de partida, não
uma possibilidade que se trata de elucidar; o asceta exclui desde o início, por
conseguinte, a ideia “ontologista” de conceber a Deus a partir do nada e de
“refazer a teogonia”, ele se proíbe de querer preceder, pelo intelecto, Àquele
que precede todo intelecto; e, por se abster de “recriar” a criação metafisicamente,
sua oração, orientando-se não do nada ao criado, mas do criado ao Incriado, vai
se despojando mais e mais de qualquer imagem. É certo que a graça divina,
descendo sobre o homem que ora e concedendo a ele degustar da proximidade de
Deus, pode fazê-lo entrever através de uma imagem a Quem está além de toda
imagem; essas imagens – não “inventadas” pelo asceta (ou profeta), mas
“entregues” e “recebidas” desde o alto – consomem suas paixões e o santificam,
mas o asceta jamais deve considerá-las como o coroamento da revelação; isso
equivaleria a transformar a condescendência do Altíssimo num obstáculo
intransponível em relação a um conhecimento mais perfeito de Deus.
Enquanto que o
pensamento criador de Deus se atualiza e objetiva no mundo, o livre movimento
da criatura segue o caminho inverso: renuncia às coisas criadas e busca a Deus
enquanto Deus, seu fim último. O universo não se basta a si mesmo; não é criado
em função de si, mas em função da transfiguração final e da deificação da
criatura pelo conhecimento do Criador[1].
O desejo de
explicar o mistério da existência, incitando a razão a reduzir a Criação a uma
causação necessária, pode obscurecer a superabundante bondade de Deus enquanto
Causa do criado. Acredita-se, por exemplo, ser possível fundamentar a criação a
partir da necessidade de encarnação do Verbo divino (Logos). Ora, a Encarnação do Verbo não era de modo algum
indispensável ao Verbo enquanto Verbo (Filho
in divinis), de modo que a criação não pode ser explicada unicamente como
uma condição preliminar da Encarnação. Criação e Encarnação procedem, uma e
outra, livremente e, portanto, independentemente uma da outra, do mesmo Amor
soberano; vale dizer, de um Amor irredutível ao princípio lógico da razão
suficiente.
A condescendência
do Logos tampouco é um índice do
valor intrínseco do mundo; para entrever o fim e o sentido dessa
condescendência, é preciso descobri-lo no próprio Nome que o Deus Verbo
atribuiu a si mesmo, humildemente encarnado, Jesus Salvador: “E lhe darás o
nome de Jesus, porque é ele quem salvará seu povo dos seus pecados[2]”.
É que Deus não é
um mundo ideal no sentido do “mundo das ideias”; ele é infinitamente mais que o
“substrato inteligente” da existência empírica; a “ideia divina” do mundo não é
coextensiva a Deus, e Deus não necessita atualizar o mundo para “terminar” sua
perfeição. A opinião contrária peca por antropomorfismo. A ideia do homem, com
efeito, orientada para o mundo, busca a realização de suas criações, sua
“encarnação”, sem a qual seu desenvolvimento permaneceria inconcluso. Mas no
mundo divino, a encarnação do Deus Verbo não é o coroamento de um processo
teogônico, vale dizer, o acabamento de um processo que se situaria no seio da
Divindade mesma, sendo, nesse sentido, necessária ao próprio Deus com vistas a
alcançar a plenitude de seu Ser. Não, em Deus a perfeição exclui qualquer luta
e tragédia intradivinas. Deus não está “além do bem e do mal”, porque ele é Luz
na qual não existem trevas.
Esse é,
brevemente resumido, o fundamento dogmático da oração hesiquiasta.
Essa oração não é
nem uma criação artística, nem um trabalho científico, nem uma busca
filosófica, nem uma meditação religiosa, nem uma reflexão teológica. A vida
espiritual autêntica não consiste em satisfazer nossas tendências espirituais dando
rédeas, como se faz nas artes, à sua expansão na ordem emotiva ou visual. Nas
diferentes manifestações da atividade “imaginativa” que enumeramos, existem
aquelas que são nobres em maior ou menor grau; ou seja, podemos classificá-las
hierarquicamente a partir de sua origem e fim; todas elas pertencem, no
entanto, a uma esfera que deve ser superada para que a consciência possa chegar
à oração perfeita, à “teologia” verdadeira, à vida no Espírito de Deus.
Nessa ascensão do
criado ao Incriado, o asceta não nega nem a realidade nem o valor da criação:
ele apenas não se detém aí; evitando imaginá-la ou conceituá-la, ele não a
“absolutiza” jamais. Deus não criou o mundo para viver da vida de sua criatura,
mas para associar o homem à obra divina. Assim, quando o homem não alcança a
deificação – irrealizável sem sua participação – o próprio sentido da criatura
desaparece. Reciprocamente, a alma consciente de sua vocação divina, ao
contemplar a obra do Criador que a deifica, é tomada de uma admiração que lhe
confere um sentido muito realista das coisas criadas; essa admiração é tanto
mais profunda e realista quanto mais se desprende a alma da criatura enquanto
tal, a fim de poder encontrar a Deus numa oração sem mediações.
Essa renúncia,
como se percebe, não se fundamento sobre a realidade do criado. O asceta
hesiquiasta, diferentemente de certos ascetas alheios à nossa tradição, não
considera ilusória – ou como um simples espelhismos – a existência daquilo que
proíbe a si mesmo; sua renúncia tampouco constitui um voo às esferas
inteligíveis e desencarnadas, já que essa atitude desemboca de novo, cedo ou
tarde, no mundo imaginário. Não: essa renúncia provém da atração que o Deus
vivo nos faz experimentar de nosso amor ao Criador, um amor que brota de nossa
vocação para viver com Aquele que é Fim e Valor em si, e do qual somos imagem.
O fiel humilde e
simples se liberta do poder da imaginação mediante uma aspiração total a viver
segundo a vontade de Deus. Isso é a um tempo tão simples e “oculto” aos sábios
e inteligentes, que resulta impossível comunicá-lo por palavras.
A “renúncia” ao
mundo se situa na busca da vontade divina. A alma quer viver com Deus, segundo
Deus, e não “ao seu bel-prazer”, e isso não é possível sem uma abdicação
radical de sua vontade própria e de suas faculdades imaginativas que, incapazes
de produzir uma existência total a partir do nada, constituem-se mais como
“trevas exteriores”.
O mundo da
vontade e da imaginação é um mundo de “espelhismos”, comum aos Anjos e aos
demônios; a imaginação enquanto tal pode se converter em um veículo da energia
demoníaca.
As imagens
demoníacas, assim como as imagens concebidas pelo homem, podem adquirir um
valor considerável; não que elas sejam reais no sentido radical do termo, como
é real o poder divino que cria a partir do nada, mas elas o são na medida em
que o homem se rende diante delas, e somente quando o homem se deixa vencer é
que sua vontade se conforma com essas imagens e elas o escravizam realmente.
Mas o arrependimento liberta do poder da paizão e da imaginação, e o cristão,
livre então graças ao Senhor, se ri do poder das imagens.
O poder do mal
cósmico sobre o homem é tão forte que nenhum filho de Adão é capaz de vencê-lo
sem Cristo, sem Jesus Salvador, na acepção própria e única desse Nome. Essa é a
fé do asceta ortodoxo; assim é que sua oração, no próprio seio do silêncio do
intelecto, consiste numa invocação ininterrupta do Nome de Jesus Cristo: essa é
a “Oração de Jesus”.
***
O Starets
Silouane reduzia as diversas manifestações da imaginação às quatro formas
indicadas anteriormente, o que lhe permitia caracterizar a própria essência do
combate que tratamos aqui.
A primeira forma
se refere de modo geral à luta contra qualquer paixão.
A segunda
caracteriza os que praticam o primeiro modo de oração, ou “meditação visual”;
aqui o homem se esforça por evocar em seu interior imagens visuais da vida de
Cristo e dos Santos. São preferentemente os neófitos ou os ascetas pouco
experientes que recorrem a essa “visualização”. Nessa oração imaginativa o
intelecto não está presente no coração; em lugar de avançar para uma vigilância
interior, o que ele faz é deter-se no aspecto visual das imagens consideradas
como divinas; daí resulta um estado de excitação psíquica; se a concentração é
muito intensa, esse estado pode chegar a traduzir-se num êxtase patológico. As
próprias “realizações” são celebradas, surge um apego a esses estados, que são
cultivados e considerados “espirituais”, carismáticos (frutos da graça) e tão
sublimes que a pessoa se crê santa e digna de contemplar os mistérios divinos.
Na realidade, porém, esses estados produzem alucinações e, quando não se
sucumbe a uma doença psíquica evidente, no mínimo se permanece na “ilusão”, e a
vida transcorre assim num mundo fantasmagórico.
As formas terceira
e quarta da imaginação se inserem na origem de toda cultura racionalista; é
particularmente difícil a um homem instruído renunciar a elas, porque ele vê na
cultura sua riqueza espiritual, cuja renúncia é muitas vezes mais dolorosa do
que aquela dos bens materiais. Pudemos observar a esse propósito um fenômeno
digno de ser notado: é muito frequente vermos ascetas de origem simples e
incultos que se elevam a um estado de pureza superior à que alcançam os
intelectuais, predispostos a imobilizarem-se no segundo modo de oração.
As pessoas
profundamente religiosas e de tendência ascética distinguem rapidamente na
terceira forma de imaginação uma orientação para a terra que simplifica sua
luta contra ela, por lhes ficar evidenciada sua incompatibilidade com a oração.
Isso já não
acontece com a quarta forma de imaginação, com frequência tão sutil que parece
ser a própria vida de Deus. Sua importância excepcional na ascese nos obriga a
nos determos aqui nela.
***
A imaginação
sonhadora predomina naqueles que oram conforme o primeiro modo de oração, a
tentação de dissipar os mistérios por meio da inteligência ameaça aos que oram
conforme o segundo modo. A vida se concentra no cérebro, dissociado do coração,
o intelecto tende constantemente, em sua aspiração a tudo compreender e a tudo
englobar, a se lançar ao exterior. Quando os que oram assim estão providos de
alguma experiência espiritual autêntica, mas insuficiente, tentam completar sua
lacunas por meio de sua “própria inteligência”; seu esforço no sentido de
esclarecer com o entendimento os mistérios do ser divino – em lugar de deixar
que a graça ilumine sua inteligência – os conduz inevitavelmente ao erro, que
consiste em conceber segundo o intelecto a Aquele a cuja imagem o intelecto foi
criado.
“Conceituar” a
Deus é inverter a verdadeira hierarquia da existência, subordinando o Incriado
ao criado, o Modelo à imagem; é introduzir a imagem no Modelo e assim, mais
cedo ou mais tarde, substituir o Modelo, reduzindo o ser divino às dimensões
daquilo que se parece com ele. A esfera “inteligível” na qual se movem concede
a essas pessoas uma superioridade aparente, que excita perigosamente sua
confiança em si mesmas.
O resultado
inevitável do segundo modo de oração é o intelectualismo.
O teólogo
intelectualista atua como um arquiteto que projeta a edificação de um palácio
ou de um templo: ele utiliza noções empíricas e metafísicas como materiais de
construção e se preocupa menos com a adequação de seu edifício ideal à ordem
real das coisas do que com sua grandeza e harmonia lógicas.
É surpreendente
que muitos homens extraordinários não tenham podido resistir a uma tendência
que no fundo é tão ingênua, e cuja fonte secreta é o orgulho.
Acontece com
frequência um apego aos frutos da inteligência que é parecido com o de uma mãe
para com seu filho. O intelectual ama sua criação como a si mesmo, se
identifica com ela, confiando-se em seu recinto. A intervenção humana nesses
casos não é de nenhuma valia: se o homem não renuncia, por ele mesmo, a essa
pseudo-riqueza, ele não alcançará nem a oração pura, nem a contemplação
verdadeira.
A vitória sobre o
pensamento discursivo é uma prova de sensibilidade espiritual, mas não atesta
por si só uma “fé verdadeira”. Para além do domínio racional, vale dizer,
mental, situa-se com efeito o das intuições intelectuais; mas esse domínio, por
mais que seja supra mental, não consegue superar o plano da existência criada.
A compreensão da
relatividade das leis da razão humana e a impossibilidade de encerrar a
existência nos círculos afiados das conclusões lógicas abre certamente
horizontes contemplativos, mas o objeto dessa contemplação intelectual ainda é
a beleza do criado à imagem de Deus. Quem penetra assim pela primeira vez no
domínio do “silêncio” do intelecto experimenta um certo pavor místico e,
sentindo-se “transportado” para além da existência criada, toma facilmente esse
“êxtase intelectual” por uma experiência de comunhão com o Incriado, quando, na
realidade, permanece ainda dentro dos limites da natureza criada. Em casos assim,
a consciência supera as fronteiras do tempo e do espaço e consegue contemplar
de longe a sabedoria eterna. Essa experiência dos confins do intelecto, seja lá
qual for a interpretação dogmática que lhe seja dada, tem um caráter
“panteísta”.
Quando o homem
chega a esses “limites da luz e das trevas[3]”,
contempla na realidade a beleza e a profundidade seu próprio intelecto, que
muitos filósofos identificaram com o ser divino. É com certeza uma luz que eles
contemplam, mas não a “verdadeira luz” na qual “não há trevas”; por ser
natural, a luz do intelecto continua sendo “treva” em relação à luz Incriada; é
a noite nua e abstrata na qual Deus não está; a ela se podem aplicar as
palavras do Senhor: “Cuide para que a luz que está em ti não seja treva[4]”.
Não foi a queda de Lúcifer, primeira “catástrofe” cósmica e supra histórica,
uma consequência precisamente da contemplação amorosa de sua beleza angélica,
arquétipo cósmico de toda autodeificação?
Quem já visitou
esses lugares do espírito perguntará talvez com espanto: mas onde se encontra a
garantia da união verdadeira com Deus? Como excluir que não se trata de uma
experiência situada no plano da imaginação, da filosofia ou do panteísmo?
O santo Starets
afirmava categoricamente que o único critério, no domínio do controlável, é o
amor aos inimigos. Ele dizia: “O Senhor é humilde e doce. Ele ama suas
criaturas; onde está o Espírito do Senhor, ali reina infalivelmente o humilde
amor aos inimigos e a oração pelo mundo. Se você não possui esse amor, peça-o,
e o Senhor que disse: “Pedi se vos será dado, buscai e encontrareis[5]”,
o outorgará a você”.
Que a ninguém
ocorra minimizar esse indício como algo “psicológico”, pois se trata de um
estado psíquico que deriva diretamente da ação divina. Deus Salvador salva o
homem por inteiro. O critério ao qual nos referimos indica a santificação
realizada por Deus, não só do intelecto espiritual, como também, e
simultaneamente, da alma psíquica e, progressivamente, do corpo.
***
Não fizemos nada
além de aflorar os problemas seculares mais complexos da existência espiritual
do homem. Estamos longe de resolvê-los dialeticamente. Se fosse esse o nosso
objetivo, seria preciso estudar numerosos exemplos de contemplativos do Oriente
e do Ocidente, mas deixamos essa tarefa a quem se sentir chamado a ela.
Pessoalmente, acreditamos que seja impossível esgotar as diferentes formas de
oração, e estamos persuadidos de que o único caminho que leva ao conhecimento
da verdade é a fé e a experiência viva, sendo esse o caminho do própria existência.
Não obstante, é
importante esclarecer, a esse propósito, que a experiência mencionada não
depende apenas do querer do ser humano: ela chega a este desde o alto como dom
gratuito do amor de Deus, enquanto que as experiências de ordem puramente
intelectual dependem das capacidades naturais do ser humano e de sua vontade de
realizá-las. A experiência cristã da comunhão sobrenatural com Deus depende
essencialmente do Querer de Outro e se diferencia dos caminhos intelectuais na
medida em que é vivida sempre como graça.
A vida cristã
consiste no acordo entre duas vontades: a de Deis, incriada, e a do homem,
criada. Deus pode se mostrar ao homem em qualquer de seus caminhos, a todo
momento, e em todos os lugares espirituais e espaciais; mas, por estar acima de
qualquer necessidade, Deus não violenta a liberdade de sua própria imagem. Deus
não a impede nem de dobrar-se sobre si mesma nem de se identificar com o
princípio divino. Pretendendo assim ter alcançado o cume da contemplação, o
homem fecha para si próprio a ação da graça divina.
A comunhão de
Deus se realiza por intermédio da oração, e é de oração que estamos falando. Se,
apesar de tudo, fizemos uma digressão pelo domínio da dialética, não foi porque
buscamos convencer a alguém, mas porque quisemos mostrar que também esse território
da condição humana está incluído dentre os caminhos da oração. Qualquer
tentativa de explicar de forma dialética a experiência espiritual se presta a
encontrar as objeções mais variadas. Essa possibilidade provém do dato de que,
na esfera ideal de sua visão de mundo, cada um de nós é livre para fixar
indistintamente sua própria hierarquia de valores.
Seguindo em nosso
tema da oração, tentaremos descrever esquematicamente um dos combates mais
dolorosos que o asceta ortodoxo encontra em seu caminho: a passagem do segundo
para o terceiro modo de oração, ou seja, a luta contra a imaginação
intelectual.
***
Observando a si
próprio com atenção, o homem descobre que seu pensamento racional possui uma
propriedade psicológica que pode ser definida como a certeza imanente de nosso
pensamento, ou, em outros termos, como uma evidência subjetiva da correção de
nossas deduções lógicas. Existe algo premente nas demonstrações da razão, em
suas provas. É preciso uma grande cultura para descobrir essa estranha sedução;
quanto a libertar-se de seu poder, isso requer uma profunda experiência
espiritual.
É possível rastrear
esse engano mediante um exame atento dos princípios que governam o mecanismo de
nosso pensamento: o princípio da identidade e o princípio da razão suficiente.
O princípio de
identidade (da não contradição) representa o momento estático do nosso
pensamento, seu ponto imóvel de apoio, carente de vida devido a essa
imobilidade.
O princípio da
razão suficiente (da causalidade necessária) representa o momento dinâmico de
nosso pensamento: a experiência secular demonstra de sobra sua extrema
debilidade. O juízo fundamentado sobre a razão suficiente é sempre subjetivo: o
que parece suficiente a uma pessoa pode não sê-lo para outra. Assim, observando
com maior atenção, nos damos conta de que na realidade a razão nunca é
perfeitamente suficiente.
O asceta
ortodoxo, por sua vez, descobre a relatividade de nossa inteligência por outros
meios, da mesma maneira como resolve de modo distinto todos os problemas da
existência: a saber, por meio da fé e da oração. Não confia em si mesmo, mas
crê em um Outro que não é ele, em Deus todo-poderoso. Ele já não aceita medida
infalível ou cânone de verdade que não os mandamentos de Cristo, cuja peculiaridade
consiste em ser a um tempo critério de verdade e fonte de vida divina. Essa fé
o leva a submeter todos os seus juízos ao juízo de Deus, o único equitativo e “último”.
Qualquer ato, qualquer palavra, qualquer pensamento ou sentimento inexpressado,
por ínfimo que sejam, “comparece” diante da palavra de Cristo.
Quando a graça de
Cristo nos cativa e se converte numa força de Deus atuante, os impulsos de
nossa alma se aproximam mais, obviamente, da perfeição dos mandamentos. Mas quando
sobrevêm o alheamento e o abandono de Deus, e a luz divina é substituída pelas
espessas trevas da rebelião das paixões, tudo muda e dá lugar a uma luta
interior.
A luta interior é
muito variada: a mais profunda e dolorosa é a luta contra o orgulho. O orgulho
é inimigo da lei divina. Ao falsear a ordem divina da existência, não traz por
toda parte nada além de desagregação e morte. O orgulho se manifesta também na
carne, mas o plano intelectual e espiritual é o seu lugar preferido. Ele coloca
em mira desespiritualizar o intelecto, que é o órgão por excelência de nossos
juízos, e o incita a descartar como contraditório o mandamento de Cristo: “Não
julgueis para não serdes julgados[6]”.
Ele nos insinua que nossa faculdade de julgar, sendo um privilégio distintivo
do homem, não está chamada a morrer junto com as demais faculdades psíquicas ou
corporais, mas a vencer e dominar o mundo.
O orgulho
intelectual pode chegar a afirmações como essa, que não inventamos, onde fica
manifesta a tristeza do despeito: “Como posso aceitar, se Deus existe, não
sê-lo eu?”. Ou essa: “Já escutei de tudo e não encontrei nada maior do que eu;
portanto, eu sou Deus”.
É próprio do
orgulho intelectual, com efeito, cegar a inteligência a respeito de tudo o que
a ultrapassa, o q eu a leva a confundir-se com o princípio divino. Esse é o limite
extremo da “imaginação intelectual”, e, ao mesmo tempo, a queda nas travas mais
profundas.
***
Há quem aceite
essas pretensões, que as aceitem como verdadeiras e que se lancem em busca
dessa perspectiva espiritual; o asceta ortodoxo, por sua vez, trava uma luta
contra elas, esse combate revela a intervenção de forças estranhas; ele pode
alcançar uma intensidade extrema e chega a ser trágico. A saída vitoriosa
depende da fé do asceta, “pois aquele que nasceu de Deus triunfa sobre o mundo,
e a vitória que triunfa sobre o mundo é nossa fé[7]”.
Para vencer o
inimigo, o monge evita instalar-se num interior confortável; no silêncio da
noite, longe do mundo, nem visto nem escutado por ninguém, ele se prosterna
diante de Deus derramando muitas lágrimas e diz, como o publicano: “Deus, tem
piedade de mim[8]”,
ou como São Pedro: “Senhor, salva-me[9]”.
Ele percebe no
espírito o abismo das “trevas exteriores”, e por isso sua oração é ardente. A palavra
é impotente para descrever o mistério dessa visão e a intensidade dessa luta
que pode durar anos, na medida em que a luz divina não chega para revelar a
iniquidade de nossos juízos e introduzir a alma na imensidão da vida
verdadeira.
***
Conversamos
muitas vezes com o Starets a respeito dessas questões. Ele dizia que a causa da
luta não estava tanto na razão enquanto tal, quanto no orgulho de nosso
espírito, que dirige o intelecto contra Deus. O orgulho alimenta a imaginação,
a humildade a faz cessar. O orgulho se incha pata criar seu próprio mundo, a
humildade aceita a vida que provém de Deus.
Largos anos de
duro combate haviam dado ao Starets a força para guardar constantemente sua
inteligência em Deus e de fechar o caminho a qualquer pensamento. Havia passado
por dolorosos sofrimentos, mas quando o conhecemos reinava uma grande paz em
sua alma. Ele evocava o passado em termos muito simples:
“O intelecto luta
contra o intelecto: o nosso contra o do Inimigo. O orgulho, unido à imaginação,
fez com que caísse o Inimigo, e este quer nos arrastar na mesma queda. Um valor
vigilante é necessário nesse combate. O Senhor permite que seu servidor lute, e
o segue com seu olhar, assim como contemplava a Antônio o Grande lutando contra
os demônios. Vocês se recordam de que, em sua biografia, conta-se que Antônio
havia estabelecido sua morada em um sepulcro onde os demônios o surraram até o
ponto de perder a consciência; o amigo que o servia transportou-o até a igreja
do povoado; chegada a noite, Antônio recuperou-se e pediu ao amigo que o
levasse de novo ao sepulcro. Enfermo e sem poder permanecer de pé, orava deitado.
Depois da oração, os demônios retomaram o ataque e quando, torturado por esses
suplícios, levantou os olhos e viu a luz, nela reconheceu a chegada o Senhor.
Então exclamou: ‘Onde estavas, Jesus misericordioso, quando os inimigos me
atormentavam?’. Cristo respondeu: ‘eu estava ali, Antônio, e observava seu
valor’. Não devemos nunca esquecer que Deus vê nossa luta contra o Inimigo e,
por conseguinte, não há porque assustar-se, ainda que o inferno inteiro nos
assalte. Jamais devemos perder o ânimo”.
“Os Santos
aprenderam a lutar contra o Inimigo; conhecendo sua maneira fraudulenta de
atacar através dos pensamentos, eles os rechaçaram durante toda a vida. O pensamento
não parece mau de início, mas pouco a pouco consegue separar a inteligência do
coração; é, pois, indispensável rechaçar a todos os pensamentos, inclusive os
que parecem ser bons, e concentrar o intelecto purificado somente em Deus. Se sobrevém
um pensamento, não convém perturbar-se; os inimigos se comprazem com nossa
confusão. Orem, e o pensamento se afastará por si próprio. Esse é o caminho dos
Santos”.
Aos olhos do Starets
o orgulho se caracterizava por pretensões desmesuradas. Em seus escritos
encontramos a respeito a seguinte parábola:
“Um dia, um
caçador, que gostava de percorrer os campos e bosques em busca de caça, escalou
uma alta montanha para despistar um animal; cansado, sentou-se sobre uma rocha.
Divisando no céu um bando de pássaros que voavam de cume em cume, pôs-se a
falar consigo mesmo: ‘Por que Deus não deu asas ao home para que ele possa
voar?’. Naquele momento passou um humilde eremita que, adivinhando os
pensamentos do caçador, disse-lhe: ‘Pensas que Deus não te deu asas; mas se as
tivesse dado, não ficarias satisfeito, e diria: ‘Minhas asas são fracas, não
posso subir ao céu e saber o que contém em seu interior’. Se recebesses asas
capazes de transportar-te aos céus, ainda assim te queixarias e dirias: ‘Não
compreendo o que acontece aqui’. E se estivesses dotado de inteligência capaz
de saber o que acontece ali, tampouco te contentarias e dirias: ‘Por que não
sou um anjo?’. Transformado em Querubim, dirias: ‘Por que Deus não me confiou o
governo do céu?’. Feito governador do céu, tua impertinência, seguindo na mesma
linha, não cessaria de exigir mais. De onde vem esse não contentar-te com o que
Deus te deu? Sê humilde, e viverás com Deus’. O caçador compreendeu que o
eremita tinha razão e deu graças a Deus por lhe ter enviado aquele monge que o
havia orientado mostrando-lhe o caminho da humildade”.
O Starets
lembrava com insistência que os Santos Padres aspiravam a purificar o espírito
de qualquer imagem por meio do caminho da humildade.
“Os Santos
diziam: ‘Eu sou digno do inferno’. E isso, quando realizavam milagres! Eles
sabiam por experiência que se a alma, esperando a misericórdia divina, condena
a si própria ao inferno, a força de Deus a visita: o Espírito lhe testemunha sua
salvação. Condenada, a alma se humilha; humilhada, se liberta de qualquer
pensamento, e se apresenta com o intelecto purificado diante de Deus. Essa é a
sabedoria espiritual”.
***
O homem perfura a
terra com o aço para extrair petróleo e consegue seu objetivo. O homem sonda os
céus com sua inteligência para roubar o fogo divino, mas Deus o repudia por
causa de seu orgulho.
As contemplações
divinas são concedidas ao homem, não quando se esforça por buscá-las por si mesmo,
mas quando a alma desce ao inferno da penitência e se dá conta de que está
abaixo de toda criatura. As contemplações que resultam de uma tensão imposta
pela inteligência não são verdadeiras, mas aparentes. Quando essas pretensas
contemplações são tomadas como autênticas, origina-se na alma um estado que
torna difícil mesmo a possível intervenção da graça e, por conseguinte, a
verdadeira contemplação.
A contemplação
concedida pela graça revela realidades que superam em riqueza a imaginação mais
fecunda. Como disse São Paulo: “São coisas que o olho não viu, que o ouvido não
escutou e que não chegaram ao coração do homem[10]”.
Quando, semelhante aos Apóstolos, o homem é elevado pela graça à visão da luz
eterna, ele já não se entrega a seguir à teologia especulativa, mas “narra”
aquilo que viu e ouviu. A teologia autêntica não é conjectura, postulado,
dedução, nem o resultado de qualquer investigação, mas a narrativa daquela
realidade à qual o homem teve acesso sob a ação do Espírito Santo. A palavram
quanto mais brota de sua fonte, tanto mais dificuldade encontra em apresentar
noções e expressões aptas para comunicar o que está além de todo conceito e
imagem terrestre. Não obstante, apesar dessas dificuldades e de sua tradução
diversa inevitável em termos humanos, aquele que conheceu saberá reconhecer e
distinguir, seja qual for o revestimento verbal, entre uma verdadeira
contemplação e uma visão, talvez genial, mas proveniente da pura inteligência.
[1] João
17: 3.
[2]
Mateus 1: 21.
[3] Jó
25: 11.
[4]
Lucas 11: 35.
[5]
Mateus 7: 7.
[6]
Mateus 7: 1.
[7] I
João 5: 4.
[8]
Lucas 16: 13.
[9]
Mateus 14: 30.
[10] I
Coríntios 2: 9.
Nenhum comentário:
Postar um comentário