quarta-feira, 14 de março de 2018

Arquimandrita Sofrônio - Excertos do Ensinamento de São Silouane o Athonita: Das Diversas Formas da Imaginação e do Combate Ascético Contra Elas






O capítulo precedente (*) sobre o “santo hesiquiasmo”, tema que o Starets Silouane tinha em alta estima, nos leva a examinar a necessidade da luta contra a imaginação. Esse árduo aspecto da vida espiritual é de tal complexidade que nosso tratamento não poderá ser exaustivo. Sendo nosso objetivo a exposição de uma experiência concreta, cremos ser nosso dever nos atermos as perspectivas que prevaleceram até hoje entre os ascetas do Monte Athos, das quais o Starets Silouane compartilhava. Deixamos intencionalmente de lado as teorias da psicologia moderna e nos absteremos de criticá-las ou de confrontá-las com o ponto de vista da ascese ortodoxa; advertimos apenas que aquelas não concordam com esta, pois derivam de concepções cosmológicas e antropológicas radicalmente distintas.

O Starets escreve: “Meus irmãos, esqueçamo-nos da terra e de tudo o que ela traz, pois nos distrai da contemplação da Santa trindade, inacessível ao nosso espírito, mas que os Santos contemplam no céu pelo Espírito Santo. Quanto a nós, perseveremos na oração sem a menor imagem”.

(*) Ver o capítulo: "Da Oração Pura", postagem de 3 de Fevereiro de 2018. 

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 A faculdade imaginativa é muito variada em suas manifestações. O asceta luta contra a imaginação associada às paixões carnais. Sabe que a cada paixão corresponde uma imagem, pertencente ao mundo criado, já que qualquer energia puramente cósmica – e, portanto, limitada –inevitavelmente precisa se revestir de uma forma, de uma imagem, por razões já expostas, a energia de um desejo, despertado por imagens passionais, não adquire força suficiente para desencadear o pecado, a não ser que a imagem, recebida interiormente, atraia para si a atenção do intelecto. Se, ao contrário, o entendimento declina da oferta da imagem, a paixão não consegue se desenvolver e, cedo ou tarde, acaba por se apagar. Assim, quando sobrevém o desejo carnal, por mais que seja fisiologicamente normal, o asceta guarda seu intelecto ao abrigo de qualquer imagem exterior proposta pela paixão; a paixão, incapaz de desenvolver sua ação se a imagem não for acolhida pelo intelecto, não poderá senão morrer. Descobrimos aqui um novo aspecto por meio do qual o intelecto, faculdade eminentemente ativa, se opõe às flutuações mentais da razão discursiva: a atenção. Essa “salvaguarda” do intelecto em relação às imagens passionais explica porque é possível, mesmo a um home robusto, conservar a castidade durante toda sua vida; isso é garantido por uma experiência ascética milenar confirmada pelo exemplo do Starets. Se, em câmbio, o intelecto acolhe com deleite a imagem passional, a energia desta poderá submeter a uma sujeição tirânica mesmo um corpo esgotado, enfermo e impotente.

O ódio, para acrescentarmos outro caso, se reveste igualmente de uma imagem sui generis, por exemplo de uma forma mais ou menos clara de vingança. Desde que o intelecto evite se somar a ela, a paixão desaparece por si mesma; mas se ele se une a essa imagem, a violência da paixão crescerá proporcionalmente a essa união, e sua violência poderá chegar mesmo à obsessão, e até à possessão.

Outra forma de imaginação com a qual o asceta está habitualmente em conflito é o sonho. O homem que se afasta do curso normal das coisas não faz mais do que se estabelecer num mundo imaginário, onde a realidade concreta não é superada, mas deformada. Com efeito, como a imaginação é incapaz de criar algo “do nada”, vale dizer, do que nem existe nem preexiste, seus frutos não podem ser alheios ao mundo que nos rodeia e cuja realidade nos é “dada”. Em outras palavras, seus ingredientes serão inevitavelmente emprestados ao mundo concreto; isso acontece, ademais, nos sonhos, e por isso o mundo onírico é relativamente acessível. Um pobre homem que se imagina rei, profeta ou grande sábio, participa de certo modo dessas realidades; e a história menciona exemplos de pessoas que, ocupando o último escalão da hierarquia social, se convertem em imperadores. Mas não é isso que costuma acontecer aos “sonhadores”.

Pensar na solução de um problema técnico, por exemplo, e tentar a realização prática por meio de tal ou qual ideia também coloca em jogo a imaginação. Esse tipo de atividade intelectual apoiada na imaginação tem um papel importante na cultura e favorece o desenvolvimento da civilização humana. Mas o asceta, em sua aspiração à oração pura, tende a se privar de qualquer sucesso, material ou espiritual, para que a imaginação, inclusive em suas formas superiores, não o impeça de “oferecer a Deus seu primeiro pensamento e sua primeira energia”, ou seja: concentrar-se inteiramente em Deus.

Mencionaremos por último outra atividade interior vinculada com a imaginação, a saber, as tentativas de penetrar intelectualmente o mistério da existência e de chegar ao conhecimento do ser divino. As tentativas desse tipo comportam inevitavelmente uma atividade da imaginação; isso é palpável na ilusão de levar a cabo uma “criação” de ordem teológica ou filosófica. O asceta hesiquiasta, em sua aspiração à oração pura, combate resolutamente esse “voo” criador, essa tentação de se colocar do ponto de vista de Deus, pois ele distingue nisso um processo oposto à ordem real da existência, uma espécie de imitação fraudulenta do plano divino, na qual o homem se presta a “criar” a Deus à sua imagem e semelhança.

O que acabamos de expor suscitará sem dúvida muitas objeções nas quais pouco poderemos nos deter; nos interessava tão somente descrever um pouco os fundamentos do hesiquiasmo.

Para o asceta, a consciência de que fomos criados do nada por Deus é um ponto de partida, não uma possibilidade que se trata de elucidar; o asceta exclui desde o início, por conseguinte, a ideia “ontologista” de conceber a Deus a partir do nada e de “refazer a teogonia”, ele se proíbe de querer preceder, pelo intelecto, Àquele que precede todo intelecto; e, por se abster de “recriar” a criação metafisicamente, sua oração, orientando-se não do nada ao criado, mas do criado ao Incriado, vai se despojando mais e mais de qualquer imagem. É certo que a graça divina, descendo sobre o homem que ora e concedendo a ele degustar da proximidade de Deus, pode fazê-lo entrever através de uma imagem a Quem está além de toda imagem; essas imagens – não “inventadas” pelo asceta (ou profeta), mas “entregues” e “recebidas” desde o alto – consomem suas paixões e o santificam, mas o asceta jamais deve considerá-las como o coroamento da revelação; isso equivaleria a transformar a condescendência do Altíssimo num obstáculo intransponível em relação a um conhecimento mais perfeito de Deus.

Enquanto que o pensamento criador de Deus se atualiza e objetiva no mundo, o livre movimento da criatura segue o caminho inverso: renuncia às coisas criadas e busca a Deus enquanto Deus, seu fim último. O universo não se basta a si mesmo; não é criado em função de si, mas em função da transfiguração final e da deificação da criatura pelo conhecimento do Criador[1].

O desejo de explicar o mistério da existência, incitando a razão a reduzir a Criação a uma causação necessária, pode obscurecer a superabundante bondade de Deus enquanto Causa do criado. Acredita-se, por exemplo, ser possível fundamentar a criação a partir da necessidade de encarnação do Verbo divino (Logos). Ora, a Encarnação do Verbo não era de modo algum indispensável ao Verbo enquanto Verbo (Filho in divinis), de modo que a criação não pode ser explicada unicamente como uma condição preliminar da Encarnação. Criação e Encarnação procedem, uma e outra, livremente e, portanto, independentemente uma da outra, do mesmo Amor soberano; vale dizer, de um Amor irredutível ao princípio lógico da razão suficiente.

A condescendência do Logos tampouco é um índice do valor intrínseco do mundo; para entrever o fim e o sentido dessa condescendência, é preciso descobri-lo no próprio Nome que o Deus Verbo atribuiu a si mesmo, humildemente encarnado, Jesus Salvador: “E lhe darás o nome de Jesus, porque é ele quem salvará seu povo dos seus pecados[2]”.

É que Deus não é um mundo ideal no sentido do “mundo das ideias”; ele é infinitamente mais que o “substrato inteligente” da existência empírica; a “ideia divina” do mundo não é coextensiva a Deus, e Deus não necessita atualizar o mundo para “terminar” sua perfeição. A opinião contrária peca por antropomorfismo. A ideia do homem, com efeito, orientada para o mundo, busca a realização de suas criações, sua “encarnação”, sem a qual seu desenvolvimento permaneceria inconcluso. Mas no mundo divino, a encarnação do Deus Verbo não é o coroamento de um processo teogônico, vale dizer, o acabamento de um processo que se situaria no seio da Divindade mesma, sendo, nesse sentido, necessária ao próprio Deus com vistas a alcançar a plenitude de seu Ser. Não, em Deus a perfeição exclui qualquer luta e tragédia intradivinas. Deus não está “além do bem e do mal”, porque ele é Luz na qual não existem trevas.

Esse é, brevemente resumido, o fundamento dogmático da oração hesiquiasta.

Essa oração não é nem uma criação artística, nem um trabalho científico, nem uma busca filosófica, nem uma meditação religiosa, nem uma reflexão teológica. A vida espiritual autêntica não consiste em satisfazer nossas tendências espirituais dando rédeas, como se faz nas artes, à sua expansão na ordem emotiva ou visual. Nas diferentes manifestações da atividade “imaginativa” que enumeramos, existem aquelas que são nobres em maior ou menor grau; ou seja, podemos classificá-las hierarquicamente a partir de sua origem e fim; todas elas pertencem, no entanto, a uma esfera que deve ser superada para que a consciência possa chegar à oração perfeita, à “teologia” verdadeira, à vida no Espírito de Deus.

Nessa ascensão do criado ao Incriado, o asceta não nega nem a realidade nem o valor da criação: ele apenas não se detém aí; evitando imaginá-la ou conceituá-la, ele não a “absolutiza” jamais. Deus não criou o mundo para viver da vida de sua criatura, mas para associar o homem à obra divina. Assim, quando o homem não alcança a deificação – irrealizável sem sua participação – o próprio sentido da criatura desaparece. Reciprocamente, a alma consciente de sua vocação divina, ao contemplar a obra do Criador que a deifica, é tomada de uma admiração que lhe confere um sentido muito realista das coisas criadas; essa admiração é tanto mais profunda e realista quanto mais se desprende a alma da criatura enquanto tal, a fim de poder encontrar a Deus numa oração sem mediações.

Essa renúncia, como se percebe, não se fundamento sobre a realidade do criado. O asceta hesiquiasta, diferentemente de certos ascetas alheios à nossa tradição, não considera ilusória – ou como um simples espelhismos – a existência daquilo que proíbe a si mesmo; sua renúncia tampouco constitui um voo às esferas inteligíveis e desencarnadas, já que essa atitude desemboca de novo, cedo ou tarde, no mundo imaginário. Não: essa renúncia provém da atração que o Deus vivo nos faz experimentar de nosso amor ao Criador, um amor que brota de nossa vocação para viver com Aquele que é Fim e Valor em si, e do qual somos imagem.

O fiel humilde e simples se liberta do poder da imaginação mediante uma aspiração total a viver segundo a vontade de Deus. Isso é a um tempo tão simples e “oculto” aos sábios e inteligentes, que resulta impossível comunicá-lo por palavras.

A “renúncia” ao mundo se situa na busca da vontade divina. A alma quer viver com Deus, segundo Deus, e não “ao seu bel-prazer”, e isso não é possível sem uma abdicação radical de sua vontade própria e de suas faculdades imaginativas que, incapazes de produzir uma existência total a partir do nada, constituem-se mais como “trevas exteriores”.

O mundo da vontade e da imaginação é um mundo de “espelhismos”, comum aos Anjos e aos demônios; a imaginação enquanto tal pode se converter em um veículo da energia demoníaca.

As imagens demoníacas, assim como as imagens concebidas pelo homem, podem adquirir um valor considerável; não que elas sejam reais no sentido radical do termo, como é real o poder divino que cria a partir do nada, mas elas o são na medida em que o homem se rende diante delas, e somente quando o homem se deixa vencer é que sua vontade se conforma com essas imagens e elas o escravizam realmente. Mas o arrependimento liberta do poder da paizão e da imaginação, e o cristão, livre então graças ao Senhor, se ri do poder das imagens.

O poder do mal cósmico sobre o homem é tão forte que nenhum filho de Adão é capaz de vencê-lo sem Cristo, sem Jesus Salvador, na acepção própria e única desse Nome. Essa é a fé do asceta ortodoxo; assim é que sua oração, no próprio seio do silêncio do intelecto, consiste numa invocação ininterrupta do Nome de Jesus Cristo: essa é a “Oração de Jesus”.

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O Starets Silouane reduzia as diversas manifestações da imaginação às quatro formas indicadas anteriormente, o que lhe permitia caracterizar a própria essência do combate que tratamos aqui.

A primeira forma se refere de modo geral à luta contra qualquer paixão.

A segunda caracteriza os que praticam o primeiro modo de oração, ou “meditação visual”; aqui o homem se esforça por evocar em seu interior imagens visuais da vida de Cristo e dos Santos. São preferentemente os neófitos ou os ascetas pouco experientes que recorrem a essa “visualização”. Nessa oração imaginativa o intelecto não está presente no coração; em lugar de avançar para uma vigilância interior, o que ele faz é deter-se no aspecto visual das imagens consideradas como divinas; daí resulta um estado de excitação psíquica; se a concentração é muito intensa, esse estado pode chegar a traduzir-se num êxtase patológico. As próprias “realizações” são celebradas, surge um apego a esses estados, que são cultivados e considerados “espirituais”, carismáticos (frutos da graça) e tão sublimes que a pessoa se crê santa e digna de contemplar os mistérios divinos. Na realidade, porém, esses estados produzem alucinações e, quando não se sucumbe a uma doença psíquica evidente, no mínimo se permanece na “ilusão”, e a vida transcorre assim num mundo fantasmagórico.

As formas terceira e quarta da imaginação se inserem na origem de toda cultura racionalista; é particularmente difícil a um homem instruído renunciar a elas, porque ele vê na cultura sua riqueza espiritual, cuja renúncia é muitas vezes mais dolorosa do que aquela dos bens materiais. Pudemos observar a esse propósito um fenômeno digno de ser notado: é muito frequente vermos ascetas de origem simples e incultos que se elevam a um estado de pureza superior à que alcançam os intelectuais, predispostos a imobilizarem-se no segundo modo de oração.

As pessoas profundamente religiosas e de tendência ascética distinguem rapidamente na terceira forma de imaginação uma orientação para a terra que simplifica sua luta contra ela, por lhes ficar evidenciada sua incompatibilidade com a oração.

Isso já não acontece com a quarta forma de imaginação, com frequência tão sutil que parece ser a própria vida de Deus. Sua importância excepcional na ascese nos obriga a nos determos aqui nela.

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A imaginação sonhadora predomina naqueles que oram conforme o primeiro modo de oração, a tentação de dissipar os mistérios por meio da inteligência ameaça aos que oram conforme o segundo modo. A vida se concentra no cérebro, dissociado do coração, o intelecto tende constantemente, em sua aspiração a tudo compreender e a tudo englobar, a se lançar ao exterior. Quando os que oram assim estão providos de alguma experiência espiritual autêntica, mas insuficiente, tentam completar sua lacunas por meio de sua “própria inteligência”; seu esforço no sentido de esclarecer com o entendimento os mistérios do ser divino – em lugar de deixar que a graça ilumine sua inteligência – os conduz inevitavelmente ao erro, que consiste em conceber segundo o intelecto a Aquele a cuja imagem o intelecto foi criado.

“Conceituar” a Deus é inverter a verdadeira hierarquia da existência, subordinando o Incriado ao criado, o Modelo à imagem; é introduzir a imagem no Modelo e assim, mais cedo ou mais tarde, substituir o Modelo, reduzindo o ser divino às dimensões daquilo que se parece com ele. A esfera “inteligível” na qual se movem concede a essas pessoas uma superioridade aparente, que excita perigosamente sua confiança em si mesmas.

O resultado inevitável do segundo modo de oração é o intelectualismo.

O teólogo intelectualista atua como um arquiteto que projeta a edificação de um palácio ou de um templo: ele utiliza noções empíricas e metafísicas como materiais de construção e se preocupa menos com a adequação de seu edifício ideal à ordem real das coisas do que com sua grandeza e harmonia lógicas.

É surpreendente que muitos homens extraordinários não tenham podido resistir a uma tendência que no fundo é tão ingênua, e cuja fonte secreta é o orgulho.

Acontece com frequência um apego aos frutos da inteligência que é parecido com o de uma mãe para com seu filho. O intelectual ama sua criação como a si mesmo, se identifica com ela, confiando-se em seu recinto. A intervenção humana nesses casos não é de nenhuma valia: se o homem não renuncia, por ele mesmo, a essa pseudo-riqueza, ele não alcançará nem a oração pura, nem a contemplação verdadeira.

A vitória sobre o pensamento discursivo é uma prova de sensibilidade espiritual, mas não atesta por si só uma “fé verdadeira”. Para além do domínio racional, vale dizer, mental, situa-se com efeito o das intuições intelectuais; mas esse domínio, por mais que seja supra mental, não consegue superar o plano da existência criada.

A compreensão da relatividade das leis da razão humana e a impossibilidade de encerrar a existência nos círculos afiados das conclusões lógicas abre certamente horizontes contemplativos, mas o objeto dessa contemplação intelectual ainda é a beleza do criado à imagem de Deus. Quem penetra assim pela primeira vez no domínio do “silêncio” do intelecto experimenta um certo pavor místico e, sentindo-se “transportado” para além da existência criada, toma facilmente esse “êxtase intelectual” por uma experiência de comunhão com o Incriado, quando, na realidade, permanece ainda dentro dos limites da natureza criada. Em casos assim, a consciência supera as fronteiras do tempo e do espaço e consegue contemplar de longe a sabedoria eterna. Essa experiência dos confins do intelecto, seja lá qual for a interpretação dogmática que lhe seja dada, tem um caráter “panteísta”.

Quando o homem chega a esses “limites da luz e das trevas[3]”, contempla na realidade a beleza e a profundidade seu próprio intelecto, que muitos filósofos identificaram com o ser divino. É com certeza uma luz que eles contemplam, mas não a “verdadeira luz” na qual “não há trevas”; por ser natural, a luz do intelecto continua sendo “treva” em relação à luz Incriada; é a noite nua e abstrata na qual Deus não está; a ela se podem aplicar as palavras do Senhor: “Cuide para que a luz que está em ti não seja treva[4]”. Não foi a queda de Lúcifer, primeira “catástrofe” cósmica e supra histórica, uma consequência precisamente da contemplação amorosa de sua beleza angélica, arquétipo cósmico de toda autodeificação?

Quem já visitou esses lugares do espírito perguntará talvez com espanto: mas onde se encontra a garantia da união verdadeira com Deus? Como excluir que não se trata de uma experiência situada no plano da imaginação, da filosofia ou do panteísmo?

O santo Starets afirmava categoricamente que o único critério, no domínio do controlável, é o amor aos inimigos. Ele dizia: “O Senhor é humilde e doce. Ele ama suas criaturas; onde está o Espírito do Senhor, ali reina infalivelmente o humilde amor aos inimigos e a oração pelo mundo. Se você não possui esse amor, peça-o, e o Senhor que disse: “Pedi se vos será dado, buscai e encontrareis[5]”, o outorgará a você”.

Que a ninguém ocorra minimizar esse indício como algo “psicológico”, pois se trata de um estado psíquico que deriva diretamente da ação divina. Deus Salvador salva o homem por inteiro. O critério ao qual nos referimos indica a santificação realizada por Deus, não só do intelecto espiritual, como também, e simultaneamente, da alma psíquica e, progressivamente, do corpo.

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Não fizemos nada além de aflorar os problemas seculares mais complexos da existência espiritual do homem. Estamos longe de resolvê-los dialeticamente. Se fosse esse o nosso objetivo, seria preciso estudar numerosos exemplos de contemplativos do Oriente e do Ocidente, mas deixamos essa tarefa a quem se sentir chamado a ela. Pessoalmente, acreditamos que seja impossível esgotar as diferentes formas de oração, e estamos persuadidos de que o único caminho que leva ao conhecimento da verdade é a fé e a experiência viva, sendo esse o caminho do própria existência.

Não obstante, é importante esclarecer, a esse propósito, que a experiência mencionada não depende apenas do querer do ser humano: ela chega a este desde o alto como dom gratuito do amor de Deus, enquanto que as experiências de ordem puramente intelectual dependem das capacidades naturais do ser humano e de sua vontade de realizá-las. A experiência cristã da comunhão sobrenatural com Deus depende essencialmente do Querer de Outro e se diferencia dos caminhos intelectuais na medida em que é vivida sempre como graça.

A vida cristã consiste no acordo entre duas vontades: a de Deis, incriada, e a do homem, criada. Deus pode se mostrar ao homem em qualquer de seus caminhos, a todo momento, e em todos os lugares espirituais e espaciais; mas, por estar acima de qualquer necessidade, Deus não violenta a liberdade de sua própria imagem. Deus não a impede nem de dobrar-se sobre si mesma nem de se identificar com o princípio divino. Pretendendo assim ter alcançado o cume da contemplação, o homem fecha para si próprio a ação da graça divina.

A comunhão de Deus se realiza por intermédio da oração, e é de oração que estamos falando. Se, apesar de tudo, fizemos uma digressão pelo domínio da dialética, não foi porque buscamos convencer a alguém, mas porque quisemos mostrar que também esse território da condição humana está incluído dentre os caminhos da oração. Qualquer tentativa de explicar de forma dialética a experiência espiritual se presta a encontrar as objeções mais variadas. Essa possibilidade provém do dato de que, na esfera ideal de sua visão de mundo, cada um de nós é livre para fixar indistintamente sua própria hierarquia de valores.

Seguindo em nosso tema da oração, tentaremos descrever esquematicamente um dos combates mais dolorosos que o asceta ortodoxo encontra em seu caminho: a passagem do segundo para o terceiro modo de oração, ou seja, a luta contra a imaginação intelectual.

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Observando a si próprio com atenção, o homem descobre que seu pensamento racional possui uma propriedade psicológica que pode ser definida como a certeza imanente de nosso pensamento, ou, em outros termos, como uma evidência subjetiva da correção de nossas deduções lógicas. Existe algo premente nas demonstrações da razão, em suas provas. É preciso uma grande cultura para descobrir essa estranha sedução; quanto a libertar-se de seu poder, isso requer uma profunda experiência espiritual.

É possível rastrear esse engano mediante um exame atento dos princípios que governam o mecanismo de nosso pensamento: o princípio da identidade e o princípio da razão suficiente.

O princípio de identidade (da não contradição) representa o momento estático do nosso pensamento, seu ponto imóvel de apoio, carente de vida devido a essa imobilidade.

O princípio da razão suficiente (da causalidade necessária) representa o momento dinâmico de nosso pensamento: a experiência secular demonstra de sobra sua extrema debilidade. O juízo fundamentado sobre a razão suficiente é sempre subjetivo: o que parece suficiente a uma pessoa pode não sê-lo para outra. Assim, observando com maior atenção, nos damos conta de que na realidade a razão nunca é perfeitamente suficiente.

O asceta ortodoxo, por sua vez, descobre a relatividade de nossa inteligência por outros meios, da mesma maneira como resolve de modo distinto todos os problemas da existência: a saber, por meio da fé e da oração. Não confia em si mesmo, mas crê em um Outro que não é ele, em Deus todo-poderoso. Ele já não aceita medida infalível ou cânone de verdade que não os mandamentos de Cristo, cuja peculiaridade consiste em ser a um tempo critério de verdade e fonte de vida divina. Essa fé o leva a submeter todos os seus juízos ao juízo de Deus, o único equitativo e “último”. Qualquer ato, qualquer palavra, qualquer pensamento ou sentimento inexpressado, por ínfimo que sejam, “comparece” diante da palavra de Cristo.

Quando a graça de Cristo nos cativa e se converte numa força de Deus atuante, os impulsos de nossa alma se aproximam mais, obviamente, da perfeição dos mandamentos. Mas quando sobrevêm o alheamento e o abandono de Deus, e a luz divina é substituída pelas espessas trevas da rebelião das paixões, tudo muda e dá lugar a uma luta interior.

A luta interior é muito variada: a mais profunda e dolorosa é a luta contra o orgulho. O orgulho é inimigo da lei divina. Ao falsear a ordem divina da existência, não traz por toda parte nada além de desagregação e morte. O orgulho se manifesta também na carne, mas o plano intelectual e espiritual é o seu lugar preferido. Ele coloca em mira desespiritualizar o intelecto, que é o órgão por excelência de nossos juízos, e o incita a descartar como contraditório o mandamento de Cristo: “Não julgueis para não serdes julgados[6]”. Ele nos insinua que nossa faculdade de julgar, sendo um privilégio distintivo do homem, não está chamada a morrer junto com as demais faculdades psíquicas ou corporais, mas a vencer e dominar o mundo.

O orgulho intelectual pode chegar a afirmações como essa, que não inventamos, onde fica manifesta a tristeza do despeito: “Como posso aceitar, se Deus existe, não sê-lo eu?”. Ou essa: “Já escutei de tudo e não encontrei nada maior do que eu; portanto, eu sou Deus”.

É próprio do orgulho intelectual, com efeito, cegar a inteligência a respeito de tudo o que a ultrapassa, o q eu a leva a confundir-se com o princípio divino. Esse é o limite extremo da “imaginação intelectual”, e, ao mesmo tempo, a queda nas travas mais profundas.

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Há quem aceite essas pretensões, que as aceitem como verdadeiras e que se lancem em busca dessa perspectiva espiritual; o asceta ortodoxo, por sua vez, trava uma luta contra elas, esse combate revela a intervenção de forças estranhas; ele pode alcançar uma intensidade extrema e chega a ser trágico. A saída vitoriosa depende da fé do asceta, “pois aquele que nasceu de Deus triunfa sobre o mundo, e a vitória que triunfa sobre o mundo é nossa fé[7]”.

Para vencer o inimigo, o monge evita instalar-se num interior confortável; no silêncio da noite, longe do mundo, nem visto nem escutado por ninguém, ele se prosterna diante de Deus derramando muitas lágrimas e diz, como o publicano: “Deus, tem piedade de mim[8]”, ou como São Pedro: “Senhor, salva-me[9]”.

Ele percebe no espírito o abismo das “trevas exteriores”, e por isso sua oração é ardente. A palavra é impotente para descrever o mistério dessa visão e a intensidade dessa luta que pode durar anos, na medida em que a luz divina não chega para revelar a iniquidade de nossos juízos e introduzir a alma na imensidão da vida verdadeira.

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Conversamos muitas vezes com o Starets a respeito dessas questões. Ele dizia que a causa da luta não estava tanto na razão enquanto tal, quanto no orgulho de nosso espírito, que dirige o intelecto contra Deus. O orgulho alimenta a imaginação, a humildade a faz cessar. O orgulho se incha pata criar seu próprio mundo, a humildade aceita a vida que provém de Deus.

Largos anos de duro combate haviam dado ao Starets a força para guardar constantemente sua inteligência em Deus e de fechar o caminho a qualquer pensamento. Havia passado por dolorosos sofrimentos, mas quando o conhecemos reinava uma grande paz em sua alma. Ele evocava o passado em termos muito simples:

“O intelecto luta contra o intelecto: o nosso contra o do Inimigo. O orgulho, unido à imaginação, fez com que caísse o Inimigo, e este quer nos arrastar na mesma queda. Um valor vigilante é necessário nesse combate. O Senhor permite que seu servidor lute, e o segue com seu olhar, assim como contemplava a Antônio o Grande lutando contra os demônios. Vocês se recordam de que, em sua biografia, conta-se que Antônio havia estabelecido sua morada em um sepulcro onde os demônios o surraram até o ponto de perder a consciência; o amigo que o servia transportou-o até a igreja do povoado; chegada a noite, Antônio recuperou-se e pediu ao amigo que o levasse de novo ao sepulcro. Enfermo e sem poder permanecer de pé, orava deitado. Depois da oração, os demônios retomaram o ataque e quando, torturado por esses suplícios, levantou os olhos e viu a luz, nela reconheceu a chegada o Senhor. Então exclamou: ‘Onde estavas, Jesus misericordioso, quando os inimigos me atormentavam?’. Cristo respondeu: ‘eu estava ali, Antônio, e observava seu valor’. Não devemos nunca esquecer que Deus vê nossa luta contra o Inimigo e, por conseguinte, não há porque assustar-se, ainda que o inferno inteiro nos assalte. Jamais devemos perder o ânimo”.

“Os Santos aprenderam a lutar contra o Inimigo; conhecendo sua maneira fraudulenta de atacar através dos pensamentos, eles os rechaçaram durante toda a vida. O pensamento não parece mau de início, mas pouco a pouco consegue separar a inteligência do coração; é, pois, indispensável rechaçar a todos os pensamentos, inclusive os que parecem ser bons, e concentrar o intelecto purificado somente em Deus. Se sobrevém um pensamento, não convém perturbar-se; os inimigos se comprazem com nossa confusão. Orem, e o pensamento se afastará por si próprio. Esse é o caminho dos Santos”.

Aos olhos do Starets o orgulho se caracterizava por pretensões desmesuradas. Em seus escritos encontramos a respeito a seguinte parábola:

“Um dia, um caçador, que gostava de percorrer os campos e bosques em busca de caça, escalou uma alta montanha para despistar um animal; cansado, sentou-se sobre uma rocha. Divisando no céu um bando de pássaros que voavam de cume em cume, pôs-se a falar consigo mesmo: ‘Por que Deus não deu asas ao home para que ele possa voar?’. Naquele momento passou um humilde eremita que, adivinhando os pensamentos do caçador, disse-lhe: ‘Pensas que Deus não te deu asas; mas se as tivesse dado, não ficarias satisfeito, e diria: ‘Minhas asas são fracas, não posso subir ao céu e saber o que contém em seu interior’. Se recebesses asas capazes de transportar-te aos céus, ainda assim te queixarias e dirias: ‘Não compreendo o que acontece aqui’. E se estivesses dotado de inteligência capaz de saber o que acontece ali, tampouco te contentarias e dirias: ‘Por que não sou um anjo?’. Transformado em Querubim, dirias: ‘Por que Deus não me confiou o governo do céu?’. Feito governador do céu, tua impertinência, seguindo na mesma linha, não cessaria de exigir mais. De onde vem esse não contentar-te com o que Deus te deu? Sê humilde, e viverás com Deus’. O caçador compreendeu que o eremita tinha razão e deu graças a Deus por lhe ter enviado aquele monge que o havia orientado mostrando-lhe o caminho da humildade”.

O Starets lembrava com insistência que os Santos Padres aspiravam a purificar o espírito de qualquer imagem por meio do caminho da humildade.

“Os Santos diziam: ‘Eu sou digno do inferno’. E isso, quando realizavam milagres! Eles sabiam por experiência que se a alma, esperando a misericórdia divina, condena a si própria ao inferno, a força de Deus a visita: o Espírito lhe testemunha sua salvação. Condenada, a alma se humilha; humilhada, se liberta de qualquer pensamento, e se apresenta com o intelecto purificado diante de Deus. Essa é a sabedoria espiritual”.

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O homem perfura a terra com o aço para extrair petróleo e consegue seu objetivo. O homem sonda os céus com sua inteligência para roubar o fogo divino, mas Deus o repudia por causa de seu orgulho.

As contemplações divinas são concedidas ao homem, não quando se esforça por buscá-las por si mesmo, mas quando a alma desce ao inferno da penitência e se dá conta de que está abaixo de toda criatura. As contemplações que resultam de uma tensão imposta pela inteligência não são verdadeiras, mas aparentes. Quando essas pretensas contemplações são tomadas como autênticas, origina-se na alma um estado que torna difícil mesmo a possível intervenção da graça e, por conseguinte, a verdadeira contemplação.

A contemplação concedida pela graça revela realidades que superam em riqueza a imaginação mais fecunda. Como disse São Paulo: “São coisas que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não chegaram ao coração do homem[10]”. Quando, semelhante aos Apóstolos, o homem é elevado pela graça à visão da luz eterna, ele já não se entrega a seguir à teologia especulativa, mas “narra” aquilo que viu e ouviu. A teologia autêntica não é conjectura, postulado, dedução, nem o resultado de qualquer investigação, mas a narrativa daquela realidade à qual o homem teve acesso sob a ação do Espírito Santo. A palavram quanto mais brota de sua fonte, tanto mais dificuldade encontra em apresentar noções e expressões aptas para comunicar o que está além de todo conceito e imagem terrestre. Não obstante, apesar dessas dificuldades e de sua tradução diversa inevitável em termos humanos, aquele que conheceu saberá reconhecer e distinguir, seja qual for o revestimento verbal, entre uma verdadeira contemplação e uma visão, talvez genial, mas proveniente da pura inteligência.



[1] João 17: 3.
[2] Mateus 1: 21.
[3] Jó 25: 11.
[4] Lucas 11: 35.
[5] Mateus 7: 7.
[6] Mateus 7: 1.
[7] I João 5: 4.
[8] Lucas 16: 13.
[9] Mateus 14: 30.
[10] I Coríntios 2: 9.

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