INTRODUÇÃO
A Revelação nos diz: “Deus é Amor”, “Deus é Luz, nele não existe treva
alguma[1]”.
Quão difícil é para nós, homens, aceitarmos essas palavras! Difícil,
porque nossa própria vida e a do mundo inteiro que nos rodeia mostram o
contrário.
Onde se encontra, com efeito, essa Luz de Amor do Pai, se, chegando ao
ocaso de nossas vidas, com a amargura no coração, somos obrigados a reconhecer,
como Jó: “Meus melhores projetos, os desejos mais queridos de meu coração, se
desmancharam. Meus dias ruíram, minha casa será o lugar dos mortos... Onde
está, pois, minha esperança? E aqui que, desde a minha juventude, secreta e
ardentemente, meu coração perseguia, quem o verá?[2]”.
O próprio Cristo assegura que Deus, em sua Providência, vela
atentamente por toda a criação. Ele se lembra do mais pequenino pássaro, e
cuida mesmo da erva do campo. Sua solicitude pelos homens é entretanto
incomparavelmente maior, até o ponto de que “todos os seus cabelos estão
contados[3]”.
Mas onde está essa Providência que vela até os menores detalhes?
Estamos desconcertados pelo espetáculo do desencadeamento irrefreável do mal
pelo mundo. Milhões de vida, com frequência apenas iniciadas, e ainda antes que
tenham qualquer consciência de si mesmas, são arrancadas com incrível
crueldade.
Por que então essa vida absurda nos foi dada? A alma anseia por
encontrar a Deus e dizer-lhe: “Por que me deste a vida? Estou coberto de
sofrimentos, as trevas me rodeiam. Por que te escondes de mim? Sei que és bom,
mas como podes ser tão indiferente à minha dor? Por que és tão cruel, tão
implacável comigo? Não posso compreender-te”.
Um homem possuído pelo desejo de Deus vivia na terra. Seu nome era
Simeão. Havia orado durante longo tempo, chorando sem cessar: “Tem piedade de
mim”. Mas seu grito se perdia no silêncio de Deus.
Perseverou meses e meses nessa oração; as forças de sua alma estavam
esgotadas. Chegou ao limite do desespero e gritou: “És inexorável!”. E quando,
com essas palavras, algo se rompia em seu espírito destroçado pelo desespero,
viu de repente, no relâmpago de um instante, a Cristo vivo. Seu coração e seu
corpo foram invadidos por um fogo tão violento, que se a visão houvesse se
prolongado um instante a mais, ele não teria sobrevivido. Desde então, ele
nunca mais pôde esquecer o olhar de Cristo, um olhar de indizível doçura,
infinitamente amoroso, cheio de alegria e de paz. E durante os muitos anos de
sua vida que se sucederam desde então, ele testemunhou incansavelmente que Deus
é Amor, Amor infinito e insondável.
É desse testemunho do amor divino que vamos falar.
ENSINAMENTOS DO
STARETS
O leitor encontrará nos escritos do Starets Silouane curtos relatos
nos quais ele fala se alguns acontecimentos de sua vida; quanto a nós, vamos
expor aqui apenas sua doutrina. Não que ele tenha professado, propriamente
falando, uma doutrina no sentido usual do termo. O que iremos expor não é mais
doque uma tentativa de resumir em poucas palavras o que escutamos durante os
anos que vivemos junto a ele. Nos parece impossível explicar as razões
profundas que nos levaram a depositar nossa confiança no Starets, mas talvez
não seja ocioso dizer brevemente qual foi nossa atitude diante dele.
Os temas de nossas conversas com o Starets eram presididos por nossas
próprias necessidades e perguntas. Muitos dos problemas que foram abordados
desse modo não figuram nos escritos do Starets. Quando nos dirigíamos a ele
para propor perguntas, o quando simplesmente o ouvíamos, estávamos cientes de que
suas palavras procediam de uma experiência concedida desde o alto. De certo
modo nos comportávamos em relação a elas do mesmo modo como o mundo cristão o
faz com a sagrada Escritura, que nos fala das verdades como de fatos conhecidos
e indiscutíveis. Aquilo que o Starets dizia não era fruto de “sua” reflexão
individual. Não; seu processo interior era radicalmente diferente: uma
experiência real e um autêntico conhecimento sustentavam suas palavras e lhes
conferiam o caráter de um testemunho verídico sobre as realidades do mundo
espiritual. O recurso a uma argumentação dialética era-lhe completamente
alheio, como algo supérfluo, como acontece também com a sagrada Escritura. De
modo parecido com São João Evangelista, ele dizia “nós sabemos[4]”.
Tomemos esse exemplo de seus escritos:
“Nós sabemos que quanto maior é o amor, maiores são os sofrimentos da
alma; quanto mais completo é o amor, mais completo é o conhecimento; quanto
mais ardente o amor, mais fervorosa a oração; quanto mais perfeito o amor, mais
santa é a vida”. Cada uma dessas quatro afirmação poderia ser aduzida como
coroamento de profundas e complexas indagações filosóficas, psicológicas e
teológicas; mas o Starets não sentia nenhuma necessidade delas, e tampouco
delas se servia.
Nossa proximidade com o Starets era de índole muito particular. Cremos
que graças à sua conversação, cujo tom era tão simples, e graças à força da sua
oração, ele possuía o dom de introduzir seu interlocutor num universo distinto.
O mais notável disso era que o interlocutor não era introduzido nesse universo
de modo abstrato, senão que penetrava nele realmente, mediante uma experiência
interior que lhe era transmitida. Para falar a verdade, quase ninguém, que
saibamos, foi capaz de manter mais tarde o estado espiritual recebido e de
realizar em sua vida o que conhecera nas conversações com o Starets. É certo
que isso foi para muitos uma fonte inesgotável de sofrimentos, durante toda a
vida, pois a alma que um dia viu a luz e a perdeu em seguida não pode deixar de
se afligir. E, no entanto, não seria mais triste, mais desesperador, não ter
tido notícia alguma dessa luz, e – o que não é raro – sequer suspeitar de sua
existência? Sabemos com certeza que foram numerosos os que, tendo se aproximado
com amor do Starets para receber seus ensinamentos, mais tarde se afastaram
dele, incapazes que eram de viver em conformidade com sua palavra. Sua palavra
era simples, mansa, doce e cheia de bondade, mas para segui-la era preciso ser
tão implacável consigo mesmo como o era o Starets. Era necessário possuir
aquele espírito decidido que o Senhor pede aos que desejam segui-lo, até o
extremos de odiar a própria vida[5].
DO CONHECIMENTO DA
VONTADE DIVINA
O Starets gostava de dizer: “É bom tentar a todo o tempo e
circunstância ser iluminado por Deus para saber como trabalhar e como orar”. Em
outras palavras, é preciso tentar em qualquer circunstância conhecer a vontade
de Deus e os caminhos que permitem colocá-la em prática.
A busca da vontade de Deus é a obra mais importante de nossa vida, já que,
entrando na corrente dessa vontade, o homem se vê introduzido na vida eterna e
divina.
Existem diversos caminhos para chegar ao conhecimento da vontade de
Deus. Um deles é a Palavra de Deus, os mandamentos de Cristo, sem embargo, os
preceitos evangélicos, apesar de sua perfeição – ou antes, em virtude dessa
mesma perfeição – enunciam a vontade de Deus de forma universal, enquanto que
muitas vezes o homem, que encontra em sua vida cotidiana situações
infinitamente variadas, não sabe como deve proceder para que seus atos se
integrem à corrente da vontade divina.
Para que uma ação chegue a um fim que seja bom, não basta conhecer a
vontade de Deus, tal como se encontra expressa nos mandamentos: amar a Deus com
todo seu coração, com toda sua inteligência e com todas as forças, e ao próximo
como a si mesmo. De resto, não é preciso ser iluminado por Deus acerca da
maneira concreta de realizar os mandamentos em nossa vida; mas para isso
necessitamos da assistência de uma força proveniente do alto.
Aquele cujo coração está cheio do amor de Deus e que é movido por esse
amor, trabalha motivado por razões que estão próximas da vontade divina, mas
que não deixam de ser apenas aproximadas. Como a vontade de Deus permanece
inacessível para nós, precisamos dirigirmo-nos sem cessar a Deus por meio da
oração, pedindo-lhe sabedoria e apoio.
Não é apenas a perfeição do amor, que falta ao homem, como também lhe
falta a onisciência perfeita. Atos que procedem, ao que parece, da melhor das
intenções, levam com frequência a consequências contrárias ao que se desejava,
e até funestas. É que os meios ou o modo de colocá-los em prática eram, ou
maus, ou simplesmente inadequados a uma dada situação. Ouvimos com frequência
pessoas que tentam se justificar alegando suas boas intenções, mas isso não é
suficiente. A vida humana está cheia de erros desse tipo. Por causa disso, o
homem que ama a Deus busca sempre ser instruído desde o alto, prestando
constantemente o ouvido à voz de Deus.
Isso se consegue na prática do seguinte modo: quando um cristão, em
especial um bispo ou um sacerdote, se encontra diante da necessidade de tomar,
numa circunstância concreta, uma decisão conforme à vontade divina, ele deverá
fazer interiormente a abstração de todos os seus conhecimentos, de suas ideias
preconcebidas, de seus desejos e projetos; liberto, assim, de seu próprio “eu”,
deverá orar atentamente em seu coração. E receberá como um sinal vindo do alto
o primeiro pensamento que nasça dessa oração.
Essa maneira de tentar conhecer a vontade divina, mediante o recurso
direto a Deus através da oração, especialmente nas dificuldades e atribulações,
conduz o homem àquele estado do qual o Starets diz: “Escuta na sua alma a
resposta de Deus e comece a compreender como Deus guia o homem... assim devemos
todos a prender a reconhecer a vontade de Deus. Mas se não fazemos esforços
para aprendê-lo, jamais conheceremos esse caminho”.
Em sua forma mais perfeita, essa busca pressupõe a prática da oração
ininterrupta, concentrando, aquele que ora, a atenção em seu coração. Para
escutar inequivocamente em si mesmo a voz de Deus, o homem deve dispensar sua
vontade própria e estar disposto a sacrificar tudo, como o fez Abrahão, e
mesmo, conforme as palavras de São Paulo, como Cristo, “obediente até a morte[6]”.
O homem que entrou por esse caminho irá progredir nele quando tiver
conhecido por experiência o modo como a graça do Espírito Santo opera no ser
humano, e ainda se uma implacável abnegação própria se enraizar em seu coração;
em outras palavras, se renunciar resolutamente à sua própria vontade
individual, com o fim de conhecer e cumprir a santa vontade de Deus. A esse
homem será revelado o verdadeiro sentido da pergunta colocada pelo Starets
Silouane ao Padre Estratônico: “Como falamos perfeitos?”. As palavras dos Apóstolos:
“Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós[7]”,
serão para ele familiares; ele compreenderá claramente as passagens do Antigo e
do Novo Testamento nas quais se descreve a alma a entrar diretamente em diálogo
com Deus; ele se encaminhará para uma verdadeira compreensão do modo de falar
dos Apóstolos e dos Profetas.
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus; ele é chamado a à
plenitude de uma comunhão imediata com Deus. Por essa razão, todos os homens
sem exceção deveriam seguir esse caminho, mas a experiência mostra que esse
caminho está longe de ser acessível a todos. Isso acontece porque a maior parte
dos homens não escuta a voz de Deus em seu coração, não a compreendem, ao
contrário, seguem a voz das paixões que vivem em sua alma e que sufocam com seu
tumulto a discreta voz de Deus.
Para escapar dessa lamentável situação, existe na Igreja outro
caminho: pedir conselho ao pai espiritual e obedecer-lhe. O próprio Starets
amava esse caminho e o seguia; ele se remete a ele e o menciona em seus escritos,
em especial em “Dos pastores e dos pais espirituais”. Ele acreditava que o
humilde caminho da obediência era de modo geral o mais seguro de todos. Estava
firmemente convencido de que, graças à fé daquele que pede conselho, a resposta
do pai espiritual será sempre boa, proveitosa e agradável a Deus. Sua fé na
eficácia do sacramento da Igreja e na realidade da graça do Salvador foi
reforçada a partir do dia em que viu o Starets confessor Abrahão transfigurado
“à imagem de Cristo”, “revestido de um inefável esplendor”. Isso aconteceu no
Velho Rossikon[8],
durante as vésperas, no decurso da Grande Quaresma.
Mergulhado numa fé abençoada, ele vivia a realidade dos sacramentos;
mas percebia que, mesmo no plano humano e psicológico, é fácil sentir as
vantagens da obediência a um pai espiritual. Dizia que quando um confessor, no
exercício de seu ministério, responde às perguntas que lhe são propostas, ele
está livre nesse instante da energia passional, sob cujo império se encontra
aquele que pergunta; assim ele pode ver as coisas com maior clareza e estará
mais acessível à ação da graça divina.
Na maior parte dos casos, a resposta do pai espiritual terá um caráter
imperfeito e relativo, não porque ele esteja privado da graça do conhecimento,
mas porque quem pergunta carece de forças para realizar um ato espiritual
perfeito. Sendo assim, em que pese o caráter relativo das orientações
ministradas pelo confessor, essas darão bons frutos sempre, desde que sejam
acolhidas com fé e fielmente seguidas. Desgraçadamente, esse caminho se vê no
mais das vezes alterado, pelo fato de que quem pede conselho, não vendo diante
de si mais do que um “homem”, vacila em sua fé e, como resultado, não capta a
primeira palavra do padre espiritual; faz-lhe objeções, opondo a ele suas próprias
ideias e dúvidas.
O Starets Silouane conversou sobre esse importante assunto em 22 de
Janeiro de 1940 com o higoumeno do
Mosteiro, o Arquimandrita Misael, homem espiritual que, segundo diziam, gozava
de grande benevolência e proteção divinas. O Starets Silouane perguntou ao higoumeno:
- Como um homem pode conhecer a vontade de Deus?
- Ele deve receber minha primeira palavra como
sendo a expressão da vontade de Deus, respondeu o higoumeno. A graça divina repousará sobre aquele que trabalha
assim, mas, se alguém me resiste, então, como homem, eu cedo.
Eis o sentido das palavras do higoumeno
Misael: quando se pede conselho a um pai espiritual, este ora para ser
iluminado por Deus, mas, enquanto homem, responde na medida de sua fé, segundo
as palavras do apóstolo Paulo: “Nós cremos, por isso falamos[9]”;
mas não se esquece de que: “Nosso conhecimento é parcial, nossa profecia é
parcial[10]”.
Em seu desejo de não cometer erros, ele se submete ao juízo de Deus quando dá
conselho ou orientação; assim, na medida em que topa com uma objeção ou
simplesmente com uma resistência interior por parte do que pergunta, não
insiste sobre o que foi dito e não se permite afirmar que sua palavra seja a
expressão infalível da vontade de Deus, e, “como homem, cede”.
Essa consciência se manifestou de modo surpreendente na vida do higoumeno Misael. Um dia ele chamou à
sua presença um noviço, e lhe confiou uma complexa obediência dificilmente
compatível com a oração do coração. O noviço aceitou com prontidão e, depois de
haver feito a profunda reverência de praxe, dirigiu-se para a porta. Logo o higoumeno voltou a chamá-lo. Inclinando
ligeiramente a cabeça sobre o peito, disse com calma e gravidade:
- Saiba, Padre: Deus não julga duas vezes; quando
você fizer algo em obediência a mim, eu serei julgado por Deus; quanto a você,
não perderá a graça”.
Se alguém resistia, ainda que ligeiramente, a uma ordem ou uma
orientação do higoumeno Misael,
esquecendo a posição institucional que ocupava, o animoso asceta respondia
habitualmente: “Pois bem, faça como quiser”, e não repetia o que havia dito. Do
mesmo modo, o Starets Silouane se calava, a partir do momento em que encontrava
a menor oposição.
Por que razão? Por um lado, porque o Espírito Santo não tolera nem
violência nem discussão; por outro, porque a vontade de Deus é algo demasiado
grande, a vontade de Deus não pode ser contida por inteiro na palavra do pai
espiritual – pois essa composta doses inevitáveis de relatividade – nem
encontrar nela sua expressão perfeitamente adequada. Somente quem aceita a
palavra de seu pai espiritual com fé, acreditando ser agradável a Deus, sem
submetê-la ao seu próprio juízo, sem “raciociná-la”, somente esse encontrou o
verdadeiro caminho, pois crê que “a Deus, tudo é possível[11]”.
Esse é o caminho da fé, conhecido e sancionado pela experiência
milenar da Igreja.
***
Nem sempre é isento de perigos enfrentar esses temas que constituem o
“mistério sem segredos” da vida cristã, e que, sem embargo, ultrapassam os
limites da vida cotidiana e de uma experiência espiritual pouco extensa.
Muitos, com efeito, poderiam compreender mal o sentido dessas palavras e
colocá-las em prática de forma incorreta, de tal modo que elas, ao invés de
fazer o bem, se tornariam nocivas, em especial se o homem abordar a vida ascética
com uma orgulhosa confiança em si mesmo.
Quando alguém pedia conselho ao Starets, ele não gostava nem queria
responder confiando em sua própria inteligência. Recordava as palavras de São
Serafim de Sarov: “Quando falava confiando em minha própria inteligência,
cometia erros”, e acrescentava que os erros podiam ser leves, mas que também
poderiam ser graves.
O estado espiritual a que se referia o Starets ao falar com o Padre
Estratônico, que “os perfeitos não dizem nada por si mesmos (...) mas só aquilo
que o Espírito lhes confia”, nem sempre é concedido, nem sequer àqueles que se
aproximam da perfeição; pela mesma razão, não era sempre que os Apóstolos e
outros Santos operavam milagres constantemente, e o espírito de profecia não
operava sempre e no mesmo grau nos profetas, mas, assim como operava
poderosamente neles, também os abandonava.
O Starets fazia uma clara distinção entre a “palavra fundamentada na
experiência” e a inspiração direta recebida do alto, vale dizer, a “palavra
concedida pelo Espírito”. A primeira certamente não está desprovida de valor,
mas a segunda lhe é superior e mais digna de fé[12].
Quando era perguntado, dizia às vezes sem vacilar e com precisão: “A
vontade de Deus é que você faça isso”, mas às vezes respondia que não conhecia
a vontade de Deus a respeito daquela pessoa. Dizia que mesmo aos Santos o
Senhor nem sempre revelava sua vontade, porque quem se dirigia a eles o fazia
com um coração incrédulo e perverso.
Segundo o Starets, aquele que
ao com todo o seu coração passa por muitas vicissitudes em sua oração: luta
contra o Adversário, luta com os homens, luta consigo mesmo, com suas paixões e
sua imaginação. Em tais condições, o intelecto não é puro, e nada é claro. Mas
quando a oração se torna pura, quando o intelecto, unido ao coração, se coloca
silencioso diante de Deus, quando a alma, livre da ação perturbadora das
paixões e da imaginação, percebe em si mesma a presença da graça, então o homem
que ora pode ouvir a inspiração da graça.
Quando o homem empreende essa tarefa – a busca da vontade de Deus no
coração – desprovido de suficiente experiência que lhe permita discernir “pelo
gosto” entre a ação da graça e a manifestação das paixões, em especial do
orgulho, é absolutamente imprescindível que ele busque a um pai espiritual. Na
presença de qualquer fenômeno espiritual ou de uma inspiração, enquanto não
houver escutado o parecer de seu instrutor, deve ater-se à regra ascética de
“não aceitar nem rechaçar”.
Não aceitando, o cristão se previne contra o perigo de tomar uma ação
ou sugestão demoníaca como sendo coisa divina, e de se acostumar a prestar
atenção nos espíritos sedutores e nos ensinamentos demoníacos[13],
e de brindar aos demônios com a adoração devida a Deus somente.
Não rechaçando, o homem escapa de outro perigo, o de atribuir aos
demônios algo que provém de Deus, caindo assim no pecado de blasfêmia contra o
Espírito Santo. É o que faziam os fariseus quando diziam que Cristo expulsava
os demônios pelo poder de Belzebu, príncipe dos demônios.
Esse último perigo é mais temível do que o primeiro, porque a alma
pode se habituar a rechaçar a graça, a odiá-la e a endurecer-se num estado de
oposição a Deus, até o ponto de determinar assim o próprio plano eterno, posto
que “esse pecado não será perdoado nem nesse século nem no século futuro[14]”.
Pelo contrário, no primeiro caso, o homem pode reconhecer mais rapidamente seu
erro, obtendo assim a salvação pelo arrependimento, já que nenhum pecado é
imperdoável, com exceção daquele do qual não nos arrependemos.
Muito teríamos a falar sobre essa regra de “não aceitar nem rechaçar”,
e sobre sua aplicação sobre a vida espiritual. Mas como nos fixamos como
objetivo limitarmo-nos aos princípios fundamentais sem entrar em detalhes, é
conveniente voltarmos ao nosso tema.
Em sua forma mais perfeita, o conhecimento da vontade divina pela
oração é algo excepcional: ele não é acessível senão ao custo de prolongados
esforços e de uma grande experiência na luta contra as paixões, e só pode ser
adquirido depois de muitas e dolorosas tentações demoníacas, de um lado, ao
mesmo tem em que requer, por outro, uma poderosa intervenção de Deus. Mas orar
de todo coração para pedir a ajuda divina é uma obra boa e necessária para
todos: para o que governa e para o governado, para os mestres e os discípulos,
para os anciãos e para os jovens, para os pais e para os filhos. O Starets
insistia em que todos, sem exceção e independentemente de sua condição, de seu
estado ou de sua idade, deveriam pedir sempre a Deus que lhes ilumine em todas
as coisas a fim de poder aproximar assim, progressivamente, o próprio caminho
dos caminhos da santa vontade de Deus, até alcançar a perfeição.
DA OBEDIÊNCIA
A questão do conhecimento da vontade de Deus e do abandono de todo
nosso ser a essa vontade está estreitamente ligada à questão da obediência. O
Starets deva extraordinária importância à obediência, não apenas para a vida
pessoal de qualquer monge e de qualquer cristão, como ainda pela a vida de todo
o “corpo da Igreja”, de todo o seu pleroma.
O Starets Silouane não tinha discípulos no sentido usual do termo; ele
não se comportava como “mestre”, e ele próprio nunca foi discípulo deste ou
daquele ancião. Mas, como a maior parte dos monges athonitas, ele se formou
através da corrente comum a todos: a assistência regular aos ofícios da Igreja,
os estudos e a leitura da Escritura e das obras dos Santos Padres, a
conversação com outros ascetas da Santa Montanha, a estrita observância dos
jejuns estabelecidos, a obediência ao higoumeno,
ao seu pai espiritual e ao seu chefe de trabalho.
O Starets atribuía especial importância à obediência espiritual ao higoumeno e ao pai espiritual,
considerando isso como um dom da graça, como um mistério sacramental da Igreja.
Quando se acercava de seu pai espiritual, pedia ao Senhor misericórdia pela
mediação de seu servidor, e que lhe revelasse sua vontade e o caminho que
conduz à salvação. Sabendo que o primeiro pensamento que nasce na alma em
oração é uma indicação proveniente do alto, vigiava a primeira palavra de seu
pai espiritual, a primeira alusão, e não prolongava mais a entrevista. Eis aqui
a sabedoria e o segredo da verdadeira obediência, cujo fim é o de conhecer e
cumprir a vontade de Deus e não a do homem. Tal obediência espiritual, sem
nenhuma objeção ou resistência, não apenas expressa, como também interior e
silenciosa, é normalmente a condição sine
qua non para a recepção da Tradição viva.
A Tradição viva da Igreja, transmitida através dos séculos de geração
em geração, é um dos aspectos mais essenciais e ao mesmo tempo mais sutis de
sua vida. Quando um mestre espiritual não encontra resistência alguma em seu
discípulo, em resposta à fé e humildade deste sua alma se abre com facilidade
e, talvez, completamente. Mas basta que apareça a menor resistência ao pai
espiritual, para o fio da pura Tradição se rompa, e a alma do mestre se feche.
Com frequência se pensa que o pai espiritual “não passa de um homem
imperfeito”, que é preciso “explicar-lhe tudo em detalhe, sem o que ele não
compreenderá”, e que é necessário, portanto, “corrigi-lo”. Contradizer o pai
espiritual e corrigi-lo equivale a colocar a si mesmo acima dele, e assim
deixa-se de ser seu discípulo. Certo, ninguém é perfeito, e quem ousaria
ensinar como Cristo, “com autoridade”? O objeto do ensino espiritual “não provém
de um homem”, “não está na medida de um homem[15]”,
ao contrário, é em “vasos de barro” que foi depositado esse tesouro inestimável
dos dons do Espírito Santo, que não apenas é inestimável, como permanece
escondido por sua própria natureza. Apenas quem segue o caminho com sincera e
total obediência é capaz de penetrar no segredo desse tesouro.
Um discípulo ou penitente prudente comporta-se com seu pai espiritual
da seguinte maneira: em poucas palavras lhe abre seu pensamento, ou o essencial
de seu estado; depois disso, se cala. De sua parte, o confessor, que desde o
começo da entrevista se colocou em oração, pede a Deus para ser iluminado pela
graça; se percebe em sua alma uma “notícia[16]”,
dá sua resposta, sobre a qual é conveniente estar atento. Porque quando se
deixa escapar a “primeira palavra” do pai espiritual, a força do sacramento se
debilita e a confissão está a um triz de se transformar numa simples discussão
humana.
Se um discípulo (ou penitente) e o confessor observam uma atitude
correta a respeito do sacramento, a notícia de Deus não se faz esperar; mas se
por qualquer razão tal não acontece, então o confessor pode pedir
esclarecimentos complementares, e só nesse caso eles serão oportunos. Mas se o
penitente não presta a devida atenção à primeira palavra do confessor e o
importuna com explicações, trai com essa atitude sua falta de fé e de
compreensão e obedece a um desejo secreto de inclinar o confessor ao próprio
parecer. Isso marca o começo de uma conflito psicológico “sem utilidade[17]”,
segundo as palavras do Apóstolo.
A fé no poder do sacramento, a certeza de que o Senhor ama o homem e
não abandona jamais a quem renunciou à sua vontade própria e individual por
amor a seu Nome e de sua santa Vontade tornam o homem firme e decidido. Um
verdadeiro discípulo, tendo recebido de seu pai espiritual uma ordem ou
simplesmente uma orientação, irá em seu desejo de executá-la até o desprezo
pela morte; pois, conforme pensamos, ele “passou da morte para a vida”.
Desde os primeiros dias de sua vida no mosteiro, o Starets Silouane
foi esse noviço perfeito; assim, qualquer confessor era para ele um bom mestre.
O caminho do Starets era tal que aqueles que o seguem logo recebem os dons da
infinita misericórdia de Deus. Mas os que só confiam em sua própria vontade e
inteligência, por mais instruídos e perspicazes que sejam podem muito bem se
destruir a custa de proezas ascéticas, ainda que das mais austeras, ou de
trabalhos de erudição teológica, mas jamais chegarão a receber as migalhas que
caem do altar da Misericórdia.
O Starets dizia: “Crer em Deus é uma coisa; conhecê-lo é outra”.
No imenso oceano que é a vida da Igreja, a verdadeira e pura Tradição
do Espírito segue seu caminho como um pequeno riacho. Quem deseja aproximar-se
dele deve renunciar ao seu “juízo próprio”. Pois onde intervém o juízo próprio
a pureza desaparece inevitavelmente, porque a sabedoria e a justiça humanas se
opõem à sabedoria e à justiça divinas[18].
Isso poderá parecer intolerável e mesmo uma loucura para os que não se fiam
senão em sua própria inteligência, mas só quem não tem converter-se em “louco[19]”
conhecerá a verdadeira vida e a autêntica sabedoria.
DA SANTA TRADIÇÃO E
DA ESCRITURA
Aos olhos do Starets, a obediência é uma condição indispensável para
progredir na vida espiritual. Sua concepção de inteligência estava em estreita
relação com sua maneira de entender a santa Tradição e a Palavra divina.
Ele concebia a vida da Igreja como a vida no Espírito Santo, e a santa
Tradição como sendo a ação ininterrupta do Espírito Santo na Igreja. Enquanto
presença eterna e imutável do Espírito Santo na Igreja, a Tradição constitui o
fundamento mais profundo de sua existência. Desse modo, a Tradição abarca a
vida inteira da Igreja, a tal ponto que a própria sagrada Escritura não se
apresenta senão como uma de suas expressões.
Segue-se daí que, se a Igreja se visse privada de sua Tradição, ela
deixaria de ser o que é, pois o ministério do Novo Testamento é um ministério
do Espírito; ele se realiza “não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo; não
sobre tábuas de madeira, mas sobre as tábuas de carne do coração[20]”.
Supondo-se que, por qualquer razão, a Igreja se visse privada de todos
os seus livros – do Antigo e do Novo Testamentos, das obras dos Santos Padres,
e dos livros litúrgicos, a Tradição recomporia a Escritura, não textualmente,
ponto por ponto, sem dúvida, mas como outra linguagem. Mas em seu conteúdo
essencial essa nova Escritura continuaria sendo a expressão da mesma “fé que
foi entregue aos Santos de uma vez por todas[21]”,
e a manifestação do único e mesmo Espírito que opera imutavelmente na Igreja.
A sagrada Escritura não é nem mais profunda, nem mais importante do
que a santa Tradição, mas é, como dissemos anteriormente, uma de suas formas.
Essa forma é das mais preciosas, porque é fácil guardá-la e servir-se dela;
mas, retirada da corrente da santa Tradição, a Escritura não poderia ser
compreendida corretamente por nenhuma explicação científica[22].
Se é certo que o apóstolo Paulo possuía “o espírito de Cristo[23]”,
com maior razão a Igreja possui esse espírito, contendo, como contém, a Paulo
em seu seio. E se os escritos de São Paulo e dos demais Apóstolos constituem a
sagrada Escritura, então, no caso hipotético que esses livros não existissem, a
nova Escritura da Igreja seria igualmente santa. Porque, segundo a promessa do
Senhor, Deus, a Santíssima Trindade, permanece para sempre na Igreja.
Os que rechaçam a Tradição da Igreja e, acreditando ir às fontes da
Igreja, se dirigem diretamente à sagrada Escritura, elegem um caminho sem saída.
Não é a sagrada Escritura, mas a santa Tradição, que é a fonte da Igreja. No
decurso das primeiras décadas de sua história, a Igreja ainda não possuía os
livros do Novo Testamento e não vivia senão da Tradição, a Tradição que o
Apóstolo Paulo exortava aos fiéis que lessem[24].
É bem conhecido o fato de que todos os heresiarcas sempre se apoiaram
sobre a sagrada Escritura, mas com a ressalva de que a interpretavam “ao seu
modo”. Já São Pedro alertava contra o perigo de deformar o sentido da Escritura
com interpretações pessoais[25].
Tomados isoladamente, os membros da Igreja, incluindo seus melhores
filhos e mestres, não chegam a reunir a totalidade dos dons do Espírito Santo;
por isso, suas doutrinas e escritos podem apresentar certas imperfeições e até
mesmo erros. Mas em seu conjunto, o ensinamento da Igreja, detentora dos dons
espirituais e do conhecimento, permanece verdadeiro através dos séculos.
Uma fé inquebrantável na verdade do ensinamento da Igreja ortodoxa em
seu conjunto e uma profunda confiança em tudo aquilo que ela aceitou e
confirmou pela sua experiência, são pressupostos na vida do monge athonita e o
preservam de qualquer diletantismo e de indagações vacilantes à margem da
Tradição. Entrando assim, pela fé, na vida da Igreja, o monge se converte em
herdeiro de suas riquezas incomensuráveis e, desde logo, sua experiência
pessoal assume um caráter categórico, já livre de toda dúvida.
Estudando a sagrada Escritura, as obras dos Santos Padres e os livros
litúrgicos – tesouros inesgotáveis do ensinamento dogmático e do espírito de
oração – o monge descobre riquezas imensas. Por essa razão, ele não se sentirá
inclinado a escrever sobre as mesmas coisas sem aportar algo essencialmente
novo. Mas se, na vida da Igreja, tal necessidade se apresentar, novos livros
não deixarão de ser escritos.
Cada novo livro que pretende se incorporar ao ensinamento da Igreja ou
ser uma expressão sua será submetido ao seu juízo, o qual, mediante um processo
necessariamente lento, provará e examinará todos os aspectos desse livro, e
antes de tudo sua repercussão na vida. Esse critério, a saber, a influência da
doutrina sobre a vida, tem uma importância capital em virtude da estreita
circularidade que existe entre a consciência dogmática e o ato da vida. A
Igreja rechaçará tudo o que se mostrar contrário ou incompatível com o Espírito
do amor de Cristo, do qual ela vive.
A caminho desse Amor, e vistos isoladamente, os filhos e membros da
Igreja podem balançar e cair, chegando mesmo a cometer graves transgressões;
mas em sua profundidade, a Igreja conhece por intermédio do Espírito Santo o
verdadeiro amor de Cristo. Onde quer que apareça esse termo “amor”, ainda que
carregado de distintos significados, a Igreja não se confunde.
Nós acreditamos que o santo Starets, filho fiel da Igreja, nos indica
sem seus escritos o supremo e mais seguro critério da verdade da Igreja. Esse
critério é a humildade de Cristo e o amor de Cristo aos seus inimigos.
O Starets escreve: “Ninguém pode conhecer por si mesmo o amor divino,
a menos que seja instruído pelo Espírito Santo; mas na nossa Igreja o amor de
Deus e conhecido pelo Espírito Santo, e por isso falamos dele (...) O Senhor é
bom e misericordioso, mas não poderíamos falar nada de seu amor fora da
Escritura se o Espírito Santo não nos instruísse (...) Nós não podemos julgar,
senão na medida em que tivermos conhecido a graça do Espírito Santo (...) Os
Santos não dizem nada por sua própria inteligência”. Conforme diz também São
Paulo: “Os Santos falam do que viram realmente e do que conhecem. Não falam do
que não viram[26]”.
A Escritura divinamente inspirada é palavra verídica, útil para
ensinar e para aprender e para por em pratica toda boa obra, agradável a Deus[27];
mas o conhecimento de Deus que deriva daí não pode alcançar a perfeição almejada,
se o Senhor não vier pessoalmente nos instruir por intermédio do Espírito
Santo.
Ainda que o Starets fosse verdadeiramente humilde e doce, ele
afirmava, como inquebrantável segurança e certeza interior, que o homem não
pode compreender o divino “por sua própria inteligência”, que o divino não é
conhecido senão “pelo Espírito Santo”. Por isso a sagrada Escritura, “escrita
pelo Espírito Santo”, não pode realmente ser compreendida por meio de estudos
científicos; estes não penetrarão mais do que nos detalhes e nos aspectos
exteriores, mas jamais na sua essência.
Enquanto um home não tiver recebido do alto o dom de “compreender as
Escrituras” e de conhecer “os mistérios do Reino de Deus”, enquanto ele não
tiver se tornado humilde por meio de uma longa luta contra as paixões, enquanto
não houver conhecido pela experiência a ressurreição de sua alma e tudo aquilo
que se encontra nesse majestoso e misterioso caminho, será para ele
absolutamente imprescindível ater-se estritamente à Tradição e ao ensinamento da
Igreja, sem se permitir doutrina alguma fundada em sua própria autoridade, por
mais sábio que seja no plano humano, pois os pensamentos humanos, ainda que os
mais geniais, estão muito longe do verdadeiro caminho do Espírito.
Até certo ponto, o Espírito Santo, o Espírito de Verdade, vive em
todos os homens, em especial nos cristãos, mas não é conveniente exagerar a
importância dessa experiência, ainda insuficiente, da graça, nem apoiar-se
audaciosamente nela.
O Espírito Santo, presente sempre realmente na Igreja, busca com
paciência e doçura a qualquer alma, mas é o próprio homem que não lhe concede a
liberdade de operar nele, e assim ele se mantém fora da luz e do conhecimento
dos mistérios da vida espiritual.
Sucede com frequência que, depois de haver provado de uma certa
experiência da graça, o homem não progride nela, mas a perde; sua vida
religiosa vai se tornando cerebral e toma a forma de um conhecimento abstrato.
Permanecendo nesse estado, ele se considera de posse do conhecimento
espiritual, mas não se dá conta de que uma compreensão abstrata, mesmo
precedida de uma certa experiência da graça, é na realidade uma deformação sui generis da Palavra de Deus. A
sagrada Escritura na sua essência permanece para ele como “um livro selado com
sete selos[28]”.
A sagrada Escritura é a palavra que “homens inspirados pelo Espírito
Santo pronunciaram da parte de Deus[29]”.
Mas as palavras dos Santos não podem ser vistas como algo inteiramente
desvinculado do nível intelectual e dos estado espiritual de seus destinatários.
Trata-se de palavras vivas dirigidas a seres vivos, concretos, e, por isso, uma
exegese científica – histórica, arqueológica, filológica, etc. – estará
indefectivelmente contaminada por erros.
Em todas as partes da sagrada Escritura subjaz o fim último e concreto
do homem. A esse fim único e imutável os profetas, os Apóstolos e os demais
doutores da Igreja conduziram os homens vivos, que se encontravam ao seu redor,
adaptando-se ao seu nível de compreensão.
Encontramos um exemplo particularmente ilustrativo disso no Apóstolo
Paulo. Ele, que certamente nunca se separou de sua visão singular e de seu
conhecimento de Deus, fez-se sem embargo “tudo para todos, a fim de salvá-los a
todos[30]”.
Em outras palavras, ele falava a todos de modo particular; se suas cartas forem
analisadas de uma perspectiva exclusivamente científica, a essência de seu
“sistema teológico” permanecerá inevitavelmente inalcançada.
O Starets tinha em alta estima a ciência teológica e aos que se
dedicavam a ela. Considerava, porém, que a ciência teológica só desempenha um
papel positivo no plano da vida da Igreja, mas nenhum na verdadeira vida do
Espírito.
Uma certa vagueza e imprecisão é, inevitavelmente, inerente à palavra
humana. Essa peculiaridade se encontra inclusive na sagrada Escritura; por
causa disso, as palavras humanas não conseguem expressar a verdade divina para
além de um certo ponto. Não queremos dizer que a Palavra divina seja rebaixada
ao nível da simples relatividade humana. Não. O pensamento do Starets é que a
compreensão da Palavra divina encontra sua chave no cumprimento dos mandamentos
de Cristo, e não na busca científica. É isso o que ensina o Senhor: “A
admiração fazia com que os judeus exclamassem: ‘Esse homem não fez estudos; de
onde lhe vem esse conhecimento das Escrituras?’. Jesus lhes respondeu: ‘Minha
doutrina não é minha, mas daquele que me enviou; se alguém quiser cumprir sua
vontade, discernirá se minha doutrina é de Deus ou se falo por mim’.[31]”.
O Senhor resumiu toda a sagrada Escritura numa fórmula muito breve:
amar a Deus e ao próximo[32].
Mas o que significa a palavra “amar”, quando pronunciada por Cristo,
permanecerá um mistério aos filólogos até a consumação dos séculos. A palavra
“Amor” é o próprio Nome de Deus, e seu sentido não se revela de outra maneira
que não pela ação de Deus.
DO NOME DE DEUS
O Starets utilizava preferencialmente, para nomear a Deus, o nome de
“Senhor”. Mediante esse nome, se referia algumas vezes à santa Trindade, outras
a Deus Pai, outras a Deus Filho. Muito poucas vezes designava assim ao Espírito
Santo, ao qual invocava com frequência; mesmo quando teria sido lícito utilizar
um pronome, o Starets repetia sem descanso o nome de “Espírito Santo”. Orava
assim, sem dúvida, porque esse nome, assim como o de “Senhor” e os demais nomes
divinos, suscitava sempre em sua alma um eco intenso, um sentimento de alegria
e de amor.
Esse fenômeno, ou seja, essa alegria e sentimento de luz e amor no
coração ao invocar a Deus, foi causa de longas controvérsias teológicas no
Monte Athos por causa da publicação do livro de um eremita cossaco, o monge
Hilário, intitulado Nas Montanhas do
Cáucaso. A disputa chegou mais tarde à Rússia, onde, entre 1912 e 1916,
atraiu a atenção do pensamento teológico russo e da hierarquia eclesiástica. No
plano dogmático. Essas discussões finalizaram com um resultado plenamente
satisfatório.
A controvérsia sobre o nome de Deus coincidiu com um período da vida
espiritual do Starets, durante o qual ele se encontrava empenhado numa dura
luta contra toda manifestação de vanglória e de orgulho, causa principal de
seus grandes tormentos. Ele guardava constantemente em seu coração o doce nome
de Cristo, pois a oração de Jesus atuava nele sem cessar. Entretanto, ele se
manteve à margem de todas as discussões sobre a natureza desse Nome. Sabia que,
mediante a oração de Jesus, a graça do Espírito Santo invade o coração, e que a
invocação do nome divino de Jesus santifica o homem por inteiro, consumindo as
paixões que habitam em seu interior; mas ele se absteve de interpretar dogmaticamente
sua experiência interior, temendo “enganar-se em seu juízo racional”. De lado a
lado muitos erros foram cometidos, antes que fosse encontrada uma solução
dogmática correta.
A controvérsia adquiriu um tom extremamente violento e tempestuoso, e
isso afligiu a alma do Starets, que passava suas noites no “pranto de Adão”.
PENSAMENTOS DO
STARETS SOBRE AS PLANTAS E OS ANIMAIS
O santo Starets foi para nós um presente extraordinário recebido desde
o alto, um encontro excepcional. Sua imagem perfeita de verdadeiro cristão era
o que mais nos impressionava; nele víamos como se dava a união surpreendente e
harmoniosa de disposições aparentemente incompatíveis. Assim, por exemplo,
ficava patente nele uma grande compaixão por qualquer ser vivo, por qualquer
criatura, traço pouco comum em homens tão viris como ele; e essa compaixão
alcançava tais dimensões que podia ser confundida com uma sensibilidade
patológica. Mas, por outro lado, diversos aspectos de sua vida demonstram que
essa compaixão não era fruto de um fenômeno patológico, senão que era a
expressão de uma magnanimidade sobrenatural e de uma bondade alimentada pela
graça.
O Starets se comportava com doçura, inclusive para com as plantas.
Considerava qualquer gesto brutal ou daninho em relação a elas como algo
contrário aos ensinamento da graça. Recordo que um dia íamos juntos pelo
caminho que conduzia do mosteiro à cela onde eu vivi por todo um ano, e que se
encontrava a um quilômetro do mosteiro. O Starets ia conhecer minha morada.
Levávamos bastões nas mãos, como é costume em lugares montanhosos. De lado e
outro do caminho brotavam algumas moitas de ervas selvagens. Querendo eu
impedir que o caminho fosse invadido pela proliferação dessas ervas, golpeei
com a ponta do bastão na extremidade de um tronco para não deixar que se
formassem novos brotos de ramos. Meu gesto pareceu brutal ao Starets, que
voltou a cabeça de leve e com surpresa. Compreendi o que aquilo significava e
fiquei envergonhado.
O Starets dizia que o Espírito de Deus ensinava a compaixão por
qualquer criatura, até o ponto de que, desnecessariamente, não se devia desejar
fazer dano algum sequer às folhas de uma árvore: “A folha estava verde na
árvores e você a arrancou sem necessidade. É certo que isso não chega a ser
pecado, mas o coração que aprendeu a amar se compadece de toda criatura, mesmo
uma pequena folha”.
Essa piedade para com a folha verde de uma árvore, ou para com as
flores do campo pisadas pelos pés, conciliava-se nele com uma atitude
perfeitamente realista a respeito das coisas que existem no mundo. Como
cristão, ele era consciente de que tudo foi criado a serviço do homem; assim,
quando necessário, o homem pode se utilizar de tudo. Ele próprio não deixava de
cortar a erva, aparar as árvores, preparar as provisões de lenha para o
inverno, comer pescado.
Ao ler os escritos do Starets, convém prestar atenção aos seus
pensamentos e sentimentos no que se refere aos animais. Nesse ponto,
surpreendemo-nos diante de sua compaixão diante de qualquer criatura. Podemos
fazer uma ideia a respeito, lendo, como conta um de seus relatos, quando
deplorou a crueldade com as criaturas, por alguém haver matado uma mosca sem
necessidade, ou por ter derramado água fervente sobre um morcego que havia se
instalado no terraço do armazém, ou ainda “como a compaixão tomou todo o ser
por toda criatura e todo ser que sofre” quando viu uma serpente despedaçada no
caminho. Mas, por outro lado, sua ardente tendência a Deus o desprendia do
criado.
Pensava que os animais dão “da terra”, e que o espírito do homem não
deve se afeiçoar a eles, pois devemos amar a Deus com toda inteligência, com
todo o coração, com todas as forças, vale dizer, com nosso ser inteiro,
esquecendo-nos da terra.
Vemos com frequência pessoas que se afeiçoam aos animais, chegando
mesmo a travar “amizade” com eles. O Starets via isso como uma perversão da
ordem estabelecida por Deus, e como algo contrário à condição normal do homem[33].
Acariciar a um gato dizendo “bichano, bichano”, brincar e falar com um cão,
esquecendo-se de Deus, ou então preocupar-se com os animais até o ponto de
esquecer o sofrimento do próximo, ou, por causa deles, discutir com as pessoas,
tudo isso era para o Starets uma violação dos mandamentos divinos, que quando
são cumpridos fielmente conduzem o homem à perfeição. Em todo o Novo Testamento
não encontramos uma única passagem na qual se diga que o Senhor tenha fixado
sua atenção nos animais, mesmo amando ele a criação em sua integralidade.
Alcançar essa humanidade perfeita, a imagem do Cristo Homem, é nossa vocação,
em conformidade com a nossa natureza criada à imagem de Deus. Assim, o Starets
via o apego interior e a paixão pelos animais como um rebaixamento da condição
humana. Eis aqui o que ele escreve a respeito: “Algumas pessoas se afeiçoam aos
animais, mas isso ofende o Criador, pois o homem é chamado a viver eternamente
com o Senhor, a reinar com ele e a não amar senão a Deus. Não convém ter apego
aos animais; basta um coração acolhedor a todas as criaturas”.
Dizia que tudo foi criado a serviço do homem; de modo que, em caso de
necessidade, é lícito servir-se de todo o criado. Mas, a seu tempo, o homem tem
a obrigação de cuidar de todas as criaturas, e por essa razão qualquer mal
infligido sem necessidade a um animal ou uma planta contradiz a lei da graça.
Mas todo apego pessoal aos animais é também contrário ao mandamento de Deus, na
medida em que diminui o amor a Deus e ao próximo. Aquele que ama
verdadeiramente aos homens e que em suas orações chora pelo mundo inteiro, não
pode apegar-se aos animais.
DA BELEZA DO MUNDO
A beleza do mundo visível enchia de alegria a alma do Starets. Ele não
manifestava sua emoção, nem por suas atitudes, nem por gestos; somente
transparecia pela expressão do seu rosto e pela entonação de sua voz. Essa
discreta reserva não fazia senão ressaltar mais ainda a autenticidade de uma
profunda emoção. Concentrado habitualmente em sua vida interior, não se fixava
muito no mundo externo; mas quando seu olhar se estendia sobre a beleza do
mundo visível, encontrava aí novas ocasiões para contemplar a glória divina e
dirigia seu coração ainda mais a Deus.
A esse respeito, era como uma criança: tudo o maravilhava. Em seus
escritos, observava sabiamente como o homem que perdeu a graça não sabe
perceber a beleza do mundo, e nada é capaz de lhe despertar admiração. O
esplendor inexprimível da criação não o afeta. Por outro lado, quando a graça
está no homem, tudo o que existe no mundo é ocasião para maravilhar-se, e ao
contemplar a beleza visível a alma se dá conta da admirável presença de Deus em
todas as coisas.
Com um agudo sentido de beleza, o Starets contemplava as nuvens, o
mar, as montanhas, os bosques, os prados, uma solitária arvorezinha. Dizia que
a glória do Criador resplandece inclusive n no mundo visível, mas acrescentava
que o fato de contemplar a glória do Senhor no Espírito Santo é algo que supera
infinitamente o pensamento humano.
Observando um dia o jogo das nuvens no céu intensamente azul da
Grécia, ele disse: “Penso o quão pleno está o Senhor de majestade! Quanta beleza
ele criou para sua glória, para o bem de seu povo, a fim de que as nações
glorifiquem com alegria o seu Criador! Rainha dos Céus, torna teu povo digno de
contemplar a glória do Senhor!”.
Assim, depois de se deixar levar durante um breve instante pela contemplação
da beleza visível e da glória de Deus manifestada nela, ele voltava em seguida
à oração pelo mundo.
OS SERVIÇOS
LITÚRGICOS
O Starets gostava muito dos longos serviços celebrados na igreja, cuja
riqueza de conteúdo espiritual é imensa. Estimava grandemente o esforço dos
cantores e leitores, e orava por eles pedindo a Deus que lhes concedesse sua
ajuda, em especial nas vigílias que duram toda a noite. Segundo a regra do
mosteiro, ao longo do ano são celebradas sessenta e seis vigílias durante a
noite inteira. Sem embrago, apesar de seu amor pela esplêndida beleza dos
cantos litúrgicos e dos ofícios, considerava que esses, embora formados graças
à ação do Espírito Santo, não representam a forma perfeita de oração, mas são
concedidos ao “povo dos fiéis” porque são acessíveis e úteis a todos.
“O Senhor nos deu os serviços cantados, como a frágeis crianças; nós
ainda não sabemos orar como se deve, e o canto é útil para todos, desde que se
cante com humildade. Mas vale mais que nosso coração se converta em templo do
Senhor e nosso espírito seu altar”, escreve ele. E acrescenta: “O Senhor é
glorificado nas santas igrejas, mas os monges eremitas o glorificam no coração.
O coração de um eremita é um templo, e seu espirito serve de altar, pois o
Senhor ama habitar no coração e no espírito do homem”.
Do mesmo modo, ele pensava que quando a oração ininterrupta se assenta
na profundidade do coração, o universo inteiro se transforma em templo de Deus.
DA SEMELHANÇA DO
HOMEM COM DEUS
O Starets costumava dizer e escrever que aqueles que observam os
mandamentos do Senhor são semelhantes a Cristo. Essa semelhança pode ser maior
ou menor, mas não tem um limite definido. É essa a inconcebível grandeza da
vocação do homem: tornar-se verdadeiramente semelhante a Deus.
Com efeito, São Silouane afirmava: “Tanto amou Deus à sua criatura que
o homem se converteu em semelhante a Deus”. Ao dizer isso, ele recordava as
palavras de São João o Teólogo: “Seremos semelhantes a ele, porque o veremos
tal como é[34]”.
O Starets amava infinitamente as palavras de Cristo: “Pai, aonde eu
estiver desejo que estejam comigo aqueles a quem me destes, a fim de que
contemplem minha glória[35]”.
Não é possível ver essa glória sem participar dela. Por conseguinte, essas
palavras “a fim de que contemplem minha glória” significam: a fim de que essa
glória seja outorgada também a eles.
Deus é Amor, e, enquanto Amor infinito, quer dar-se inteiramente ao
homem: “Eu lhes dei a glória que me destes[36]”.
E se essa glória é outorgada aos homens, então, subsistindo em sua essência
criada, o homem se converte em deus pela graça; vale dizer, ele recebe o modo
de existência divina. Assim como Cristo assumiu em sua Encarnação a forma da
existência humana, por mais que sua condição fosse divina, também o homem recebe
em Cristo a forma da existência divina, ainda que em sua condição natural ele
não passe de um escravo.
Mesmo a sagrada Escritura mantém uma discreta reserva a esse respeito
e prefere não falar disso. Por que? Talvez porque, entre aqueles que escutariam
essa verdade, alguns poderiam cair na tentação de dar rédea solta à sua
imaginação e lançar-se em seus sonhos até as alturas vertiginosas,
esquecendo-se ou desconhecendo que Deus é Humildade.
Vendo o Senhor como o pai mais próximo, mais terno e mais íntimo, o
Starets dizia: “O Espírito Santo nos outorga um parentesco próximo com Deus”.
Por meio de sua chegada na alma, o Espírito Santo estabelece um parentesco
entre o homem e Deus, de modo que com um sentimento de profunda certeza a alma
chama ao Senhor de “Pai”.
***
A alma do Starets estava penetrada pela ideia da grandeza do Senhor
que sofre pelos pecados dos homens, pelo mundo inteiro. Ele ficava maravilhado
com a imensidão do amor de Deus e de sua humildade. Em sua alma, ele cantava um
hino de louvor ao Senhor por seu sofrimento redentor. Sabia que a graça do
Espírito Santo lhe havia ensinado esse louvor, e o hino era-lhe mais doce do
que qualquer outra coisa.
Ele entendia a doxologia das forças celestes como um louvor
ininterrupto dirigido ao Senhor por sua humildade e sofrimentos, por meio dos
quais havia resgatado o homem da morte eterna. Em seu espírito, o Starets
percebia misteriosamente esses cantos dos Querubins que, dizia ele, “são
ouvidos em todos os céus”, e que são “doces, porque são proferidos pelo
Espírito Santo”.
DA BUSCA DE DEUS
O Starets tinha uma visão muito pessoal sobre esse ponto: não pode
buscar a Deus senão aquele que um dia o conheceu e logo o perdeu. Considerava
assim que toda busca de Deus é precedida por uma certa experiência de Deus.
Deus não violenta o homem; pacientemente, se coloca junto da porta de
seu coração, esperando humildemente o momento em que o coração se abre. O
próprio Deus busca o homem antes mesmo que o homem busque a Deus. Quando,
elegendo o momento oportuno, o Senhor se revela ao homem, só então o homem
conhece a Deus na medida que lhe tenha sido concedido e na medida em que o
homem em seguida se apresse a buscar a Deus, que se oculta novamente em seu
coração.
O Starets dizia: “Como buscará você aquilo que não perdeu? Como poderá
você buscar algo que jamais conheceu? Mas a alma conhece o Senhor e, por essa
razão, o busca”.
DAS RELAÇÕES COM O
PRÓXIMO
A atitude de um homem para com seu próximo constitui um indício seguro
do grau de seu conhecimento da graça e do grau a que ele próprio chegou.
Quem, por um lado, experimentou em si mesmo a intensidade que podem
chegar a ter os sofrimentos do espírito humano quando se encontra separado da
vida divina, e quem, por outro lado, conheceu aquilo que é o homem quando está
em Deus, sabe também que todo ser humano é de um valor eterno e imperecível,
mais precioso do que o resto do mundo; ele conhece a dignidade do homem, sabe
que cada um “desses pequeninos[37]”
é precioso aos olhos de Deus. Desse modo, jamais terá o menor pensamento de
homicídio, nem se permitirá prejudicar a seu próximo ou afligi-lo de qualquer
modo que seja.
Quem apenas “crê”, quem não experimentou em si mesmo mais do que um
ligeiro toque da graça e não “pressente” ainda com clareza a vida eterna, evita
pecar na medida de seu amor a Deus, mas seu amor ainda está longe de ser
perfeito e pode ofender ao seu irmão.
Mas o homem que, sem respeito aos demais, os prejudica “por interesse”
e por “vantagem própria”, o homem que pensa em cometer homicídio ou que o
comete, ou bem é semelhante a um animal selvagem e, em seu foro interno, sabe
que leva tal existência – vale dizer, não crê na vida eterna –, ou bem está
comprometido numa vida espiritual demoníaca.
***
A aparição de Cristo ao Starets o fez descobrir essa semelhança com
Deus que está oculta em qualquer homem. Para ele todos os homens eram filhos de
Deus e portadores do Espírito Santo. O Espírito Santo, Espírito e Luz de
Verdade, vive em algum grau em cada ser humano e o ilumina. Quem permanece na graça,
percebe sua presença também nos outros; mas aquele que não o experimenta em si
mesmo, tampouco o percebe nos demais. O Starets dizia que a atitude de uma
homem para com seu próximo é indicativa do grau de graça que possui: “Se um
homem percebem a presença do Espírito Santo em seu irmão, isso indica a
presença de uma graça extraordinária nele, mas o que odeia ao seu irmão está
possuído por um espírito perverso”.
Este último não oferecia dúvida alguma ao Starets. A seus olhos era
evidente que todo aquele que odeia a seu irmão se converteu, em seu coração, no
covil do espírito do mal, e por isso está separado de Cristo.
DA UNIDADE DO MUNDO
ESPIRITUAL E DA GRANDEZA DOS SANTOS
O Starets concebia a vida do mundo espiritual como um todo. Em virtude
dessa unidade, qualquer fenômeno espiritual repercute inevitavelmente no
conjunto desse mundo. Se o fenômeno é benéfico, o mundo dos espíritos celestes,
“todos os Céus”, se alegram; mas se ao contrário é maléfico, eles se afligem.
Por mais que cada fenômeno espiritual deixe assim sua marca no estado do mundo
espiritual, são antes de tudo os Santos que estão dotados de uma sutil
capacidade de percebê-lo. O Starets atribuía à ação do Espírito Santo essa
intuição capaz de abolir os limites humanos normais. A alma cheia do Espírito
Santo “vê” o mundo inteiro e o engloba em seu amor.
O Starets estava firmemente convencido de que os Santos escutam nossas
orações. Dizia que isso era demonstrado pela experiência constante da comunhão
que se estabelece com eles na oração. Na terra, os Santos recebem do Espírito
Santo esse dom, mas apenas em parte; esse dom só alcança sua perfeição depois
que se abandona esse mundo.
Quando se referia à capacidade propriamente divina dos Santos, ficava
maravilhado com o amor infinito de Deus pelos homens: “O Senhor amou os homens
a tal ponto que lhes deu o Espírito Santo, e no Espírito Santo o homem se
converteu em semelhante a Deus. Aqueles que não o creem, e não dirigem sua
oração aos Santos, ignoram o quanto o Senhor ama o homem e quanto o enalteceu.
DA VISÃO ESPIRITUAL
DO MUNDO
O Starets dizia com frequência: “Quando o espírito está concentrado em
Deus, esquece o mundo”; entretanto, também é ele que escreveu: “O homem
espiritual voa como uma águia nas alturas, sua alma experimenta a presença de
Deus e, muito embora ore nas trevas da noite, ele vê todo o universo”.
Podemos nos perguntar se não existe uma contradição aqui. Por outro
lado, não seria ilusória essa percepção do mundo?
Mas é também ele quem escreve: “São raras as almas que te conhecem, e
poucos aqueles com que se pode falar de ti”. Vamos nos permitir uma empreitada
audaz: revelar, ainda que parcialmente, o sentido das palavras do Starets.
***
A oração pura atrai o intelecto para o coração, unifica o homem
inteiro, incluindo seu corpo. Abismando-se no coração, o intelecto abandona as
imagens do mundo; a alma, voltada para Deus com todas as suas forças na oração
interior, vê-se, sob a luz que emana de Deus, de uma maneira muito peculiar.
Não são os fenômenos exteriores, nem as condições de existência que ela percebe
então, mas vê-se desnuda na raiz profunda de sua própria natureza.
Apesar da ausência de qualquer visualização, apesar da extrema
concisão e simplicidade dessa contemplação inteiramente orientada para a fonte
da vida, para Deus, os limites dentro dos quais se move a existência do mundo
espiritual explodem aqui. A alma, despojada de tudo e não vendo nada, “vê” em
Deus o universo inteiro e, consciente de sua unidade com esse universo, ora por
ele.
“E eu, escreve o Starets, não desejo senão uma coisa: orar por todos
como por mim mesmo”.
Todos nós já nos entusiasmamos algum dia ao contemplar a grandiosidade
e a beleza da natureza. Mas eis que temos aqui diante de nossos olhos uma
pequena fotografia descolorida: em lugar dos vastos espaços cuja imensidão
escapa a qualquer olhar, vemos um pequeno pedaço de papel e, em lugar da
indescritível riqueza da luz, de movimentos, cores e formas, vemos não mais do
que uma justaposição insignificante de manchas mais ou menos escuras. Que
diferença entre a pequena fotografia sem vida e aquilo que ela representa! A
mesma diferença, e ainda maior, existe entre as palavras referidas e a vida que
se esconde por detrás delas.
DAS FORMAS DE
CONNHECER O MUNDO
O Starets era dotado de uma bela e viva inteligência, excepcionalmente
audaciosa. Ele escreve: “Por meio de nossa inteligência não conseguimos saber
como foi feito o sol. E se pedimos a Deus: ‘Dize-nos como foi feito o sol’,
escutaremos claramente a resposta: ‘Humilha-te, e conhecerás não apenas o sol,
como seu Criador’. Mas quando a alma conhece o Senhor pelo Espírito Santo,
então, com alegria, esquece o mundo inteiro e já não se preocupa com os
conhecimentos terrenos”.
Essas palavras quase ingênuas enceram uma alusão a duas formas distintas
de conhecimento da realidade. O caminho habitual e conhecido para chegar ao
conhecimento consiste em orientar a faculdade cognitiva do espírito humano para
o mundo exterior. Ali a alma encontra uma incontável variedade de fenômenos, de
aspectos, de formas e um entrelaçamento infinito de tudo o que existe. Assim,
esse conhecimento nunca é integral e não pode alcançar a verdadeira unidade.
Mediante essa forma de conhecimento, a inteligência, buscando a unidade a
qualquer preço, recorre a uma síntese que será sempre e inevitavelmente
artificial. A unidade à qual a inteligência chega por esse caminho não é algo
real e objetivo, mas uma entidade intelectual própria do raciocínio abstrato.
O outro caminho que conduz ao conhecimento consiste em dirigir o espírito
primeiro ao interior de si mesmo e em seguida a Deus. Aqui se dá a situação
inversa do primeiro conhecimento: o intelecto se retira da multiplicidade e da
fragmentação indefinidas do mundo exterior e se volta para Deus com todas as
suas forças; permanecendo em oração, ela se integra ao ato criador de Deus e
então vê a si mesma e a todo o universo.
Para o homem decaído é natural recorrer à primeira forma de
conhecimento; a segunda forma é o caminho do Filho do Homem.
“O Filho não pode fazer nada por si mesmo, mas apenas aquilo que vê
fazer o Pai (...) Mas o Pai ama o Filho e lhe mostra tudo o que faz (...) Como
o Pai, com efeito, possui a vida em si mesmo, assim concedeu ele ao Filho ter
igualmente a vida em si[38]”.
Como são ingênuos aqueles que esperam alcançar um conhecimento
perfeito e integral pelos caminhos da ciência experimental!
A segunda forma de conhecimento começa com a oração pura e com o dom
de fazer milagres. Inserindo-se na corrente da vontade do Pai, os Santos, tal
qual o Filho de Deus, realizaram milagres e assim se converteram em partícipes[39]
e cooperadores de Deus[40]
no ato da criação do mundo[41].
Nos limites da vida terrestre, uma experiência cognitiva desse tipo é sempre
parcial, mas, depois de deixar esse mundo, os que creem em Deus recebem em
parte a onisciência e a onipotência divinas[42].
Para essa forma de conhecimento adquirido pela oração tendia o
Starets. Ele se manteve até o final de seus dias à margem dos assuntos do
mundo, alheio a toda vã curiosidade e livre de todo apego passional. Seu
espírito estava continuamente ocupado por Deus e pelo homem.
DO DISCERNIMENTO
ENTRE GRAÇA E ILUSÃO
Em nosso desejo de aprender com o Starets se existe um critério que
permita distinguir de modo seguro entre o verdadeiro caminho espiritual e os
“espelhismos de verdade” que encontramos quando nos afastamos do caminho,
conversamos com ele a respeito desse particular. Suas palavras foram preciosas:
“Quando o Espírito Santo enche o homem inteiro com a doçura de seu amor, o
mundo é inteiramente esquecido e a alma contempla a Deus com indizível alegria.
Mas quando a alma se recorda outra vez do mundo, então ela chora cheia de amor
a Deus e de compaixão pelos homens, e pede por todo o universo”.
“Entregue às lágrimas e à oração pelo mundo que o amor suscita nela, a
alma, cheia de doçura do Espírito Santo, pode novamente esquecer-se do mundo e
descansar em Deus. E quando volta a ela a recordação do mundo, mais uma vez ela
ora, derramando lágrimas, implorando, sumida em aflição, pela salvação de todos
os homens. Eis aqui o verdadeiro caminho que o Espírito Santo ensina”.
“O Espírito Santo é amor, paz e doçura. O Espírito Santo ensina a amar
a Deus e ao próximo. Mas o espírito da ilusão é um espírito de orgulho; ele não
perdoa nem ao homem nem às demais criaturas, porque não criou nada. Atua como
ladrão e raptor: seu caminho está cheio de ruínas. O espírito de ilusão não
pode trazer verdadeira doçura, ele não traz senão o ansioso gozo da vaidade;
nele não existe nem vaidade, nem paz, nem amor; ele só conduz à gélida
indiferença do orgulho”.
“O Espírito Santo ensina o amor a Deus; a alma deseja o Senhor e o
busca dia e noite, cheia de doçura e de lágrimas, enquanto que o Adversário
exala sua angústia sufocante e tenebrosa, que destrói a alma. Esses são os indícios
que permitem distinguir claramente a graça divina da ilusão do Inimigo”.
Dissemos ao Starets que existem pessoas que consideram a
impassibilidade não como amor a Deus, mas como uma contemplação situada acima
do bem e do mal, e que consideram que essa contemplação superior ao amor
cristão. O Starets respondeu: “Essa doutrina provém do inimigo, não é isso que
o Espírito Santo ensina”. Escutando o Starets, não podíamos deixar de invocar a
imagem sinistra desses “super homens” que se lançam “além do bem e do mal”.
O Starets dizia: “O Espírito Santo é Amor e dá à alma a força de amar
até aos nossos inimigos. Quem não possui esse amor ainda não conheceu a Deus”.
Aos olhos do Starets, esse critério de amor aos inimigos se revestia de uma
importância decisiva. Ele dizia: “O Senhor é Criador misericordioso e tem
compaixão por todos, o Senhor tem piedade de todos os pecadores, como uma mãe
tem por seus filhos, ainda que sigma pelo mau caminho. Onde não existe amor
pelo inimigos e pelos pecadores, o Espírito do Senhor está ausente”.
OBSERVAÇÕES SOBRE A
LIBERDADE
Contamos anteriormente uma conversa entre o Starets e um jovem
estudante[43],
graças à qual pudemos formar uma ideia sobre como ele concebia a liberdade.
Queremos agora completar o quadro, referindo outros pontos de vista que o
Starets expôs por escrito ou oralmente, numa linguagem dificilmente
compreensível à maior parte dos homens.
A vida do Starets transcorria acima de tudo em oração. O intelecto que
ora não “pensa”, não raciocina, apenas vive. O intelecto em estado de oração
não opera por meio de conceitos abstratos, mas participa diretamente do ser. O
intelecto que ora verdadeiramente opera mediante categorias qualitativamente
distintas daquelas utilizadas pelo pensamento racional. Esse tipo distinto de
categorias consiste numa percepção existencial direta que não se deixa encerrar
no estreito quadro dos conceitos abstratos.
O Starets não era um filósofo no sentido habitual do termo, mas era na
verdade um sábio que possuía o conhecimento daquilo que se encontra mais além
da filosofia.
Tomemos como exemplo a experiência da “lembrança da morte”. Com essa
expressão os escritos ascéticos dos Padres não entendem a consciência que o
homem tem normalmente de sua própria mortalidade, a simples recordação do fato
que morremos. A “lembrança da morte” começa por uma “sensação espiritual” muito
particular sobre a brevidade de nossa existência terrestre; seja
debilitando-se, seja reforçando-se, essa sensação vai se transformando numa
percepção profunda do caráter corruptível e efêmero de tudo o que é terrestre,
modificando com isso o comportamento do homem diante de tudo o que encontra
pelo mundo. Tudo o que não permanece na eternidade perde valor aos seus olhos,
ao mesmo tempo em que surge um sentimento da vacuidade de todas as coisas que
podem ser adquiridas aqui em baixo. A sensação do intelecto se separa do
entorno ambiental, concentrando-se no interior, onde a alma enfrenta o abismo
insondável das trevas. Essa visão mergulha a alma numa angústia que provoca
nela uma oração intensa que não cessa dia e noite. No princípio, o tempo perde
sua duração; mas não porque a alma veja a luz da vida eterna, mas, ao
contrário, porque tudo se vê sepultado por uma sensação de morte eterna. Por
fim, depois de haver franqueado numerosas e variadas etapas, a alma, sob a ação
da graça, chega à contemplação da luz divina. Não se trata de uma superação
conseguida por meio de um itinerário filosófico, mas da própria vida em sua
manifestação mais verdadeira, e sem que haja necessidade de “provas” dialéticas
extrínsecas. É um conhecimento indefinível, indemonstrável e oculto; mas,
apesar de seu caráter indefinível, esse conhecimento, enquanto autêntica vida,
é sem comparação mais poderoso e interiormente mais convincente do que a mais
impecável dialética abstrata.
O Starets ora: “Os homens se esqueceram de Ti, seu Criador, e buscam
sua própria liberdade sem se dar conta de que Tu és misericordioso, de que amas
os pecadores que se arrependem e de que lhes concede a graça do Espírito Santo”.
Dirigindo sua oração ao Deus onisciente, o Starets utiliza poucas palavras e
não desenvolve suas ideias. “Os homens buscam sua própria liberdade, vale
dizer, fora de Deus, fora da verdadeira vida, onde ela não está nem pode estar,
ali onde ficam as “trevas exteriores” do nada, porque a liberdade não existe
senão onde desaparece a morte e onde se encontra a verdadeira vida eterna, ou
seja, em Deus”.
“Tu és misericordioso e lhes concede a graça do Espírito Santo”. Deus
concede o dom do Espírito Santo e o homem se torna livre. “Onde está o Espírito
do Senhor, ali está a liberdade[44]”.
“Todo homem que se entrega ao pecado se torna escravo. E o escravo não
permanece eternamente na casa. Assim, pois, se o Filho vos libertar, sereis
realmente livres[45]”.
O conhecimento “existencial”, ou, como dizia o Starets, o conhecimento
por experiência vivida da liberdade humana é extremamente profundo na oração
que nasce da graça. Com toda sua alma, o Starets estava convencido de que a
única escravidão real é a do pecado e que a única liberdade verdadeira é a
ressurreição em Deus.
Enquanto o homem não tenha efetuado sua ressurreição em Cristo, tudo
permanece deformado nele pelo temor da morte e, portanto, pela escravidão do
pecado[46].
Entre os que ainda não conheceram a graça de sua ressurreição, somente poderão
evitar essas deformações aqueles que ouviram: “Bem-aventurados os que não
viram, mas creram”.
***
Não encontramos nenhum termo para delimitar a vida espiritual, pois
ela é insondável e propriamente indefinida em sua raiz, em sua origem eterna, e
ao mesmo tempo é simples e uma em sua natureza. Talvez pudéssemos chamar de
“supra consciente” a esse domínio, mas essa denominação tampouco seria
suficientemente clara, e, por outro lado, com ela não estaríamos especificando
mais do que a relação existente entre a consciência reflexiva e aquilo que se
encontra para além de suas limitações.
Se nos deslocarmos desse território indefinível para a esfera
acessível à nossa observação, e inclusive a um certo controle de nossa parte,
veremos que a vida espiritual se manifesta de duas maneiras: como estado ou ato
espiritual e como consciência dogmática. Esses dois aspectos, diferentes e
inclusive de certo modo separados em sua “concretude”, ou seja, em sua
expressão formal no plano de nossa vida empírica, não constituem em sua
essência senão um todo único e indivisível. Em outras palavras, todo ato
ascético, todo ato espiritual, está indissoluvelmente unido à consciência
dogmática que lhe corresponde.
Tendo em vista o que precedem tentamos agarrar a consciência dogmática
subjacente à grande oração do Starets e nas ardentes lágrimas que ele derramava
pelo mundo. Ao transpor para uma linguagem mais acessível ao homem
contemporâneo as palavras do Starets, dificilmente compreensíveis em sua
extrema simplicidade, esperamos aproximarmos mais do conteúdo de sua
consciência dogmática.
O Starets dizia e escrevia que o amor de Cristo não suporta a perda de
nenhum homem e que, em seu desejo de salvá-los a todos e com vistas a alcançar
esse objetivo, segue o caminho do sacrifício.
O Senhor dá ao monge o amor do Espírito Santo, e esse amor enche o
coração do monge de dor pelos homens, porque esse não estão todos no caminho da
salvação. O próprio Senhor afligiu-se de tal maneira pelo seu povo que se
entregou à morte na cruz. A Mãe de Deus levava em seu coração essa mesma
compaixão pelos homens; e como seu Filho amado, desejava com todo seu ser a
salvação de todos. É o próprio Espírito Santo, que o Senhor entregou aos
Apóstolos, aos nossos Santos Padres e aos pastores da Igreja.
Não é possível salvar aos demais de uma maneira autenticamente cristã
senão por meio desse amor, ou seja, atraindo-os – aqui não há lugar para a
coação. Buscando a salvação de todos os homens, o amor quer chegar até o
limite; por isso abraça não apenas o mundo dos que vivem atualmente na terra,
mas também aos que já morreram, e ainda o próprio inferno, e aqueles que ainda
não nasceram, ou seja, o Adão total. Alegre e gozoso quando vê a salvação dos
irmãos, o amor geme e suplica quando vê sua perdição.
Nós perguntamos ao Starets: “Como podemos amar a todos os homens? Onde
se encontra um amor que permita que sejamos todos um?”.
O Starets respondeu: “Para chegar a ser um com todos os homens,
conforme a palavra do Senhor, ‘que todos sejam um[47]’,
não precisamos inventar nada de novo: todos formamos parte da mesma natureza,
por isso seria natural que nos amássemos uns aos outros; e quem dá a força para
amar é o Espírito Santo”.
A força do amor é grande e vitoriosa, mas não é ilimitada. Existe no
ser humano uma zona na qual sequer o amor é capaz de se impor, algo que marca o
limite de seu poder. E qual é?
É a liberdade.
A liberdade do homem, com efeito, é tão grande e real que nem o
sacrifício de Cristo, nem o de todos os que o seguiram, conduz necessariamente
à vitória.
O Senhor disse: “Quando eu for levantado da terra (ou seja,
crucificado), atrairei todos os homens para mim”. Assim, o amor de Cristo
espera atrair a todos os homens para si, e para isso ele desce aos infernos.
Mas mesmo a esse amor perfeito e esse sacrifício perfeito alguém – quem?
Quantos? Não o sabemos – pode responder com uma recusa, inclusive no plano
eterno, e dizer: “não quero”.
É essa terrível possibilidade da liberdade que a Igreja conhecia bem,
graças à sua experiência espiritual, e foi isso que a levou a rechaçar a
doutrina dos origenistas.
Ninguém pode duvidar que uma oração pela salvação de todos, tal como a
vemos na vida do Starets, não poderia nascer de uma consciência origenista.
O que o Starets conhecera quando Cristo lhe apareceu era para ele uma
certeza inquebrantável. Ele sabia que quem lhe havia aparecido era o Senhor
onipotente. Sabia que graças à ação do Espírito Santo ele havia conhecido a
humildade de Cristo e que havia sido cumulado de um amor que excedia a medida
do suportável. Pelo Espírito Santo ele conheceu que Deus é amor ilimitado e
misericórdia infinita. E, sem embargo, o conhecimento dessa verdade não o
induziu a pensar que “em qualquer caso, todos se salvarão”. Seu espírito permaneceu
sempre consciente da possível perdição eterna, porque à alma em estado de graça
se revela toda a amplitude da liberdade humana.
***
A liberdade absoluta consiste na faculdade de determinar a existência
em todos os planos, sem nenhuma dependência, necessidade ou limite impostos
desde o exterior. Essa é a liberdade de Deus; o homem não possui tamanha
liberdade.
A tentação do homem, criado à imagem de Deus, é querer criar sua
própria existência, determinar a si mesmo em todos os níveis, fazer-se igual a Deus;
pois não receber mais do que o que foi dado implica um sentimento de
dependência.
O santo Starets dizia que essa tentação, como todas as outras, pode
ser vencida pela fé em Deus. A fé na bondade e misericórdia infinita de Deus
pode fazer descer a graça na alma, e então desaparece essa penosa sensação de
dependência: a alma ama a Deus como ao seu próprio Pai e vive para ele.
***
O Starets era um pouco instruído; seu desejo de conhecer a verdade não
era, sem embargo, menor do que o de qualquer outro homem; mas para obter a
verdade seguia um caminho inteiramente distinto do da filosofia especulativa.
Sabendo disso, observávamos com grande interesse o modo como, numa atmosfera
peculiar e de modo muito pessoal, os problemas teológicos iam se apresentando
ao seu espírito, e de que maneira sua solução tomava forma em sua consciência.
Silouane não podia desenvolver uma questão segundo as regras da
dialética, nem expô-la numa linguagem conceitual, pois temia “confundir-se em
seus raciocínios”; mas as teses que expunha estavam marcadas por uma
profundidade excepcional. Surgia espontaneamente a pergunta: de onde lhe vinha
tanta sabedoria?
O Starets era um testemunho vivo de que o conhecimento das verdades
espirituais mais elevadas é obtido mediante a observância dos mandamentos de
Cristo, não pela erudição proveniente do exterior. Ele vivia em Deus e recebia
de Deus suas iluminações, e seu conhecimento não constituía um saber abstrato,
mas era a própria vida.
No começo desse capítulo nos propusemos expor o ensinamento do
Starets, mas na medida em que o tentávamos nos veio a ideia de que talvez
conseguíssemos alcançar melhor nosso objetivo descrevendo na medida do possível
sua experiência espiritual. Sendo uma ação de Deus no homem, toda experiência
espiritual traz, em cada caso histórico concreto, algo inteiramente novo; por
outro lado, todos os pensamentos do Starets referentes aos problemas
espirituais eram fruto de sua ascese de oração e das visitas da graça divina.
O cristianismo não é uma filosofia, não é um “ensinamento”, uma
doutrina, mas a própria vida, e todas as conversas do Starets e todos seus
escritos são testemunhos dessa vida.
DA RELAÇÃO PESSOAL DO
HOMEM COM O DEUS PESSOAL
O Senhor disse a Pôncio Pilatos: “Eu vim ao mundo para dar testemunho
da verdade”. Pilatos, cético, respondeu: “O que é a verdade?”, e, convencido de
que não havia resposta para essa pergunta, não atendeu mais a Cristo e o enviou
a comparecer perante os judeus.
Num certo sentido, Pilatos tinha razão; se por “verdade” entendemos a
verdade última que é a fonte de tudo o que existe, a pergunta “o que é a
verdade?” não pode obter resposta.
Mas se Pilatos, pensando na Verdade Primeira (ou Verdade em Si),
tivesse colocado a pergunta na forma devida: “Quem é a verdade?”, teria obtido
em resposta as palavras que, algum tempo antes, prevendo a pergunta de Pilatos,
o Senhor dirigira aos seus discípulos amados – e através deles ao mundo inteiro
– durante a Santa Ceia: “Eu sou a verdade[48]”.
A ciência e a filosofia se perguntam: “O que é a verdade?”, enquanto
que uma consciência autenticamente cristã está sempre orientada para a verdade
pessoal: “Quem é a verdade?”.
Os representantes da ciência e da filosofia costumam considerar os
cristãos como sonhadores e veem a si mesmos firmemente ancorados sobre uma base
sólida; por essa razão chamam a si próprios de “positivistas”. Coisa estranha,
eles não compreendem até que ponto sua concepção da verdade impessoal é
negativa; não compreendem que a Verdade autêntica e absoluta não pode ser senão
uma Pessoa, um sujeito, um “quem”, e não um objeto – “o que” – porque a Verdade
não é uma fórmula ou uma ideia abstrata, mas a Vida em Si, “Eu sou o que sou[49]”.
Com efeito, o que pode haver de mais abstrato e mais negativo do que
uma verdade impessoal, um “o que”? Topamos com esse grande paradoxo ao longo de
todo o desenvolvimento histórico da humanidade desde a queda de Adão. Fascinada
por sua própria razão, a humanidade vive numa espécie de vertigem.
Assim, a ciência “positiva” e a filosofia não são as únicas que se
colocam, como Pilatos, a questão: o que é a verdade? É possível observar a
mesma tendência na vida religiosa da humanidade. Mesmo aqui, os homens tendem
continuamente a buscar uma verdade “objetiva”.
A razão humana pressupõe que, quando estiver de posse de uma verdade
objetiva, disfrutará de poderes mágicos e poderá se assenhorar da existência
cósmica.
Na vida espiritual o homem que elege o caminho da busca racional cai
inevitavelmente em alguma forma de panteísmo. Cada vez que um teólogo tenta conhecer
a verdade a respeito de Deus por seu próprio esforço, seja consciente ou não,
cai fatalmente no mesmo erro que a ciência, a filosofia e o panteísmo, a saber,
a obtenção de um princípio universal transpessoal.
A “Verdade-Pessoa” não pode ser conhecida de modo algum pela razão. O
Deus pessoal não pode ser conhecido senão pela Revelação[50]
e por comunhão existencial, ou seja, pelo Espírito Santo.
O Senhor fala nos seguintes termos: “Se alguém me ama, guardará minha
palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos nossa morada”. E: “O
Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas
essas coisas[51]”.
O Starets Silouane sublinhava isso constantemente.
A tradição ascética ortodoxa rechaça como errôneo o caminho da contemplação
abstrata. Aquele cuja meditação religiosa se detém na contemplação abstrata do
Bem, da Beleza, da Eternidade, do Amor, etc., empreende um caminho falso. Quem
se limita a rechaçar as imagens e os conceitos empíricos ainda não encontrou o
verdadeiro caminho.
A contemplação ortodoxa não é uma contemplação abstrata do Bem, do
Amor, etc. Não é uma simples recusa, exercida pelo intelecto, das imagens e
conceitos empíricos. A verdadeira contemplação é dada por Deus, pela sua
chegada à alma, quando essa então contempla a Deus e vê que Ele a ama, que Ele
é bom, que é belo, que é eterno; ela vê sua transcendência e caráter inefáveis.
A verdadeira vida espiritual não se situa num plano imaginário; ela é
plenamente concreta e positiva. A verdadeira comunhão com Deus não pode ser
buscada senão por meio deu da oração pessoal dirigida ao Deus pessoal. A
experiência espiritual cristã é uma comunhão absolutamente livre com Deus: ela
não depende, como as experiências não cristãs, apenas do esforço e da vontade do
homem.
Nossas palavras não são capazes de traduzir aquilo que nos surpreendeu
em nosso trato com o Starets. Apesar da simplicidade e doçura de seu trato, sua
palavra era eficaz ao extremo; palavras que brotavam de uma profunda
experiência espiritual da existência, palavras de um homem que trazia em si
verdadeiramente o Espírito de Vida.
A aparição de Cristo a Silouane foi um encontro pessoal; devido a ele,
sua orientação para Deus adquiriu um caráter profundamente pessoal. Quando ele
orava, conversava com Deus face a face. A percepção do Deus pessoal purifica a
oração das imagens e especulações abstratas, e a faz penetrar no centro de uma
comunhão viva e íntima. Concentrando-se no interior, a oração deixa de ser uma
“chamada no espaço”, o espírito se recolhe e se dispõe a escutar. Quando
invocava a Deus por meio dos Nomes divinos – Pai, Senhor ou outros – o Starets
se encontrava num estado a respeito do qual “é preferível que o homem se cale[52]”;
somente que houver tido a mesma experiência na presença do Deus vivo
compreenderá.
Um conhecido asceta do mosteiro, o Padre Trophimo, observou esse
estado no Starets Silouane; isso provocou nele um temor e uma perplexidade que
ele nos comunicou somente depois da morte do Starets.
***
Uma vez que veio à tona a questão da oração “face a face”, que, nos
parece, assinala o começo da abertura da “imagem de Deus” no homem, cremos
conveniente fazer alguns esclarecimentos que dizem respeito a esse aspecto de
nossa vida espiritual.
A última etapa da Revelação consiste no Deus pessoal, hipostático[53].
O Deus hipostático não pode ser conhecido senão pela revelação; esta adquire
forma numa manifestação de Deus ao homem, numa comunhão imediata “face a face”.
Normalmente essa revelação é concedida ao homem em oração; em sua realidade
mais profunda, essa oração é a energia do próprio Deus operando no interior do
homem. É indispensável, para colocá-lo nos termos do Starets Silouane, que
“Deus, primeiro, nos busque e se nos manifeste”.
Quando o Deus hipostático se revela ao homem, ainda que parcialmente,
“como em um espelho[54]”,
surge então nele, como uma nova luz, a consciência de seu próprio caráter
hipostático, na qual acima de tudo se reflete no homem “a imagem de Deus”.
Ao homem “revestido de carne e vivendo nesse mundo” é concedida
principalmente a experiência de sua limitação individual. O surgimento nele
dessa nova dimensão de sua consciência é vivida como um “nascer do alto[55]”,
em virtude do qual sua oração ultrapassa os limites de tudo o que é temporal e
material; então, o homem sente com toda força que é introduzido na Eternidade
divina.
A manifestação do Deus hipostático ao homem faz com que esse se dê
conta de que o princípio hipostático é a forma de existência do Absoluto e do
Eterno, de que a hipóstase não constitui uma dimensão limitativa, mas que ela é
Aquele que vive realmente: “Eu sou o que sou[56]”.
Fora dessa dimensão do Deus hipostático nada existe nem pode existir. Em Deus
não existe uma “essência” que estaria situada mais além da hipóstase. Por esse
motivo, a oração cristã se dirige ao Deus hipostático. Não se trata de uma
busca orientada para uma Essência transpessoal.
Esse conhecimento nos revela que somos hipóstases criadas, dotadas de
uma liberdade de autodeterminação que pode ser exercida positiva ou
negativamente em relação ao nosso Modelo primeiro. No caso presente, não nos
referimos senão à primeira dessas possibilidades.
Uma hipóstase livre, não determinada, não pode ser criada senão como
pura potencialidade, que deverá atualizar-se mais tarde. Assim, não somos ainda
hipóstases em sua plenitude; a partir de uma existência “fragmentada”, passamos
por um processo mais ou menos longo de atualização do modo hipostático de nossa
existência. É preciso não confundir a noção de pessoa – hipóstase – com a de
indivíduo. Mais ainda, esses são os dois polos opostos do ser humano. O
indivíduo expressa o extremo da indivisibilidade (em grego, o indivíduo é
chamado de “átomo”; trata-se de um estado resultante da queda), enquanto que a
hipóstase se refere à “imagem de Deus”, segundo a qual Adão foi criado, e em
cujo seio está potencialmente concentrada toda a humanidade. É essa “imagem”
que nos foi revelada pelo Verbo encarnado. Segundo isso, quando pensamos em
Deus, não estamos projetando o conceito limitativo do indivíduo sobre o Ser
divino para em seguida negar nele o momento hipostático e, consequentemente,
cairmos num Absoluto transpessoal. O movimento de nosso espírito se expressa na
oração “face a face”; vale dizer, da hipóstase criada ela se dirige à hipóstase
de Deus. É essencial que se desenvolva no homem seu princípio hipostático, e
por isso teremos que falar brevemente dos caminhos que conduzem a esse
objetivo.
Nós, que fomos chamados do não-ser ao ser, nos sentimos cravados no
tempo e no espaço relativos. Imagem do Deus absoluto, o espírito do homem sente
angústia no contexto desse mundo material, se vê acorrentado nele como um
prisioneiro condenado à morte. O sofrimento do espírito pode se revestir de uma
forma de desespero da qual nasça uma oração que brote com intensidade
desconhecida, como uma esperança além de toda esperança. É possível que para
nós, filhos dessa época atual, a experiência de tal desesperança seja
indispensável para a realização de nosso nascimento para a eternidade.
A partir de seu nascimento, o homem vai se instruindo à sombra de seus
pais, de seus amigos e mestres; quando adulto, persegue com ardor tudo o que
possa lhe trazer novos conhecimentos. Porém, mais cedo ou mais tarde, chega à
conclusão de que o conhecimento “científico” não apenas não lhe permite escapar
das dimensões do tempo e do espaço relativos, como ainda, ao contrário, fixam
ainda mais sua consciência ao aspecto determinado da existência do mundo. A
recusa do absurdo da morte, como retorno ao nada, faz nascer em nosso espírito
uma oração ardente e p impulsiona a inquirir nos livros sagrados o conhecimento
do Eterno. Mas nenhuma escola, mesmo que seja de teologia, nenhum livro –
sequer a sagrada Escritura – são suficientes, sem uma tensão extrema de nosso
ser inteiro na oração pura, para conduzir o homem à certeza íntima de que foi
ouvido por Deus e aceito em sua eternidade.
Essa oração “desesperada” é com certeza um dom de Deus. Ela nos coloca
nos limites do tempo e da Eternidade. O tempo, literalmente “esquecido”, fica
para trás, e o olhar de nosso espírito se dirige inteiramente para a
Eternidade. Uma tal translação de nosso espírito até o “final dos tempos”, na
oração, abre nossa inteligência para a compreensão de numerosas expressões da
sagrada Escritura, que até então pareciam puros paradoxos. Alguns exemplos:
“Diante do Senhor, um dia é como mil anos e mil anos são como um dia[57]”;
“Fostes libertados por um sangue precioso, como o do cordeiro sem reprovação
nem mácula, Cristo, escolhido antes da fundação do mundo e manifestado nos
últimos tempos[58]”;
“Isso foi escrito como instrução para nós que tocamos o fim dos tempos[59]”;
“Fomos eleitos nele, desde antes da criação do mundo[60]”;
“Vós conheceis Aquele que é desde o começo[61]”.
Qual é o sentido dessa expressão: “últimos tempos” ou “fim dos
séculos”? Ou melhor, o que significam nos textos litúrgicos as seguintes
expressões: “Tu nos fizeste dom de teu Reino futuro[62]”,
“vimos a imagem de Tua Ressurreição, estamos saciados de Tua vida imortal[63]”?
Devido à sua proximidade com a hipóstase divina do Verbo, mesmo
vivendo na terra, os Apóstolos habitavam em espírito também na Eternidade. Para
eles, como também para qualquer outro homem que tenha conhecido
experimentalmente um estado semelhante, o tempo, os “éons” confluem no final. A
ideia neotestamentária do tempo difere das concepções de Newton, de Einstein ou
de outras diferentes perspectivas filosóficas ou gnósticas. Para os Apóstolos,
o tempo se converte em algo parecido a um “espaço” no qual é possível mover-se
e “onde” pode se dar o encontro original com o Criador. Nós vemos como foi
concedido a certos homens “contemplar o reino de Deus que lhes chegava com
força antes de que houvessem provado a morte[64]”.
É a esses homens que devemos as expressões enumeradas anteriormente.
No princípio é Deus quem primeiro nos busca e nos revela seu Rosto;
sem exercer violência alguma, ele atrai o homem à sua Eternidade, mas depois
pode fazê-lo “retornar” aos limites do tempo. Não parece existir outra
explicação para esse “retorno” senão a possibilidade brindada ao homem de
manifestar no ato de sua vida terrestre seu conhecimento Daquele que é, de ser
testemunho de seu Amor para com os homens. Quanto ao homem, esse vive seu
retorno como um “exílio longe do Senhor”, como um ocultamento da graça, e se
encontra oprimido sob o peso de seu corpo corruptível. A sede de recobrar a
plenitude da união com Deus o incita a um esforço que, como obra humana, se
transforma numa ciência, numa arte e numa cultura ascéticas. Para muitos homens
de nossa época, essa cultura se perdeu e se transformou para eles em algo
estranho e incompreensível.
***
A cultura ascética ortodoxa apresenta vários aspectos; dentre esses se
encontra a obediência monástica, ou mais exatamente, cristã. Como complemento
daquilo que tratamos sobre a obediência em outros trechos do livro, tentaremos
formular aqui alguns pontos centrais em relação ao seu sentido e resultados.
Como toda grande cultura, a obediência conhece muitos graus, segundo a idade
espiritual daquele que a observa. No começo ela pode assumir o caráter de um
abandono passivo, por assim dizer, do próprio querer diante do pai espiritual,
em virtude da confiança que se tem e com vistas a um melhor conhecimento da
vontade divina. Num grau mais perfeito, é uma atividade positiva de nosso espírito
em seu esforço para cumprir os mandamentos de Cristo, que amou infinitamente o
mundo, é possível medir as disposições interiores de um discípulo que fez
progressos, dizendo que tensiona sua atenção e vontade a fim de captar o mais
profundamente possível o pensamento e a vontade de outra pessoa e de realizar
logo, mediante um ato de amor espiritual, a ideia ou a vontade de seu irmão.
Graças a tal ato de obediência, o coração do que obedece se abre, seu espírito
se enriquece e uma vida nova penetra em sua alma. Num estágio seguinte, a
obediência leva a compreender com mais sutileza e matizes a cada um dos homens,
a perceber a imagem de Deus neles, o que indica no discípulo o amadurecimento
de sua “humanidade”. São João Evangelista escreve: “Se alguém diz: ‘Amo a Deus’
e detesta a seu irmão, é um mentiroso; quem não ama a seu irmão, a quem vê, não
saberá amar a Deus, a quem não vê. E aqui está o mandamento que recebemos dele:
quem ama a Deus, que ame também a seu irmão[65]”.
“Se me amais, guardareis meus mandamentos[66]”,
disse Cristo.
A mesma estrutura encontramos no plano da obediência. Quem ama a seu
irmão deseja agradá-lo espontaneamente, colocar-se à sua disposição; mas se não
somos humildes para com nosso irmão e não nos mostramos obsequiosos com ele em
coisas que são sempre mais ou menos de pouca monta, como seremos humildes
diante de Deus e como o obedeceremos no cumprimento de sua magna vontade
eterna? Como cumpriremos o mandamento de amar ao próximo como a nós mesmos, ou
de amar os nossos inimigos? Assim, a ascese da obediência é indispensável não
apenas em relação a Deus, como também em relação ao nosso irmão, quando esse
nos pede algo possível e que não seja contrário aos mandamentos de Cristo. A
crucificante ascese da obediência ao irmão afina ainda em nós a capacidade de
perceber com maior profundidade a vontade de Deus. E isso nos torna semelhantes
ao Filho único do Pai; o espírito do homem se torna capaz de assumir a
humanidade inteira, ou seja, ele se torna universal à semelhança da
universalidade divina de Cristo. Sem essa cultura da obediência, o homem
permanece inevitavelmente “encerrado num círculo”, sempre miserável,
confrontado com a Eternidade. Qualquer que seja seu grau de formação, sem a
obediência evangélica o acesso ao seu próprio mundo interior permanece
solidamente fechado para ele, e o amor de Cristo não pode penetrar ali, nem
impregná-lo com sua presença.
O homem psiquicamente enfermo não é capaz de tornar seus o pensamento
e a vontade de outra pessoa. Em consequência, a ausência de uma disposição em
obedecer é o mais seguro indício de enfermidade psíquica no homem. Sem
obediência, o homem está sempre no estreito nó de sua individualidade egoísta,
oposto ao princípio da pessoa. Fora da cultura cristã da obediência, o
princípio hipostático não se desenvolve nos homens e esses permanecem cegos e
surdos à Revelação divina que nos foi dada pela encarnação do Logos que
manifestou no plano histórico nossa imagem pré-eterna. Daí se pode concluir
que, sem a cultura cristã da obediência, a verdadeira teologia permanece
inacessível em sua profundidade última. Temos em vista uma teologia entendida
como estado de comunhão com Deus, não como erudição, que pode estar
inteiramente alheia à vida verdadeira.
Grande é a ciência da santa obediência; é indispensável orar muito
para que nossos olhos espirituais se abram e vejam sua grandeza e santidade.
Nós recordamos como o Starets Silouane, quando falava da vida oculta nos
mandamentos de Cristo, ficava como que possuído por um sentimento de humilde
enternecimento diante da vida que nos foi concedida em Deus.
***
Eis aqui ainda outra importante derivação da ascese da obediência.
Aprendendo a perceber os pensamentos e a vontade das outras pessoas, o
discípulo aprende simultaneamente a viver seus diversos estados próprios não
apenas como “seus” (individuais), mas também como uma espécie de revelação
daquilo que acontece no conjunto da humanidade. Cada um de seus fracassos, de
suas dores, de seus sofrimentos físicos e morais, bem como cada um de seus
êxitos e alegrias, ele não apenas os vive em si mesmo, egoistamente, como se
coloca em espírito nos sofrimentos e alegrias de todos os homens, pois a cada
momento milhões de pessoas se encontram num estado similar ao seu. Isso o leva
naturalmente a orar pelo mundo inteiro. Orando pelos vivos, compartilha a
alegria de seu amor ou as terríveis trevas de sua desesperança. Enfermo, ora
por todos os enfermos do mundo, se inclina sobre o leito dos moribundos que
afundam na solidão, sem defesa diante da morte. Lembrando-se dos mortos, viaja
em espírito pela noite dos séculos passados, ou se coloca no invisível mas
temível caminhos por onda passam todos os dias centenas de milhares de almas
que abandonaram seus corpos, na maior parte dos casos depois de uma dolorosa
agonia. Assim se desenvolve na alma do discípulo a compaixão cristã por toda a
humanidade; sua oração adquire um caráter cósmico e se converte em
representante do Adão total, vale dizer, se torna hipostática, a imagem da
oração do Getsêmani. Graças a tal oração o discípulo sente sua unidade com toda
a humanidade, e lhe resulta natural amar a seu próximo, a cada ser humano. Uma
oração desse gênero contribui ativamente para a salvação do mundo; todo cristão
deve tender para isso, e especialmente os que possuem ordens sagradas, na
celebração da Liturgia.
Convém não perder de vista que uma vida de ascese e de oração está
vinculada tão estreitamente quanto possível à nossa consciência dogmática, ou
seja, a uma correta compreensão da Revelação que nos foi feita pelo Deus Uno em
Três Hipóstases. Fomos criados à imagem do Deus Trinitário e convidados a uma
livre autodeterminação. Deus se revela ao homem, e “espera” dele uma resposta
ao seu amor; ele espera que queiramos ser parecidos com ele. Da natureza de
nossa resposta depende nossa eternidade. Como nosso assunto era a obediência,
voltamos ao tema. Acreditamos que é necessário sublinhar que a perda do
princípio da Pessoa na teologia ortodoxa leva fatalmente a outorgar um lugar
proeminente ao “comum” sobre o “particular”, a buscar algum “princípio
transpessoal”. Nesse caso, não se pede a obediência a um homem, a uma pessoa,
mas a submissão à “Lei”, à “Regra”, à “Função”, à “Instituição”, etc. Reflitam
sobre o que foi dito, e vejam como com essa maneira impessoal de abordar a estrutura
da sociedade humana se perde o autêntico sentido da obediência cristã incluída
nos mandamentos de Cristo, e como a “disciplina” intervém em seu lugar. Essa
última é, efetivamente, indispensável e inevitável quando os homens vivem
juntos, mas só até um certo limite. A perda da obediência pessoal cristã não
pode ser compensada por nenhum êxito exterior da “Instituição”, nem pelas
realizações provenientes da estruturação harmoniosa do conjunto.
O AMOR AOS INIMIGOS
Todo sistema racionalista possui sua própria estrutura lógica, sua
dialética interna; do mesmo modo, o mundo espiritual possui também –
expressando-nos de forma convencional – sua estrutura e dialética próprias. Mas
a experiência espiritual possui uma dialética que lhe é inteiramente peculiar e
que não coincide com o curso habitual do pensamento.
Poderá assim parecer surpreendente que o santo Starets assinale o amor
aos inimigos como o critério da verdadeira fé, da verdadeira comunhão com Deus,
como o da autêntica ação da graça.
Apesar de nosso desejo de sermos o mais breve possível e evitarmos o
supérfluo, nos parece necessário colocar alguns esclarecimentos a esse
respeito.
O homem vive com a esperança de receber, no século vindouro, o dom da
semelhança com Deus e da felicidade perfeita; mas aqui na terra ele não conhece
mais do que o “penhor” desse estado futuro. Nos limites da experiência
terrestre, o homem revestido de carne pode, no momento da oração, permanecer em
Deus, ainda que guardando a recordação do mundo; mas quando se permanece em
Deus com maior plenitude, “o mundo é esquecido”, de um modo parecido a como o
homem, totalmente apegado à terra, esquece de Deus.
Mas se esquecemos do mundo quando alcançamos o estado de plena imersão
em Deus, como é possível falarmos ainda do amor aos inimigos como critério da
verdadeira comunhão com Deus? Se esquecemos do mundo, não pensamos nem nos
amigos, nem nos inimigos.
Em sua essência, Deus é supracósmico, ele transcende o mundo; mas em
seu Ato, ele está no mundo, é imanente ao mundo. A absoluta transcendência do
ser divino não é afetada de modo algum por sua incessante ação no mundo. Mas o
homem revestido de carne e que vive na terra não tem em si mesmo tal perfeição;
assim quando está totalmente absorto em Deus, vale dizer, com todas as potências
de seu intelecto e de seu coração, ele perde também inteiramente a consciência
do mundo. Não se deve concluir, sem embargo, que a total imersão em Deus não
mantenha nenhuma conexão com o amor aos inimigos. O Starets Silouane afirmava,
ao contrário, que cada um dos estados estava estreitamente vinculado ao outro.
Quando Cristo lhe apareceu, o Starets havia recebido um grau de
conhecimento que exclui qualquer dúvida ou vacilação. Afirmava peremptoriamente
que aquele que ama a Deus pelo Espírito Santo amará também a criação inteira e,
acima de tudo, ao homem. Ele considerava esse amor como um dom do Espírito
Santo; ele o recebeu como uma força vinda do alto. Inversamente, conhecia
também a total imersão em Deus que procede de uma amor ao próximo suscitado
pela graça.
Falando dos inimigos, o Starets empregava a linguagem de seu meio,
numa época em que se falava e escrevia muito a respeito dos “inimigos da fé”.
Ele não dividia os homens em amigos e inimigos, mas nos que conhecem a Deus e
nos que não o conhecem. É possível supor que, em outra circunstância histórica,
o Starets teria se expressado de outra maneira, o que aliás lhe ocorria muitas
vezes quando falava do amor aos homens em geral, ou seja, do amor a todos os
homens, tanto os que fazem o bem quanto os que fazem o mal. Na sua opinião,
isso torna o homem semelhante a Cristo, que “estendeu seus braços sobre a cruz”
para reunir a todos os homens, sem exceção.
Qual o sentido do mandamento de Cristo: “Amai aos vossos inimigos”?
Por que o Senhor disse que aqueles que guardam seus mandamentos saberão de onde
provém esse ensinamento[67]?
Como o Starets entendia isso?
Deus é Amor, Amor absoluto, que, em sua superabundância, abarca a toda
a criação. Deus está presente mesmo no inferno, como amor. Ao dar ao homem, na
medida de sua capacidade, o conhecimento real desse Amor, o Espírito Santo
revela com isso o caminho que conduz à plenitude da existência.
Aqueles que alcançaram o Reino dos Céus e os que permanecem em Deus,
vem no Espírito Santo todos os abismos do inferno, pois, na realidade,
considerado em sua integralidade, não existe lugar onde Deus não esteja
presente. “Todo o Céu dos Santos vive pelo Espírito Santo, e nada no universo
se esconde do Espírito Santo... Deus é Amor e, nos Santos, o Espírito Santo é
Amor”, dizia o Starets. Estando nos Céus, os Santos veem o inferno e o abraçam
também em seu amor.
Os que odeiam ao seu irmão e o rechaçam vivem como amputados em sua
existência. Esses não conheceram o verdadeiro Deus, que é Amor e a tudo abraça,
e não encontraram o caminho que conduz a ele.
O homem não pode a um só tempo permanecer inteiramente em Deus e
inteiramente no mundo. Não é possível, portanto, discernir se a contemplação
foi autêntica ou, pelo contrário, imaginária, senão depois do “retorno” à
memória e à percepção do mundo. Se, depois de um estado espiritual, insistia o
Starets, considerado como contemplação ou comunhão com Deus, não se professa o
amor aos inimigos e, por conseguinte, a toda a criação, deduz-se daí um indício
seguro de que aquela contemplação não foi autêntica, ou, dito de outro modo, de
que nela não aconteceu uma comunhão autêntica com Deus.
O homem pode ser “arrebatado” em estado de contemplação antes de que
se dê conta. Em estado de êxtase, ainda que não procedendo de Deus, o homem não
consegue compreender o que lhe sucedeu. Se, depois de seu “retorno” à
consciência normal, lhe restar na alma como fruto de sua contemplação um
sentimento de orgulho ou de indiferença pela sorte do mundo e dos homens,
então, sem dúvida alguma, sua contemplação foi falsa. É assim que, pelos seus
frutos, se conhece a autenticidade ou o caráter enganador da contemplação.
Os dois mandamentos de Cristo, o amor a Deus e o amor ao próximo, são
inseparáveis. Se cremos estar com Deus e amar a Deus, mas odiamos o irmão,
vivemos em erro. Desse modo o segundo mandamento nos permite verificar em que
medida permanecemos realmente em Deus.
DO DISCERNIMENTO DO
BEM E DO MAL
O segundo mandamento, amar ao próximo, era aos olhos do Starets da
pedra de toque que permite verificar a retidão de nosso caminho para Deus.
Mesmo assim, para discernir o bem do mal, o critério seguro não é tanto o fim
que pretendemos, por santo e sublime que seja, mas os meios que elegemos para
alcançá-lo.
Só Deus é absoluto. O mal não é uma realidade que possua sua própria
essência, mas uma resistência da criatura livre ao Ser principial, a Deus. O
mal não pode, portanto, ser absoluto; por isso, o mal em estado puro não
existe, nem pode existir. Todo mal realizado por criaturas livres vive
necessariamente como um parasita no “corpo” do bem, ele deve encontrar uma
justificação, esconder-se debaixo das aparências do bem e, às vezes, do próprio
vem supremo. O mal se mostra sempre e inevitavelmente misturado com um elemento
de busca positiva, e é por esse flanco que ele seduz o homem. Ele tenta
apresentar ao homem seu aspecto positivo como um objetivo tão importante, que
todos os meios são válidos para consegui-lo.
Em sua existência terrestre o homem não pode alcançar o bem absoluto;
toda empresa humana traz em si uma certa dose de imperfeição para o bem, por um
lado, e a inevitável presença de bons pretextos para o mal, por outro. Assim se
torna extremamente difícil a distinção entre bem e mal.
O Starets pensava que o mal opera sempre por enganação, escondendo-se
sob as aparências do bem, mas que o bem não requer concurso algum do mal para
se realizar; por isso, quando recorremos a meios maus – malícia, mentira,
violência, etc. – penetramos num domínio alheio ao espírito de Cristo. Não se alcança
o bem por meios maus, e o fim não justifica os meios. “Um bem obtido pelo mal
não é um bem”, conforme diz o preceito que nos foi legado pelos Apóstolos e
pelos Santos Padres.
Embora não seja raro que o bem triunfe e que com sua presença
retifique o mal, seria errôneo pensar que o bem pode resultar do mal. Isso é
impossível. Mas onde intervém o poder de Deus, tudo é curado, já que Deus é
plenitude de vida e suscita a vida a partir do nada.
O CAMINHO DA IGREJA
“O Espírito Santo deu a conhecer à nossa
Igreja os mistérios de Deus e ela é forte graças à santidade de seus
pensamentos e à sua paciência”, dizia o Starets. O mistério divino que a Igreja
conhece por intermédio do Espírito Santo é o amor de Cristo.
O pensamento da Igreja é o de que “todos se salvem”. E o caminho que a
Igreja segue para alcançar esse santo objetivo é o da paciência, ou seja, do
sacrifício.
Predicando no mundo o amor de Cristo, a Igreja chama a todos os homens
para a plenitude da vida divina, mas os homens não compreendem essa chamada e a
recusam. Convidando a todos os homens a guardar o mandamento de Cristo, “amai
os vossos inimigos”, a Igreja se situa em meio às forças combatentes. O furor
que anima essas forças se volta naturalmente contra a Igreja, pois essa se
coloca no caminho entre elas. Nas no cumprimento da obra de Cristo na terra – a
salvação do mundo inteiro – a Igreja assume conscientemente o peso do furor
geral, do mesmo modo como Cristo tomou sobre si os pecados do mundo. E se,
nesse mundo de pecado, Cristo foi perseguido e teve que sofrer, a verdadeira
Igreja de Cristo também será inevitavelmente perseguida e deverá sofrer. O
Senhor e os Apóstolos falaram dessa lei espiritual da vida de Cristo; o divino
Paulo a formulou categoricamente, dizendo: “Todos os que querem viver com
piedade em Jesus Cristo haverão de sofrer e ser perseguidos[68]”.
E isso será sempre assim e em todas as partes, no mundo inteiro, enquanto
existir o pecado.
Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados de filhos de
Deus”. Com essas palavras, o Senhor dá a entender que os que predicam a paz
evangélica serão semelhantes a ele, Filho único de Deus. Em tudo serão
semelhantes a ele, não apenas em sua glória ou em sua Ressurreição, mas também
na humilhação e na morte. A Escritura fala muito a esse respeito. Por isso, os
que predicam verdadeiramente a paz de Cristo não devem jamais esquecer o
Gólgota.
E tudo isso apenas por causa da sentença: “amai os vossos inimigos”.
“Vós me mandais matar, porque minha palavra não está em vós[69]”,
disse o Senhor aos judeus. O mesmo predica a Igreja: “amai os vossos inimigos”,
mas o mundo não suporta essas palavras. Por isso, desde sempre o mundo do
pecado perseguiu a verdadeira Igreja e seguirá perseguindo-a; matou seus
servidores, e continuará matando-os.
***
Em nossos encontros com o Starets, jamais tivemos a menor dúvida de
que suas palavras eram “palavras de vida eterna”, que ele as havia escutado do
alto, de que não fôra mediante “fábulas habilmente inventadas” que aprendera a
verdade que testemunhou por toda sua vida. Muita gente é capaz de falar com
facilidade do amor de Cristo, mas suas obras são um escândalo para o mundo e
por essa razão estão privadas de força vivificadora.
A vida do Starets, que pudemos observar de perto por vários anos, e
que nos atrevemos agora a descrever, era um esforço ascético tão grande e
extraordinário que não encontramos palavras para expressar nossa admiração. E
ao mesmo tempo sua vida foi tão simples, tão natural e em verdade humilde, que
qualquer expressão, por pouco rebuscada ou enfática que seja, introduzirá nela
uma dissonância. Por essa razão é tão difícil falar dele.
Existe gente incapaz de penetrar no verdadeiro sentido de uma palavra
simples; a outros, ferem as falsas notas das palavras pretensiosas. Para
muitos, a santa e pura palavra do Starets era muito difícil de entender,
precisamente por causa de sua simplicidade.
Daí nos permitirmos acompanhá-las de comentários, esperando, talvez
erroneamente, poder ajudar a compreender o Starets para as pessoas que estão habituadas
a outra maneira de viver e se expressar.
Tomemos, por exemplo, o conselho d Starets: “O que é necessário para
obter a paz na alma e no corpo? Para isso, é necessário amar a todos os homens
como a si mesmo, e em qualquer momento estar disposto a morrer”.
Geralmente, diante da ideia de uma morte iminente a alma do homem se
enche de turvação e de angústia, às vezes até de desespero, até o ponto em que
o abatimento da alma adoece o próprio corpo. Como pode então o Starets dizer
que o fato de estar constantemente disposto a morrer e de amar a qualquer homem
enche de paz não somente a alma, mas também o corpo? Estranho e incompreensível
ensinamento!
Ao falar aqui da paz na alma e no corpo, o Starets pensava naquele
estado espiritual em que a ação da graça se comunica sensivelmente não só à
alma, mas também ao corpo. No caso presente, ele se referia certamente a um
grau de graça menos do que havia recebido quando da aparição do Senhor. Nesse
último caso, a graça que havia invadido sua alma e seu corpo era tão forte que
inclusive seu corpo havia sentido claramente sua santificação. A doçura do
Espírito Santo despertou em seu próprio corpo uma amor tão ardente por Cristo
que ele próprio queria sofrer também pelo Senhor.
DA DIFERENÇA ENTRE O
AMOR CRISTÃO E A JUSTIÇA HUMANA
Os homens têm em geral uma concepção jurídica da justiça: eles recusam
como injusta a ideia de que alguém possa assumir a responsabilidade pela falta
de outro. Isso não se enquadra com sua consciência jurídica. Mas o espírito do
amor de Cristo tem uma linguagem diferente.
Segundo o espírito desse Amor, não é estranho, mas algo perfeitamente
natural, compartilhar a responsabilidade pela falta de alguém a quem amamos, e
inclusive reivindicá-la integralmente. Mais ainda, é assumindo a falta do outro
que se revela a autenticidade do amor e se adquire a verdadeira consciência
dele; onde estaria o sentido do amor, se só se conservasse seu lado agradável?
Quando tomamos sobre nós a falta e o castigo do ser amado, o amor alcança a
perfeição em todas as suas dimensões.
Muitos homens não podem ou não querem aceitar de bom grado as
consequências do pecado original de Adão. O homem diz: “Adão e Eva comeram a
fruta proibida, o que eu tenho com isso? Estou disposto a responder pelos meus
pecados, mas apenas pelos meus e não pelos pecados dos demais”. E não
compreendem que com essa reação de seu coração repetem em si mesmos o pecado de
nossos primeiros pais, que se identifica assim com seu próprio pecado e queda.
Adão negou sua responsabilidade desembaraçando-se sua falta em Eva e em Deus,
que lhe havia dado a essa como mulher, e por causa disso ele rompeu com a
unidade do ser humano e sua união com Deus. Assim, a cada vez que recusamos
assumir nossa responsabilidade pelo mal universal, pelos atos de nosso próximo,
repetimos o mesmo pecado e rompemos com a unidade do ser humano. No Paraíso, o
Senhor chamou Adão ao arrependimento; é lícito pensar que, se em lugar de se
justificar, Adão tivesse assumido a responsabilidade pelo pecado comum, seu e
de Eva, o destino do mundo seria outro. Do mesmo modo, o destino do mundo será
diferente, se respondermos positivamente ao Senhor vindo na carne e que renova
seu chamado ao arrependimento, e se carregarmos sobre nós o peso das faltas de
nosso próximo.
Cada um de nós pode invocar múltiplas razões para se justificar. Mas
se observar atentamente o fundo de seu coração, verá que atua enganosamente. O
homem se justifica acima de tudo por não querer se reconhecer, ainda que não
seja mais do que parcialmente, culpado do mal que existe no mundo. Ele se
justifica porque não é consciente de estar dotado de uma liberdade à imagem de
Deus; não se percebe assim senão como um fenômeno, como um objeto desse mundo
e, por conseguinte, condicionado por ele. Numa consciência desse tipo existe
algo de servil; por essa razão, o querer se justificar é próprio de um escravo,
não de um filho de Deus.
Nunca surpreendemos no santo Starets essa tendência a se justificar.
Mas é curioso que esse modo de proceder – assumindo a falta de outro e pedindo
perdão – pareça a muitos precisamente algo servil. Tal é o contraste entre a
maneira de pensar dos filhos do espírito de Cristo e a dos filhos desse mundo.
Ao homem não espiritual parece incrível que se possa sentir o pertencimento à
humanidade em seu conjunto como uma existência integral contida na experiência
pessoal de cada homem, sem que seja abolida, sem embargo, a irredutível
alteridade das outras hipóstases humanas. Em conformidade com o segundo
mandamento: “amarás ao próximo como a ti mesmo”, deve-se, e é possível, incluir
a própria existência pessoal na totalidade da existência humana. Então, todo o
mal que se realiza no mundo não será considerado apenas como algo que nos é
alheio, mas como nosso próprio mal.
Se cada pessoa-hipóstase humana, criada à imagem das hipóstases
divinas absolutas, é capaz de conter em si a plenitude da existência humana,
assim como cada hipóstase divina é portadora de toda a plenitude do Amor – e
esse é o sentido último do segundo mandamento – então cada um de nós empreenderá
a luta contra o mal, contra o mal cósmico, começando por si mesmo.
O Starets não falava senão do amor de Deus e jamais de sua justiça,
mas nós sabemos o que ele pensava. A respeito, ele se manifestou mais ou menos
como segue.
“Não se pode dizer que Deus seja injusto, ou seja, que exista alguma
injustiça nele, mas tampouco podemos dizer que seja justo no sentido da nossa
justiça. Santo Isaac o Sírio disse: “Não se atreva a chamar de justo a Deus.
Qual é sua justiça, se nós pecamos e é seu Filho único quem morre na Cruz?”. A
isso que disse Santo Isaac, podemos acrescentar: somos nós que pecamos, e Deus
colocou os santos Anjos a serviço de nossa salvação; os Anjos, cheios de Amor,
desejam salvar-nos, e não economizam sofrimentos nesse serviço. O Senhor, ao
contrário, entregou os animais irracionais e todo o resto da criação à
corrupção; porque não convinha que a criação ficasse livre dessa lei, posto que
o homem, a serviço do qual foi criada a criação, havia se convertido, por causa
de seu pecado, em escravo da corrupção. Desse modo, voluntária ou
involuntariamente, “toda criatura suspira e está como que em transe de parto”,
segundo a palavra do Apóstolo; vale dizer, toda criatura sofre com o homem. E
isso não é a lei da justiça, mas a lei do amor”.
***
O amor de Cristo, em sua condição de força divina como dom do Espírito
Santo, do único Espírito que opera em todos, estabelece ontologicamente os
vínculos da unidade; o amor assimila a vida do ser amado. Aquele que ama a Deus
está incluído na vida da Divindade; o que ama a seu irmão inclui em sua
existência pessoal (hipostática) a vida de seu irmão; quem ama o mundo inteiro
abraça, graças ao Espírito, todo o universo.
A grande oração pelo mundo que o Starets Silouane dirigia a Deus,
conduz precisamente a essa percepção, a dar-se conta da comunidade ontológica
que existe entre cada existência pessoal e a humanidade como um todo. Se é
possível dizer, como o fizeram alguns filósofos contemporâneos, que nossa
percepção sensível de não importa que coisa (objeto) não é apenas uma ato
psicológico subjetivo, desprendido da existência objetiva da coisa em si mesma,
mas que é essa própria coisa que, ao penetrar por meio de sua ação real em
nossa consciência, e estabelece assim um contato ontológico entre objeto e
percepção, quanto mais se deve falar em comunhão ontológica onde opera a graça
divina e onipresente do Espírito Santo, Criador de todas as coisas.
DA INCESSANTE ORAÇÃO
DO STARETS
Antes de abandonar o mundo, o Senhor disse: “Eis que chega o príncipe
deste mundo, e ele nada pode contra mim[70]”.
Quem se esforça por observar realmente os mandamentos de Cristo em sua
vida, pode em certa medida compreender a incomensurável grandeza dessas
palavras de Cristo, grandeza que sobrepuja todas as outras na história do
mundo.
Durante a vida terrestre de Cristo, as pessoas que o escutavam
participavam das mesma dúvidas a respeito dele que têm os nossos
contemporâneos. O que Cristo dizia deixava para trás a “medida humana[71]”.
Isso era evidente para todos. Mas, incapazes de penetrar o que se manifestava
sob aparência tão humilde, exclamavam: “Está possuído pelo diabo”; outros, ao
contrário, diziam: “Não, suas palavras não são palavras de um possuído”. Muitos
diziam: “Está possuído pelo diabo e fora de si; por que o escutais?”, enquanto
outros respondiam: “É verdadeiramente um profeta”. Fato é que “havia
desconcerto no povo a respeito dele[72]”.
O Starets Silouane era um homem, e as palavras da oração da Igreja:
“Não existe sobre a terra homem sem pecado”, se aplicavam plenamente a ele. Mas
em suas conversas e escritos encontramos expressões que ultrapassam a medida de
um homem comum e que se situam no plano ao qual a compreensão das pessoas
“normais” não tem acesso; e, no entanto, não há nem pode haver dúvida de que,
ao falar de si mesmo, dizia a verdade. Ele viveu durante meio século no
mosteiro, sob os olhares de centenas de monges, dos quais muitos ainda vivem.
Ele viveu em comunidade, em condições nas quais qualquer enfermidade psíquica
logo adquire relevo. Muitos monges não lhe queriam, alguns o injuriavam em sua
presença, chamando-o de “iluminado”, enquanto outros diziam: “Ah! Santo
maldito!”. E ele nem uma só vez respondeu de forma incorreta. É certo que isso
era um dom da graça, mas para conservá-lo ele teve que passar toda a sua vida
num extraordinário esforço ascético.
Para não sobrecarregar nosso livro, não vamos referir aqui todas as
sentenças do santo Starets, que vão além dos limites da medida humana
ordinária. Um leitor atento encontrará por si mesmo essas passagens nos seus
escritos; como aquela, na qual ele diz fundamentado em sua própria experiência,
que a oração dos Santos jamais se interrompe. Ou então a seguinte: “Certa vez,
no início, por inexperiência aceitei um pensamento impuro. Corri ao meu
confessor e lhe disse: “Eu aceitei um pensamento impuro”. Meu confessor me
disse: “Não o acolha mais no futuro”. Desde então transcorreram quarenta e
cinco anos, e não aceitei sequer uma vez um pensamento impuro, nem me
encolerizei contra ninguém, pois minha alma se lembra do amor do Senhor e da
doçura do Espírito Santo, e assim esqueço as ofensas”.
Eis um caso que aconteceu no
mosteiro. Entre os irmãos se encontrava um monge de grande hábito, o padre
Espiridião, que vivera na comunidade por quase meio século. Era de compleição
corpulenta, forte de corpo e de alma e grande trabalhador; um grande monge,
adiantado no caminho da ascese. Desde os primeiros anos de sua vida monástica,
ele amou a oração de Jesus e perseverava continuamente nessa ascese, que exige
um longo esforço de paciência, atenção e renúncia. Como a maior parte dos
monges da Montanha Santa, o padre Esperidião era um homem simples, quase
inculto, o que não o impedia de ser um sábio. Graças a uma prática assídua de
“cultivo espiritual”, havia adquirido uma ideia clara sobre as possibilidades
humanas, bem como sobre as propriedades da alma. Compreendia que a prece do
coração exige que o intelecto esteja livre de qualquer impressão exterior e,
com a firmeza de uma fé profunda, levava adiante o combate ascético que a maior
parte dos homens desconhece.
O padre Esperidião cumpria uma
obediência não desprovida de preocupações, pois era o ecônomo de uma extensa
dependência do mosteiro chamada Kroumitsa, situada na parte noroeste da
península de Athos. Essa propriedade era formada principalmente por vinhedos e
olivais. O padre passou os três ou quatro últimos anos de sua vida na
enfermaria do mosteiro, pois sofria de um reumatismo agudo que lhe deformava os
braços e as mãos, impedindo-o de trabalhar.
Num inverno, estando com gripe e
permanecendo por alguns dias na enfermaria, o Starets Silouane foi instalado
num leito ao lado daquele que o padre Esperidião ocupava. Naqueles mesmos dias,
um hierodiácono enfermos se encontrava no quarto vizinho.
Um dia o padre Esperidião estava
sentado em sua cama, voltado para o lado do padre Silouane. Esse se deitava
vestido, ou seja, com a sotaina e o cinturão, prática habitual dos ascetas do
Monte Athos para significar que estão sempre prontos, dia e noite, a
levantarem-se para a oração. O padre Esperidião falava da oração e o Starets
Silouane escutava em silêncio.
“Assim é, fazemos tantos
esforços para conservar a oração, mas quando nos ocupamos com um trabalho que
exige alguma reflexão, logo a oração é interrompida... basta ir poder as
oliveiras para que, enquanto examinamos os ramos e pensamos na melhor maneira
de podá-los, já a atenção da prece se relaxa.”
Ao ouvir essas palavras, o
Starets Silouane se levantou de sua cama, colocou as botas e um jaquetão
quente, pois fazia frio, e disse com doçura: “Entre nós não é isso o que
acontece”. Dizendo isso, saiu da enfermaria para se dirigir à sua cela.
Muito surpreso, o padre
Esperidião permaneceu alguns instantes sentado, perplexo, depois do que foi até
junto do monge diácono enfermo que estava no quarto vizinho, contou-lhe a
conversa com o padre Silouane e disse:
“Padre diácono, você conhece bem
o padre Silouane; diga-me, o que significam as suas palavras, de que ‘entre nós
não é isso o que acontece’?”
O diácono permaneceu em silêncio.
O padre Esperidião prosseguiu:
“Ou bem ele está em erro, ou bem
é grande”.
O hierodiácono, que conhecia o
padre Esperidião e sua longa experiência de asceta, respondeu:
“Padre Esperidião, você é maior
do que eu, o bastante para compreender o significado dessas palavras”.
Pensativo, o padre Esperidião
permaneceu ainda um tempo sentado, e depois se retirou, dizendo:
“Sim, é algo surpreendente”.
DA DIREÇÃO ESPIRITUAL
Nossa relação assídua com o santo Starets nos permitiu chegar à
convicção de que os mistérios do espírito eram-lhe conhecidos e de que, por
conseguinte, era ele um mestre espiritual seguro. Depois de excepcionais
visitas da graça, pouco frequentes na vida da Igreja, após um esforço ascético
suportado sem desânimo durante cerca de meio século, depois de algumas faltas
pelas quais teve que sofrer no decurso da primeira metade de sua longa vida
ascética, o Starets se aproximava de um grau de conhecimento e de perfeição que
faziam dele um sustento, em qualquer provação, dos demais.
Conhecia a hierarquia dos estados espirituais, a saber, as etapas do
crescimento espiritual, que é importante e às vezes indispensável para
assegurar um progresso sem tropeços. Na vida espiritual dos monges e dos demais
fiéis, acontece com frequência que essa hierarquia esteja falseada e mesmo
invertida. Isso acontece quando um estado espiritual ou uma prática ascética
satisfazem ao homem e esse recusa o que se encontra em seu caminho e que seria
a etapa seguinte, porque considera que esse novo estado seja inferior ao anterior,
refreando assim travas seu progresso espiritual.
O Starets conhecia por experiência as etapas da vida espiritual.
Assinalava três etapas essenciais nesse caminho: a primeira, a recepção da
graça; a segunda, a perda da graça; a terceira, o retorno da graça ou sua
recuperação por meio do trabalho ascético da humildade. Numerosos são os que
receberam a graça, não apenas entre os que se encontram da Igreja, mas também
entre os que estão fora dela, já que o Senhor não faz acepção de pessoas; mas quase
ninguém soube conservar a primeira graça, e raros são os que conseguiram
recobrá-la. Quem não conhece a terceira etapa, que não passou pela experiência
do esforço ascético para recuperar a graça, não possui, falando com propriedade,
o verdadeiro conhecimento espiritual.
O Starets não era rico apenas por sua própria experiência interior
pessoal, como também, do ponto de vista teórico, estava ao par dos escritos ascéticos
dos Padres da Igreja. Graças a um dom de Deus, ele não apenas era fiel à
tradição da Igreja, como ainda nele se renovava a experiência dos Padres.
Lia muito pouco; não queria ler muito porque isso o impedia de orar,
mas gostava de escutar a leitura, pois, sem interromper a prece de Jesus, podia
ao mesmo tempo estar atento ao que estava sendo lido. Ouvia as leituras da
Igreja durante os serviços noturnos, e lia um pouco na solidão de sua cela;
beneficiou-se muito das conversas diretas com outros ascetas da Santa Montanha,
dentre os quais se achavam pessoas que haviam sido gratificadas com bens
notáveis; por volta dos anos trinta, durante um longo período, visitava com
frequência a seu amigo, o padre Cassiano, quando esse morava perto do mosteiro,
nos Cypros. O padre Cassiano amava o Starets e o tinha em alta estima;
valorizava suas virtudes e lia com gosto em alta voz. O Starets conservou em
sua memória numerosas passagens dos Santos Padres, o que era fácil para ele em
virtude da similaridade ou da identidade das experiências.
Não é fácil recordar os textos espirituais, pois, situando-se esses
mais além da esfera imaginativa da vida comum, não encontram facilmente no
mundo de cá suportes nos quais a memória puramente psicológica possa se apoiar.
Não é por isso mesmo que o Senhor onisciente ensinava ao povo os mistérios do
Reino na forma de imagens extraídas da vida real ou em parábolas? Um certo
sucedâneo da vida espiritual certamente é possível por meio de um “saber
livresco”, como se pode observar em pessoas que possuem grande experiência espiritual;
mas é evidente que só é capaz de se recordar do ensinamento dos Padres quem
adquiriu todo o preço do trabalho pessoal e quem recebeu do alto um
conhecimento experimental dos mistérios do mundo espiritual.
Um longo combate desse homem “simples” o colocou na posse de um vasto
conhecimento dos métodos e meios ascéticos. Esse conhecimento, unido à sua
própria força espiritual, o tornaram, por um lado, interiormente livre de
qualquer servidão em relação às formas, mas, por outro, evitou que vagasse,
presa da incerteza e da incompreensão, por “caminhos estranhos”.
Existem muitos falsos caminhos paralelos ao único caminho verdadeiro. Não
poucas esferas fechadas e alheias ao cristianismo desfilam diante da vista
espiritual do asceta, e esse não pode se orientar no meio delas sem a ajuda da
luz divina. O Starets, que no Espírito Santo se tornara digno de ver a Cristo,
que havia sido elevado pelo Espírito Santo à contemplação da luz incriada,
levava em si essa luz. Por esse motivo podia descobrir com surpreendente
perspicácia a autêntica verdade no meio das máscaras e fantasmas de verdade que
o homem encontra inevitavelmente em seu caminho espiritual.
DA CLARIVIDÊNCIA E DE
SUAS DIVERSAS FORMAS
O conhecimento das paixões que se adquire superando-as dá a
clarividência nascida da experiência. Devemos advertir, no entanto, que a
clarividência que provém da experiência de uma prolongada luta contra as
paixões não alcança a perfeição que possui o dom da clarividência recebido por
mio da graça. A primeira, adquirida pela experiência, permite conhecer o estado
espiritual de um homem através de certas exteriorizações suas, pela expressão
de seu rosto, por algumas palavras que pronuncia, por seu modo de falar ou
calar, pela atmosfera psíquica que se desprende dele. Sem embargo, a base mais
segura para formar juízo sobre um homem é conversar com ele, pois sua palavra
revelará o grau de sua autêntica experiência espiritual, diferenciando-a daquilo
que não passa do resultado de uma erudição superficial. O segundo tipo de
clarividência, vale dizer, aquela que é recebida por intermédio da graça,
conhece tudo pela oração e não necessita da presença do homem.
No decurso de seu longo combate interior, o asceta encontra, além
daquela à qual nos referimos, três formas de clarividência: a primeira provém
da intuição, própria de certas pessoas afiadas por uma vida de ascese; a
segunda provém da ação do diabo; e a terceira é um dom especial da graça.
A primeira forma pode ajudar a um homem humilde e piedoso, que a
utiliza frutiferamente, pois contribui para uma guarda mais fiel dos
mandamentos de Cristo em nossas relações com o próximo. Ao contrário, é nociva
para o homem orgulhoso e passional, porque favorece suas disposições passionais
e oferece vastas oportunidades de satisfazê-las.
A segunda forma é extremamente perigosa para quem a aceita, pois cedo
ou tarde conduzirá a um transtorno patológico de todas as faculdades psíquicas
e espirituais do homem, chegando a alterar sua própria fisionomia.
A terceira forma traz consigo uma responsabilidade extraordinariamente
dura para quem a aceita. É fonte de múltiplos sofrimentos espirituais para quem
apossui. Jamais é dada ao orgulhoso.
As três formas de clarividência causam sofrimento. Na primeira forma,
a da intuição natural, os sofrimentos são consequência de uma
hipersensibilidade do aparelho neuropsicológico. Na segunda, derivam das
propriedades desintegradoras da ação demoníaca, o que em geral não se detecta
senão depois de muito tempo. Essa clarividência dá às vezes a possibilidade de “ler”
os pensamentos do outro, mas o homem profundo, o interior, permanece sempre
fora do seu alcance. Essa capacidade se manifesta às vezes com um grau mais aproximado
em relação a acontecimentos que têm um caráter exterior. Quem aceita essa capacidade
está sujeito à vaidade. A verdadeira clarividência espiritual é um dom da
graça. Penetra nas profundidades da alma humana, que com frequência permanecem
ocultas ao próprio homem. Essa clarividência não é de modo algum de natureza
psicopatológica; ela causa sofrimento a que é dotado dela unicamente porque,
mesmo sendo um dom de Deus e estando cheia de amor, de fato leva a contemplar
toda a “feiura e ignomínia” do homem. Trata-se pois, de um sofrimento do amor. Quem
recebeu esse dom jamais tenta conservá-lo para si, pois carece de presunção e
vaidade.
***
Reservamos no que antecede um lugar especial à forma de clarividência
que provém da experiência, a essa clarividência, unida àquela outorgada pela
graça, os Santos Padres estimam como uma dos mais altos carismas e a denominam “dom
do discernimento”. O essencial desse dom reside na sua capacidade de reconhecer
a origem de tal ou qual fenômeno espiritual, ou seja, de reconhecer se provém
da graça ou de influências demoníacas, ou ainda se se situa no plano do
desenvolvimento natural do homem, Por outro lado, entende-se também por esse
termo o conhecimento das etapas da vida espiritual, tanto dos estados espirituais
como de seu valor e dignidade relativos.
O dom do discernimento é tão altamente apreciado pelos ascetas porque
não é mais do que o resultado de uma larga experiência de luta contra as
paixões, da experiência de grandes intervenções e visitas da graça, assim como
de numerosas tentações e ataques demoníacos. É precioso para os mestres
espirituais, porque o inimigo gosta de se disfarçar em anjo de luz, e são
poucos os que são capazes de desmascará-lo.
Conhecemos casos em que a oração revelou ao santo Starets Silouane “acontecimentos
longínquos como se estivessem diante de seus olhos”, o futuro daqueles que se
dirigiam a ela, e também os segredos profundos de sua alma. Muitas pessoas que ainda
vivem puderam constatar esse dom por experiência pessoal e dar testemunho disso.
Quanto ao Starets, não apenas não buscava esse dom, como sequer lhe atribuía
importância. Sua alma estava sempre cheia de compaixão pelo mundo; todo seu ser
permanecia absorto na oração pelo mundo, e em sua vida espiritual esse amor era
para ele o que havia de mais importante.
***
[1] I
João 4: 8; 1, 5.
[2]
Jó17: 11. 15.
[3]
Mateus 10: 30.
[4] I
João 3: 14.
[5]
Lucas 14: 26.
[6]
Filipenses 2: 8.
[7]
Atos 15: 28.
[8]
Mosteiro situado no Monte Athos, a 250 mts. de altitude, muito isolado, famoso
pela sua austeridade.
[9] II
Coríntios 4: 13.
[10] I
Coríntios 13: 9.
[11]
Mateus 19: 26.
[12]
Cf. I Coríntios 7: 25.
[13] I
Timóteo 4: 1.
[14]
Mateus 12: 22.
[15]
Gálatas 1: 11-12.
[16]
Notícia: em grego, plerophoria, termo
ascético usado para designar um conhecimento imediato, um “sentimento” de
certeza interior, recebido durante a oração e indicativo de que o objeto da
oração toma ou tomará tal ou qual forma.
[17]
Hebreus 13: 17.
[18]
Cf. Romanos 10: 13.
[19] I
Coríntios 3: 18-19.
[20]
II Coríntios 3: 3-6.
[21]
Judas 1: 3.
[22]
Nem científica, nem mesmo teológica, aliás. (N.T.)
[23] I
Coríntios 2: 16.
[24]
II Timóteo 2: 15.
[25]
II Pedro 3: 16.
[26]
Colossenses 2: 18.
[27]
II Timóteo 3: 16-17.
[28]
Apocalipse 5: 1.
[29]
II Pedro 1: 21.
[30] I
Coríntios 9: 19-22.
[31]
João 7: 15-17.
[32]
Mateus 22: 40.
[33]
Gênesis 2: 20.
[34] I
João 3: 12.
[35]
João 17: 24.
[36]
João 17: 22.
[37]
Mateus 26: 40.
[38]
João 5: 19-20, 26.
[39]
II Pedro 1: 4; I Coríntios 9: 23.
[40] I
Coríntios 3: 9.
[41]
João 5: 17.
[42]
João 14: 12; Mateus 28: 18.
[43] O
Starets conversava um dia com um estudante que visitava o Monte Athos e que
falava muito de liberdade (...) Na realidade, sua concepção de liberdade se
reduzia à busca de liberdades políticas e à possibilidade de trabalhar em geral
segundo seus próprios impulsos e desejos. O Starets respondeu-lhe: “Quem não
deseja essa liberdade? Todos a desejam, mas é necessário saber em que consiste
e em como encontrá-la. Para chegar a ser livre, é preciso primeiro “amarrar-se”
a si mesmo. Quanto mais você se amarrar, tanto maior será a liberdade de seu
espírito. É necessário amarrar as paixões em nós, para que não nos dominem; é necessário
amarrar-se para não prejudicar o próximo. Buscamos em geral a liberdade para
“fazermos o que quisermos”. Isso não é liberdade, mas o domínio do pecado sobre
nós. A liberdade de se entregar à fornicação, de comer sem controle, de
embebedar-se; ou de guardar rancor, de cometer violência e de matar, ou outras
coisas do gênero – isso, em absoluto, é liberdade. Pois, como disse o Senhor,
“todo homem que peca é escravo do pecado”. É preciso orar muito para
libertar-se dessa escravidão. Cremos que a verdadeira liberdade consiste em não
pecar, em amar a Deus e ao nosso próximo com todo o coração e todas as nossas
forças. A verdadeira liberdade consiste em permanecer constantemente em Deus”.
[44]
II Coríntios 3: 17.
[45]
João 8: 34-36.
[46]
Hebreus 2: 15.
[47]
João 17: 21.
[48]
João 14: 6; 18: 37-38.
[49]
Êxodo 3: 14.
[50]
Cf. Mateus 11: 27.
[51]
João 14: 23, 26.
[52]
II Coríntios 12: 4.
[53]
Nas páginas a seguir, preferimos empregar os termos “hipóstase” e “hipostático”
no lugar de “pessoa” e “pessoal”, para evitar a confusão de termos
teologicamente precisos com as noções de pessoa e pessoal que, em seu uso
corrente, são mais ou menos sinônimos de indivíduo e individual.
[54]
II Coríntios 3: 18.
[55]
João 3: 3.
[56]
Êxodo 3: 14; João 8: 58.
[57]
II Pedro 3: 8.
[58] I
Pedro 1: 18-20.
[59] I
Coríntios 10: 11.
[60]
Efésios 1: 4.
[61] I
João 2: 13.
[62]
Cânon da Liturgia de São João Crisóstomo.
[63]
Oração conclusiva da Liturgia de São Basílio.
[64]
Marcos 9: 1.
[65] I
João 4: 20-21.
[66]
João 14: 13.
[67]
João 7: 17.
[68]
II Timóteo 3: 12.
[69]
João 8: 37.
[70]
João 14: 30.
[71]
Gálatas 1: 11.
[72]
João 7: 20; 7: 43; 8: 48-49. 52; 9: 16; 10: 19-20.
Maravilha essa postagem, um grande bem e tesouro!!! Muito obrigada, não imaginas o quanto é importante ter encontrado esses ensinamentos. Deus abençoe sempre. Ao mesmo tempo estou traduzindo ao português São Serafim de Sarov !!
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