“Eis como deveis orar: Pai Nosso que estais nos Céus”. Vejam
como ele começa por levantar os espíritos, chamando à nossa memória todas as graças
que recebemos de Deus. Ao nos ensinar a chamar a Deus “nosso Pai”, ele sublinha
com essa simples palavra a libertação dos suplícios eternos, a justificação das
almas, a santificação, a redenção, a adoção no número de filhos de Deus, a
herança de Sua glória que nos foi prometida, a associação ao Seu Filho único;
e, por fim, a efusão do Espírito Santo. Pois é impossível a alguém que não
tenha recebido todos esses bens chamar a Deus verdadeiramente de “seu Pai”. Assim
é que ele nos atrai para Deus por meio de duas considerações poderosíssimas,
tanto pela majestade daquele a quem invocamos, como pela grandeza dos dons que
dele recebemos. Quando ele diz que Deus “está nos Céus”, não é no sentido de lançá-lo
aos ares e aí circunscrevê-lo; mas é para retirar da terra o espírito daquele
que ora e elevá-lo ao céu.
Ele nos ensina ainda a fazermos todas as orações em comum
com nossos irmãos. Pois ele não diz: “meu Pai que está nos Céus”, mas “nosso
Pai”, a fim de que nossa oração seja geral para todo o corpo da Igreja, e para
que cada um não cuide de seu próprio interesse particular, mas do de todos. Ele
ainda afasta dessa maneira todas as aversões e inimizades; ele reprime o
orgulho, expulsa a inveja, e introduz a caridade nas almas, essa mãe divina de
todos os bens. Ele ainda destrói todas as desigualdades e as diferenças de
condições e de estados, e equipara admiravelmente o pobre ao rico, o cidadão
com o príncipe; porque nos vemos todos unidos nas coisas mais importantes e
necessárias, que são as coisas da salvação.
Em que pode nos prejudicar a condição de pobreza de nosso
nascimento segundo a carne, se outro nascimento nos une a todos, sem que
ninguém tenha vantagens sobre o outro, bem o rico sobre o pobre, nem o mestre
sobre o servo; nem o magistrado sobre o cidadão, nem o rei sobre o soldado, nem
o filósofo sobre o bárbaro, nem o mais sábio sobre o mais simples e ignorante?
Pois Deus torna todos os homens igualmente nobres, porque ele deseja ser
chamado igualmente de “Pai” por todos.
Assim, depois de haver apresentado aos seus discípulos a
nobreza e a magnitude desse dom de Deus, a igualdade que deve reinar entre eles
e a caridade que eles devem ter uns pelos outros, depois de tê-los erguido da
terra para elevá-los ao céu, veremos o que ele lhes ordena pedir. É verdade que
as primeiras palavras dessa prece parecem ser suficientes para tudo lhes
ensinar. Pois é mais do que justo que alguém que chame a Deus de “seu Pai” – e um
Pai comum a todos – viva de tal maneira que jamais pareça indigno de tão alta
qualidade, e corresponda à excelência desse dom pela santidade de sua vida. Mas
Jesus Cristo não se detém aí e acrescenta:
“Santificado seja o vosso nome”. É uma oração digna de um
homem que acaba de chamar a Deus “seu Pai”, não ter nada em seu coração senão a
glória desse Pai, e desprezar todas as outras coisas em comparação com ele. Pois
as palavras “santificado seja” significam “glorificado seja”. Deus possui sua
glória, que é sempre plena, sempre infinita, e que permanece para sempre a
mesma. E no entanto ele ordena àquele que ora desejar que ele seja ainda
honrado pela santidade de nossa vida. É algo que ele já havia dito em outros
termos: “Que vossa luz brilhe diante dos homens, para que eles vejam vossas
boas obras e glorifiquem vosso Pai que está no céu[1]”.
Quando os Serafins louvam a Deus, eles não dizem mais do que essas palavras: “Santo,
santo, santo”. É por isso que essas palavras: “santificado seja o Vosso nome”
significam que ele seja glorificado. É como se disséssemos a Deus: digna-te, se
for de Teu agrado, regrar e purificar nossa vida de tal modo que, vendo a nós,
todo o mundo Te glorificará. Tal é a perfeição do cristão: ser irrepreensível
em todas as suas ações, de tal modo que quem quer que as veja dê a Deus a glória
que lhe é devida.
“Venha a nós o Vosso reino”. Essa é outra oração de um
verdadeiro filho de Deus, que não se agarra às coisas visíveis nem estima os
bens presentes, mas que suspira sempre por seu Pai e deseja os bens por vir.
Tal é o efeito de uma boa consciência e de uma alma desembaraçada da terra. Esse
era o desejo permanente de São Paulo. Era isso que fazia com que ele dissesse: “Nós
que recebemos as primícias do Espírito, suspiramos e gememos em nosso íntimo,
na espera da adoção divina, da redenção e da libertação de nosso corpo[2]”.
Quem se abrasa com esse desejo já não é capaz de valorizar as vantagens desse
mundo, nem de se abater por seus males, mas, como se já estivesse no céu, não
está mais sujeito a nem uma nem outra dessas desigualdades tão diferentes.
“Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”.
Existe uma admirável sequência nessas palavras. Ele nos ordena desejar os bens
futuros, e de sempre tender ao céu; mas ele também quer que, enquanto
aguardamos esse devir, imitemos sobre a terra a vida dos anjos do céu. Vocês
devem, diz ele, desejar o céu e os bens que eu lhes preparei; mas eu lhes
ordeno ainda que façam da terra um céu, e que aí vivam, falem e ajam como se já
estivessem no céu. Essa é a graça que vocês devem me pedir. Ainda que vocês
estejam na terra, devem entretanto se esforçar por viver como essas potências
celestes, porque vocês podem estar ainda aqui em baixo e viver como elas. É isso
que nos dizem essas palavras de Jesus Cristo. Assim como os anjos no céu
obedecem livremente e sempre com o mesmo fervor – porque não são inconstantes,
obedecendo numa ocasião e não em outra – submetendo-se sempre e permanecendo
perfeitamente submissos, por serem “poderosos em virtude para cumprir as ordens
de Deus[3]”,
como disse o profeta, concede-nos a mesma graça a nós homens, para que não façamos
Sua vontade parcialmente, mas integralmente, e em todas as coisas.
Considerem também como Jesus Cristo nos ensina a sermos
humildes, fazendo-nos ver que nossa virtude não depende apenas de nosso
trabalho, mas da graça de Deus. Ele ordena aqui a cada fiel que ora, fazê-lo
para toda a terra. Pois ele não diz: “seja feita a Vossa vontade”, em mim ou em
nós, mas “sobre toda a terra”, a fim de que o erro seja banido dela e que a
verdade reine; que o vício seja destruído e que virtude floresça; e que a terra
não seja diferente do céu. Pois se Deus chegasse a ser assim obedecido no
mundo, ainda que os habitantes do céu sejam muito diferentes dos da terra, a
terra tornar-se-ia um céu, e os homens seriam anjos, porque eles viveriam como
anjos.
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Como ele acabara de
dizer “seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu”, e porque ele
falava a homens encerrados numa carne fraca, sujeitos a diversas necessidades e
incapazes de usufruir ainda da impassibilidade dos anjos, ele quis nos ordenar
que cumpríssemos a vontade de Deus tão perfeitamente como os anjos, mas, ao
mesmo tempo ele fez uma concessão à fragilidade de nossa natureza: eu exijo de
vocês, nos diz ele, a virtude de meus anjos, mas não sua impassibilidade; a
fragilidade da sua natureza é incapaz disso, e ela necessita de um alimento que
a sustente.
Mas vejam como ele deseja espiritualidade para nós, mesmo
quando ele se refere ao corpo. Pois ele não nos ordena que peçamos riquezas ou
prazeres, ou vestes preciosas, nem nada semelhante, mas apenas pão, e o pão de
que necessitamos nesse dia que estamos vivendo, sem nos preocuparmos com o de
amanhã. “O pão nosso de cada dia”, diz ele. E, não contente com isso, ele
acrescenta: “nos dai hoje”, a fim de excluir por completo de nosso espírito a
preocupação e a aflição pelo dia de amanhã. Pois, por que nos atormentarmos por um dia que
não temos a certeza de viver? Ele já havia falado a respeito, quando disse: “Não
vos preocupeis com o dia de amanhã”. Pois ele deseja que estejamos sempre
vestidos para viagem, e prontos a empreender nosso voo para o céu, não dando ao
corpo mais do que a necessidade nos pede.
E como um cristão não se torna impecável apenas pelo Batismo,
Jesus Cristo nos dá aqui mostras de sua ternura, prescrevendo-nos essa oração
para favorecer-nos com a bondade de Deus e pedir-lhe o perdão por nossos
pecados.
“Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os
nossos devedores”. Vejam até onde chega o excesso de amor que Deus dedica aos
homens. Ele ainda considera dignos de perdão aqueles que o ofendem mesmo depois
de terem sido libertos de tantos males, e de haver recebido tão inefáveis graças.
Pois essa oração foi feita para os fiéis, como nos mostra o costume da Igreja, desde
a primeira palavra, pois uma pessoa que não foi batizada não pode chamar a Deus
de “seu Pai”. Assim sendo, se essa oração é para os fiéis, e se eles pedem a
Deus o perdão pelos seus pecados, é visível que Deus não nos recusa, mesmo
depois do Batismo, o remédio da penitência. Se ele não quisesse nos persuadir
dessa verdade, ele não nos teria prescrito essa oração. Mas, ao falar de nosso
pecados e nos ordenando que lhe peçamos perdão, ele nos mostra o meio de
obtê-lo por uma via fácil, que consiste em perdoar as dívidas aos nossos
devedores; é claro que ele quis nos mostrar com isso que os pecados podem ainda
ser apagados depois do Batismo, e é para nos convencer disso que ele nos ordena
orar dessa maneira. Fazendo com que nos lembremos de nossos pecados, ele nos
inspira sentimentos de humildade. E ordenando-nos que perdoemos aos outros, ele
apaga de nosso espírito a lembrança das injúrias. Prometendo-nos perdoar nossas
faltas, ele alimenta nossas esperanças. E tornando-nos imitadores de sua doçura
e de sua bondade inefável, ele nos eleva ao cúmulo da sabedoria.
Mas eis aqui algo extremamente importante: ao encerrar em
cada uma dessas demandas toda a perfeição cristã, já estava implícita por isso
mesmo a obrigação de perdoar as injúrias. Com efeito, como o resumo de toda
virtude está contido nessa frase: “santificado seja o Vosso nome”; ou nessa
outra: “seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu”; ou no favor
que ele nos concede em chamar a Deus de “nosso Pai”, podemos dizer que todas essas
virtudes encerram também a obrigação de esquecer as injúrias que recebemos de
nossos irmãos. E no entretanto ele não se contenta com essa recomendação implícita,
e para mostrar como lhe é caro esse preceito, ele fez dela um artigo expresso
da prece que nos prescreveu, e, tendo-a completado, é esse o único que ele irá repetir
em outra ocasião, quando nos assegurar que “se perdoardes aos homens os males
que eles vos fizeram, vosso Pai que está no céu também vos perdoará. Mas, se não
perdoardes aos homens, o vosso Pai também não vos perdoará os males que houverdes
feito[4]”.
Assim é que Deus faz com que nosso fim dependa de nós, e ele
nos torna mestres da sentença que ele pronunciará um dia. Pois a fim de que,
por mais irracionais que vocês sejam, vocês não possam se lamentar de seja lá o
que for do juízo que Deus irá pronunciar, ele deseja que, mesmo culpados, vocês
sejam os mestres de suas sentenças. Do mesmo modo como vocês julgarão eu os
julgarei, e se vocês perdoarem a um homem como vocês, eu prometo perdoá-los
também. E no entanto Deus está igualando duas coisas bem desiguais. Pois vocês
perdoam apenas porque necessitam ser perdoados; mas Deus concede a graça sem
obrigação nenhuma. Vocês perdoam como servidor a quem é como vocês mesmos são;
mas Deus perdoa como um mestre perdoa seu escravo. Vocês concedem a graça,
porque estão carregados de pecados; Deus concede a graça por ser ele a própria
santidade, e incapaz da menor falta.
E eis ainda aqui mais uma grande prova de sua bondade. Pois ele
poderia tranquilamente perdoar os seus pecados; mas ao fazê-lo na mesma
proporção em que vocês perdoam aos outros, ele concede a vocês mil ocasiões de
exercer a doçura e a caridade. Ele dá espaço para que vocês extingam a cólera e
sufoquem em seus corações tudo o que poderia haver de brutal e desumano, e os
ensina assim a que se unam estreitamente aos seus irmãos, que com vocês
Depois disso, sob que desculpa vocês pretendem se esconder?
Dirão que seu irmão os maltratou sem motivo? Isso está implícito, pois lhes foi
ordenado perdoá-lo. Se houvesse justiça naquilo que ele fez, também não haveria
pecado. É, portanto, sua injustiça, é seu pecado q eu vocês são chamados a
perdoar, do mesmo modo como é por pecados semelhantes, e por muitos outros e
maiores, que vocês pedem a Deus que os perdoe. Mas antes mesmo de lhes conceder
o perdão ele lhes concede essa graça, ordenando a vocês que o peçam desse modo,
e ensinando a vocês a serem doces e caridosos para com seus irmãos. Assim, ele
lhes promete ainda uma enorme recompensa, assegurando a vocês que ele não
pedirá conta dos seus pecados.
De quais suplícios seremos dignos então, se, depois de Deus
ter colocado nossa salvação em nosso poder, traímos a nós mesmos e nos perdemos
voluntariamente? Como podemos ousar pedir a Deus que seja doce e indulgente
para conosco, se, num assunto que depende apenas de nós, nos mostramos tão
cruéis e desumanos contra nós mesmos?
“E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal,
porque a Vós pertencem o reino, o poder e a glória, pelos séculos dos séculos.
Amém”. Nada mais adequado para nos fazer ver nossa baixeza e a abater nossa
presunção, do que essas palavras que nos ensinam a não fugir dos combates, mas
também a não nos atirarmos a eles confiando apenas em nós mesmos. É assim que
será mais gloriosa nossa vitória, e mais vergonhosa para o demônio sua derrota.
Pois, se somos forçados a combater, façamo-lo com firmeza e vigor; mas quando não
somos chamados, devemos nos manter em repouso, aguardando o momento do combate,
a fim de mostrarmos tanto a humildade como a coragem. Essa expressão “do mal”
significa também “do maligno”, o espírito mau, e Jesus Cristo nos exorta a ter contra
ele uma inimizade irreconciliável. Mas ele também nos ensona que ele não é mau
por natureza; pois a maldade não é natural da criatura, mas ela provém da
escolha da vontade. Jesus Cristo o chama definitivamente “o maligno”, porque
ele de fato o é, no mais alto grau; e como, sem ter recebido de nós a menor injúria,
ele nos guerreia sem trégua, o Senhor não nos faz dizer: “livrai-nos dos
malvados”, mas “do maligno”, a fim de que não tenhamos ódio contra nossos
irmãos nos males que sofremos, mas para que votemos toda nossa raiva contra esse
espírito de maldade, autor e princípio verdadeiro de todos os males.
Depois de nos ter estimulado ao combate com a lembrança
desse inimigo, ele nos exorta a fugir da preguiça e da negligência, e nos
encoraja mais uma vez, levantando nossos espírito com a apresentação do rei a
quem servimos, e nos fazendo ver que ele é o mais poderoso de todos: “Pois a
Vós pertencem o reino, o poder e a glória”. Ora, se o poder pertence a Deus,
nada há o que temer, pois ninguém é capaz de resistir-lhe, nem lhe tomar o
poder supremo. Quando ele diz “Vosso é o reino”, ele nos faz ver que esse mesmo
inimigo que nos ataca lhe está submetido, e que, se ele nos guerreia, é porque
Deus tolera que seja assim. Ele pertence ao número dos seus escravos, ainda que
condenado e reprovado por ele, e por mais furioso que seja, ele não ousaria atacar
um homem, se não tivesse recebido esse poder de Deus. Ora, que digo eu, que ele
não ousaria atacar um homem? Ele não ousou sequer entrar dentro dos porcos, sem
antes ter recebido a permissão de Jesus Cristo; como ele não ousou tocar nos
bois e nas ovelhas desse santo homem Jó, senão depois que Deus lhe concedeu
esse poder. E Ainda que vocês fossem mil vezes mais fracos do que são, se forem
justos, podem ter toda confiança servindo a tão grande rei, um rei que pode fazer
por vocês qualquer coisa que ele queira.
“A Vós pertence a glória pelos séculos dos séculos. Amém”.
Deus não apenas os liberta dos seus males, como ele ainda pode lhes conceder a
glória. Como seu poder é infinito, sua glória é inefável, e ambas se estenderão
por todos os séculos. Vejam, assim, quantas coisas ele nos propõe para nos
estimular ao combate, e para nos inspirar firmeza e confiança.
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