INTRODUÇÃO
A Revelação nos diz: “Deus é Amor”, “Deus é Luz, nele não existe treva
alguma[1]”.
Quão difícil é para nós, homens, aceitarmos essas palavras! Difícil,
porque nossa própria vida e a do mundo inteiro que nos rodeia mostram o contrário.
Onde se encontra, com efeito, essa Luz de Amor do Pai, se, chegando ao
ocaso de nossas vidas, com a amargura no coração, somos obrigados a reconhecer,
como Jó: “Meus melhores projetos, os desejos mais queridos de meu coração, se
desmancharam. Meus dias ruíram, minha casa será o lugar dos mortos... Onde está,
pois, minha esperança? E aqui que, desde a minha juventude, secreta e ardentemente,
meu coração perseguia, quem o verá?[2]”.
O próprio Cristo assegura que Deus, em sua Providência, vela
atentamente por toda a criação. Ele se lembra do mais pequenino pássaro, e
cuida mesmo da erva do campo. Sua solicitude pelos homens é entretanto incomparavelmente
maior, até o ponto de que “todos os seus cabelos estão contados[3]”.
Mas onde está essa Providência que vela até os menores detalhes?
Estamos desconcertados pelo espetáculo do desencadeamento irrefreável do mal
pelo mundo. Milhões de vida, com frequência apenas iniciadas, e ainda antes que
tenham qualquer consciência de si mesmas, são arrancadas com incrível crueldade.
Por que então essa vida absurda nos foi dada? A alma anseia por
encontrar a Deus e dizer-lhe: “Por que me deste a vida? Estou coberto de
sofrimentos, as trevas me rodeiam. Por que te escondes de mim? Sei que és bom,
mas como podes ser tão indiferente à minha dor? Por que és tão cruel, tão
implacável comigo? Não posso compreender-te”.
Um homem possuído pelo desejo de Deus vivia na terra. Seu nome era
Simeão. Havia orado durante longo tempo, chorando sem cessar: “Tem piedade de
mim”. Mas seu grito se perdia no silêncio de Deus.
Perseverou meses e meses nessa oração; as forças de sua alma estavam
esgotadas. Chegou ao limite do desespero e gritou: “És inexorável!”. E quando,
com essas palavras, algo se rompia em seu espírito destroçado pelo desespero,
viu de repente, no relâmpago de um instante, a Cristo vivo. Seu coração e seu
corpo foram invadidos por um fogo tão violento, que se a visão houvesse se
prolongado um instante a mais, ele não teria sobrevivido. Desde então, ele nunca
mais pôde esquecer o olhar de Cristo, um olhar de indizível doçura,
infinitamente amoroso, cheio de alegria e de paz. E durante os muitos anos de
sua vida que se sucederam desde então, ele testemunhou incansavelmente que Deus
é Amor, Amor infinito e insondável.
É desse testemunho do amor divino que vamos falar.
[Os textos do Arquimandrita Sofrônio sobre os ensinamentos de São Silouane que vamos publicar a seguir encontram-se no livro: "São Silouane o Athonita, Monge do Monte Athos (1866-1938): Vida - Doutrina - Escritos" - Encuentro Editores, Madri - 1990 - Tradução de Joaquim Mauristany]
A ORAÇÃO PURA
A vida inteira do santo Starets
Silouane era de oração. Ele rezava ininterruptamente, mudando a forma da oração
ao longo do dia, segundo as circunstâncias. Possuía também o dom do modo de
oração mais elevado, o do hesiquiasmo, ao qual dedicava sobretudo as horas da
noite, quando reinam o silêncio e a escuridão favoráveis à oração.
As diversas modalidades ou formas
de oração constituem um dos pontos centrais do ascetismo em geral; assim
acontecia com o Starets, e acreditamos ser nosso dever determo-nos um pouco a
respeito.
Os três modos de oração
A oração é a criação suprema, a
criação por antonomásia, e por isso apresenta uma variedade infinita de formas.
No entanto, é possível distinguir um certo número delas seguindo a tendência ou
a atitude interior das principais faculdades espirituais do homem; é assim que
o fazem os Padres da Igreja.
Essas formas correspondem às
etapas do desenvolvimento normal do espírito, a saber: o movimento do intelecto
para o exterior, seu retorno a si e sua ascensão a Deus por intermédio do homem
interior.
Essa ordem ternária serviu de
base aos Santos Padres para definir três modos de oração. O primeiro é
caracterizado pela imaginação, pois o intelecto ainda é incapaz de se elevar
diretamente à contemplação pura; o segundo modo é caracterizado pela meditação,
e o terceiro pela imersão na contemplação. Somente o terceiro modo é correto e
fecundo, na opinião dos Padres. Mas, conscientes da incapacidade humana de
alcançar a oração pura no início do caminho para Deus, eles consideraram
naturais e úteis os dois primeiros, em seu devido tempo. Mas eles sublinham
que, se o homem se limita ao primeiro modo e persiste em cultivá-lo, sua oração
não só se tornará estéril, como ainda poderá gerar profundos transtornos
espirituais. Quanto ao segundo modo de oração, ainda que supere o primeiro
comparativamente, também fornece poucos frutos; por não apartar o homem de sua
luta contínua contra os pensamentos que o assaltam, não o libera das paixões e
tampouco lhe permite alcançar a contemplação pura. O terceiro modo de oração, o
mais perfeito, consiste na permanência do intelecto no coração; ali, a pessoa
que ora, na profundidade de seu ser e livre de toda imagem, está diante de Deus
em oração pura.
O primeiro modo de oração mantém
o homem em seus estado errante congênito perambulando por seu mundo ilusório,
num domínio onírico, algo parecido com um “sonho poético”; o divino, a
realidade espiritual em geral, aparece sob diversos aspectos imaginários e a
própria vida humana concreta vai se impregnando pouco a pouco de elementos
procedentes da vida imaginária.
O segundo modo de oração deixa o
coração e o intelecto amplamente abertos à penetração das coisas que lhes são
exteriores. Então o homem se encontra exposto constantemente a diversas
influências estranhas, cuja natureza ele não compreende com exatidão; ignorando
particularmente o modo como esses pensamentos e combates se originam nele, ele
se mostra incapaz de resistir como deve ao assalto das paixões. Às vezes ele
recebe, no transcurso desse modo de oração, a graça de ascender a um estado
espiritualmente favorável, mas sua disposição interior defeituosa o impede de
perseverar, satisfeito com alguns conhecimentos espirituais adquiridos e com
sua conduta relativamente correta, ele se deixa arrastar pela teologia
especulativa; e na medida em que progride nesse cainho, a luta interior contra
as sutis paixões da alma, a vaidade e o orgulhos se complicam, e pouco a pouco
a graça vai se perdendo imperceptivelmente. O desenvolvimento desse modo de
oração, marcado pela concentração da atenção no cérebro, confina a consciência
no nível de contemplação “filosófica”, e essa reduz novamente o intelecto à
esfera dos conceitos abstratos e da imaginação. Esse aspecto conceitual e
abstrato da atividade imaginativa é menos ingênuo, com certeza, menos opaco e,
portanto, menos afastado da verdade do que o primeiro.
O terceiro modo de oração une o
intelecto e o coração. Essa união constitui, em geral, no estado normal da vida
religiosa, um estado desejado, buscado, recebido desde o alto. Todo fiel
conhece esse estado quando ora com atenção, “do fundo do coração”; ele o
experimenta na medida em que a compunção e a doce presença de Deus se apoderam
dele. As lágrimas de compunção durante a oração são um indício certo da fusão
entre intelecto e coração; um sinal de que a oração alcançou o primeiro lugar,
o primeiro grau de sua elevação a Deus; por essa razão os ascetas têm as
lágrimas em tão alta conta. Mas ao falarmos aqui desse terceiro modo de oração,
devemos levar em conta algo maior: o intelecto, fixado pela atenção na oração,
permanece no coração.
O aspecto distintivo desse
movimento interiorizante do intelecto consiste na cessação da atividade
imaginativa e na liberação por parte do intelecto de todas as imagens que aí
haviam sido introduzidas. O intelecto se torna todo o olho e o ouvido, vê e
escuta qualquer pensamento proveniente do exterior antes que penetre no
coração. O intelecto em oração não apenas impede a entrada no coração dos
pensamentos, como ainda os rechaça, colocando-se assim ao abrigo de qualquer
“cumplicidade” com eles; dessa maneira se torna possível paralisar a ação das
paixões em seu primeiro estado, a partir do momento em que elas começam a
germinar.
Esse assunto é demasiado profundo
e complexo para que possamos apresentar aqui mais do que uma breve
consideração.
A evolução dos pensamentos
O pecado se atualiza através do
processo interior de uma série de estágios.
O primeiro estágio consiste no
surgimento, a partir do “exterior”, de um certo “influxo” espiritual, que de
início pode ser distinto e sem forma. O primeiro momento de sua formação é a
aparição de uma imagem no campo visual interno; como essa aparição não depende
da vontade do homem, ela não lhe é imputada como pecado. As imagens rapidamente
se revestem tanto de um aspecto visível como de uma estrutura mental; na
maioria das vezes elas são de natureza mista. Como as primeiras aparições,
imagens visíveis, se traduzem em tal ou qual representação intelectual, o
asceta dá o nome de “pensamento” a todas as imagens.
O intelecto “soberano” de um
homem purificado das paixões pode, enquanto faculdade cognitiva, deter o fluxo
dos pensamentos sem perder o controle próprio e o resguardo de seu influxo. Mas
se houver “lugar” no homem para o pensamento, se esse encontrar ali um terreno
apropriado para seu desenvolvimento, sua energia tenderá a se apoderar do mundo
psíquico, vale dizer, da alma. Ele o consegue suscitando na alma, que é
predisposta ao vício, um certo “deleite”, correspondente a essa ou àquela
paixão. É no deleite que reside a “tentação”. Esse instante de satisfação,
embora já manifeste a imperfeição do homem, ainda não é considerado culpa sua,
de acordo com a sagrada Escritura. “O pecado está à sua porta, como fera
acuada, espreitando você; você pode dominá-lo?[1]”.
O desenvolvimento ulterior do
pensamento pode ser descrito sumariamente conforme segue: o deleite proposto
pela representação passional atrai a atenção do intelecto. Esse é um momento
muito importante, pois a partir de agora o homem se torna responsável, conforme
a pergunta proposta por Cristo aos seus discípulos: “Por que sobem esses
pensamentos ao seu coração?[2]”. A cumplicidade” entre o
intelecto e o pensamento favorece o desenvolvimento desse último. Se o
intelecto, mediante um ato interior da vontade, não se aparta do deleite
proposto, mas ao contrário permite que a atenção se fixe nele, a propensão ao
deleite cresce e vai se convertendo num entretenimento agradável; o “trato”
inclina a um “consentimento”, que pode desembocar num “acordo” total e ativo.
Depois, sem deixar de evoluir, o deleite passional pode se apoderar do
intelecto e da vontade, e então se produz o “cativeiro”. Depois disso, todas as
forças do “cativo” convergem para uma realização mais ou menos imediata e
deliberada do pecado atual ou, se um obstáculo externo o impede, na busca de
uma possibilidade para realizá-lo.
O “cativeiro” a que nos referimos
por permanecer em algo isolado e não se repetir; isso acontece quando ele é
fruto da falta de experiência e quando o homem persevera na tensão e no
combate. Mas se o “cativeiro” se repete, engendra o “hábito” da paixão; então,
todas as forças naturais do homem se colocam a seu serviço.
O combate deve começar na
primeira sedução da representação passional, a que chamamos anteriormente de
“sugestão”; ele pode e deve se estabelecer, ademais, em qualquer estado do
desenvolvimento da representação pecaminosa, porque essa pode ser vencida em qualquer
deles e assim nunca chegar a se realizar. A matéria do pecado, sem embargo, se
desenvolve a partir do momento em que a vontade vacila, e então será preciso a
penitência para não perder a graça.
Para uma consciência
inexperiente, o mau pensamento passa desapercebido nos primeiros estágios; ele
só se torna discernível depois que adquiriu um certo poder, quando o perigo do
pecado real é iminente.
Para não chegar a esse ponto, é
preciso fixar o intelecto no coração por meio da oração. Isso se impõe a todo
asceta que deseje consolidar-se na vida espiritual mediante a oração, porque
esse comportamento permite sufocar o pecado na origem. Convém recordar aqui as
palavras do Profeta: “Filha de Babilônia, a devastadora... Feliz daquele que
toma seus filhos e os esmaga contra o rochedo[3]”;
esse rochedo é o nome de Jesus Cristo.
Fechando a entrada do coração e
colocando o espírito como sentinela, despojado de qualquer imagem ou reflexo, e
armado com a oração e o nome de Jesus, o asceta luta contra toda influência e
contra todo pensamento proveniente do exterior. Nisso consiste a sobriedade
intelectual, cujo objetivo é a luta contra as paixões.
Num sentido mais amplo e
universal, a vitória sobre as paixões é obtida com o cumprimento dos
mandamentos de Cristo. Mas em nosso estado estamos nos referindo a uma forma
particular de sobriedade espiritual, que começa depois que o asceta franqueou
certas etapas do desenvolvimento espiritual e abandonou a oração em seus dois
primeiros modos, depois de conhecer por experiência os limites desses.
Para guardar seu coração e seu
intelecto livres de qualquer pensamento, o asceta sustenta um longo combate,
extremamente árduo e sutil. O homem que vive submerso na multitude de
influências e impressões as mais variadas não pode distinguir sua natureza nem
avaliar sua força, por causa do desfile constante dessas coisas na corrente de
sua vida. O asceta, ao contrário, praticando o silêncio do intelecto e
apartando-se do exterior, concentra-se com todas as suas forças em sua vida
interior e desde ali empreende um combate singular contra o pensamento. O homem
cuja atenção exterior é insuficiente, cai fatalmente sob o influxo de um
pensamento e se converte em seu escravo. Ao permitir que sua vontade se dobre
ante suas sugestões, o homem se assemelha espiritualmente e inclusive se
identifica com a energia da qual o pensamento se alimenta. Ao aceitar em sua
alma um pensamento, que com muita frequência provém de uma influência
demoníaca, o homem se converte em sua vítima.
O espírito de um homem que ora
profundamente percebe às vezes que um espírito se aproxima desde fora; mas se
ele não relaxar a atenção em sua oração, esse espírito se afasta sem deixar
rastros. Dessa maneira, depois da oração, o homem não consegue saber quem veio,
nem porque, nem com que fim. Durante a oração profunda podem acontecer
fenômenos de difícil explicação. Aparições luminosas atravessam o horizonte do
intelecto e tentam atrair sua atenção; se o intelecto não as considera, elas
parecem dizer-lhe: “Eu lhe trago sabedoria e compreensão; se você não me aceita
agora, não voltará a me ver”. Mas se o intelecto experiente não lhe presta
nenhuma atenção, elas desaparecem sem que tenham sido aceitas nem
identificadas. O espírito não sabe com certeza se foi um anjo ou um demônio, mas
sabe por experiência que, na medida em que colocar sua atenção na brilhante
ideia que se lhe apresenta, perderá a oração e não a recuperará senão a duras
penas. A experiência ensina que durante a oração não é conveniente se fixar
sequer nos bons pensamentos; o intelecto não deixará de encontrar em seguida
outros pensamentos e, como dizia o Starets Silouane, “não sairá daí ileso”. A
perda da oração pura é um prejuízo que nada é capaz de compensar.
Em luta pela sua liberdade, o
asceta declara uma guerra tão intensa ao pensamento, que quem nunca viveu a
mesma experiência não é capaz de imaginar. Nessa luta interior, nessa
resistência direta ao pensamento, a alma do principiante, sofre em certas
ocasiões, uma derrota parcial – mas, em outras, obtém vitórias significativas.
O asceta tem oportunidade de estudar com sutileza surpreendente a natureza do
pensamento. Desse modo, sem chegar a cometer o pecado que lhe é apresentado,
ele conhece a energia de cada paixão com uma profundidade e sutileza que o
homem que é possuído por ela não tem. Esse último pode observar o efeito dessa
ou daquela paixão sobre si mesmo ou sobre os demais, mas, para conseguir um
conhecimento mais profundo é necessário atingir o “lugar” espiritual onde se
encontra aquele que ora segundo o terceiro modo de oração; é dali que o asceta
enxerga qualquer paixão em sua gênese.
Essa obra admirável, desconhecida
salvo raras exceções, que não é seguida inclusive por aqueles que a conhecem,
não é realizável senão a custa de uma dedicação assídua, e só é adotada por uma
minoria: “Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos
são os que o encontram[4]”.
Essa obra não é simples nem fácil, com pode aparecer à primeira vista;
voltaremos a isso outras vezes, em nosso intento de dar-lhe uma definição breve
e clara, sem esperar esgotá-la ou expô-la de modo minimamente satisfatório.
***
A essência do caminho ascético do
Starets Silouane pode ser resumida brevemente assim: manter o coração ao abrigo
de todo pensamento exterior com a ajuda da atenção do intelecto, com vistas a
poder, uma vez rechaçadas todas as influências exteriores, apresentar-se diante
de Deus em oração pura.
Essa obra é chamada de silêncio
do intelecto. Os Santos Padres no-la legaram por intermédio da corrente da
Tradição viva e parcialmente escrita, que remonta aos primeiros séculos da
história da Cristandade. Portanto, falar do caminho ascético do Starets
equivale, tal como ele o entendia, a falar do monarquismo ortodoxo em geral.
São Silouane dizia: “Se você for
teólogo, sua oração será pura; se sua oração for pura, você é teólogo[5]”.
Um monge asceta não é um teólogo na acepção acadêmica do termo, mas o é no
sentido em que, através da oração pura, Deus o torna digno da verdadeira
contemplação.
O caminho da oração pura começa
com a luta contra as paixões. Na medida em que se purifica o intelecto, o
combate contra os pensamentos se fortalece e a oração se torna mais estável. O
coração, liberto da cegueira passional, contempla as realidades espirituais com
uma clareza e pureza que vão crescendo até a certeza da intuição imediata.
O monge prefere esse caminho ao
da ciência teológica; a seus olhos, a especulação – seja teológica ou
metafísica, no sentido mais elevado do termo – conduz até aquele “limite” no
qual aparece a impossibilidade de aplicar ao ser divino conceitos nascidos de
nossos próprios recursos; isso permite alcançar aquele estado no qual o
intelecto começa a “emudecer”; mas esse “silêncio” do intelecto no espiritual
especulativo permanece muito abaixo da contemplação de Deus, por mais que se
aproxime dela.
Não é possível, com efeito,
chegar à contemplação verdadeira, que é transformadora, sem haver purificado o
coração previamente. Somente um coração despojado de paixões, incluindo-se aí a
paixão mental, está disposto ao estado de “rapto”, de “arrebatamento” ou de
“estupor” que são característicos da consciência da incognoscibilidade de Deus,
do conhecimento do Incognoscível, da suprema “nesciência”. Nessa “nesciência”,
o intelecto, inundado de gozo, fica reduzido ao silêncio, desconcertado ante a
grandeza do Contemplado.
O espiritual especulativo e o
teólogo pensador, de um lado, e o monge asceta, de outro, seguem caminhos
distintos. O intelecto desse último se abstém não só do pensamento discursivo,
coo de qualquer dialética especulativa, de toda teoria metafísica; ele se
limita, como um guardião, a vigiar para que nada exterior se introduza no
coração. O nome de Jesus Cristo e seus mandamentos, e nenhuma outra coisa,
constituem nesse “silêncio sagrado” o caminho no qual coração e intelecto vivem
em uníssono uma só vida; e eles o fazem controlando tudo o que acontece no
interior, com uma vigilância que não constitui um exame lógico, mas uma
“sensação” espiritual sui generis.
***
O intelecto unido ao coração se
encontra num estado que lhe permite seguir cada movimento que se produz na
esfera do “subconsciente” (tomamos esse termo da psicologia, embora essa não
corresponda exatamente à perspectiva ortodoxa). O intelecto, descendo até o
coração, percebe uma multidão de imagens e de representações, provenientes do
entorno cósmico da realidade e que parecem querer se apoderar do coração e da
inteligência do homem. Sob a forma de pensamento associado a tal ou qual
imagem, aparece a energia própria de cada uma das potências do mundo ambiental.
O assalto dos pensamentos que vêm de fora é de uma extrema violência; para
repeli-lo, o monge é obrigado a proibir-se, ao longo do dia, qualquer olhar ou
tendência de índole passional. Ele deve aspirar sem tréguas a reduzir ao mínimo
o número de impressões exteriores (incluindo as especulativas); se não o fizer,
na hora da oração contemplativa tudo o que ele acolheu irá acossar seu coração,
formando um muro intransponível e submergindo-o num funesto desassossego.
O estado de permanente vigilância
interior é o objetivo do monge. Alertado por longos anos de esforço, na verdade
do mais árduo de todos os esforços ascéticos, o coração pode adquirir uma sutil
sensibilidade, e o intelecto, regenerado pelas abundantes lágrimas derramadas,
pode conquistar o poder de recusar qualquer sugestão mental ou passional; então
o estado de oração se torna estável, porque a consciência de Deus, presente e
atuante, adquire a partir desse momento força e claridade.
A espiritualidade “areopagítica”
é de outra índole: nela a reflexão prevalece sobre a oração. Os que a adotam
veem frequentemente frustradas suas expectativas: tendo assimilado com
facilidade o conteúdo especulativo da teologia apofática, tendem a se contentar
com o gozo espiritual que extraem disso. Inclinados a subestimar a importância
das paixões não dominadas, estão convencidos de realizar a essência da obra do
Areopagita, quando na verdade, no melhor dos casos, apenas exploraram a
estrutura dessa teologia e penetraram em sua dimensão conceitual, sem proceder
de modo existencial em relação Àquele que é o Fim necessário.
***
O Starets via a essência da
hesíquia não na reclusão em um lugar deserto, mas na permanência ininterrupta
em Deus. Dada sua importância, o assunto merece ser considerado.
A reclusão ou a vida eremítica não são mais do
que meios, jamais um fim em si mesmo; podem contribuir para a eliminação de
impressões e influências exteriores na medida em que afastam do tumulto desse
mundo e favorecem a oração pura, mas com a condição de que o isolamento esteja
de acordo com a vontade de Deus e não com a vontade própria. Do contrário, a
vida eremítica ou qualquer outro esforço ascético se esvaziam de sentido, pois
a substância de nossa vida não se mede pelo esforço que emana de nossa própria
iniciativa, mas da obediência à vontade divina.
Muitos pensam que o modo de vida
mais elevado é a hesíquia no deserto ou na reclusão; outros colocam acima de
tudo a “loucura em Cristo”; outros no ministério sacerdotal; outros enfim, no
saber teológico. Nenhum desses modos de ascese, segundo o Starets, é por si
mesmo uma forma superior de vida espiritual; mas cada um pode sê-lo, para
aquele a quem Deus destina.
Por diversa que seja a vontade
divina sobre um ou outro homem, e seja qual for o modo de vida espiritual, o lugar
ou o ministério, a aspiração à oração pura é, em qualquer caso, o que há de
fundamental, e o fim último.
O Starets Silouane considerava
pura a oração quando era oferecida com a compunção, vale dizer, quando o
coração e o intelecto juntos viviam as palavras da oração e quando essa não era
interrompida, nem pela atenção prestada às coisas exteriores, nem por uma
reflexão sobre um assunto alheio à oração. Como já indicamos anteriormente,
esse modo de oração é um estado religioso normal e muitos fiéis o conhecem em
maior ou menor grau, mas é raro que se converta numa oração perfeita, sobre a
qual cremos ser nosso dever falar, mesmo a despeito de nossa ignorância. O
esforço constante que preside suas formas preparatórias depende em parte da
vontade do homem. Tudo o que expusemos não constitui mais do que o aspecto
negativo da oração hesiquiasta; em especial, o fato de perceber o pensamento
antes de que esse se introduza no coração, o fato de controlar o
“subconsciente”, de liberar-se do desassossego provocado por tantos influxos
provenientes do profundo abismo da vida cósmica corrompida. Quanto à exposição
de seu aspecto, ultrapassa qualquer conceituação humana.
Deus é Luz inacessível. O intelecto
criado não chega até a inteligência incriada, a pessoa humana não encontra a
pessoa divina se não for através do misterioso amor de Deus. Na oração perfeita,
o homem, conduzido pelo amor de Deus, se esquece inteiramente do mundo e de seu
próprio corpo, e não sabe, durante a oração, se vive em seu corpo ou fora dele[6].
Em seu aspecto positivo, a oração
pura é um dom gratuito de Deus, raramente concedido; de modo algum depende de
nosso esforço, mas é a força de Deus que chega e que, com ternura imperceptível
e doçura inexplicável, eleva e introduz o homem no mundo da luz eterna; ou,
mais exatamente, a luz divina se mostra ao homem, o envolve e o penetra inteiramente
com um amor tal que ele já não se recorda de nada e se torna incapaz de pensar
em seja o que for.
Esse é o estado ao qual se
referia o Starets, ao dizer: “Aquele cuja oração é pura, este é teólogo”.
É necessário ter vivido essa
experiência para compreender o que é a teologia enquanto visão de Deus. O
intelecto que não conheceu a pureza, que jamais contemplou a luz eterna, por
mais que tenha ascendido às alturas da experiência conceitual opera
inevitavelmente em função de imagens mentais, de modo que suas tentativas de
conhecer a Deus se mantém forçosamente em conjecturas; ele é tentado em não
poucas ocasiões a ver autênticas contemplações e revelações divinas, mas não é
capaz de discernir o aspecto mais sutil e insidioso da ilusão.
O fundamento da hesíquia reside no primeiro mandamento de Cristo
Em suas obras ascéticas alguns
Padres distinguem duas formas de vida espiritual: uma ativa (praxis) e outra contemplativa (theoria); eles consideram típico da
primeira a observância dos mandamentos.
O Starets Silouane pensava de
maneira diferente. Ele dividia a vida em um aspecto ativo e outro contemplativo,
mas reduzia ambos à observação dos mandamentos de Cristo. Para ele a hesíquia
derivava, antes de tudo, das palavras do primeiro mandamento, que ordena amar a
Deus de todo coração, com toda inteligência e com toda alma. O Starets escreveu:
“Quem conheceu o amor de Deus dirá: ‘Não observei os mandamentos. Ainda quando
eu rezo dia e noite e me esforço na prática da virtude, não observei o
mandamento de amar a Deus. Não o cumpro senão raramente, mas minha alma
desejaria perseverar nele constantemente’. Quando os pensamentos provenientes
de fora entram em nosso espírito, nossa inteligência se divide entre Deus e as
outras coisas, sinal de que o mandamento de amar a Deus com toda a inteligência e todo o coração não está sendo cumprido,
mas quando o espírito está inteiramente imerso em Deus, sem estar distraído por
outros pensamentos, o primeiro mandamento se realiza, mesmo que seja de modo
imperfeito”.
O hesiquiasmo encontrou sempre, sobretudo
no Ocidente, numerosos detratores. Não tendo experimentado aquilo de que falam,
os adversários argumentam abstratamente e chegam a qualificar a oração de
mecânica ou de técnica espiritual destinada a obter a contemplação. Nada existe
de verdade nisso.
Deus, completamente livre, não
poderia ser submetido a nenhum processo automático, nem a pressão alguma. A hesíquia
exige uma renúncia total de si mesmo, incluindo o “direito” ao êxito da obra
ascética. Essa decisão de aceitar tal sofrimento para melhor cumprir os mandamentos,
é o que, de fato e de direito, atrai a graça de Deus, se o esforço for
realizado com espírito humilde.
Um orgulhoso não obterá a união
com Deus, sejam lá quais forem os procedimentos empregados. A aspiração humana
enquanto tal é incapaz de unir o intelecto ao abismo do coração; mesmo que o
homem lograsse penetrar ali por suas próprias forças, não veria mais do que a
si próprio, só em sua beleza criada, sublime na medida em que modelada à imagem
de Deus – mas na qual não encontraria a Deus.
Dessa maneira, em sua luta pela
humildade, o santo Starets recorria àquela ordem que recebera de Deus: “Mantenha
seu espírito no inferno e não se desespere”.
Esse homem, intelectualmente não
refinado, mas “simples” e inculto, conheceu muitas vezes o estado de contemplação
pura de Deus. Tinha autoridade, portanto, para dizer: “Se tua oração é pura, és
teólogo”, ou então: “Existem muitos fiéis na terra, mas são raros os que
conhecem a Deus”.
O Starets não entendia por
conhecimento nem as teorias gnósticas nem as especulações teológicas, mas
apenas a experiência da comunhão viva, a experiência da união real com a luz
divina. O conhecimento é coexistência, ou seja, comunhão com a existência.
Fundamento antropológico da hesíquia
Seguindo, na medida do possível,
a exposição da experiência positiva do Starets, desejamos evitar que nosso tratamento
adquira uma aspecto técnico; evitamos conscientemente, por essa razão,
paralelismos e citações dos escritos dos Santos Padres.
O presente estudo não tem outra
pretensão do que oferecer um retrato do Starets e descrever seu caminho
espiritual. Esse caminho, embora inserido plenamente na Tradição ascética da
Igreja Ortodoxa, da qual é uma manifestação autêntica e viva, se reveste de um
caráter único e original.
As questões dogmáticas não serão
abordadas aqui com espírito sistemático. Apenas nos deteremos nelas na medida
em que um ou outro dogma esteja organicamente unido a todo o processo da vida
espiritual. Basta que mudemos um elemento de nossa consciência dogmática para
ver como se modificam em seguida nosso ambiente espiritual e nossa evolução
interior. Inversamente, o menor desvio da verdade em nossa vida interior
desnaturaliza nossa perspectiva dogmática.
A propósito do silêncio do
intelecto, que o Starets tinha em alta conta, acreditamos útil resumir, inspirando-nos
na experiência, o fundamento antropológico dessa obra. As seguintes passagens
de São Macário e de Santo Isaac o Sirio, cujos textos ele conhecia bem,
traduzem essa antropologia:
“A alma não é nem de natureza
divina nem da natureza das trevas enganadoras; ela é uma criatura inteligente (noeté), cheia de beleza, de grandeza e
de mistério, imagem e semelhança harmoniosa de Deus; mas a malignidade das
paixões tenebrosas penetrou nela como resultado da transgressão[7]”.
“Deus criou isento de paixões
aquele que modelou à sua imagem (...); por isso, as paixões não pertencem à
essência da alma, mas constituem algo acrescentado, e a responsabilidade cabe à
alma. (...) Quando os sentidos estão em silêncio, você pode ver os tesouros
encerrados na alma[8]”.
Dissemos anteriormente que o
intelecto assentado na oração do coração percebe qualquer pensamento que se
aproxima do coração antes de que penetre nele. Entendemos por “pensamento” a
energia das “paixões malignas” que assaltam a alma desde fora, a qual, segundo
o Starets, é algo “acrescentado”, adicional e não inerente à natureza da alma. A
todos esses elementos adicionais, alheios, intrusos e que tendem a assenhorar-se
do coração, o intelecto assentado nesse último lhes opõe da oração e, com o
auxílio dela, os rechaça.
Mas uma interiorização mais profunda
se produz quando o intelecto, sob o impulso divino, se une ao coração até o
ponto de despojar-se inteiramente de imagens e conceitos, fechando o acesso ao
coração a todo elemento extrínseco; então a alma penetra junto com o intelecto numa
“treva” de índole muito particular, para em seguida ser considerada digna de
estar de modo inefável diante de Deus.
Existe todavia um estado superior
a esse, no qual o homem comunga existencialmente e com plena evidência da vida
eterna e do repouso inexprimível em Deus. Mas o homem, sem embargo, não se
mantém aí por muito tempo, se o Senhor, pelos desígnios que só ele conhece,
quiser prolongar sua vida; ele retorna ao mundo e fala de sua morada interior
em Deus, como São Pedro sobre o monte Tabor: “Senhor, é bom permanecer aqui contigo[9]”.
A experiência da eternidade
A hesíquia é uma vida de riqueza
e esplendor tais que sua descrição se reveste sempre de um caráter de certo
modo inconsequente e contraditório. Nos parece natural que as pessoas habituadas
a se mover no plano lógico fiquem desconcertadas diante da ideia de que o homem
possa ser introduzido, por algum tempo e com evidência existencial, na vida
eterna. Com efeito, é paradoxal converter-se em eterno por um tempo. Sem embargo,
vamos tentar uma explicação.
O tempo e a eternidade são, da
perspectiva do asceta, dois modos diferentes do ser. O primeiro, o tempo, é o
modo do ser criado misteriosamente por Deus do nada, que nasce continuamente e
se desenrola no devir. O segundo, a eternidade, é o modo do ser divino, ao qual
não são aplicáveis nossos conceitos de extensão e de sucessão. A eternidade é
um ato único, de uma plenitude incomensurável; um ato do ser divino que
transcende e engloba de uma só vez todas as modalidades de extensão do mundo
criado. Somente Deus é eterno em sua própria natureza. A eternidade não é nem
uma abstração nem uma entidade que exista por si e independente – ela é o
próprio Deus em seu Ser. O homem, quando a benevolência divina lhe concede o
dom da graça, se torna não só imortal, no sentido de um prolongamento
indefinido de sua vida, como também “sem começo” (anarchos), participando da vida divina, na qual não existe nem
começo, nem fim.
Quando dizemos que o homem se
converte num ser “sem começo”, não estamos pensando na pré-existência da alma,
nem numa transformação de nossa natureza criada em natureza divina incriada,
mas na comunhão real com a vida divina, “sem começo”, em virtude da deificação
da criatura pela graça.
Quando o intelecto e o coração,
orientados para Cristo, se fundem numa misteriosa união – não por seu próprio
esforço, mas pela ação de Deus – o homem se vê então a si próprio na raiz mais
profunda de seu ser; intelecto deiforme, espírito semelhante a Deus, hipóstase
imortal, ele contempla a Deus sem imagens. Mas enquanto permanecer atado à sua
condição carnal, seu conhecimento não alcançará a perfeição e não conceberá o
que há de ser sua existência eterna, depois de franquear a última etapa da vida
terrestre, vale dizer, depois de se libertar do fardo da carne e ingressar na
infinitude da luz divina, se Deus quiser recebe-lo nela. Porque a pergunta a
respeito do que será a existência eterna não é colocada no momento da
contemplação, quando a alma, imersa no Deus eterno, não sabe se está no corpo
ou fora dele; a pergunta é colocada quando a alma retorna a esse mundo, quando
se percebe novamente inserida na carne e quando, ao mesmo tempo, uma espécie de
véu carnal a envolve outra vez.
Em si mesmo, nos limites da
natureza criada, o homem não possui a vida eterna. Participando porém da vida
divina pelo dom da graça, ele pode, desde aqui em baixo, viver a eternidade em
maior ou menor grau.
Todas as expressões utilizadas
aqui são paradoxais; poderíamos dizer, de forma mais expressa: somos tanto mais
eternos quanto mais em Deus (onde “tanto” não significa uma quantidade, mas o
dom de Deus).
A alma, em estado de visão, não
pergunta. O ato inefável de sua elevação ao mundo divino, embora não aconteça por
vontade própria (pois a vontade não poderia desejar aquilo que desconhece),
requer, não obstante, sua participação. A participação da vontade consiste numa
conformidade prévia com a vontade de Deus mediante o cumprimento dos
mandamentos; essa conformidade é inerente à aspiração que temos por Deus, a
visão de Deus é precedida por muitos sofrimentos e lágrimas abundantes, por
lágrimas ardentes, que nascem do coração e consomem no home seu orgulho carnal,
psíquico ou espiritual.
Enquanto vive na carne, o homem
não é capaz de alcançar o conhecimento perfeito, mas Deus lhe concede uma
experiência autêntica, segura e real, do Reino eterno; e ainda que esse
conhecimento não seja, como dizia o Starets, mais do que parcial, deixa o
asceta isento de dúvidas.
Falando da experiência da
eternidade e da ressurreição da alma, pensamos na extraordinária benevolência
divina que, derramando-se sobre o homem, “transporta-o” para o domínio da luz
eterna e lhe concede viver com certeza sua liberação da morte, sua eternidade.
Mesmo que, no “retorno” dessa
visão, um certo “véu” recobre outra vez o homem, sua consciência pessoal e sua
percepção de mundo se encontram, sem embargo, radicalmente modificadas – e não
poderia deixar de ser assim, por múltiplas razões. A experiência de sua queda e
de seus sofrimentos lhe revela a mesma tragédia em cada ser humano. A experiência
da imortalidade pessoal o leva a ver em cada homem seu irmão imortal. A experiência
viva da eternidade e da contemplação interior de Deus, em abstração da criação,
de modo incompreensível, cumula a alma de amor ao homem e a toda a criação. Revela-se
a ele que só quem conheceu por experiência espiritual da grandeza de alma é
capaz de valorizar e de amar ao seu próximo.
Eis aqui outro fenômeno
inexplicável: no momento da visão, segundo as palavras do Starets, “o mundo é
inteiramente esquecido”; o tempo no qual se situa a visão não coincide com o tempo
em que opera o pensamento; a razão discursiva cessa nesse instante. A atividade
intelectual subsiste, mas com características totalmente distintas. É surpreendente,
portanto, que, quando essa experiência, que se situa inteiramente fora do mundo,
finaliza, se reveste de pensamentos e de sentimentos. O estado de visão é a luz
do amor divino; sob o efeito desse amor nascem na alma novos sentimentos e
pensamentos sobre Deus e sobre o homem.
O primeiro “arrebatamento” que conduz
à visão é concedido ao homem desde o alto, sem que este o busque, já que, por
não possuir conhecimento disso, dificilmente ele poderia buscá-lo. Porém, mais
tarde, ele já não consegue esquecê-lo e, com o coração dolorido, busca-o uma e
outra vez, e não apenas para si, mas para todos os homens.
O começo da vida espiritual: a luta contra as paixões
Acrescentaremos ainda algumas
palavras à antropologia da oração hesiquiasta, para explicar no que consiste
essa “obra ascética”, e a quais resultados ela conduz.
O asceta em estado de oração,
fixando toda sua atenção no coração, se esforça por conservar o intelecto livre
de qualquer pensamento. Os pensamentos podem ser conaturais ao homem, dada sua
condição terrestre, mas podem ser também efeito de influências demoníacas. Quando
o asceta ora, renuncia durante um tempo, segundo suas possibilidades (que
diferem umas das outras), a satisfazer suas necessidades naturais. Quanto aos
pensamentos demoníacos, ele os exclui inteiramente. Daí resulta que o asceta
rechaça durante a oração a todos os pensamentos, sejam eles naturais ou
demoníacos.
Quando o asceta sucumbe à
influência demoníaca, perde sua liberdade e se aparta da vida divina. Esse estado
é designado na doutrina ascética como o termo de “paixão”. “Paixão” designa,
por um lado, a ideia de passividade e de escravidão e, por outro, a ideia de
sofrimento, no sentido de desintegração e morte. “Aquele que comete o pecado
não permanece em casa para sempre, apenas o filho permanece em casa para sempre”.
Assim, no estado de paixão pecaminosa, se dão dois tipos de sofrimentos: a
escravidão e a desintegração; por esse motivo, o “escravo do pecado não pode
ter uma consciência autentica da liberdade dos filhos de Deus.
As paixões têm poder de atração,
mas o enraizamento na alma de não importa qual imagem ou pensamento passional
jamais acontece sem o consentimento do homem, pois nada em toda a existência
cósmica é suficientemente forte para privar o homem de sua capacidade de
resistir ou recusar. Mas quando o pensamento ou uma imagem passional de
implanta solidamente na alma, o homem se converte, em maior ou menor grau, num
possuído. As paixões são “possessões”, com diferentes graus de intensidade.
A paixão atrai porque faz luzir o
deleite daquele a quem ela tenta; a paixão, enquanto de integração, é
consequência dos deleites passionais. O processo passional, se não começasse
pelo momento deleitável, mas pelo sofrimento, seria incapaz de inclinar o homem
para seu lado. A paixão, enquanto sofrimento e morte, s[o é identificada pelo
homem espiritual que conheceu a ação vivificante da graça, que gera na alma uma
repulsão e um “ódio” contra os movimentos que nela faz o pecado.
***
O começo da vida espiritual é a
luta contra as paixões. Essa luta seria fácil, se não estivesse ligada ao
rechaço do deleite. Sua segunda etapa é ainda mais difícil: as paixões
insatisfeitas começam a atormentar o homem com as enfermidades mais diversas. O
asceta necessita então de uma longa e extraordinária paciência, pois os
resultados positivos de sua resistência não chegam rapidamente.
Para o homem que vive nos
condicionamentos do mundo, é normal a permanência nessa luta por toda a vida.
Só em dois casos extremos não há lugar para ela. Primeiro, num homem
impassível, já que o deleite proposto pela paixão não o tenta de modo algum, e
tudo permanece no nível do simples pensamento. Segundo, no homem que está
submetido ao assalto dos pensamentos, mas que permanece inacessível à sua força
de atração, e que também pode ser chamado de impassível. Uma escravidão
completa, por outro lado, se caracteriza também pela ausência de luta, já que
em cada etapa do desenvolvimento passional o homem não só não oferece
resistência, como vai ao encontro da paixão e vive com ela.
Na condição de sua existência
carnal o homem tem paixões que não são pecaminosas; ou seja, sofrimentos e
necessidades sem cuja satisfação a vida seria impossível (por exemplo, o
alimento, o sono, etc.). o asceta, durante um período de tempo não
demasiadamente prolongado, desdenha essas necessidades e, se sua voz começa a
se tornar ameaçadora por causa das enfermidades, chega mesmo, no empenho de não
se submeter a elas, ao extremo de enfrentar a morte. Convém notar, no entanto,
que, em casos como esses, a morte não chega a acontecer; o homem é conservado por
Deus em maior medida. A valente decisão de enfrentar a morte é parecida a uma
espada de fogo. Normalmente o asceta oculta essa chama em sua alma, sem revelar
seu poder. A presença dessa energia contida e não exteriorizada é
indispensável, inclusive no contexto da vida cotidiana, para cumprir os mandamentos
na medida do possível, e para libertar-se, ainda que temporalmente, do assalto
dos pensamentos.
Imerso no coação profundo, o
intelecto se aparta, pelo mesmo fato dessa imersão na oração, de toda imagem
visual ou mental e, nesse estado de pureza, é aceito em se apresentar perante
Deus; e o que nasce dessa profundidade que está além das imagens, mesmo que se
vista sob a forma de pensamento ou se se revista de uma imagem, já não é uma
paixão, mas a verdadeira vida de Deus.
Nesse estado descobrimos que a
alma tende naturalmente para Deus, que ela é semelhante a ele e que é também
essencialmente impassível.
Pela alternância de seus estados
espirituais, de comunhão e de privação da graça, o home chega à convicção de
que “não possui” sua própria vida, de que sua vida está em Deus; fora dele,
está a morte. Quando a alma é agraciada pela chegada da luz divina, ela
participa realmente da vida eterna, vale dizer, do próprio Deus; e, ali onde
Deus está, se encontra uma liberdade que nossas palavras não podem expressar,
porque nesse momento o homem vive para além da morte e do temor.
Nesse estado o homem conhece a si
mesmo; e, conhecendo-se, ele conhece o homem em geral, em virtude da
consubstancialidade do gênero humano.
Em suas profundidades, ali onde
se descobre a autêntica semelhança do homem com Deus, ali onde se manifesta sua
alta vocação, o asceta vê aquilo que é absolutamente desconhecido para o homem
que jamais penetrou em seu próprio coração.
São João Damasceno diz no ofício
litúrgico dos defuntos: “Choro e gemo quando penso na morte e quando vejo jazer
na tumba a beleza, criada à imagem de Deus, inteiramente deformada e privada da
graça”.
Assim chora e geme aqueles que
conheceram em Deus a beleza paradisíaca do homem, quando, em seu retorno no inefável
banquete espiritual na profunda câmara nupcial do coração, coloca seus olhos
sobre esse mundo privado de beleza e de glória.
***
[1]
Gênesis 4: 7.
[2]
Lucas 24: 38.
[3]
Salmo 136: 8-9.
[4]
Mateus 7: 14.
[5]
Cf. Evagro o Pôntico.
[6]
Cf. II Coríntios 12: 2.
[7] São
Macário, Homilias 1, 7.
[8]
Santo Isaac o Sírio, Logos 82.
[9]
Mateus 17: 4.
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