A Iconologia da Igreja
A presença
carismática do protótipo no ícone que o representa
de acordo com a Iconologia da Igreja
Dimitrios Tselengidis
Conferência
apresentada na Escola de Teologia da Universidade Arisóteles de Tessalônica em
comemoração ao 1200º aniversário da convocação do Sétimo Concílio Ecumênico
(Novembro de 1987).
A presença carismática do
protótipo no ícone que o representa é uma verdade da Igreja que está formulada
claramente nos textos patrísticos que tratam da iconologia durante o período
iconoclasta. Esta verdade, que é uma parte integral da teologia completa da
Igreja no que diz respeito ao ícone, foi reforçada pela autoridade do Sétimo
Concílio Ecumênico[1],
confirmada pela correspondente experiência espiritual de seus membros, uma
experiência que o corpo carismático da Igreja viveu e ainda vive.
Para que a presença carismática
do protótipo no ícone que o representa seja interpretada, é preciso distinguir
como a Igreja entende o ícone, e, principalmente, qual é a relação entre o
ícone e seu protótipo. O esclarecimento desta relação é necessário por ser ela
o fundamento para a compreensão da presença carismática do protótipo, pintado
iconograficamente no seu ícone. Mais do que isto, esta relação é também o
fundamento para o entendimento de todo o ensinamento dogmático da Igreja em
relação ao ícone.
O ícone, de acordo com são João
de Damasco, é a “imagem e expressão da própria pessoa que está sendo
representada[2]”.
A partir desta definição podemos concluir que a semelhança entre o ícone e seu
protótipo estabelece sua existência, e também que o ícone não possui uma
hipóstase autônoma, mas depende da realidade daquilo que está sendo
representado, do quê recebe todo o seu valor. Ícone e protótipo, de acordo com
são Nicéforo, Patriarca de Constantinopla, são uma única realidade segundo a
similaridade hipostática e ao mesmo tempo duas realidades segundo suas
naturezas, porque a natureza material do ícone é uma coisa, enquanto que a
natureza do protótipo representado é absolutamente diversa. Em qualquer caso,
aquilo que é representado no ícone não é a natureza, mas a hipóstase – a pessoa
– do protótipo.
Ícone e protótipo são realidades
tão estreitamente relacionadas que uma não pode ser compreendida sem a outra. O
protótipo pressupõe a existência do ícone do qual é protótipo, enquanto que o
ícone pressupõe o pertencimento a um protótipo. Quando o primeiro é aludido
pelo segundo, sua relação carismática com ele é inferida. Neste sentido
entende-se porque todo o significado do ícone está baseado em sua relação com
seu protótipo. São Teodoro o Estudita observa a este respeito: “diz-se que o
ícone é chamado de ‘ícone’ porque está fundamentado em seu protótipo”. Assim, o
ícone se relaciona com seu protótipo na medida em que sua existência depende
dele. Em particular, a relação do ícone para com seu protótipo está baseada na
sua similaridade para com ele. Neste sentido, “Cristo, ao se tornar como nós,
adquiriu uma imagem artificial, que se relaciona com ele por uma relação de
semelhança”. Esta passagem é de especial importância, porque fornece a base
para o significado que a Igreja Ortodoxa atribui aos protótipos de seus ícones.
Estes protótipos devem ser as mesmas pessoas históricas representadas
iconograficamente, e não pessoas quaisquer inespecíficas da mesma época e
geração do iconógrafo. Isto se deve ao fato de serem aquelas as pessoas
representadas iconograficamente pelas figuras que as devem representar. Também
é esta a razão pela qual os ícones, dentro da estrutura da Igreja Ortodoxa, não
são criações imaginativas da hipóstase do protótipo, mas expressões da
experiência histórica da Igreja[3].
Cristo e os santos que estão representados iconograficamente na Igreja não são
tipos imaginários, pessoas idealizadas e abstratas, mas pessoas históricas com
suas características particulares e pessoais, conforme foram preservadas na
memória da Igreja. Os Padres do Sétimo Concílio Ecumênico, baseando-se em sua
memória e ao mesmo tempo expressando a experiência espiritual desta memória,
decretaram em Sínodo que “aquele que contempla o ícone (...) é elevado pela
visão do protótipo[4]”.
A visão do ícone nos guia em direção à visão da pessoa representada
iconograficamente. Por esta razão, a Igreja considera óbvio que o sujeito
representado não pode ser outra pessoa senão aquela que ela expressamente
representa, ou seja, o protótipo.
***
Após estes esclarecimentos
necessários, devemos agora observar os pressupostos teológicos que nos
permitirão compreender a verdade viva e experiencial da Igreja em relação à
presença carismática do protótipo em seu respectivo ícone.
Estudando os textos dos padres
iconófilos dos séculos VIII e IX, bem como os registros do Sétimo Concílio
Ecumênico, podemos confirmar que os ensinamentos da Igreja em relação aos
ícones (dentro dos limites da teologia em seu sentido estrito) pressupõem de
forma inquestionável a distinção ontológica entre a essência e a energia de
Deus. Somente assim se pode entender o modo pelo qual os ícones de Igreja podem
ser considerados como portadores da divindade, portadores da energia
divinamente incriada e da graça, que são suportadas pelas representações
iconográficas dos protótipos. Teologizando a partir dos pressupostos
mencionados, são Teodoro o Estudita nota sucintamente que “se alguém diz que a
divindade está presente no ícone, ele não estará errado (...) mas não numa
união física[5]”.
A presença da divindade nos ícones de seus protótipos não é “conforme sua
presença”, mas, como esclarece são João de Damasco, carismática, “conforme a
divina graça e a energia”. A distinção entre a essência e a energia de Deus é
sugerida claramente. A Igreja expressa aqui indiretamente a continuação de sua
teologia referente à distinção entre a essência divina, inalcançável e
impossível de ser participada, e a energia divina e a graça, alcançáveis e
participáveis (por criação), as quais, quando partilhadas, santificam a criação
e divinizam o homem, como ensina mais detalhadamente a Igreja na teologia de
são Gregório Palamas. A iconografia ortodoxa, refletindo a teologia da Igreja,
utiliza sua forma única para tentar transmitir a sensação da presença da divina
graça e da energia incriadas nos ícones de seus membros divinizados. Neste
sentido, o ícone Ortodoxo reflete a verdade das pessoas da “nova criação” que
ele representa, na medida em que busca confirmar tanto a historicidade das
pessoas representadas como a inseparável graça divina que nelas habita. Fica
claro, portanto, que a iconografia não é apenas uma arte sacra, mas também uma
linguagem teológica que se exprime não apenas com palavras e letras, mas também
com formas e cores. Mais especificamente, a iconografia Ortodoxa apresenta
através de sua forma única as pessoas nos ícones não desmaterializadas, mas
transformadas e divinizadas, confirmando desta maneira a experiência da
participação pessoal da pessoa representada na graça divinizante do Deus
Trinitário. Isto confirma, ademais, outro ensinamento da Igreja (referente ao
dogma cristológico): aquilo que é material e tangível não apenas não é
desprezível, a partir do momento eu que se liberta do pecado e da corrupção,
mas é renovado, transformado e divinizado. É precisamente esta condição
transformada, que é uma condição de incorruptibilidade[6]
e de liberdade em Cristo, que o ícone Ortodoxo expressa. Por esta razão, não
foi por acaso que durante o mesmo período (século XIV) em que a Igreja
confirmou em Sínodo a teologia de são Gregório Palamas, que os ícones da
transfiguração surgiram com especial frequência. A transfiguração de Cristo
atesta a veracidade da transfiguração de cada fiel dentro da nova realidade em
Cristo[7].
Acima de tudo, a nova realidade
em Cristo cria uma realidade escatológica e em particular uma realidade na qual
as coisas “extremas” [eschaton] (a
glória incriada e o reino de Deus) são vividas na forma da promessa num
processo de realização. Estas coisas “extremas” – que foram introduzidas no
mundo pela obra salvífica de Cristo na história e que viveu dentro do mistério
da Igreja como a unidade carismática e a transformação do criado pelo incriado
– são expressas à perfeição por intermédio da técnica iconográfica da Igreja
Ortodoxa. Assim é que os santos são representados juntamente com a realidade
histórica criada em que viveram, paralelamente ao novo elemento do reino de
Deus que penetrou e foi experimentado neste momento específico do tempo. Esta
realidade transfigurada que a Igreja representa não é utilizada simplesmente
para a orientação escatológica do fiel, mas expressa a realidade desta experiência
“extrema” pela comunidade celebrante, como uma promessa que é preenchida e uma
antecipação da vida futura e do reino. Mais ainda, não apenas as representações
iconográficas das teofanias do Velho e do Novo testamentos são interpretadas
deste modo, mas também os eventos que se referem ao fim do mundo à segunda
vinda gloriosa de Cristo. Todos esses eventos são vividos durante o tempo
litúrgico condensado da divina celebração, e em especial na sagrada Eucaristia[8].
Podemos assim argumentar com justiça que a iconografia Ortodoxa possui um
caráter escatológico, na medida em que ela expressa, na medida do possível, o
evento escatológico mais significativo, a união sem confusão entre o criado e o
incriado, que é vivido na sinaxe e na comunidade Eucarística. Em particular,
podemos dizer que o ícone Ortodoxo apresenta a existência escatológica daquele
que é representado, cujo corpo se torna inclusive espiritual depois de ser
enriquecido por intermédio das energias divinizantes de Deus. É precisamente
esta energia divinizadora do Deus Trinitário (que é revelada como luz incriada
de acordo com a experiência da Igreja) que os iconógrafos Ortodoxos procuram
expressar, não apenas por meio do halo, mas também através do seu uso único da
luz. Esta luz que ilumina o ícone a partir de dentro é livre das restrições do
mundo físico que impõe uma aplicação direta, uma luz “natural”. Neste sentido,
os iconógrafos Ortodoxos minimizam, na medida do possível, o uso de
sombreamento (que conduziria por si só a uma interpretação natural), o que, ao
contrário, enfatiza a dimensão escatológica da pessoa representada. Ao mesmo
tempo em que os ícones da Igreja Ortodoxa apresentam as características
históricas do protótipo iconograficamente representado, com seu uso único da
luz eles buscam expressar a pessoa representada como um cidadão do reino dos
Céus. Fica claro, assim que a teologia da luz está refletida na iconografia
Ortodoxa[9].
Em contraposição, um situação
muito diferente se desenvolveu e continua a existir na Cristandade Ocidental em
relação à iconografia. A Igreja do Ocidente, mesmo concordando com as decisões
do Sétimo Concílio Ecumênico durante sua participação nele[10],
na prática enfatizou o significado pedagógico da iconografia e abandonou a
visão da presença carismática de Deus no ícone. A convicção Ortodoxa, de que o
ícone é um suporte da presença carismática de Deus em função da graça incriada
do Espírito Santo que ele carrega e da qual o fiel participa (entrando, desta
maneira, em comunhão pessoal com Deus), não encontra fundamento teológico no
Catolicismo Romano. Isto se deve ao fato de que este rejeita a distinção entre
a essência incriada e a energia e a graça incriadas de Deus. E exatamente
porque o Catolicismo Romano não aceita a existência de uma divina graça
incriada, e consequentemente de uma teosis[11]
da pessoa que participa desta graça, ele não possui pressupostos teológicos que
permitissem desenvolver uma iconografia que expressasse a teosis do homem.
De acordo com a visão do
Catolicismo Romano, o homem comunga com Deus através da graça criada. Segundo
esta visão, quando um homem recebe esta graça e é salvo, sua natureza não é
ultrapassada carismaticamente, porque a graça que o salva se encontra no
interior das estruturas da criação. É natural, assim, que as pinturas religiosas
do Ocidente permaneçam dentro das limitações das leis naturais, o que contribui
para o caráter naturalista de sua perspectiva artística.
Estes pressupostos teológicos,
cremos, estão dentre os fatores mais básicos que explicam porque o Catolicismo
Romano introduziu o uso da luz a partir de uma única fonte – o que resulta nas
sombras – nos ícones, porque isto exprime a luz criada presente neste mundo.
Mais do que isto, explica porque o Catolicismo Romano aceitou, ou no mínimo
tolerou, representações nas igrejas de protótipos sem relação com as pessoas
supostamente representadas (e, em alguns casos, eticamente degeneradas). Todas
essas coisas mostram que as representações religiosas do Ocidente permaneceram
encerradas nas estruturas do mundo decaído, portanto não transfigurado. Por
esta razão podemos argumentar que a pintura religiosa da Cristandade Ocidental
não representa um declínio causado por iniciativas crescentes dos pintores,
mas, como nota o iconologista L. Uspensky, um declínio causado pelo desvio da
Teologia Ocidental, que por sua vez é uma expressão de sua vida eclesial
errada.
Em contraste com a iconografia
Ocidental, a iconografia Ortodoxa pressupôs a teologia e a experiência
espiritual da Igreja Ortodoxa. O Oriente Ortodoxo sublinha fortemente em
especial a distinção entre a essência e a energia em Deus como uma marca de sua
teologia e um fundamento de sua experiência espiritual, ao mesmo tempo em que a
iconografia Ortodoxa, utilizando sua técnica única e sua luz, expressa esta
teologia e esta experiência espiritual nas pessoas divinizadas dos santos,
tornando mais fácil a compreensão da presença carismática dos protótipos
iconograficamente representados nos ícones que os retratam.
***
Em que sentido, a propósito, deve
ser entendida a presença carismática de Cristo e dos santos nos seus
respectivos ícones? Para começar, devemos notar que o ícone de Cristo tem seu
fundamento dogmático na encarnação do Verbo Divino, que por sua vez torna
auto-evidente a representação iconográfica dos santos, na medida em que estes
constituem os membros gloriosos do corpo carismático de Cristo. Devido ao fato
de que o corpo carismático de Cristo, vale dizer, sua Igreja, compõem-se e é
revelada na sinaxe eucarística, o templo, como lugar desta sinaxe eucarística é
o lugar mais apropriado para a representação iconográfica dos membros
glorificados do corpo eucarístico de Cristo.
A representação iconográfica de Cristo – de acordo com a decisão do
Sétimo Concílio Ecumênico – não confunde nem identifica as naturezas de Cristo,
como o fizeram os monofisistas, nem separa estas naturezas, como o fez
Nestorius. Mais do que isto, como nota são Teodoro o Estudita, “em toda pessoa
representada iconograficamente não é a natureza, mas a hipóstase, que é
representada”. Nem a natureza divina, nem a humana, são representadas por si
mesmas, mas sim a hipóstase de Cristo com as características específicas que
constituem sua natureza humana. Aquilo que estas características dos ícones de
Cristo apresentam, ou melhor, que expressam e revelam, é a pessoa do
Deus-homem, a pessoa que é inteiramente Deus e inteiramente homem, que é
entendida por meio de suas duas naturezas e que existe nelas. No ícone de
Cristo a pessoa de Cristo se torna visível de acordo com sua natureza humana,
assim como ele se tornou historicamente visível em sua encarnação. Com a
representação das características da natureza humana de Cristo, Cristo se torna
tangivelmente presente tanto como perfeito Deus como perfeito homem. Assim como
na representação iconográfica de Cristo a natureza humana não é dividida de
Deus o Verbo, do mesmo modo a representação do corpo de Cristo não é separada
da graça divinizante e da energia, que têm sua fonte em Deus o Verbo. No ícone
de Cristo temos uma descrição de sua natureza humana divinizada. A natureza
humana divinizada de Cristo, expressa no ícone, não pode por sua vez ser
entendida sem a presença da Divindade que diviniza o ícone. A natureza humana,
como se sabe, não pode divinizar a si mesma. No caso de Cristo, a natureza
humana foi divinizada através da união hipostática e foi ungida com a divindade
de Deus o Verbo, tornando-se “também Deus, assim como a divindade a ungiu, sem
alterar sua natureza”, uma parte não confundida e inalterável da hipóstase de
Deus o Verbo. A natureza humana de Cristo foi divinizada sem perder suas
características naturais. É precisamente sobre este ponto que os padres
iconófilos e o próprio Sétimo Concílio Ecumênico estabeleceram as bases para a
representação iconográfica de Cristo. O corpo de Cristo, apesar do fato de sua
divinização, jamais deixou de ser um corpo real com todos os seus atributos
físicos (criados), um dos quais consiste em poder ser retratado graficamente. A
representação iconográfica de Cristo, tanto antes como depois de sua ressurreição,
atesta o fato de que a natureza humana de Cristo – e, por conseguinte, de toda
pessoa que se une e permanece no corpo místico de Cristo – jamais se torna
incriada, mas permanece para sempre dentro das estruturas da criação. O corpo
ressurreto de Cristo é o mesmo corpo que ele possuía antes da crucificação, com
a diferença que agora ele inclui a dimensão escatológica da libertação da
criação da corrupção e das limitações deste mundo, que haviam sido ditadas pela
necessidade das leis da natureza. Apesar de tudo isso, o corpo de Cristo não se
tornou imaterial, assim como os corpos dos fiéis depois da ressurreição
universal não se tornarão imateriais, mas espirituais.
O testemunho do Sétimo Concílio
Ecumênico é particularmente característico em relação ao entendimento Ortodoxo
do ícone de Cristo: “ao pintar o ícone do Senhor, confessamos Seu corpo
divinizado e vemos Seu ícone como uma imitação do protótipo”. O ícone de Cristo
não é uma expressão artística aleatória, mas um meio de expressar a teologia da
Igreja. Como a natureza humana de Cristo é divinizada, seu ícone – enquanto
imitação do protótipo – deve sugerir esta realidade. A iconografia da Igreja
Ortodoxa se move e deve sempre se mover dentro da visão apresentada pelo Sétimo
Concílio Ecumênico, se quiser preservar sua identidade iconográfica; em outras
palavras, ela deve expressar o ensinamento dogmático e a experiência espiritual
da Igreja Ortodoxa. A técnica única da iconografia Bizantina, como foi
cultivada e desenvolvida no Oriente Ortodoxo, expressa perfeitamente – na
medida do humanamente possível – a verdade e a experiência Ortodoxa. Assim é
que o ícone de Cristo expressa, numa certa medida, a realidade da inalterável e
não confundida união das duas naturezas em uma só pessoa de Deus o Verbo. Naturalmente,
isto não quer dizer que o ícone Ortodoxo Bizantino represente e revele a
natureza divina. Antes ele busca expressar por meio de sua técnica única a
participação da natureza humana na vida divina e assim dar testemunho da
experiência de santidade dentro de um corpo humano. Mas pode-se discutir que a
arte da pintura no Oriente Ortodoxo representa Cristo como Deus-homem. Porém,
como o Sétimo Concílio Ecumênico frisa, “apesar de a Igreja representar a
Cristo de acordo com Sua natureza humana, esta não está separada da divindade,
que permanece unida a ela[12]”,
a qual, como já observamos, é encontrada no ícone “conforme as divinas graça e
energia”.
É sobre este ponto que
acreditamos fundamentar a presença de Cristo no seu ícone. Com “presença
carismática de Cristo” não queremos dizer que ele está presente segundo sua
natureza, mas apenas conforme a energia e a graça naturais de sua divindade.
Neste sentido a presença do protótipo está carismaticamente colocada no ícone
de Cristo.
Se, por outro lado, Cristo está
carismaticamente presente em seus ícones devido à sua indivisível divindade,
como isto se aplica aos ícones dos santos? É possível que os santos estejam
carismaticamente presentes em seus ícones? Se sim, não surge um problema em
relação à superação de sua condição de seres criados? Tentaremos responder esta
questão por meio de uma perspectiva eclesial, sempre seguindo o pensamento dos
padres iconófilos e as decisões dogmáticas do Concílio.
Para começar, se a representação
iconográfica de Cristo e da Theotokos atesta e anuncia a encarnação de Deus o
Verbo, a representação iconográfica dos santos revela os membros glorificados
do corpo místico e teoantrópico de Cristo. Enquanto que os ícones de Cristo e
da Theotokos são principalmente expressões iconográficas do dogma cristológico,
os ícones dos santos revelam as consequências ontológicas do dogma cristológico
pela presença, em Cristo das pessoas iconograficamente representadas. Em outras
palavras, dentro da estrutura da Ortodoxia, os ícones dos santos revelam a
experiência viva da vida incriada de Cristo pelos protótipos representados. Com
as representações dos santos, a Igreja provê o fiel com a identidades pessoal
de seus membros glorificados; desta forma ela expressa a singularidade das
pessoas representadas em suas hipóstases escatológicas e renovadas em Cristo.
Isto, de acordo com são João de Damasco, confirma a participação não confundida
dos que são representados iconograficamente na glória divina e na graça de
Cristo. Ao mesmo tempo, a representação iconográfica dos santos junto com
Cristo revela, de acordo com são Teodoro o Estudita, a indivisível unidade
partilhada pelos protótipos representados. Assim como a Igreja não está
equivocada quando representa Cristo [não separando suas naturezas divina e humana],
ela também não erra eclesiasticamente quando representa os santos [não
separando Cristo de seus membros glorificados]. E assim como Cristo é
representado como Deus-homem, com sua natureza humana divinizada, os santos são
representados como homens divinizados, sendo sua representação iconográfica
baseada nas novas realidades antropológicas que pertencem aos membros do corpo
carismático de Cristo. Estas novas realidades antropológicas são escatológicas
e estão sintetizadas na transfiguração da existência criada naquela que é
representada iconograficamente por meio de sua participação nas energias
incriadas e na glória divina. Sem estas realidades os ícones da Igreja perdem
sua singularidade, que os diferencia das representações religiosas naturalistas
do Ocidente Cristão (que apresentam uma humanidade que não participa da graça e
da glória divinas). Em especial, as pinturas religiosas ocidentais não exprimem
as consequências que o dogma cristológico implica para os membros do corpo
místico de Cristo, resultando em que elas permanecem iconograficamente no plano
biológico e experimental, que, no máximo, trabalha com a dimensão ética. Esta
pessoa ética, é claro, será o resultado natural dos ensinamentos cristológicos
de Nestorius e de Arius. Isto se deve a que, mais para Nestorius do que para
Arius, a perfeição do homem possui um caráter ético e não ontológico. Ao
afirmarmos isto não queremos acusar o Catolicismo Romano de Arianismo ou de
Nestorianismo; simplesmente pretendemos enfatizar que seu erro básico no campo
da teologia – a ausência de distinção entre a essência e a energia de Deus –
resulta numa série de problemas na área das consequências da Cristologia. Este
problemas, principalmente, estão diretamente relacionados à Soteriologia e se
refletem no campo da pintura religiosa.
Assim sendo, em que sentido
devemos entender a presença carismática dos santos em seus respectivos ícones?
O ícone, como toda representação artística de pessoa ou coisa, cria a sensação
da existência daquilo que está representado, permite aos sentidos aproximar-se
da existência basicamente inexistente da pessoa ou coisa representada. Mas o
que acontece nos ícones da Igreja é algo bem maior e mais substancial. Nos
ícones da Igreja a pessoa ausente não é simplesmente sentida. De acordo com o
testemunho de são João de Damasco, “os ícones dos santos (...) estão cheios da
graça do Espírito Santo”. Ele prossegue, interpretando o modo como isto
acontece, e observa que “se a pessoa iconograficamente representada está cheia
da graça de Deus, então o ícone que a representa participa também desta graça”.
Baseados nisto, podemos falar sobre a presença carismática do santo
representado em seu ícone, que é entendida com a ideia da presença, no ícone,
da divina graça incriada que é ao mesmo tempo a fonte de santidade do santo
representado. A presença da divina graça e da energia no ícone é contínua na
medida em que depende diretamente da presença carismática do Espírito Santo no
interior das próprias pessoas representadas iconograficamente. Mais do que
isso, ela está fundamentada na relação entre o ícone e seu protótipo, como
observa são João de Damasco: “durante sua vida terrestre os santos estavam
cheios da graça do Espírito Santo, e quando eles terminaram aqui seu percurso,
a graça do Espírito Santo permaneceu em suas almas, nos seus corpos jazendo nos
túmulos, em sua semelhança e santa imagem, sem jamais deixá-los”. Assim como os
santos estão ontologicamente ligados à energia divinizante do Espírito Santo,
também os ícones da Igreja suportam a graça do Espírito Santo e, por
conseguinte, se tornam “vasos da energia divina”. Embora seja impossível para o
santo representado iconograficamente estar presente em todos os seus ícones
(por serem criados), a divina graça e a energia incriadas que neles habitam
estão presentes em seus ícones. Os santos, por intermédio da divina graça,
estão presentes em todos os seus ícones ao mesmo tempo e, através desta graça,
a comunidade eucarística e cada fiel alcançam uma comunhão e uma relação real
com os santos. Enquanto os santos, como criaturas, permanecem dentro dos
limites do criado – e em particular dentro das limitações do tempo e do espaço
–, como pessoas divinizadas eles ultrapassam carismaticamente estas limitações
através da divina graça incriada pela qual estão presentes e ativos em seus
ícones. É claro que os ícones da Igreja não objetificam nem limitam seus
protótipos, encerrando-os num espaço em particular, mas antes constituem signos
visíveis da realidade invisível e glorificada que eles representam. Por esta
razão a rejeição dos ícones pelos iconoclastas foi interpretada pelos padres do
Sétimo Concílio Ecumênico como sendo a rejeição da presença dos protótipos nos
seus ícones. De fato, segundo o Sétimo Concílio Ecumênico, é possível para o
fiel, em certas condições, ter uma visão espiritual do protótipo
iconograficamente representado. São João de Damasco observa que o protótipo
representado se torna visível ai fiel através de seus sentidos espirituais
transfigurados, com os quais, além disso, o fiel participa com mais frequência
da realidade futura, ainda nesta vida. O fiel, utilizando seus sentidos
espirituais, vê nos ícones da Igreja o protótipo invisível que se torna
sensivelmente presente no ícone, “com visão espiritual”. Enfatizando esta
experiência espiritual da Igreja, são João de Damasco argumenta que o fiel,
“vendo a pessoa iconograficamente representada no ícone, invisível para os
olhos físicos, o glorifica como estando presente”. Por esta razão, quando o
fiel aproxima os ícones dos santos ele não está ali para observar a composição
artística das cores no ícone, mas para expressar sua comunhão viva com aqueles
que estão representados. No interior de um templo Ortodoxo o fiel não apenas
comunga com os santos sacramentalmente no sagrada Eucaristia, mas ainda
contempla os santos presentes em seus ícones. É neste sentido que deve ser
interpretada a honra que a Igreja presta a eles, honra que não difere daquela
mostrada para com as relíquias ou para com os próprios santos.
Adicionalmente, a presença carismática
do protótipo no ícone que o representa ainda permite interpretar o papel de
santificação que os ícones desempenham na Igreja. O ícone da Igreja carrega,
como vimos, a graça e a santidade do protótipo a quem ele representa. Esta
graça, de acordo com o Sétimo Concílio Ecumênico, pode ser partilhada pelos
fiéis, santificando-os. A santificação que o ícone traz consigo se torna uma
“possibilidade de participação” por meio do sentido da visão que acontece
durante a contemplação da pessoa iconograficamente representada[13].
Assim, a veneração dos ícones não é simplesmente um meio de honrar os
protótipos representados, mas é, ao mesmo tempo, um caminho de santificação,
conforme frisaram os padres do Sétimo Concílio Ecumênico, ao afirmar que
“veneramos e abraçamos os santos ícones (...) pela esperança de santificação
que reside neles[14]”.
Alguns sentidos do fiel se tornam receptores da graça dos ícones, que
santificam não apenas estes sentidos, mas todo o ser do fiel. A santificação do
fiel, por outro lado, não se torna uma “possibilidade de participação” de um
modo mecânico. Nem todos os fiéis, devemos dizer, participam da graça dos
ícones, assim como nem todos os veneram. A divina graça é partilhada apenas na
presença de determinados pressupostos, que são a fé e a pureza espiritual com
as quais o fiel se aproxima dos ícones da Igreja. Fica assim claro que os
iconoclastas, em sua rejeição aos ícones, rejeitaram também a presença
carismática do Espírito Santo neles e, consequentemente, a capacidade de ser
santificados por meio dele.
A presença carismática dos santos
nos ícones que os representam está inseparavelmente ligada à dimensão milagrosa
dos ícones. Os milagres que aconteceram por intermédio dos ícones testemunham a
relação entre os ícones e seus protótipos, pois, segundo os padres do Sétimo
Concílio Ecumênico, “os santos operam milagres por meio de seus santos ícones”,
enquanto ao mesmo tempo testemunham a comunhão imediata e pessoal do fiel com
os protótipos representados. São João de Damasco apresenta a interpretação
teológica dos milagres que acontecem por intermédio dos ícones da Igreja, da
seguinte maneira: o milagre é uma resposta de Deus a uma demanda do fiel que se
aproxima dos ícones com fé. É sempre Deus quem opera o milagre,
independentemente de que o pedido tenha sido feito direta ou indiretamente a
ele. Deus aceita os pedidos dos fieis mesmo quando são dirigidos a ele por
intermédio dos santos. Os milagres dos ícones nunca são vistos isolados do
restante da Igreja, mas permanecem ligados diretamente aos protótipos
representados, os quais, naturalmente, atestam o poder dos milagres que sempre
dependem da graça de Deus, “mesmo que imaginemos que as curas acontecem por si
sós (...) elas só acontecem pela graça de nosso Deus”, como afirma o Sétimo
Concílio Ecumênico. E pelo fato de que todos os ícones são suportes da presença
carismática dos protótipos iconograficamente representados, a distinção entre
ícones que operam milagres e ícones que não operam, é teologicamente inválida.
Isto se deve ao fato de que a presença da divina graça incriada dos protótipos
representados nos ícones torna todos os ícones da Igreja operadores de
milagres, ainda que esta graça nem sempre se revele de formas visíveis.
Para terminarmos, devemos ainda
colocar que a presença carismática do protótipo no ícone que o representa está
estruturada em todo o ensinamento dogmático do Sétimo Concílio Ecumênico, ela
confirma a teologia da Igreja Ortodoxa em relação à distinção ontológica entre
a essência e a energia de Deus, sustenta-se na encarnação e na obra salvífica
de Deus o Verbo, apresenta-se como a comunhão viva e imediata entre o militante
e os membros glorificados do corpo carismático de Cristo e, finalmente,
interpreta a santificação e a dimensão milagrosa dos ícones. Pelo exposto, fica
claro que a presença carismática do protótipo no ícone que o representa não
constitui uma verdade de importância secundária, mas antes um fato crucial para
a teologia e a experiência espiritual da Igreja.
***
[1] Nicéia,
24 de Setembro a 25 de Outubro de 787. Foi o último Concílio ocorrido dentro da
unidade da Igreja Católica, antes do Cisma do Ocidente.
[2] Mais
adiante, são Gregório o Teólogo definiu o ícone como uma imitação que é semelhante
ao seu protótipo: ‘Porque esta é a
natureza do ícone, a de ser uma cópia do protótipo’.
[3] Os
padres do Sétimo Concílio insistem com os fieis: ‘Conforme eles veem a Cristo,
como o veem assim o pintam, e assim como veem a face dos mártires que
derramaram seu sangue por Cristo, assim os pintam’.
[4] A
honra prestada pelo fiel ao ícone se baseia no caráter anagógico do ícone. A
passagem de Basílio o Grande, “a honra devida à imagem é transferida para o
protótipo”, à qual se refere o Sétimo Concílio, pressupõe a relação entre o
ícone e seu protótipo. Nesta relação encontramos também a chave para o entendimento
da função total do ícone na estrutura da Igreja. O ícone transfere a honra que
lhe é prestada, ao seu protótipo. A passagem e a transmissão ao protótipo
ocorrem aí e, por sua função de transmissão, a honra e a veneração mostradas ao
ícone são uma e a mesma que aquelas dirigidas ao protótipo, assim como a pessoa
retratada no ícone é a mesma que seu protótipo. Ao contrário, quando a
veneração do ícone é separada daquela dirigida ao protótipo, o ícone é venerado
como idolatria.
[5] A
Igreja Latina opõe direta e claramente a esta passagem de Teodoro o Estudita –
que é o espírito do Oriente Ortodoxo – o Concilio de Trento.
[6] O
abade do Mosteiro de Iviron, Padre Vasílios Gontikakis está certo ao observar
que “a iconografia Ortodoxa é um testemunho da vitória sobre a morte pelo Autor
da vida; seu poder é o poder da Ressurreição”.
[7] Ao
representar iconograficamente os santos, a Igreja Ortodoxa apresenta as pessoas
históricas ao mesmo tempo que as pessoas glorificadas, sendo que estas são
renovadas e cheias com a luz no seio da Igreja, através da beleza e da glória
de seu protótipo, Cristo. Assim, Cristo não é apenas o ícone de Deus, mas
também o protótipo das pessoas renovadas e divinizadas feitas “à imagem”.
[8] Conforme
a oração da Anáfora: “Rememorando este mandamento salvífico e todas as coisas
que ele passou por nós: a Cruz, o Túmulo, a Ressurreição no terceiro dia, a
Ascensão aos céus, o Assento à direita do Pai e sua segunda e gloriosa Vinda”,
[9] “De
acordo com a teologia Ortodoxa, Deus é luz e todas as coisas vivem, se movem,
se desenvolvem e está perfeitamente de acordo em sua receptividade, com a luz. É
exatamente esta teologia que a iconografia Ortodoxa expressa de modo tão
convincente. No ícone Bizantino não vemos sombras, nem perspectiva, nada
cortado ao meio e nenhuma tensão entre luz e escuridão. A luz ilumina tudo suavemente
tudo o que é digno dela. Nesta situação em particular, os iconógrafos
Ortodoxos, que experimentam o dogma vivo na vida da Igreja, apresentam o casamento
perfeito entre o físico e o metafísico”. (N. Matsoukas, Introdução – São João de Damasco – Thessaloniki 1988)
[10] O
Concílio de Trento minimizou o significado teológico dos ícones e enfatizou sua
função didática e decorativa. Teoricamente, o Vaticano II teria reafirmado o
ensinamento da Igreja unida e indivisa em relação aos ícones. Nas comemorações
do 1200º. Aniversário do Sétimo Concílio Ecumênico, o papa de Roma, numa carta
aos bispos sob sua jurisdição, observou “um certo interesse renovado na teologia
da espiritualidade dos ícones do Oriente”. Ele escreveu: “A tradição do ícone
requer que o artista perceba que ele está preenchendo uma função a serviço da
Igreja. A autêntica arte Cristã é aquela que, através dos sentidos tangíveis,
capacita o fiel a sentir que o Senhor está presente em sua Igreja (...) e que a
glória que o Senhor nos prometeu transfigura nossa existência (...). O ícone
litúrgico é aquilo que nos atira o olhar de um Outro invisível e que nos permite
aproximar a realidade do mundo Espiritual e escatológico” (João Paulo II - Epístola Duodecimun Saeculum – Roma 1987).
Porém, a realização das coisas que a Epístola papal coloca como “a glória de
Deus a nós prometida” e a aproximação ao “mundo espiritual e escatológico” que
o ícone nos revela, requerem uma teologia própria (particularmente, exigem a
distinção entre a essência e a energia de Deus) e uma vida espiritual
correspondente (como participação na energia e na graça incriadas de Deus).
Mais do que isto, sem estes dois pressupostos a realização do artista no
sentido de “preencher uma missão a serviço da Igreja” não tem significado. Para
que seja possível a expressão da fé e da piedade da Igreja á bastante que o
artista tenha a orientação eclesial adequada e que ele participe da experiência
espiritual da Igreja.
[11] A
“divinização” do homem.
[12] Cristo
e seu ícone não estão separados em dois, mas ligados carismaticamente. O ícone
de Cristo não apenas testemunha o fato histórico da encarnação de Deus o Verbo,
mas testemunha também sua presença carismática na realidade histórica da
Igreja.
[13]“Eles
são santificados quando, pelo sentido da Visão, eles contemplam o ícone de
Cristo e de nossa verdadeiramente santa Senhora Theotokos, dos santos anjos e
de todos os santos”.(São João de Damasco 1, 17, PG 94 1248C. Teodoro o
Estudita, ibid, 15, PG 99, 336ª)
[14] Hoje,
apesar do crescente interesse nos ícones da Igreja Ortodoxa, pode-se notar um
declínio geral no seu caráter litúrgico e santificador. Isto provém em parte de
sua colocação no comércio e no seu uso decorativo em espaços não litúrgicos. O
Patriarcado Ecumênico condenou todos os usos contemporâneos desviados dos
santos ícones.
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