SÃO
JOÃO CLÍMACO
A
ESCADA SANTA
OBSERVAÇÕES INICIAIS
DÉCIMO
PRIMEIRO DEGRAU
Do
falatório e do silêncio.
1.
Vimos em poucas palavras o quão perigoso e funesto é, para aqueles que vivem
religiosamente, julgar os demais, por que eles se expõem a ser julgados
severamente e punidos rigorosamente. Resta-nos agora buscar a causa deste
defeito, qual a porta pela qual ele penetra na alma, ou antes, por qual porta
devemos fazê-lo sair.
2.
Devemos dizer sem hesitação que o desregramento em falar é como um trono sobre
a qual a vanglória se senta para se fazer contemplar com pompa e ostentação, e
promover seu espetáculo. Este destempero de palavras é prova inequívoca de uma
grande ignorância: ela é, na verdade, a porta de entrada da maledicência, a
mestra das diversões tolas, o instrumento da mentira, a dissipadora da
compunção, a inventora e operária da preguiça e da irresponsabilidade, a guarda
avançada do sono, a inimiga da meditação, a ruína da vigilância; é ela que
esfria e congela a devoção e o fervor do coração, que faz languescer e que
extingue a piedade e o ardor nos santos exercícios da oração.
3.
Ao contrário, o silêncio é sábio e prudente; ele fornece o espírito de oração,
liberta a alma do cativeiro, conserva o fogo do amor divino, vigia os
pensamentos do espírito, observa atentamente os movimentos dos inimigos da
salvação, sustenta e alimenta o fervor da penitência, alegra-se com as
lágrimas, recorda incessantemente a imagem da morte e a lembrança dos suplícios
eternos, faz considerar os Juízos de Deus com temor salutar, favorece a santa
tristeza do coração, combate o espírito de presunção, favorece a tranquilidade
da alma, aumenta a ciência da salvação, nos forma na contemplação das verdades
sobrenaturais, nos aperfeiçoa das boas obras e nos faz subir até Deus.
4.
Quem conhece e sente bem suas faltas, não tem dificuldades em refrear sua
língua; mas quem se diverte falando está bem longe de conhecer a si mesmo.
5.
Quem ama o silêncio se torna amigo particular de Deus, e, enquanto em seu
interior lhe fala com sentimentos inspirados por esta santa familiaridade, dele
recebe a luz.
6.
Não foi o silêncio que protegeu Jesus diante de Pilatos, e que inspirou neste
príncipe um grande respeito pelo Deus Salvador? O silêncio nos preserva da
vanglória.
7.
Pedro, por não ter guardado silêncio com prudência, teve que chorar
amargamente. Ele havia esquecido as palavras de Davi: “Eu observarei
cuidadosamente minhas palavras, para não pecar com minha língua[1]”,
e também esta sentença do Espírito Santo: “É menos perigoso e funesto
escorregar e cair do que fazer mau uso de sua língua[2]”.
8.
Mas devo parar de entretê-los com esta matéria, ainda que a malignidade
artificiosa do desregramento no falar e os vícios que produz me convidem a
falar mais. Eu me contentarei com repetir aquilo que um dia me disse uma pessoa
muito respeitável. Falando sobre o silêncio com esta pessoas, ela me assegurou
que a loquacidade provinha de uma dessas causas: em primeiro lugar, do mau
hábito de muito falar, livre e desembaraçadamente; pois, acrescentava, a
língua, semelhantemente aos demais membros do corpo, faz com forte inclinação
aquilo que ama, e o que aprendeu com o muito uso; em segundo lugar, da
vanglória, sobretudo nas pessoas que estão apenas no início do exercício da
prática das virtudes; em terceiro lugar, da gulodice: pois, mais de uma vez
aconteceu que pessoas, castigando este defeito, e encorajadas pelas violências
auto infligidas, pelas privações auto
impostas e pela fraqueza a que reduziram seus corpos, se libertaram do
desregramento no falar, e fecharam a porta à intemperança das palavras.
9.
Devemos acrescentar ainda que quem pensa seriamente na sua última hora não terá
esforço em corrigir este mau hábito. E que aquele que chora suas faltas com
sinceridade teme as conversas frívolas mais do que o fogo.
10.
Quem realmente gosta da quietude, ama o silêncio; mas os que gostam de correr
para baixo e para cima, fora de suas celas e de suas casas, comportam-se assim
por estar possuídos de necessidade e paixão por falar.
11.
Chamaremos a atenção para o fato de que as pessoas em cujo coração a caridade
derramou seus divinos perfumes, fogem das companhias e da sociedade com mais
horror do que as abelhas fogem da fumaça; e que a fumaça não incomoda mais, nem
faz sofrer mais as moscas que buscam o mel, do que fadigam e fazem sofrer a
estes servidores de Deus o convívio social.
12.
É difícil deter o curso de um rio sem criar cataratas; mas é ainda mais difícil
deter e domar a intemperança da língua e o curso das palavras. Quem foi capaz
de galgar este décimo-primeiro degrau terá conseguido, por isso mesmo, de um só
golpe, cortar as raízes de um número incontável de vícios.
DÉCIMO
SEGUNDO DEGRAU
Da
Mentira
1.
O fogo nasce da pedra e do ferro. A mentira nasce da tagarelice e do gosto pelo
gracejo.
2.
A mentira nos faz renunciar à caridade, como o perjúrio nos faz renunciar a
Deus.
3.
Ninguém que seja sábio e prudente pensará que a mentira não passa de uma falta
leve e de um pequeno defeito. Com efeito, em nossos livros sagrados não
encontramos vícios contra os quais o Espírito Santo tenha pronunciado sentenças
mais terríveis do que o fez contra a mentira. Assim é que se Davi disse,
falando com Deus: “Você condenará, Senhor, todas as pessoas que p0roferem
mentiras[3]”,
o que acontecerá com aqueles que sequer temem acrescentar à mentira o perjúrio?
4.
Vi muitos que, pelos aplausos que buscavam com suas mentiras, e pelo prazer que
sentiam em mentir, estudavam como fazer rir os outros por meio de invencionices
e contos fabulosos; mas esta conduta insensata faz secar a fonte das lágrimas e
sufoca os sentimentos dos penitentes.
5.
Perceberão os demônios, quando os contadores de fábulas começam seus discursos
enganadores, que desejamos nos retirar de sua companhia, como se fosse de um
lugar onde reina uma moléstia contagiosa e pestilenta? Eles se esforçam por nos
segurar e nos reter por meio de dois motivos falsos, mas que iludem: eles nos
dizem que, se sairmos desta maneira, causaremos uma dor sensível àquele que
discursa, e que tentamos parecer mais modestos, mas pudicos e santos do que
aqueles que escutam. Mas nestas circunstâncias, não discutam: saiam
imediatamente, pois, se vocês agirem de outro modo, verão que, durante a prece,
seu espírito estará incessantemente atormentado e agitado pela imagem e a
lembrança das coisas que vocês ouviram; e não se contentem em apenas fugir, mas
tratem de romper e dissipar a conversa profana por meio do pensamento da morte
e do juízo. Talvez vocês sintam um pequeno pensamento de vanglória; mas é
melhor sofrer esta imperfeição do que buscar vantagens de todo o mundo.
6.
A hipocrisia é a mãe, a matéria e o objeto da mentira. Alguns ensinam que a
hipocrisia não é outa coisa do que a ação de inventar, preparar e criar a
mentira; de modo que a mentira e a hipocrisia estão sempre reunidas, e como que
entremeadas.
7.
Ora, todos os que estão cheios do temor de Deus são necessariamente inimigos da
mentira; pois eles seguem imperturbáveis as luzes e os movimentos de sua
consciência, que é um juiz incorruptível.
8.
Acontece com a mentira o mesmo que com todos os vícios; e as faltas que
cometemos nos entregando a ela também não são todas da mesma gravidade. Assim,
estará sujeito a um julgamento menos severo e a uma condenação menos rigorosa o
homem que profere uma mentira por medo de algum dano, do que o que mente sem
temor deste perigo. Existem pessoas que mentem pelo simples prazer de mentir, e
outras que buscam vantagens e benefícios pelas mentiras que proferem; e existem
pessoas cuja única intenção, ao mentir, é de fazer rir os outros. Mas existem
os que com suas mentiras se propõem a estender armadilhas aos seus irmãos, e a
fazê-los cair em algum prejuízo.
9.
Os magistrados e os juízes buscam destruir a mentira; mas somente a verdadeira
penitência é capaz de exterminá-la.
10.
Os mentirosos, para se desculpar, costumam alegar que mentem por boas razões,
que é sempre pela salvação das almas, e para honrar a justiça e a caridade;
eles ousam inclusiva dizer que não fazem mais do que seguir o exemplo de Rahab,
que, por meio de uma mentira feliz, salvou a vida dos enviados do povo judeu.
11.
Quando nos sentirmos inteiramente livres da tola vaidade de mentir, então,
segundo as circunstâncias imperiosas de tempo e lugar, poderemos inocentemente
ocultar a verdade por meio de algumas mentiras leves e prudentes.
12.
Assim como uma criança não sabe mentir, também deve ser assim uma alma pura e
inocente.
13.
Vejam de que maneira um homem que se tornou alegre e divertido por causa do
vinho diz a verdade em todas as coisas; assim é também uma alma que está
espiritualmente embriagada pelas lágrimas da penitência. Aquele que alcançou
este décimo segundo degrau, pode contar que colocou aqui o fundamento de todas
as virtudes.
DÉCIMO
TERCEIRO DEGRAU
Da
Acídia
1.
A acídia, conforme já dissemos, extrai sua origem da necessidade imperiosa de
falar; ela é uma de suas primeiras crias. É por esta razão que, nesta odiosa
cadeia de vícios, nós a colocamos neste ponto.
2.
Dizemos que a acídia consiste em um relaxamento do espírito, um langor da alma,
um desgosto pelos exercícios da vida religiosa, uma certa aversão pela santa
profissão que abraçamos, uma adulação imprudente das coisas do século, uma
calúnia insolente da Bondade e da Clemência de Deus; ela torna a alma fria e
gelada no canto dos divinos cânticos, fraca e languescente na oração, e ao
mesmo tempo diligente e infatigável nos trabalhos e nas coisas exteriores,
fingida e dissimulada na obediência.
3.
Um monge sinceramente dedicado ao dever da obediência ignora por completo o que
é a acídia; pois ele se aperfeiçoa na virtude, dedicando-se às ações exteriores
apenas na medida em que lhe são ordenadas por seu superior.
4.
A vida monástica é o inimigo declarado da preguiça, enquanto que esta
frequentemente acompanha a vida eremítica e não cessa de fazer a guerra todo o
tempo contra os solitários. Assim, quando ela vê a cela de um anacoreta, ela
sorri para si mesma, aproxima-se e fixa sua morada bem perto.
5.
Normalmente é pela manhã que o médico visita seus doentes; é a meio-dia que a
acídia visita os monges. Ela lhes inspira uma forte inclinação para os deveres
da hospitalidade, e não cessa de dizer aos monges, em privado, o quanto seria
útil que eles dessem grandes e numerosas esmolas, que visitassem assiduamente e
de bom coração os pobres enfermos; ela não cessa de repetir, para enganá-los,
estas palavras do Senhor: “Eu estava doente, e vocês me visitaram[4]”.
E ainda que ela esteja sem vigor nem coragem, ela nos conjura a que não
abandonemos os que se encontram tristes e abatidos, e que fortaleçamos os que
estão fracos e desencorajados.
6.
Estamos nós em pleno exercício da oração? Ela nos apresenta a imagem de mil
coisas diferentes, que ela nos faz considerar muito importantes e necessárias, que
são na realidade como um arreio.
7.
Coisa que merece toda a nossa atenção: este funesto demônio da preguiça tenta
sobretudo os religiosos três horas antes da refeição; pois tanto ele os faz
sentir dolorosos calafrios e dores de cabeça, como os atormenta com as dores da
febre e os incômodos da cólica. E, na hora nona, que na nossa contagem é a
terceira hora após o meio dia, ela nos conforta um pouco e nos deixa,
tranquilos.
8.
Mas a mesa está servida? Ela recomeça a nos atormentar. Chegou o momento da
oração? Ela nos torna lentos e pesados. Estamos orando? Ela nos vexa cruelmente
com a necessidade de dormir, e nos impede de pronunciar os versos inteiros por
causa dos bocejos vergonhosos e insuportáveis que nos envia.
9.
Mas lembremos aqui que os demais vícios só atacam e destroem as virtudes que
lhes são contrárias. A acídia ataca e destrói, sozinha, todas as virtudes.
10.
Uma alma forte e generosa sabe manter, conservar e mesmo reviver seu ardor e
sua coragem; mas a acídia só faz perder inteiramente toda riqueza.
11.
Como, de todos os pecados capitais, é a acídia que nos faz maior mal, devemos
nos ocupar em combatê-la tanto ou mais fortemente do que os demais.
12.
antes de tudo, notemos que esta maldita paixão não nos ataca com tanta
violência quanto o faz no momento do canto dos salmos, e que depois deste santo
exercício ela nos deixa bem tranquilos.
13.
Nada nos dará coroas mais belas e mais ricas do que os combates que devemos
sustentar corajosamente contra a preguiça.
14.
Quando estamos em pé, ela quer que sentemos; quando sentados, ela nos faz
apoiar contra a parede; e quando estamos em nossa cela, ela nos leva a olhar
aqui e ali e a fazer barulhos com os pés.
15.
Quem chora amargamente seus pecados não será escravo desta funesta paixão.
16.
Amarremos este tirano cruel por meio da lembrança dolorosa de nossas faltas;
castiguemo-lo com o trabalho de nossas mãos; atormentemo-lo sem cessar com os
pensamentos dos bens eternos que esperamos; arrastemo-lo impiedosamente diante
do tribunal de nossa fé; e lá façamo-lo sofrer um interrogatório e um
julgamento esmagadores; ordenemos imperativamente a ele que nos diga quem foi o
pai que o engendrou, e quais os abomináveis filhos que ele próprio gerou;
obriguemo-lo a que nos responda quem são as pessoas que o combatem até fazê-lo
morrer. Contra a sua vontade, ele nos responderá que os que o combatem até a morte
são os discípulos sinceros da obediência, e que nestes homens ele não encontra
nada que lhe possa servir sequer um momento para ali repousar; que ele só pode
coabitar tranquilamente com os falsos monges que só fazem a própria vontade;
que é por isso que ele os ama e não os deixa jamais; que as causas que
concorrem para lhe dar existência são em grande número, dentre as quais ele
deve mencionar a insensibilidade do coração, o esquecimento do céu e das
verdades eternas, algumas vezes um trabalho penoso ou exercícios exagerados e
fatigantes,; que seus filhos são a inconstância, a mudança de moradia, a
desobediência ao superior, o esquecimento do Juízo e, de tempos em tempos, a
negligência em cumprir os deveres da vida religiosa; que os inimigos que a
aprisionam ao banco e a tornam cativa são a salmodia fervorosa, uma ocupação
contínua e a meditação da morte; e que seus inimigos mortais são a prece e a
esperança viva e segura dos bens futuros. Quanto à prece, se você quiser
conhecer de onde ela extrai sua origem, deve perguntar a ela própria. Aquele
que, pela vitória obtida sobre a preguiça, conseguir superar o décimo terceiro
degrau, se aperfeiçoará em todas as virtudes.
DÉCIMO
QUARTO DEGRAU
Da
Gula, que, por impiedosa que seja, agrada a todos
1.
Se alguma vez, desde que nos ocupamos destes diversos assuntos, somos obrigados
a falar contra nós, é sobretudo a respeito do presente tema. De fato, eu
acreditaria num milagre se alguém me garantisse conhecer um homem que tenha se
libertado completamente durante a sua vida da tirania da intemperança, a menos
que tenha vivido numa tumba.
2.
A gula é um ato hipócrita de nosso estômago, que nos diz que, mesmo se o
saciarmos, ele não ficará saciado, e que, mesmo cheio de alimento, não deixa de
nos repetir que ainda tem grandes necessidades.
3.
Este vício vexatório é o engenhoso inventor dos temperos sofisticados, e a
fonte dos prazeres da boa mesa.
4.
Se por meio de uma ligadura forte é possível deter uma hemorragia violenta num
certo ponto, o sangue encontrará uma saída por outro lugar; e você conseguir
estancá-lo neste novo local, ele escapará ainda por outra via.
5.
A gula brinca com nossos olhos; embora uma parte dos pratos servidos sobre a
mesa sejam suficientes para nos saciar, ela nos faz crer que poderemos devorar
a todos.
6.
A saciedade normalmente produz a incontinência, assim como a temperança
engendra a castidade.
7.
Vemos muitas vezes que um domador é capaz de, com carinho, acalmar a fúria de
um leão e torná-lo dócil e tratável; mas qualquer um que trate seu próprio
corpo desta mesma maneira o tornará cada vez mais furioso e mais indócil.
8.
O judeu se alegra nos sábados e nos dias de festas, e o monge nos sábado e nos
domingos. Durante a Quaresma, ele conta os dias que faltam para a Páscoa, e ao
se aproximar a festa, não deixa de preparar as comidas que sua concupiscência o
faz desejar. Um infeliz escravo da gula não pensa senão nos pratos deliciosos
que ele terá nas grandes festas, e é deste modo miserável que ele as prepara e
as celebra; mas o servidor de Deus não pensa senão nas graças e nas virtudes
com as quais deseja se ornar e embelezar sua alma para essas belas solenidades.
9.
Se um amigo, ou mesmo um estrangeiro, visita um escravo do ventre, você o verá,
conduzido por sua paixão, alegrar-se com esta circunstância, porque, sob o
pretexto de cumprir com os deveres da caridade, ele encontra ocasião favorável
para se entregar à intemperança e se satisfazer, fazendo sua sensualidade
passar por consolo e um alívio que ele deve ao irmão. É assim que se imagina
que, na presença de hóspedes, pode-se exagerar um pouco na bebida; mas quanto é
ilusório este comportamento! Por mais que tentemos esconder esta paixão, ela
escapa e nos expõe como miseráveis escravos que somos.
10.
Às vezes a vanglória e a gula entram em guerra uma contra a outra, e disputam
vigorosamente um pobre miserável; pois a gula faz todos os esforços pra levá-lo
a violar as regras da mortificação e do jejum, e a vaidade para fazê-lo
alardear a perfeição de sua vida por seus atos de severa abstinência. Mas um
monge conduzido por um espírito de sabedoria evitará as armadilhas que lhe põem
estas duas paixões e saberá se aproveitar das circunstâncias para expulsar a
ambas para longe de si.
11.
Quando assistimos que nossa carne, pelo calor da idade ou pela força de nossa
constituição, deseja se voltar para os prazeres dos sentidos, tratemos de
castigá-la ou submetê-la em qualquer tempo ou lugar por meio dos rigores
salutares da mortificação; e não relaxemos estas santas austeridades antes que
estejamos certos por provas certas e indubitáveis que conseguimos a felicidade
de extinguir em nós as chamas impuras da concupiscência. Mas não creio que
consigamos isto antes da morte.
12.
Eu vi sacerdotes miseráveis, de idade bastante avançada, que se deixaram
enganar pelo demônio, a ponto de estarem à mesa com pessoas nem mais novas e
sobre as quais não possuíam nenhuma autoridade, e convencê-los, por meio de
convites insistentes e solicitações diabólicas, a se excederem nas bebidas e na
intemperança. Ora, se por um acaso nos sucedesse encontrarmos anciãos com tal
comportamento, eis a conduta que haveríamos de seguir: se estas pessoas
desfrutassem com justeza de uma reputação de virtude e piedade, retrucaríamos
com honestidade ao que nos faziam, com uma moderação cheia de reconhecimento;
se, ao contrário, se tratasse de pessoas conhecidas por sua conduta e virtude
duvidosas, e encontrando-nos em circunstâncias nas quais estivéssemos obrigados
a sustentar rudes batalhas contra as revoltas da carne, evitaríamos escutar tão
funestos convides, e fugiríamos com horror de uma ocasião tão perigosa.
13.
Evagro, agitado pelo espírito das trevas, imaginou, por causa de sua eloquência
e da perspicácia de seu espírito, que era o mais sábio dos sábios; mas ele se
enganou horrivelmente, pois aquilo que vou contar o fez mostrar ao mundo que
era o maior dos tolos. Eis uma de suas máximas: “Quando a alma suspira por
delícias oferecidas pela variedade dos alimentos, é preciso puni-la severamente
nos condenando sem piedade a um regime de pão e água”. Ora, falando assim, não
equivale a exigir que com um único salto uma criança suba todos os degraus de
uma escada? Eu penso que para tornar esta máxima sã e praticável seria preciso
dizer: “Nossa alma deseja muitas comidas para contentar seus apetites; sendo
este desejo conforme às inclinações da natureza, devemos usar de muita
prudência e engenho para combater a mais ardilosa e artificiosa das paixões;
pois agindo de outro modo nos engajaríamos imprudentemente numa guerra
perigosa, e nos exporíamos ao perigo de uma perda iminente. Privemo-nos
inicialmente das comidas capazes de nos engordar, depois daquelas que podem
inflamar nossos humores, e enfim de todas aquelas que nos são agradáveis”.
14.
Entretanto, na medida do possível, não devemos usar senão alimentos apropriados
a nutrir nossos corpos, e que sejam de fácil digestão, a fim de que, saciados,
contentemos o estômago que sempre pede mais, e ao mesmo tempo nos preservemos,
por meio de uma digestão rápida e fácil, dos maus humores e dos ardores
funestos que os alimentos mais sólidos costumam produzir. De resto, com um
pouco de atenção, aprenderemos que as comidas mais alimentícias são também
aquelas que nos permitem com mais facilidade sentir os movimentos da carne.
15.
Ria-se do demônio quando, depois de feito sua refeição, ele lhe sugerir que da
próxima vez a retarde para uma hora mais adiante; pois ele lhe sugere esta
resolução apenas para vê-lo violar sua própria regra.
16.
Existe um tipo de abstinência que convém aos que conservaram sua inocência, e
outra voltada para os que a perderam, e que tentam recuperá-la por meio dos
salutares rigores da penitência; pois as pessoas que guardaram sua inocência,
se mortificam segundo percebem que têm necessidade disto para resistir aos
movimentos da concupiscência, enquanto que aqueles que caíram em faltas mortais
devem, até o fim de suas vidas, sem relaxar nem amolecer, fazer sofre a carne
que os fez perder o tesouro dos tesouros, a fim de poder reencontrá-lo. Assim,
os primeiros se propõem em sua mortificação a conservar o feliz estado de
justiça e santidade, e os últimos fazem seus esforços para tornar a Deus
simpático às suas penitências e suas lágrimas.
17.
Os tempos de consolação e de alegria verdadeiros para um homem virtuoso são a
época em que ele se vê alegremente liberto de todos os cuidados e de todas as
inquietudes que vêm com as coisas do século; mas aquele que ainda se encontra
preso às suas paixões e pendores desregrados nunca pode estar contente, porque
se acha necessariamente exposto aos perigos de uma guerra encarniçada e cruel. E
quem está sujeito aos seus vícios e que vive ao sabor das paixões, a cegueira é
tanta, que este se alegra todos os dias, como se costuma fazer na festa das
festas.
18.
Os homens intemperantes quase não pensam em outra coisa que em comidas e
banquetes, e colocam inteiramente sua afeição nestas coisas grosseira e vis; ao
contrário, aqueles que choram seus pecados não se ocupam, noite e dia, senão
com os pensamentos dos julgamentos de Deus e nas penas eternas.
19.
Dedique-se então a se torar mestre se seu apetite desregrado no beber e no
comer, se não quiser que ele se torne o seu mestre, e que mais tarde você não
tenha que ser vergonhosamente obrigado a fazer grandes esforços, e nem sempre
com sucesso, para viver segundo as regras da sobriedade e da temperança. Devem
compreender-me aqui aqueles que tombaram ignominiosamente no abismo do pecado;
quanto aos que se tornaram santos e castos, felizmente não têm a experiência da
queda de que falamos.
20.
Devemos reprimir fortemente com a lembrança das chamas eternas todos os
movimentos da intemperança, e lembrem-se com terror que muitos, dentre os que
tentaram segui-los por algum tempo, chegaram a tamanho desencorajamento, que
desesperando de resistir aos movimentos da concupiscência, se trataram de tal
maneira a temer tanto pela vida do corpo como pela vida da alma. Se quisermos
lhes dar alguma atenção, compreenderemos que é normalmente a intemperança que
conduz os homens a todas essas infelicidade e a todos esses pecados, e que os
expõem a um triste naufrágio.
21.
As orações das pessoas que praticam fielmente a temperança são acompanhadas de
pensamentos santos e piedosos; ao contrário, durante seus santos exercícios o
espírito dos intemperantes se vê continuamente agitado por ideias más e
manchado por mil representações impuras.
22.
Quando nos entregamos à intemperança, esgotamos e secamos a fonte das graças
para nós; mas se a combatermos furiosamente com o jejum, faremos jorrar em
abundância as lágrimas salutares da penitência.
23.
Sabem a quem devemos comparar uma pessoa que, ao mesmo tempo em se torna
escrava de seu ventre, se esforça por triunfar sobre o demônio da impureza?
Comparamo-lo, sem hesitar, com o home que tenta apagar um incêndio atirando
azeite sobre as chamas.
24.
Mortificando nosso pendor pela gula, tornamos o coração humilde; mas se
contentarmos a gulodice, enchemos nosso espírito com maus pensamentos.
25.
Para verificar essas verdades, considere em que estado você se encontra pela
manhã, ao meio-dia e no momento que antecede sua refeição: não é verdade que na
primeira hora seus pensamentos são quase irracionais e anunciam uma grande
dissipação do espírito, que na sétima hora – o meio-dia – eles estão mais
tranquilos e que ao entardecer eles estão completamente humildes?
26.
Se você observar as regras da temperança, não lhe será difícil guardar
silêncio; porque a língua se derrama em tanto mais palavras quanto mais força
recebe de um estômago cheio. Use todas as suas forças para combater e abater
esta tirânica intemperança; pois Deus, vendo seus esforços generosos, vira
pessoalmente em seu socorro com uma graça toda particular.
27.
Quando umedecemos um odre por algum tempo ele se dilata e contém mais água do
que se não tivéssemos feito esta operação; quando eles secam, eles se retraem e
se tornam menores. O mesmo acontece com nosso estômago: encha-o de comidas e de
vinho, e ele se estica e se dilata; dê-lhe menos, ele se encolhe e se torna
menor. É assim que vamos nos tornando temperantes pela necessidade da natureza.
28.
Às vezes acalmamos os ardores da sede suportando-os; mas o mesmo não se pode
dizer da fome: nada é capaz de apaziguá-la, senão o alimento que lhe damos.
29.
Comendo o necessário, você domará a gulodice com algumas penas e alguns
sofrimentos; sem por causa de alguma enfermidade, você não puder se entregar a
mortificações, socorra-se das santas vigílias à noite. Se sentir seus olhos
pesados pelo sono, que uma ocupação laboriosa o impeça de dormir. Mas não se
conduza assim se ficar fatigado pela necessidade do sono: neste caso dedique-se
à oração. É impossível servir a Deus e a Mammon, e o mesmo podemos dizer da
oração e do trabalho: é quase impossível dedicar-se aos dois de maneira a que
possam nos ser úteis.
30.
Uma coisa que devemos frisar aqui é que, uma vez que a intemperança se apodera
de uma pessoa, ela torna seu estômago insaciável, a ponto de que ele imagina
ser capaz de devorar todas as carnes do Egito e beber todas as águas do Nilo.
Quando conseguimos contentar o demônio da intemperança, ele se retira para dar
lugar a um outro demônio, o da impureza, a quem ele conta as exatas novidades
de nosso estômago: “Vá, diz ele, ataque duramente esta pessoa; pois seu corpo,
que ela tratou tão bem, lhe fornecerá todos os meios para vencê-la e fazê-la cair
em suas armadilhas”. Vocês o veem, a este demônio infame? Ele está sempre perto
do infeliz intemperante. Oh!, como ele o amarra de pés e mãos! Como se ri dele
durante o sono funesto em que o coloca! Como o trata de acordo com seus desejos
cheios de malícia e perversidade! Como ele perturba e mancha sua imaginação com
fantasmas vergonhosos! Como produz sobre seu corpo movimentos humilhantes e
culpados!
31.
Não é uma coisa espantosa que nosso intelecto incorpóreo seja capaz de se sujar
e perder sua beleza por meio do corpo? Mas não é menos surpreendente que nosso
corpo, que não passa de um vil composto de terra e lama possa purifica-lo e
torná-lo, de certa forma, mais santo e belo.
32.
Se você prometeu se ligar a Cristo e seguir seu caminho rude e estreito de que
fala o Evangelho, reprima vitoriosamente a paixão da gula; se você tratar seu
corpo com delicadeza e lhe conceder tudo o que ele lhe pedir, você estará
violando a promessa que fez ao divino Salvador. Mas ouça as palavras que ele
lhe dirige: “O caminho que leva à perdição é largo e espaçoso, e muitos seguem
por ele[5]”.
Ora, esta via larga é a intemperança, e esta perdição é a impureza. Mas o
caminho que conduz à vida, disse ainda Cristo, é estreito e difícil, e poucos
são capazes de segui-lo.
33.
Se Lúcifer, que se fez precipitar do céu aos infernos, se tornou o chefe dos
demônios, não podemos também dizer que a gula está à frente dos vícios que
tiranizam o coração humano?
Vida
34.
Então, quando vocês se sentarem à mesa para tomar a refeição, representem para
si próprios a imagem da morte e do juízo, a fim de poder resistir a esta cruel
paixão; e ainda assim vocês farão pouco progresso e este lhes custará muitas
penas. Quando estiverem a ponto de beber, lembrem-se do vinagre e do fel que
deram de beber ao Senhor no Calvário, e este pensamento os tornará sóbrios, ou
os fará gemer, ou ainda, lhes inspirará sentimentos mais nobres e moderados.
35.
Não se enganem, vocês jamais poderão se libertar da dura servidão ao Faraó, nem
merecerão celebrar a Páscoa celeste, se durante sua não comerem alfaces amargas
e pão sem fermento. Ora, estas alfaces selvagens são a imagem dos esforços e
das mortificações que devemos praticar; e o pão sem fermento é a figura da
humildade sincera de nossa alma, que não conhece senão as regras da mais
perfeita modéstia.
36.
Não deixem passar um só instante sem que esta sentença do Espírito Santo esteja
presente em sua memória: “Para mim, enquanto os demônios meus inimigos me
oprimiam com suas tentações, eu me revesti de cilício, humilhei minha alma por
meio do jejum e dirigi a Deus minha prece no secreto de meu coração[6]”.
37.
O jejum é uma violência que fazemos contra a natureza. É ele que nos faz
renunciar às delícias da sensualidade, que extingue as chamas da
concupiscência, que nos liberta dos maus pensamentos, nos preserva dos sonhos
inoportunos e torna nossas preces santas, fervorosas e agradáveis aos olhos do
Senhor; é ele que ilumina nossa alma, cura nosso espírito, dissipa as trevas de
nossa inteligência, vela por nosso coração, lhe abre as portas da compunção,
lhe faz soltar gemidos salutares, o consola e encoraja nas obras e nas dores da
penitência, impede nossa língua de cair na incontinência de falar, nos inspira
o amor ao retiro e à solidão, conserva em nós o espírito de obediência, adoça
os rigores de nossa vigília, obtém e mantém a saúde de nosso corpo, nos dá a
paz e a tranquilidade da alma, apaga nossos pecados, nos abre a porta do céu e
nos conduz à posse dos prazeres, das alegrias e das delícias eternas.
38.
Interroguemos a intemperança: não é ela nossa inimiga declarada? Não à vemos à
frente de todos os nossos inimigos? Não é ela o mais furioso e mais perigoso
dentre todos os nossos inimigos espirituais? Não é ela a autora de todos os
males que nos acontecem? Não foi ela que fez Adão cair do Paraíso terrestre, e
que fez Esaú perder seu direito de progenitura? Não foi ela que atraiu os
maiores males sobre os Israelitas, que cobriu Noé de confusão, fez desaparecer
Gomorra, manchou a Ló e matou os infelizes filhos de Eli? Enfim, não é a
intemperança a causa e o princípio de toda espécie de corrupção e de pecado? Mas
perguntemos a ela mesma de quem ela extrai sua existência, a quem ela a
entrega, quem é seu inimigo que a pisoteia e destrói? Diga-nos, infame e cruel
dominadora do gênero humano, você que, para nos tornar seus escravos, nos
adquiriu a peso de ouro, pelo desejo insaciável de comer, diga-nos por que
caminhos conseguiu chegar até nós; diga-nos o que nos deu e fez, desde que
fixou sua cruel morada em nós; ensine-nos quais são os meios eficazes que
devemos empregar para expulsá-la e nos livrarmos da servidão. Irritada com
estas questões fatigantes, inflamada de furor e tremendo de raiva, ela nos fará
ouvir, muito contra sua vontade, as seguintes respostas: “Por que me enchem de
injúrias e reprovações? Esquecem-se de que são meus escravos? Como podem sequer
pensar que podem se separa de mim? Ignoram que foi a própria natureza que os
acorrentou e os mantêm meus escravos? Querem saber como me tornei sua senhora?
Eu lhes direi: foi pela quantidade de comida mais ou menos deliciosa que vocês
costumam tomar como alimento, que eu produzi em vocês esta insaciável avidez; e
este costume, acompanhado do endurecimento do coração e do esquecimento da
morte, me conserva e me mantém residindo no meio de vocês. Querem saber o nome
e o número de filhos que tive? Se eu disser o nome de todos, os grãos de areia
que existem sobre a terra não seriam suficientes para contá-los. Escutem apenas
quais foram os que eu primeiro coloquei no mundo e pelos quais eu conservo uma
afeição especial: o aguilhão da carne é meu primogênito e meu
primeiro-ministro; o segundo, é o endurecimento do coração; o terceiro, o amor
ao repouso. Depois destes vêm o dilúvio de pensamentos impuros, o princípio de todas
as corrupções e de todas as sujeiras espirituais, e um abismo de infâmias
secretas e execráveis. Minhas filhas são a preguiça, a incontinência no falar,
a presunção audaciosa, a galanteria, os gracejos, a contradição, a opinião
obstinada, o estupor do coração, a escravidão do espírito, a ostentação
insolente e a inclinação por agradar ao mundo. São estas que perturbam o fervor
e mancham a santidade da prece, que ocasionam o turbilhão de pensamentos, que
ferem com acidentes súbitos e infelicidades inesperadas; enfim, são elas que
produzem o desespero, o mais temível e o maior de todos os males. A lembrança
dos pecados me combate verdadeiramente, mas não me derrota; a meditação da
morte me dá golpes terríveis, mas ainda não é capaz de me vencer, e eu declaro
que nada neste mundo é capaz de derrubar inteiramente meu império; que as
únicas vitórias que podem ter sobre mim os que, sob a condução do Espírito
Santo (a quem se dirigem com humildes súplicas), me combatem de modo constante
e vigoroso, consistem em me impedir de lhes causar os males cruéis, funestos e
incalculáveis que eu causo a outros; pois aqueles que não experimentaram os
dons e as doçuras do Espírito Santo, este poderoso auxiliar e este inefável
Consolador, se deixam prender nos meus anzóis, e acabam miseravelmente por não
mais suspirar senão pelas delícias brutais da boa mesa”. É preciso coragem para
triunfar sobre a intemperança! Mas aquele que, com felicidade, conseguir o
objetivo de vencê-la, abrirá para si um caminho de tranquilidade da alma e de
suprema castidade.
DÉCIMO
QUINTO DEGRAU
Da
Castidade incorruptível, que os homens corruptíveis por natureza adquirem com
seus trabalhos e suores.
1.
Acabamos de ouvir a gula, esta fúria, nos dizer que a guerra contra [a
castidade do] corpo é um de seus filhos. Isto não surpreende: nosso primeiro
pai Adão no-lo ensinou. Pois se ele não tivesse se deixado dominar pelo ventre,
ele jamais teria sabido o que é uma companheira. É por isso que os que observam
o primeiro mandamento jamais caem na segunda transgressão: eles permanecem como
filhos de Adão, ao mesmo tempo em que desconhecem o estado de Adão (depois da
queda), e são um pouco inferiores aos anjos, a fim de impedir o mal de se
tornar imortal, como disse aquele que foi chamado o Teólogo.
2.
A castidade, ao nos liberar das misérias da natureza dos corpos, nos faz
participar da natureza dos puros espíritos. É esta virtude angélica que prepara
em nossos corações uma morada agradável a Jesus Cristo, e que serve de escudo
para nossa alma; ela faz de nossa natureza corruptível uma natureza
incorruptível, e estabelece uma admirável emulação entre os fracos mortais e os
espíritos imortais. Quem pratica esta bela virtude repousa e extingue em si o
amor pelas criaturas em troca do amor a Deus, e as chamas e os ardores de seu
corpo pelos ardores e as chamas do Espírito Santo.
3.
A temperança é uma virtude que se mistura e se identifica com todas as demais
virtudes, e delas toma seu nome. O homem que pratica a temperança, mesmo
durante o sono, não experimenta nem sensações nem movimentos capazes de
perturbar sua paz e a calma de seu estado.
[4[7]].
O homem casto é aquele sobre quem a agradável variedade dos corpos, sua beleza,
sua meiguice e sexo não causam nenhuma impressão inoportuna ou vergonhosa. O
caráter distintivo, a prova específica e as leis especiais de uma santa e
angélica castidade consistem em não ser mais tocado nem movido pela presença de
corpos vivos, não mais do que pelos corpos mortos, seja pela visão de homens
como pela de animais.
[5].
Mas prestemos seriamente atenção a esta verdade: a castidade é um dom de Deus.
Aquele que trabalhou muito e penosamente para obter o tesouro precioso da
castidade, deve se abster de pensar ou crer que a felicidade de possuí-la se
deve aos seus próprios suores e trabalhos; pois à nossa natureza não é dado
vencer a si mesma com suas próprias forças. Assim, se obtivermos a vitória
sobre a natureza, reconheçamos que foi pelo próprio Autor da natureza que a
obtivemos – com efeito, não devemos reconhecer que, para vencer, corrigir e
curar, é preciso ser superior ao que é vencido, corrigido e curado?
6.
O começo da castidade consiste em recusar todo consentimento aos pensamentos
impuros e aos movimentos desregrados da concupiscência; o progresso nesta
virtude, que são como a perfeição média, consiste em experimentar, seja no
sono, seja em outras ocasiões, mas sem maus efeitos ou maus pensamentos, certos
movimentos de nossa carne, composta de terra e lama; enfim, a perfeição desta
virtude celeste consiste na extinção de todo mau pensamento, de toda imagem
desonesta e de tudo se (...)[8]
7.
Feliz, solidamente feliz, é quem não é tocado nem ferido pela beleza, o
colorido e as graças elegantes das pessoas que encontra.
8.
Não são bem os que preservaram seus corpos da sujeira, aqueles de quem podemos
dizer que praticaram uma castidade perfeita; mas são os que submeteram com
perfeição ao espírito os diferentes membros de seus corpos.
9.
Sem dúvida, devemos ver como um homem casto aquele que, na presença dos corpos
dos outros, domina os movimentos do seu próprio; mas diremos que é de uma
castidade mais perfeita aquele que é invulnerável à visão dos corpos dos
demais, e que, pela meditação das belezas do céu, extinguiu em si todos os
ardores que as belezas da terra excitam naturalmente.
10.
Quem combate o espírito da luxúria com as armas da oração se assemelha a alguém
que combate um leão. Aquele que, pela continuidade e o vigor dos combates que
sustenta contra este terrível demônio, o derruba e abate, é semelhante a um
homem que é no mínimo igual ao seu inimigo; mas quem reprimiu e deteve
inteiramente todos os esforços impetuosos da luxúria, mesmo que esteja ainda
vivendo num corpo mortal, desfrutará dos benefícios e das prerrogativas que
esperamos apenas para depois da ressurreição gloriosa.
11.
Mas, se não ser mais fatigado durante o sono por sonhos humilhantes nem por
movimentos da concupiscência, é uma marca indubitável de castidade, não será
uma prova certa de luxúria, se durante o dia os pensamentos nos fazem cair
voluntariamente nas sujeiras corporais?
12.
Combater o inimigo impuro por meio de trabalhos e suores equivale a tentar
amarrar um inimigo com cordas de junco e de vime; combatê-los com vigílias e
jejuns é como colocar um colar de ferro ao pescoço de um cão a quem submetemos;
mas se acrescentarmos a estas armas, para o combate, a doçura, a humildade e o
desejo vivo e ardente de obter a vitória, seremos capazes de abater e destruir
o inimigo, e enterrá-lo na areia; digo na areia, porque a humildade na qual
devemos enterrar todas as paixões, principalmente a luxúria, não lhes fornece
substância nem alimento: ela é para as paixões como uma areia seca e estéril.
13.
Muitas pessoas se batem contra a luxúria, mas de diferentes maneiras: algumas
guerreiam por si mesmas e com suas próprias forças; outras, com as armas da
humildade; outras enfim, auxiliadas pela força do Espírito Santo, cujo auxílio
elas pedem humildemente, a combatem de tal modo que a vencem e escravizam. Ora,
me parece que podemos comparar as primeiras à estrela da manhã; as segundas à
Lua cheia; as terceiras, ao Sol, que ilumina o mundo com seus raios. Estes três
tipos de pessoas têm um diálogo com o céu: pois a aurora anuncia a chegada do
dia, e logo o nascer do sol nos traz o esplendor de sua luz; e é assim que se
dão as coisas com as pessoas de que falamos.
14.
Semelhante a uma raposa que quer caçar galinhas, o demônio finge dormir a fim
de roubar nossa castidade e nos por a perder.
15.
Vigiem para nunca confiar em seus corpos de barro; desconfiem sempre de sua
fraqueza, até que finalmente Cristo os chame para que se apresentem diante
dele.
16.
Não imaginem que o rigor e a austeridade dos seus jejuns lhes tenham dado
tamanha perfeição de virtude, que vocês não estejam mais expostos a quedas
deploráveis. Não percam jamais de vista que uma criatura que jamais comeu,
tomba de um só golpe, do céu ao abismo do inferno.
17.
Os escritores ascéticos definem a renúncia ao século: uma aversão que se tem
pelo próprio corpo, e uma guerra contínua travada contra o ventre.
18.
O que mais comumente causa a queda dos monges jovens em faltas contrárias à
castidade, é uma certa afeição pelas doçuras e comodidades da vida. O inchaço
do coração costuma balançar e às vezes derrubar os que estão mais avançados nos
caminhos da vida religiosa. Quanto aos que estão mais próximos da perfeição, a
pedra de tropeço consiste nos julgamentos temerários que eles fazem, e nas
condenações injustas que levantam contra seus irmãos.
19.
Existem pessoas que acham uma felicidade terem nascido eunucos porque, segundo
sua opinião, estão isentos do aguilhão da concupiscência; mas não vamos nos
iludir: só são verdadeiramente felizes aqueles que, por meio de pensamentos
puros e desejos castos, combatem, reprimem e vencem a concupiscência.
20.
Eu vi pessoas que, contra sua vontade, caíram em movimentos desregrados; vi
outras que, sem sucesso, tentavam excitar-se para tanto. Estas infames seriam
infinitamente mais culpadas do que as que, cruelmente puxadas e agitadas pelas
paixões, tiveram a infelicidade de cair frequentemente; porque elas não apenas
teriam pecado, se pudessem, como ainda fizeram todos os esforços para conseguir
se sujar vergonhosamente.
21.
Bem míseros são os que caem; mas faltam palavras para estigmatizar os que
tentam derrubar os outros. Não trarão em si, estes homens detestáveis, tanto o
peso enorme e a pena terrível de suas próprias quedas, como as penas pelas
faltas às quais arrastaram seus irmãos?
22.
Evitem quere expulsar o demônio da impureza discutindo e raciocinando com ele;
pois, para fazê-los cair, ele sempre terá motivos plausíveis a apresentar, e se
servirá de vocês mesmos para vencê-los na guerra.
23.
Não se esqueçam jamais de que todos os que acreditaram poder combater a paixão
impura por si mesmos e triunfar, se enganaram grosseiramente e nada
conseguiram; pois, a menos que o Senhor em pessoa se digne derrubar esta morada
de carne e de corrupção, e construir em nós esta morada de espírito e
castidade, será vão pretendermos, com jejuns e vigílias, destruir a primeira e
construir a segunda.
24.
O que se deve fazer é manifestar humildemente a Deus a fraqueza de nossa
natureza, reconhecer diante dele a impotência de nossas forças, e assim pouco a
pouco re3ceberemos de sua bondade, e sentiremos em nós a presença do dom
inestimável da castidade.
25.
Dentre as infelizes vítimas dos prazeres carnais, encontrei um homem que
conseguiu se encontrar e voltar ao domínio de si, e que, por meio de obras de
conversão e de uma penitência sincera, trabalhava por sua salvação. Eis o que
ele me contou: “As pessoas que se deixam levar pela incontinência, são agitadas
e atormentadas por um ardor violento por objetos tão corporais, são possuídas
por um demônio furioso e cruel que se entroniza como um tirano em seu próprio
coração, e aí faz sentir seu império infame por meio de sinais inequívocos: de
sorte que, quando são tentadas e tentam conter sua paixão brutal, sentem dentro
de si as dores de um fogo semelhante ao de uma fornalha abrasadora; elas ficam
tão horrivelmente fora de si, que perdem todo o temor a Deus e aos suplícios
eternos, que elas encaram como sendo coisas de fábulas; elas têm horror à
prece; a visão de um cadáver não lhes causa mais emoção do que a imagem de uma
pedra; e elas estão tão absorvidas e devoradas pelo desejo de satisfazer suas
ações infames, que perdem inteiramente a razão e se parecem antes com animais
furiosos do que com criaturas racionais. Se estes dias não fossem abreviados,
poderia haver sequer uma única alma, dentro desta prisão de sangue e barro, que
fosse capaz de obter a salvação? Pois, ainda em que nos demos conta de que os
horrores aos quais nos atiramos convêm apenas a uma natureza corrompida,
continuamos a buscá-los com uma avidez insaciável. Se o sangue se delicia no
sangue, o verme entre os vermes, e o limão combina com limão, não deve a carne
amar as obras da carne?”. Nós todos que queremos sinceramente agir contra a
natureza com violência a fim de obtermos o reino dos céus, não esqueçamos que
nossa carne não busca senão nos enganar e nos trair, que devemos combatê-la,
enfraquecê-la e submetê-la por todos os meios e através de piedosos artifícios.
Consideremos felizes os que não experimentaram os malefícios temíveis que ferem
as pessoas dominadas pelo demônio da impureza; pois elas estão bem longe
daquela escada misteriosa pela qual o patriarca Jacó viu subir e descer os
anjos, estas pessoas que caíram miseravelmente no abismo da impureza, e, para
que possam se aproximar e subir por ela, precisarão de muitos suores e
lágrimas, suportar penas e trabalhos e se dedicar a jejuns e austeridades bem
rigorosas.
26.
Devemos frisar aqui que os inimigos de nossa salvação se comportam na guerra
que travam contra nós como soldados organizados para uma batalha: eles têm
ordem de nos atacar e nos combater todas as vezes que nos encontrarem.
27.
Uma coisa que não deve nos surpreender nem nos fazer tremer, é que dentre os
que sucumbem às tentações, existem alguns que sofrem quedas muito mais funestas
do que os outros. Esta é outra observação que posso fazer; assim, eu digo que
quem tiver intelecto para compreender, compreenda o que quero dizer aqui.
28.
Normalmente o demônio tem o costume de empregar todos os seus esforços, toda
sua ocupação, todos os seus cuidados, toda sua diligência, seus projetos e
desígnios de maneira a fazer com que os anacoretas caiam nos crimes que estão
fora e são contrários àquilo que a natureza parece pedir. É para que ele
consiga realizar seus desejos estes são deixados viver no meio das mulheres,
mas sem que ele, o demônio, lhes inspire nem maus pensamentos nem maus desejos;
e os infelizes se deixam prender por meio deste artifício, e se creem felizes e
tranquilos neste estado de coisas, sem compreender que, onde o perigo é
suficientemente grande e funesto por si mesmo, não há necessidade de outro meio
ou de outra tentação para perder um homem.
29.
Creio que os demônios, estes impiedosos homicidas de nossas almas, têm duas
razões principais para nos conduzir com tanto ardor e zelo a pecados que
repugnam às leis da natureza: primeiramente, porque temos sempre em nosso poder
e à nossa disposição da matéria do pecado; em segundo lugar, porque assim eles
nos fazem merecer penalidades mais severas. Isto foi amargamente experimentado
por um homem extraordinário. Ele houvera um dia comandado com absoluto controle
seus animais selvagens; mas houve um momento em que ele foi assaltado de modo
tão horrível e atacado de modo tão violento, que não apenas o privaram do
alimento celestial cujas doçuras ele saboreava, como o despojaram de tudo e o atiraram
a uma terrível miséria. É por isso que o bem-aventurado Antônio, nosso mestre
na vida religiosa, chorando a infelicidade deste homem – que entretanto
conseguiu repará-la por meio dos rigores da penitência – dizia lançando longos
suspiros: “Tombou esta grande e sólida coluna de virtudes”. Este santo Padre
considerou em sua sabedoria que ele não devia nos ensinar que espécie de pecado
o infeliz cometera contra a castidade; mas acreditamos que tenha sido um crime
que ele cometeu sobre seu próprio corpo. Assim, existe em nós uma espécie de
morte e um princípio de ruína bem funesto; e esta infeliz morte reside em nós
mesmos e nos acompanha por toda parte; mas é sobretudo nos anos da juventude
que ela sobressai, e eu não ouso nem dizer nem escrever seu nome, pois São
Paulo mo proíbe com suas palavras: “Existem coisas que são feitas em segredo, e
que seria vergonhoso e indecente nomear[9]”.
30.
Esta carne, que é ao mesmo tempo nossa amiga e nossa inimiga, o mesmo Apóstolo
não hesita em chamar de morte: “Infeliz sou eu!, escreve ele, quem me libertará
deste corpo de morte?[10]”;
e um outro teólogo chama de “uma serva viciosa e que só se diverte nas trevas
da noite”. Eu lhes confesso que eu gostaria muito de saber as razões pelas
quais estes dois grandes santos falaram assim de nosso corpo.
31.
Se nossa carne é uma morte, então podemos dizer que não morrerá aquele que
souber vencê-la. Mas onde encontraremos um homem que, preservando a si mesmo
das sujeiras da carne, mereça viver e jamais ver os horrores da morte?
32.
Seria aqui a ocasião de conhecer quem seria a pessoa mais recomendável, se
aquela que, estando morta pelo pecado, tenha ressuscitado pela graça, ou aquela
que, não tendo morrido, conservou sua inocência. Alguém já disse que seria a
segunda das duas; mas não concordo com esta opinião, a creio mesmo que seja um
engano: pois Jesus Cristo morreu e ressuscitou. Por outro lado, quem der
preferência à primeira pessoa, sem dúvida será por crer que quem teve a
infelicidade de morrer por cair em pecado, não deve jamais desesperar de sua
salvação.
33.
O demônio da impureza, este inimigo cruel e pérfido dos homens, a fim de nos
fazer cair mais facilmente em alguma falta por incontinência, da qual ele mesmo
é o autor, nos sugere que Deus é cheio de comiseração por aqueles que têm a
infelicidade de se atirar à luxúria, e que ele perdoa com tanto maior bondade e
clemência na medida mesma em que esta paixão é natural do homem. Mas não
deixemos de reconhecer suas mentiras e sua perfídia: pois mal acabamos de
cometer um pecado vergonhoso, e ele se apressa a nos mostrar a Deus como um
juiz severo, inexorável e que não perdoa nada. Mas vejam que antes de
consentirmos em seu pecado, e para consegui-lo, ele nos apresentou a Deus como
sendo infinitamente bom, clemente e misericordioso, e que, depois de termos
cumprido seu desígnio maléfico, e nos termos precipitado no abismo, ele não
cessa de falar da severidade e do rigor dos julgamentos do Senhor, a fim de nos
atirar na raiva e nos horrores do desespero, consumando assim nossa perda
eterna. Mas ele vai ainda mais longe: enquanto durar este sentimento de
tristeza desesperadora que ele nos provocou , ele não tem necessidade de nos
expor a novas tentações, pois nos tem como escravos, e assim ele nos deixa
tranquilos; mas perceba que, mal se acalmam e se apaziguam estes remorsos
dolorosos e cortantes que ele nos inspirou, e este inimigo implacável recomeça
seus ataques como antes e nos expõe aos mesmos perigos e às mesmas faltas.
34.
Observamos que o Senhor se agrada e encontra de melhor grado suas delícias num
coração e num corpo puros e castos, como é ele próprio a pureza em essência, e
que ele está infinitamente distante de toda sujeira produzida pelos corpos; e
que os demônios, estes monstros horrorosos do inferno não se contentam, como
muitos nos ensinam, senão com os maus odores que as paixões exalam, e com as
excreções de um corpo esgotado e corrompido pelo vício vergonhoso.
35.
A castidade nos une intimamente a Deus por uma santa familiaridade, e, na
medida em nossa fraca natureza é capaz, ela nos torna semelhantes a ele.
36.
Assim como o orvalho dá aos frutos da terra a doçura que têm, também a vida
religiosa e a exata obediência produzem os doces e agradáveis perfumes da
castidade; que, se a solidão é capaz de acalmar e extinguir os ardores da
concupiscência, a frequentação dos mundanos e o espírito de dissipação depressa
os trazem de volta à existência e à vida; e devemos, em honra da obediência,
dizer-lhe que reprima sempre, em qualquer lugar que estejamos, os movimentos desordenados
de nossos corpos, e impedi-los de reaparecer.
37.
Algumas vezes observei que, por um feliz contragolpe, o orgulho produz a
virtude da humildade. Quando vi esta coisa espantosa, lembrei-me das palavras:
“Quem poderá penetrar nos desígnios e nos pensamentos do Senhor?[11]”.
Pois podemos ver que a gula e o inchaço do coração, o fastio e o orgulho,
engendram faltas vergonhosas, e que estas faltas, às quais nos atiramos
voluntariamente, acabam se tornando ocasiões de humildade.
38.
Não se parece a um insensato que joga óleo das chamas para apagar um incêndio,
aquele que imagina que poderá triunfar sobre o demônio da impureza vivendo nas
delícias e nos excessos da intemperança?
39.
A quem podemos comparar aquele que pretende tolamente terminar com sucesso a
guerra que sustenta contra a luxúria, apenas com as armas da temperança e da
sobriedade? Diremos sem hesitar que este se parece a alguém que, tendo caído no
mar, tenta salvar-se nadando com uma mão só. Assim, se quisermos triunfar,
devemos reunir a abstinência e a humildade; pois nada poderemos fazer com a
primeira destas duas virtudes, se a segunda não estiver com ela.
40.
Quando estamos inclinados a um vício qualquer, é contra este vazio que devemos
dirigir nossos esforços de modo especial; é este vício que devemos atacar e
vencer antes dos demais; mas é sobretudo quando vemos que ele reina sobre nós e
que o trazemos conosco, que devemos combatê-lo com força e constância; pois
agir de outro modo equivale a não declarar a guerra aos nossos defeitos, mas
nutri-los e conservá-los. Lembremo-nos de que não é exterminando o egípcio
cruel que mereceremos ver a Deus com Moisés numa nova sarça ardente, vale
dizer, na humildade.
41.
Numa tentação eu próprio experimentei as astúcias do demônio: este lobo cruel e
enganador me procurou, com um desígnio pérfido, uma alegria e felicidade
irrazoáveis, consolações sem fundamento e lágrimas cheias de falsas delícias; e
eu, simples, crédulo e sem experiência, acreditei que todas essas coisas tão
sedutoras e agradáveis eram dons do céu, enquanto que tudo não passava de uma
armadilha colocada pelo demônio para me derrubar.
42.
Uma vez que todos os demais pecados que o homem comete se localizam fora do
corpo, e que só o pecado da luxúria é contra o corpo, coisa que acontece porque
os movimentos da concupiscência mancham e corrompem nossa carne, eu gostaria de
saber por que razão, nas diferentes faltas cometidas pelos homens, dizemos
normalmente que eles foram enganados, e quando sabemos que uma pessoa caiu num
pecado vergonhoso, choramos com dor e tristeza. Ora, ela caiu.
43.
Os peixes temem menos o anzol do que uma alma voluptuosa a quietude.
44.
Quando um demônio deseja unir duas pessoas pelos laços de um amor profano e
criminoso, ele começa por observar atentamente quais são suas diferentes
inclinações para saber por qual delas começar o incêndio.
45.
Não somos nós testemunhas diariamente e não temos testemunhado que todos
aqueles que são tristes escravos do vício vergonhoso são também cheio de
afeição pelos outros, sensíveis às suas infelicidades, tocados de compaixão por
eles, juntando com facilidade suas lágrimas às deles, e usando de palavras
doces e cativantes com eles. Mas os que desejam se tornar castos não se
comportam com uma ternura tão estudada.
46.
Um homem cheio de prudência e sabedoria, além de uma profunda erudição, me
propôs um dia esta grave questão, importante e difícil: “Qual é, disse-me ele,
o pecado que, em sua opinião, é o maior, depois do homicídio e da apostasia?”.
Eu lhe respondi que pensava ser a heresia. “Mas, replicou ele, se a heresia é o
maior pecado depois do homicídio e da apostasia, como é possível que a Igreja
católica admita à participação do santos os heréticos, assim que eles abjuram e
anatematizam sinceramente seus erros, e que, conforme a tradição apostólica,
ela afasta da mesa eucarística, por anos inteiros, os que têm a infelicidade de
cair na fornicação, ainda que confessem seus pecados, que se corrijam e que
façam uma sincera penitência?”. Esta réplica inesperada me surpreendeu de tal
maneira, que eu não pude responder; e a questão permaneceu indecisa.
47.
Prestemos atenção aqui de modo especial para examinar, conhecer e pesar a
diferença que existe entre os pensamentos e afeições que o demônio da luxúria
nos inspira durante a recitação dos salmos, e aqueles que o Espírito Santo nos
sugere por meio das palavras divinas que pronunciamos; veremos o quanto as do
Espírito Santo nos dão uma força abundante e uma enorme coragem para
combatermos nosso incansável inimigo.
48.
Pobres jovens! É sobre vocês mesmos que seus olhos devem estar continuamente
fixados! Eu já observei um grande número de pessoas jovens que, ao mesmo tempo
em que dirigiam a Deus preces fervorosas e sinceras por outras pessoas a quem
amavam e que lhes eram caras, se deixavam surpreender e dominar pelo espírito
imundo; e no entanto elas acreditavam que em suas súplicas estavam apenas
cumprindo com um dever de reconhecimento e de caridade.
49.
As diferentes formas de contatos físicos são muito apropriadas a sujar nossos
corpos; fujamos delas com horror e não esqueçamos jamais o quanto elas podem
nos ser perigosas e funestas. Lembremo-nos sem cessar do exemplo de um homem
jovem que possuía uma profunda sabedoria e uma grande castidade. Sua mãe estava
doente, e era preciso que ele a carregasse em seus braços, para o que ele
tomava precauções e vigiava a ponto de cobrir suas mãos, a fim de não tocá-la.
Jamais deixem, eu lhes peço, de evitar toda espécie de contatos físicos, sejam
eles desonestos e criminosos, sejam os honestos e indiferentes, tanto sobre si
mesmos como em relação aos outros.
50.
Ninguém, penso eu, pode com razão e verdade chamar de santo a alguém que
não tenha purificado de toda mancha o
barro do qual é composto seu corpo, e que não o tenha santificado, e como que
transformado, se é verdade que tal transformação é possível neste mundo.
51.
É principalmente quando nos colocamos no leito para o repouso, que devemos nos
conduzir com prudência e vigiar a nós mesmos; pois durante o sono, nossa alma,
por assim dizer, fica sem o corpo: ela combate só contra o demônio. Ora, se
nosso espírito, por causa de maus pensamentos surgidos enquanto dormimos, é
levado a prazeres desonestos, (...[12]).
52.
Não durmam nem se levantem sem a lembrança da morte, e sem que a oração os
mantenha sempre unidos a Jesus. Estas duas práticas, fáceis e importantes,
serão de um grande auxílio durante o sono para preservá-los de qualquer
acidente vergonhoso.
53.
Alguns pensam que estes combates inoportunos que somos obrigados a sustentar
contra o demônio impuro, bem como estes acidentes humilhantes que nos acontecem
durante o sono, são produzidos no mais das vezes e causados pela grande
quantidade de alimentos que tomamos; mas posso assegurar com verdade que já
encontrei muitos que estavam doentes e perigosamente enfermos, ou que haviam
extenuado seus corpos por meio de jejuns rigorosos, e que no entanto
experimentavam esses movimentos desregrados da carne. Ora, eis o que me disse
um dia sobre este tipo de misérias humanas um monge dos mais sábios, mais
refletidos e respeitados de sua comunidade: “Esses acidentes noturnos, disse-me
ele com uma claridade e precisão que me encheram de espanto, acontecem algumas
vezes devido à abundância do alimento e das doçuras do repouso; outras vezes,
por causa do orgulho, justamente quando nos regozijamos e nos aplaudimos por
tê-los impedido durante um longo tempo com nossos cuidados e precauções;
finalmente, eles acontecem em casos em que nos damos a liberdade de julgar e
condenar nossos irmãos. Ora, acrescentou ele, estas duas últimas causas – e
talvez as três – são comuns tanto nas pessoas que estão doentes como nas sãs”.
Assim, se alguém tem a felicidade de não sofrer de nenhuma destas três coisas,
deve sentir uma grande consolação, porque percebe em seu corpo uma pureza que
nada pode perturbar. A única coisa que pode lhe inspirar alguma inquietação é a
suspeita temorosa de que este estado possa provir de alguma perfídia do
demônio; mas então ele deve se reafirmar e se consolar, pensando que Deus
permite esta pena e esta inquietação que nada tem de criminoso, a fim de que
ele possa adquirir uma humildade mais profunda.
54.
Devemos evitar cuidadosamente durante o dia, repassar na memória os sonhos e os
fantasmas que perturbaram a imaginação durante a noite; pois é para nos levar a
qualquer ação desonesta que os demônios excitam em nós esses acidentes
noturnos.
55.
Mas observemos aqui com especial atenção um artifício detestável do demônio
para nos perder. Eis o modo como ele age para nos fazer cair. Assim como alguns
alimentos insalubres não causam doenças senão um ano depois de serem ingeridos,
enquanto outros as produzem quase imediatamente, também existem coisas que
tendem a corromper nosso coração pelo desfrutem que nos dão, mas que só obtêm
este efeito depois de um tempo considerável. É por esta razão que eu encontrei
pessoas que se sentavam familiarmente à mesa com mulheres e conversavam com
elas, sem que naquele momento experimentassem qualquer pensamento mau; mas o
que lhes acontecia com o tempo? Estes infelizes confiavam em si mesmos, e esta
confiança os punha a perder; pois justo na hora em que se acreditavam numa paz
e segurança perfeitas em suas celas, encontraram uma morte deplorável. Quem
passou pela triste experiência a que me refiro compreende muito bem o tipo de
morte de que falo, se ela se refere ao corpo ou à alma. E que aquele que nunca
experimentou nada semelhante, viva por muitos anos numa feliz ignorância!
56.
Os meios mais eficazes que podemos empregar contra os perigos e os obstáculos
aos quais nos expõem as tentações impuras, consistem em nos vestir de cilício,
nos cobrir de cinzas, passar as noites em vigílias e trabalhos, sofrer a fome e
a sede, fixar nossa morada no meio de túmulos e cadáveres, não comer mais do
que pão, não beber senão água, e, acima de tudo, viver numa humildade perfeita,
e enfim, se for possível, escolher um pai espiritual que nos dirija e nos
conserte, não tanto pelo peso e a autoridade de seus anos, mas pela virtude de
sua sabedoria e pela justeza de seu julgamento; pois eu considero uma coisa
maravilhosa se, unicamente entregue a si próprio, você conseguir se preservar
do naufrágio em meio a uma tempestade tão furiosa.
57.
Acontece com frequência que o mesmo pecado mereça um julgamento mil vezes mais
severo e uma punição muito mais rigorosa numa pessoa do que em outra. Com
efeito, as circunstâncias podem aumentar ou diminuir sua enormidade; tais são,
por exemplo, o costume em cometer, ou lugar onde nos tornamos culpados, o
estado ou condição daquele que peca, além de numerosas outras circunstâncias
que podem tornar o crime mais ou menos considerável.
58.
Contaram-me uma vez um fato de rara pureza, e eu duvido que se possa praticar
esta virtude com maior perfeição. Uma pessoa percebeu por acaso um corpo de uma
beleza extraordinária. Ora, esta visão levou-a imediatamente a glorificar com
louvores a soberana Beleza de Deus, da qual aquela que estava diante de seus
olhos não passava de uma imagem bem imperfeita, mas que lhe inspirou um
sentimento de amor a Deus tão vivo e tão ardente, que ele inundou com uma
torrente de lágrimas o lugar onde estava. Eu lhes pergunto, não é uma coisa
admirável, que aquilo que poderia ser para muitos uma ocasião de queda e de
ruína espiritual, se tornou para este santo homem um meio sobrenatural para a
obtenção de recompensas celestes? E, se ainda pudermos achar homens semelhantes
a este, que, nas mesmas circunstâncias, experimentam os mesmos sentimentos, e
que sejam assim tão puros e tão unidos a Deus pela caridade, não devemos dizer
que estes, mesmo numa carne corruptível, já vivem do mesmo modo como viveremos
depois da ressurreição geral?
59.
Assim deveriam ser os nossos sentimentos, quando ouvimos cantar os santos
cânticos e outras melodias: pois as pessoas que amam a Deus com ardor são
movidas por uma alegria totalmente celeste, por uma afeição divina e uma
ternura que chega às lágrimas, quando escutam uma bela harmonia, seja sacra,
seja mesmo profana. Ao contrário, os que são escravos dos prazeres dos sentidos
experimentam sentimentos e movimentos opostos a estes.
60.
Dentre os que se retiraram para o deserto para levar a vida eremítica, existem
alguns que estão muito mais expostos à fúria dos demônios, como já dissemos.
Isto não deve nos espantar, porque se trata de lugares solitários onde estes
habitam desde que nosso Senhor, para nossa salvação, lhes proibiu fixar morada
em nossos corpos, expulsando-os dos lugares habitados e encerrando-os em
prisões eternas.
61.
É notório que o demônio da luxúria ataque sobretudo os solitários, a fim de
que, consternados e abatidos por tentações humilhantes, eles pensem que não
extraem nenhum benefício de sua solidão, tomando assim a funesta resolução de
retornar para o tumulto e as agitações do século. Também podemos observar que, uma vez no meio do
mundo, o demônio nos deixa tranquilos; mas é apenas para que pensemos que
estamos livres das tentações, de modo a que ele possa nos persuadir que já
podemos viver sem perigo no meio do século e dos mundanos.
62.
É onde somos tentados com mais frequência, é daí que o demônio não quer que
fujamos, e é aí, por conseguinte, onde deveremos sustentar seus assaltos com
mais força e coragem, zelo e perseverança; enfim, aquele a quem o demônio não
ataca deste modo, parece ter se tornado seu amigo.
63.
Se a obediência nos obriga a permanecer algum tempo no mundo para aí tratar de
algum assunto importante e necessário, a mão e a graça de Deus nos protegerão;
as orações e os votos de nosso superior são também capazes de obter para nós
este favor, a fim de que o Nome do Senhor não seja blasfemado por nossa causa. Também
podemos permanecer sem tentações no meio dos obstáculos do século, devido à
nossa indiferença e insensibilidade quanto às coisas do mundo, que adquirimos
com o desgosto que estas coisas mundanas nos causaram pelo uso desgastante que
delas fizemos; mas também pode acontecer que todos os outros demônios tenham se
retirado de perto de nós, tendo permanecido apenas os da vanglória e do
orgulho, que tomam o lugar de todos os outros.
64.
Todos vocês que decidiram guardar a castidade e ser fieis a esta virtude
celeste, escutem-me, eu lhes peço, e observem comigo um novo tipo de malícia de
parte do cruel e impiedoso sedutor de nossas almas: vigiem com grande cuidado
para não se tornar suas tristes vítimas. Um servidor de Deus, que foi instruído
a respeito por sua própria experiência, contou-me que muitas vezes o demônio da
impureza se afasta de nós até o momento que ele considera o mais apropriado e
conveniente para a tentação na qual ele quer nos derrubar; durante este
intervalo ele excita no infeliz que pretende precipitar no pecado os mais belos
e piedosos sentimentos de devoção, abrindo-lhe uma fonte abundante de lágrimas
ao mesmo tempo em que ele se encontra entre pessoas do sexo (sic), e inspira ao
imprudente que fale com zelo da morte e do julgamento, da temperança e da
castidade, exortando-os a fazer frequentes meditações sobre as verdades
importantes da salvação e a praticar com inviolável fidelidade as virtudes tão
belas e necessárias que nos ensina a religião. Iludidos por estes discursos e
por suas aparências de piedade, essas pobres pessoas correm atrás do monge,
como se fosse ele um verdadeiro pastor; mas, pelos artifícios do demônio e sem
que ele próprio se dê conta, ele logo se torna um lobo sanguinário e devorador.
O que acontece então? Pela familiaridade que tomam pouco a pouco, e pela
liberdade que adquirem de conversar com ele, elas acabam por despencar – e, com
elas, o infeliz – no abismo profundo do pecado, consumando assim sua perda.
65.
Evitemos assim, na medida do possível, não apenas ver e considerar este fruto
da morte, mas até de ouvir falar nele, porque em nossa profissão religiosa
fizemos a promessa solene de jamais provar dele. Não devemos então ser tomados
de uma santa indignação, se encontrarmos entre nós alguém tão insensato a ponto
de se crer tão forte como Davi? É possível uma coisa dessas?
66.
A castidade é uma virtude tão bela, tão nobre, tão digna de nossas honras e de
nossos louvores! Ela é isenta da menor mácula, ela é capaz de trazer à alma e
ao corpo uma paz e uma tranquilidade perfeitas.
67.
Alguns ensinaram que não podemos jamais chamar de casta a uma pessoa que caiu
em qualquer falta vergonhosa. Eu não posso admitir semelhante opinião. É porque
me parece que para reduzi-la ao seu justo valor, devo dizer que é fácil para
Deus, se ele quiser, implantar uma oliveira selvagem numa oliveira de casta, e
fazer com que esta dê frutos excelentes. De resto, se as chaves do reino dos
céus tivessem sido confiadas a um homem que tivesse podido conservar seu corpo
numa inviolável castidade, seu sentimento poderia até parecer mais provável;
mas todo mundo sabe que são Pedro possuía uma sogra e uma esposa[13].
O príncipe dos apóstolos deveria calar a boca àqueles a lhes ensinar que a
qualquer momento de nossas vidas podemos adquirir a castidade.
68.
O demônio da impureza sugere mil pensamentos e toma mil formas para tentar e
fazer cair os homens. Assim ele não cessa de excitar, de conduzir e de empurrar
os que tiveram a felicidade de conservar sua inocência sem mácula, para que
provem nem que seja um pouco dos prazeres sensuais a fim de examinar e
verificar se lhes convêm. Ele lhes diz interiormente que eles não se atirarão a
eles por muito tempo, e que renunciarão logo em seguida. Quanto aos que ele
conquistou, ele não para de colocar diante de seus olhos a imagem atraente das
volúpias de que já desfrutaram, a fim de levá-los a se abandonar a elas mais e
mais. Ora, eis o que acontece normalmente nessas diferentes tentações: aqueles
que, por qualquer funesta experiência, não conheceram ainda estes prazeres
criminosos, não sucumbem facilmente e de um só golpe; outros, dentre os que
tiveram a infelicidade de se deixar seduzir e saborearam vergonhosamente o
prazer que o demônio lhes prometeu, se desgostam, colocam dificuldades e opõem
uma vigorosa resistência; e enfim, assistimos o contrário em muitos outros:
eles contraem o infame hábito dessas volúpias carnais e não podem mais passar
sem elas.
69.
Quando ao acordarmos encontramos nossa alma e nosso corpo na pureza e na calma,
devemos pensar que os anjos conseguiram para nós este favor em virtude das
preces que fizemos e da sobriedade que observamos durante nosso repouso. Mas se
acontece o contrário, e os maus sonhos nos mergulham na tristeza e no desgosto,
e os fantasmas nos perseguem e nos perturbam com sua vergonhosa importunação,
lembremo-nos destas palavras:
70.
“Eu vi o ímpio, o demônio da impureza, extremamente elevado; ele igualava em
altura os cedros do Líbano, perturbando meu coração com seu furor e com a
agitação que lhe comunicava; mas eu passei pelas austeridades da abstinência e
do jejum e ele já não estava mais lá; sua raiva contra mim cessou”. E também:
“Na humildade de meus pensamentos eu o procurei e não pude encontrá-lo, nem onde
morava, nem mesmo os vestígios de sua violência[14]”.
71.
Aquele que triunfa sobre sua própria carne triunfa sobre a própria natureza;
quem triunfa sobre a natureza se coloca acima da natureza; e quem se coloca
acima da natureza, tornou-se quase tão perfeito quanto os anjos.
72.
Com efeito, não vejo nada de surpreendente se espíritos isentos de matéria,
como os anjos bons e maus, combatem outros espíritos imateriais como eles; o
que me surpreende e me espanta é ver homens modelados com uma carne de terra e
barro, fraca e instável, infiel e corrompida – que dizer mais? – de uma carne
inimiga, perseguir os demônios que são espíritos livres do peso e do embaraço
do corpo, vencê-los e colocá-los em fuga.
73.
O Senhor, por um traço todo particular de sua providência em favor do gênero
humano, inspirou às mulheres o espírito da modéstia, da vergonha e do pudor. Se
as mulheres tivessem a mesma liberdade e temeridade que os homens, poderíamos
dizer que a castidade conduziria uma só alma que fosse, ao Paraíso?
74.
Nossos padres mais instruídos nos caminhos da vida espiritual, e com cuja
sabedoria podemos seguramente contar, nos ensinam que é preciso conhecer a
diferença essencial entre o primeiro movimento da alma, a simpatia de nosso
espírito por uma pensamento impuro e o consentimento que damos ao pecado, e a
derrota e o cativeiro que sofremos, o combate que sustentamos e a paixão que
atua. Eles dizem que o primeiro movimento da alma consiste numa espécie de
discurso simples e nu, e a representação de um objeto são coisas que se passam
na imaginação; que a simpatia que do espírito pelo objeto que ele figurou pelo
pensamento é um certo entretenimento, uma conversa de nossa alma com o objeto
que ela considera, seja porque ela age assim por uma má intenção, seja porque o
faz sem maus desígnios; que o consentimento que damos ao pecado é um amor e uma
afeição que levam a alma a querer e possuir o objeto que ela se representou;
que o cativeiro é a violência feita ao nosso coração, que o arrasta contra a
sua vontade e o acorrenta, ou então uma ligação forte e constante que o fixa e
o liga ao objeto que o move e o faz perder a feliz estado de graça e de
inocência; que o combate consiste numa equiparação de forças que empregamos
para combater o inimigo, de modo que a alma que se vê exposta ao combate pode,
segundo sua vontade, vencer ou ser vencida; enfim, que a paixão completamente
formada é um vazio que depois de muito tempo se cristalizou em nossa alma,
enraizando-se nela, e levando-a pouco a pouco a um mau hábito, que a alma segue
com prazer e executa com ardor aquilo que esta lhe ordena. Dito isto, observem
sem dúvida que o primeiro movimento de nossa alma, que, sem que o queira,
recebe a impressão de um objeto, certamente não é criminoso, e que a
representação desse objeto em nosso espírito não é totalmente inocente; mas que
o consentimento que damos a esta representação já constitui um pecado mais ou
menos grave, conforme a alma, para resistir a ele, faça esforços maiores ou
menores e generosos; que o combate traz consigo castigos e recompensas; que o
cativeiro nem sempre é o mesmo e depende das circunstâncias; porque se ele
acontece durante a prece ele não é o mesmo que seria em outro momento, e se
acontece em relação a coisas indiferentes não é o mesmo que aconteceria em relação
a coisas ruins; enfim, quanto à paixão consolidada, é indubitável que se ela
não for punida neste mundo por uma conversão sólida e sincera, e por uma
penitência proporcional às faltas que ela nos fez cometer, ela o será no outro
mundo por meio de suplícios eternos. De todas estas observações tiremos esta
importante consequência: que quem não o recebe, nem permite que o primeiro
movimento cause uma impressão em si, detém no seu princípio todas as tentações
que estaria por experimentar, cortando assim as raízes do mal.
75.
Aqueles dentre os Padre que obtiveram mais luz e discernimento observam ainda
outra espécie de pensamento ainda mais sutil. Eles o nomeiam como uma
insinuação adocicada e sub-reptícia. Este pensamento penetra na alma de uma
maneira doce, tão insinuante e súbita, que a alma não tem, por assim dizer, nem
o tempo nem os meios de se aperceber. Não conseguimos ver nada mais súbito nos
movimentos mais ágeis do corpo, nada mais instantâneo e mais sutil na agitação
dos espíritos; trata-se de uma ação quase imperceptível da qual a alma mal
consegue reter uma lembrança, que existe sem duração no tempo, que não permite
fazer nenhuma reflexão e que algumas vezes experimentamos sem sequer nos darmos
conta. Se alguém for feliz o bastante para receber de Deus a penetração e a
compreensão desta espécie de mistério, ele poderá nos dizer como ele acontece,
como, por meio de um simples olhar, num piscar de olhos, num inocente toque de
mãos, em umas poucas palavras cantadas, sem mesmo nos deixarmos deter pela
imaginação ou pelo pensamento, a alma se vê arrebatada, e a paixão impura se
assenhora dela e a corrompe instantaneamente.
76.
Alguns dizem que são os pensamentos que nascem no coração os que levam o corpo
a ações de impureza. Outros, ao contrário, sustentam que é por meio dos órgãos
e dos sentidos do corpo que os pensamentos são excitados no espírito. Outros
asseguram que o corpo não faz mais do que obedecer ao espírito, e que o segue;
enfim, encontramos alguns que, para provar que o espírito é menos culpado do
que o corpo, ou antes que o corpo é o único culpado, demonstram, tanto quanto
podem, que muitas vezes os maus pensamento não escorregam para o espírito senão
pela visão de um objeto agradável, de uma beleza que nos toca e ofusca, ou por
um simples toque de mãos, pelo bom odor dos perfumes que aspiramos, e pela
suavidade dos sons que escutamos. Quanto a mim, peço humildemente ao Senhor,
que conhece onde as coisas realmente acontecem, que nos ensine; pois este
conhecimento é muito útil e mesmo necessário aos que pretendem agir e só se
determinar por princípio e com segurança; mas ele é inútil aos que só desejam
servir a Deus na simplicidade de seus corações. A ciência e os talentos do
espírito não estão ao alcance de todo mundo, bem o sei; mas também não ignoro
que a bem-aventurada simplicidade, que é uma couraça forte e poderosa contra as
ameaças dos inimigos da salvação, não reina em todos os corações.
77.
Existem paixões que, depois que nascem no espírito, levam sua raiva e seu furor
a todo o corpo; outras, ao contrário, ocasionadas pelo corpo, exercem sua
devastação no espírito. Estas últimas ocorrem normalmente nas pessoas que vivem
no mundo; e as primeiras nos que vivem nos mosteiros, porque estes não veem os
objetos que tentam os que vivem no meio do século. Quanto a mim, a punica coisa
que posso ainda afirmar, é que se você quiser encontrar a prudência e a
sabedoria nas pessoas que são escravas da paixão, jamais alcançará seu
objetivo.
78.
Quando, tendo por um longo tempo e com muitos esforços guerreado contra o
demônio da luxúria – que é, por assim dizer, o aliado de nossa carne de barro –
e que por meio de jejuns rigorosos como golpes de pedra, pela humildade como
uma espada, conseguimos expulsá-lo de nosso coração, então este miserável se agarra
como um verme ao nosso corpo, e se esforça para manchar nossa alma, excitando
em nós movimentos inoportunos e contrários à razão.
79.
Aos que obedecem ao espírito do orgulho sobrevém acima de tudo a infelicidade,
nas medida em que não cessam de aplaudir a si mesmos por se haver libertado dos
maus pensamentos, e que acabam caindo nas armadilhas que lhes coloca a vaidade;
para nos convencermos desta triste verdade, vejamos e examinemos atentamente,
mas com simplicidade de coração, por quais razões estas pessoas se acham
isentas de pensamentos desonestos. Não será exatamente por que o demônio, cheio
de malícia e artifícios, se esconde nas dobras mais secretas de seu coração,
para de lá sugerir que é por causas dos seus cuidados, sua prudência e seus trabalhos,
que eles praticaram a castidade e adquirido esta bela e perfeita pureza que
agora possuem? Infelizes! Esqueceram-se destas palavras: “O que vocês possuem,
que não tenham recebido?[15]”.
Que as pessoas em cujo coração o demônio se tenha escondido assim, se dediquem
com força a combater e ferir esta serpente perigosa; que a expulsem para longe
de seu coração por meio de uma profunda humildade, a fim de que, libertos de
suas mordidas cruéis e envenenadas, e despojados das túnicas de pele com que se
cobriam, possam cantar em louvor ao Senhor um cântico de triunfo e vitória, e,
reunidos aos filhos que jamais se sujaram com as coisas contrárias à castidade,
repetir o hino da pureza. Mas elas serão incapazes de fazê-lo, repetimos, se se
contentarem em se desfazer das túnicas que mencionamos, mas sem se revestir das
vestes da inocência e do hábito de uma profunda humildade.
80.
O demônio de que tratamos aqui é muito mais ardiloso do que os demais: ele sabe
observar e conhecer as circunstâncias em que poderá nos estender suas
armadilhas com maior sucesso. É assim que, para nos tentar, ele escolhe de
preferência os momentos nos quais nos é impossível servirmo-nos do corpo para
nos dirigir a Deus com preces fervorosas.
81.
Assim, aconselhemos aos que ainda não sabem orar mentalmente, a que mortifiquem
seus corpos durante suas orações vocais, seja estendendo os braços, seja
batendo no peito, se elevando afetuosamente e com frequência seus olhos para o
céu, seja soltando suspiros e gemidos, seja ficando de joelhos: todas essas
mortificações e esses meios piedosos lhes trarão grandes vantagens. Mas se
acontecer de, pela presença de qualquer pessoa, não seja possível executar
essas práticas de piedade, o demônio aproveitará esta ocasião para atacar, e
não é raro que não estejamos firmes contra a tentação, de sorte que, por falta
de coragem ou de fervor na prece, podemos vir a falhar e sucumbir. Quanto a
vocês, se se encontrarem numa situação exposta a uma provação semelhante,
retirem-se prontamente, saiam da multidão, escondam-se em qualquer lugar
secreto, voltem aos céus os votos ardentes de seu coração; e, se vocês se
sentirem frios, congelados, elevem os olhos do corpo para olhar o céu, estendam
os braços em forma de cruz, a fim de que, por meio deste sinal salutar, possam
confundir e derrubar por terra este novo Amalec; chamem com grandes gritos
aquele que é o único que poderá lhes salvar; para tanto, não se sirvam de
palavras elegantes e estudadas, mas de palavras que transpirem de humildade do
coração e de confiança da alma; sobretudo, digam: “Tenha piedade de mim,
Senhor, porque sou fraco e desfaleço[16]”.
Logo vocês sentirão a presença do socorro do Altíssimo e, fortificados por este
auxílio celeste, afastarão vitoriosamente seus inimigos. Ora, eu posso dizer
que todos os que se acostumaram a combater o demônio desta maneira e com essas
armas, obtiveram contra ele prontas e gloriosas vitórias. Apenas a prece do
coração é capaz de nos fazer triunfar. É assim que Deus torna invencíveis os
que combatem corajosamente por seu amor; é assim que ele recompensa seus
esforços e coroa sua boa vontade.
82.
Numa reunião em que me encontrava, vi um monge que se aplicava muito nos
assuntos de sua salvação, e que trabalhava com grande ardor. Um dia observei
que este fervoroso servidor de Deus era violentamente atacado por pensamentos
impuros, e que, não se encontrando num lugar apropriado para a oração que
costumava fazer durante essas tentações, ele pretextou suas necessidades
naturais, com o objetivo de se retirar. Ele se colocou no lugar que era
destinado a essas necessidades e, com uma oração das mais ferventes ele travou
uma batalha com o demônio e o derrubou. Porém, eu lhe fiz algumas admoestações,
quanto à sua conduta: “O local, disse-lhe eu, que você escolheu para orar, não
é absolutamente correto para o santo exercício da prece”. “Mas, respondeu-me
ele com humildade, você não vê, meu pai, que ao escolher este local para orar,
num momento em que eu era tentado por pensamentos imundos, eu mereci ser
purificado de minhas próprias manchas?”.
83.
Os demônios procuram envolver nosso espírito em trevas espessas, e depois levar
nosso coração a gostar daquilo que eles mesmos amam. Assim, a menos que um
religioso feche os olhos de sua alma para a luz, o demônio será incapaz de
arrebatar-lhe o tesouro de sua inocência. Mas é sobretudo desta maneira que o
demônio nos ataca e nos tenta: às vezes ele espalha tantas trevas no espírito
do pobre monge, e com esta escuridão opera tamanha confusão e uma desordem tão
terrível em sua razão, que consegue que ele cometa, na própria presença de seus
irmãos, ações e crimes dos quais só um insensato seria capaz. Mas o que
acontece a seguir? Nossa alma retorna de sua funesta embriaguez, a paixão se
acalma, voltamos a nós e não podemos senão enrubescer de nossa cegueira
vergonhosa, e gemer por nossos deploráveis excessos, pelas palavras que
dissemos, pelos gestos que fizemos, pelas ações cometidas, e pelo estado
humilhante a que fomos reduzidos em presença de tantas testemunhas. Mas muitas
vezes de um mal procede um bem: pois acontece que esta vergonha de pecadores,
considerando a conduta infame que mostraram, os pode converter e levá-los a se
corrigir de sua paixão.
84.
Afaste o inimigo que, depois de nos ter feito cair em pecado, nos desvia da
oração, dos outros exercícios da piedade e da vigilância sobre nós mesmos.
Lembremo-nos da máxima que diz: “É porque eu vi que minha alma estava oprimida
pelo conhecimento dos pecados que cometi, como por uma cruel tirania, que
resolvi fortemente me vingar dos inimigos que me encheram de males”.
85.
Sabem vocês quem pode assegurar ter vencido sua carne e triunfado sobre seu
próprio corpo? É aquele que partiu e dilacerou seu coração. E quem é que partiu
seu coração? Vocês o encontrarão em alguém que realizou uma renúncia completa
de si mesmo; pois como alguém que deu morte à própria vontade poderá proteger
seu coração?
86.
Existe um tipo de homem dominado pela paixão que, a todos os crimes com que se
cobriu, acrescenta o de contar com brutal complacência as execráveis impudicícias
e as vergonhosas intemperanças a que se entregou.
87.
O demônio costuma excitar pensamentos impuros em nosso espírito para corromper
nosso coração. Podemos combatê-lo vantajosamente expulsando-o com a temperança,
o desdém e por uma dedicação a outra coisa.
88.
Aqui se apresenta uma grande dificuldade. Fizemos a guerra ao nosso corpo? Mas
este corpo, que me é tão caro, que eu amor ternamente, como poderei
acorrentá-lo, julgá-lo e condená-lo, tal como julgarei e condenarei os vícios
mais vergonhosos? Pois ele escapa no mesmo instante em que estou prestes a lhe
colocar as cadeias; mal acabei de me resolver a julgá-lo e já me reconcilio com
ele, e se chego a condená-lo me apresso logo a perdoá-lo. Como odiar a quem a
natureza me ordena amar? Como será possível separar-me daquilo a que devo estar
eternamente unido? Poderei eu fazer morrer a quem deverá ressuscitar um dia
para viver comigo pelos séculos infinitos? Por quais meios conseguirei tornar
incorruptível aquilo que é corruptível por sua própria natureza? Quais boas
razões posso dar àquele que, para me convencer, me apresenta razões que estão
fundadas na própria essência das coisas? Se eu tento amarrar meu corpo por meio
de jejuns, me entrego a ele, condenando-o se não os observar; se, preservando-me
de julgamentos temerários, liberto-me de sua escravidão, a vanglória me faz
recair em sua servidão. Meu corpo é ao mesmo tempo meu amigo e meu inimigo, meu
adversário e meu auxiliar, meu perseguidos e meu defensor. Se cuido dele, estou
mimando-o? Ele se torna insolente e se volta contra mim: devo mortificá-lo? Ele
me faz cair em desfalecimento: restabeleço-o? Ele não me dá repouso e não quer
receber nenhuma reprimenda? Devo afligi-lo, a ele que me expõe à última das
infelicidades? Arruíno-o com austeridades, e já não tenho os meios com que
adquirir e praticar as virtudes: meu corpo é um ser que eu odeio e amos. Mas
então, o que é esta maravilha extraordinária que encontro em mim? Qual pode ser
a razão desta mistura singular de meu corpo com minha alma, dessas afeições
corporais com essas afeições espirituais? Explique-me como é possível que eu me
ame e me deteste ao mesmo tempo. Mas é a você que me dirijo, meu pobre corpo,
minha pobre carne, minha companhia inseparável, você que é parte essencial de mim
mesmo! Diga-me, eu lhe peço: ensine-me, eu lhe conjuro, este grande mistério
que me espanta e me confunde; pois só você pode me dar o conhecimento que eu
desejo. Conte-me, por favor, por que meios poderei eu viver sem ser ferido,
permanecendo com você; digne-se a me ensinar como eu poderei evitar os
numerosos perigos a que me vejo exposto a cada dia, por causa da união
necessária e inseparável que tenho com você; pois você não pode me ignorar, e
eu prometi a Cristo lhe fazer guerra. Ensine-me então de que maneira poderei
triunfar sobre sua tirânica dominação: pois ele me ordenou usar de todas as
minhas forças para vencê-lo e subjugá-lo. E eis que a concupiscência, que o
corpo representa, nos dá as seguintes respostas: “Eu não lhe direi coisas
desconhecidas; mas lhe contarei, minha alma, aquilo que nós dois sabemos. Eu me
glorifico de possuir por mãe a afeição interior que tenho por mim. Eu sou bem
prático em aproveitar e desfrutar da delicadeza com que sou tratado, e da
negligência com que cumprimos nossos deveres e praticamos a virtude, a fim de
produzir exteriormente as chamas de um grande abrasamento. Para provocar
interiormente os ardores e os fogos criminosos eu me sirvo do relaxamento da
piedade e da lembrança abrasadora das coisas passadas. Depois de meditar bem
sobre os pecados e os crimes nos quais quero fazê-lo cair, consigo facilmente
meu objetivo; e depois de fazê-lo cair no abismo, eu o precipito em outro, que
é a morte eterna causada pelo abatimento e pelo desespero. O conhecimento de
minha fraqueza e da sua me prende as mãos, e a temperança amarra meus pés, de
modo que não posso nem agir nem caminhar. A obediência perfeita o liberta
absolutamente de minha tirania, e uma profunda humildade me mata. Qualquer um
que receba o dom da castidade como prêmio por suas obras, este que é o décimo
quinto degrau da perfeição, ainda que numa carne corruptível, está morto e
ressuscitado ao mesmo tempo, e começa ainda neste mundo a usufruir de uma
bem-aventurada incorruptibilidade.
DÉCIMO
SEXTO DEGRAU
Da
Avareza e da Pobreza
1.
A maior parte dos autores recomendados por sua ciência, depois de haver falado,
como fizemos, da carne como um furioso tirano, nos expõe a avareza, que é um
demônio monstruoso cheio de cabeças. Assim, para não perturbar a ordem que estes
homens cheios de sabedoria estabeleceram, seguiremos a regra traçada. Diremos,
assim, mas em poucas palavras, o que concerne a esta cruel paixão, e trataremos
dos remédios capazes de nos curar e de nos preservar dela.
2.
A avareza é uma verdadeira idolatria; é a filha da incredulidade. Para
contentar sua avidez, ela se serve do pretexto especial das enfermidades e das
necessidades do corpo; é por isso que ela não cessa de ameaçar com uma velhice
de mil necessidades diferentes, que ela anuncia e faz temer as secas e que ela
prediz as fomes.
3.
Um avaro envergonha e viola os preceitos do Evangelho. Quem é possuído pelo
amor a Deus não é devorado pelo desejo passional das riquezas, ao contrário,
serve-se delas para distribuir esmolas a granel. Quem ousa dizer que ama a Deus
e os bens da terra engana a si próprio e quer enganar os outros: pois ele não
ama a Deus. No mesmo erro cai aquele que pretende possuir a Deus e o dinheiro:
não possuirá nem um nem outro.
4.
Quem chora seus pecados, também renuncia a seu próprio corpo e não o agrada, a
partir do momento em que considera necessário fazê-lo.
5.
Não diga que você só ama e busca as riquezas para depois socorrer os
indigentes. Lembre-se de que uma pobre viúva conquistou o Reino dos céus com
duas pequenas moedinhas.
6.
Dois homens se encontram um dia: um é avaro, outro generoso. Logo o avaro se
põe a repreender ao outro, que reparte com largueza aos pobres que o cercam;
ele o acusa de não possuir nem sabedoria, nem discrição.
7.
Mas aquele que triunfou generosamente sobre a cupidez, não poderá ele responder
que qualquer um que tenha vencido esta paixão, por isso mesmo cortou pela raiz
todas as inquietações da vida, e que aquele que é escravo da cupidez jamais
pode se apresentar a Deus com as mãos puras e inocentes, nem lhe oferecer o
perfume odorífico da oração?
8.
A avareza começa com a desculpa da esmola; mas assim que você acumula e
constrói um tesouro de ouro e prata, a cupidez o faz detestar os pobres. Vejam
como são grandes a sensibilidade e a compaixão pelos indigentes no coração do
avaro enquanto ele trabalha para se tornar rico; e vejam como ele se torna duro
e insensível em relação a eles, depois que se vê na abundância.
9.
Conheci pobres de bens de fortuna, mas que eram ricos em bens da graça, esquecer
completamente sua pobreza temporal vivendo em meio a gente igualmente pobre,
apenas pela afeição e a vontade.
10.
O monge que tem a infelicidade de amar o dinheiro jamais é preguiçoso; pois sua
paixão lhe recorda sem cessar estas palavras, das quais ele abusa: “Quem não
quer trabalhar, também não coma[17]”;
e estas: “Minhas mãos bastam para que eu obtenha para mim e para os que vivem
comigo as coisas que nos são necessárias[18]”.
11.
A pobreza religiosa é uma desobrigação formal de todos os cuidados da vida e
uma libertação de todas as inquietudes temporais; é uma viagem desembaraçada de
toda carga, uma observação escrupulosa dos preceitos do Senhor; uma feliz
libertação de toda espécie de incômodos e penas.
12.
O monge pobre é mestre de todo o universo, porque ele coloca todos os seus
cuidados e todas as suas inquietudes no seio da Providência, e, pela confiança
firme e inteira que ele tem no Senhor, torna todos os homens sujeitos a si,
seus servidores. Não será aos homens que ele irá se dirigirem suas necessidades
e nos suas carências, e o socorro que receber ele saberá que provém da mão do
Senhor.
13.
trata-se de um feliz filho da paz e da tranquilidade do coração; pois ele é
livre de toda afeição desregrada. Em seu retiro ele não dá maior atenção às coisas
presentes do que às ausentes, às que existem e às que não existem, e tudo neste
mundo lhe parece pantanoso e imundo. Quem se entristece e se aflige nas
dificuldades não é pobre desta pobreza, que é a única verdadeira.
14.
O verdadeiro pobre oferece a Deus preces puras e sinceras, e o avaro mancha as
suas com o pensamento e o desejo de bens temporais, que ele enxerga como
ídolos.
15.
Os que têm a felicidade de viver num mosteiro devem ser isentos de toda e
qualquer cupidez; pois como ousariam eles possuir qualquer coisa sua, uma vez
que, em função de sua profissão de obediência, sequer seus corpos estão à sua
própria disposição? O único prejuízo que poderia lhes causar esta pobreza tão
perfeita, seria de tornar muito fácil mudar de lugar e de moradia sem nenhuma
dificuldade; pois já vi acontecer das coisas que alguém possuía num lugar
fizessem com que a pessoa se fixasse e se ligasse àquele lugar.
16.
Aqueles que se tornam peregrinos por amor a Deus estão mais avançados nos
caminhos da perfeição do que os que se fixam num lugar, por afeição a coisas
que possuem.
17.
Quando temos a felicidade de saborear as doçuras e as delícias que nos trazem
os bens celestes, nos desgostamos rápida e facilmente das falsas doçuras dos
bens terrestres; e, por um princípio contrário, entregamos prontamente as
afeições do coração às riquezas temporais e as possuímos com prazer, quando
jamais saboreamos das santas volúpias das riquezas celestes.
18.
Quem é pobre contra sua vontade é duplamente infeliz: pois não desfruta dos
bens da vida presente e, pelo mau uso que faz de sua pobreza, se priva dos bens
da vida futura.
19.
Tenhamos cuidado, todos os que fazemos profissão de vida religiosa, para que
nos tornemos inferiores aos passarinhos, estes animais que não pensam no amanhã
e nada ajuntam para os tempos que poderão vir[19].
20.
Grande é aos olhos do Senhor aquele que, por seu amor, renuncia generosamente a
tudo o que possui, e também o que, nestas santas disposições, se despoja
inclusive de sua própria vontade! Um, como prêmio por sua generosidade,
receberá o cêntuplo, seja neste mundo, com bens temporais, seja no outro, pelos
dons e as graças celestes; e o outro possuirá a vida eterna.
21.
As ondas e as tempestades não cessam de agitar e atormentar o mar, e a tristeza
e a cólera perturbam e oprimem o avaro sem interrupção.
22.
Quem só sente desprezo e indiferença pelos bens da terra, não estará expostos
aos processos, nem às angústias que estes trazem consigo; enquanto que quem é
escravo da cupidez, penará toda a vida por uma mísera agulha.
23.
Uma fé inquebrantável preserva de toda espécie de inquietações; o pensamento da
morte conduz à renúncia do próprio corpo.
24.
Jó, em sua extrema pobreza, jamais demonstrou por sinal ou marca alguma ter
sido possuído por qualquer afeição de cupidez; ainda que reduzido à última
indigência, ele conservou sua alma numa paz e tranquilidade perfeitas.
25.
É com razão que se diz que a avareza é a raiz de todos os males. Pois é esta
maldita paixão que engendra as aversões, os furtos, as invejas, as cisões, as
inimizades, as raivas, as disputas, os ressentimentos, os atos de crueldade e
barbárie, e até os assassinatos.
26.
Assim como uma pequena fagulha é capaz de produzir um imenso incêndio numa
floresta, também uma virtude, pequena na aparência, é capaz de fazer
desaparecer todos os crimes de que falamos; esta pequena virtude é a pobreza,
que suprime e extingue todos os maus pendores da cupidez. Aquilo que produz em
nós esta interessante virtude é, em primeiro lugar, o hábito de pensar em Deus,
depois o prazer que sentimos em caminhar em sua presença e enfim a lembrança da
temível conta que teremos que lhe prestar.
27.
Todos os que leram com atenção o que dissemos no décimo quarto degrau, o da
gula, mãe de todos os males imagináveis, terão sem dúvida observado que esta
infame paixão, ao fornecer a genealogia e o número de seus filhos, colocou em
segundo lugar a insensibilidade, que torna o coração duro como um rochedo. Se
ainda não falamos deste vício foi porque a avareza, que é um dragão e um culto
idólatra do dinheiro, nos forçou a nos ocuparmos dela. Eu não sei por que
nossos pais colocaram a avareza em terceiro lugar dentre os pecados capitais.
Então falarei agora da insensibilidade, que ocupa o terceiro lugar na lista dos
pecados, mas que está em segundo na genealogia que a intemperança nos forneceu
de seus filhos. Depois disso, uma vez que já falamos da avareza, passaremos ao
sono, às vigílias e aos temores pueris: estas enfermidades espirituais atacam
sobretudo os noviços. Terminaremos este degrau dizendo que aquele que obtém
esta décima sexta vitória possuirá o amor, se libertará dos cuidados da vida
presente, terá merecido uma grande recompensa no céu e caminhará sem nenhum
embaraço temporal para a pátria celeste.
DÉCIMO
SÉTIMO DEGRAU
Da
Insensibilidade da alma, ou do endurecimento do coração, que consiste na morte da alma
antes da do corpo
1.
A insensibilidade, seja do corpo ou do coração, consiste num amortecimento
letárgico que, por uma longa duração de enfermidade grave e pela negligência
com que a tratamos, termina normalmente numa paralisia universal.
2.
A alma cai na funesta insensibilidade da seguinte maneira. Ela começa com uma
negligência culpada dos deveres, que termina por produzir um hábito inveterado
de fugir deles. Trata-se de uma paralisação mortal do coração, produzida por
uma tola presunção; uma corrente grossa e pesada que nos impede de correr com
alegria pelos caminhos de Deus; uma bebida funesta que nos faz perder a
compunção; a porta para o temível desespero, a mãe do esquecimento de Deus, o
qual, depois de ser gerado por ela, traz por si mesma a existência e a
capacidade de apagar em nós todo sentimento de temor a Deus.
3.
A insensibilidade se parece com um filósofo insensato que, dando lições aos
outros, pronuncia sua própria condenação; com um advogado que disserta contra
sua própria causa; como um médico cego que, enquanto faz longas e sábias
dissertações sobre os modos de curar um doente, não cessa de aumentar e
envenenar suas chagas e fazer crescer sua doença. Com efeito, vemo-lo falar com
zelo e ciência da doença de sua alma, mas jamais ovemos abster-se das coisas
que a mantêm; ele pede a Deus que o livre delas, mas, por seus maus hábitos,
nos quais não cessa de tombar, afunda e mergulha cada vez mais no abismo;
indigna-se contra si mesmo, mas, infeliz!, não enrubesce diante das amargas
admoestações que recebe; sabe que faz mala si mesmo, ele próprio o diz, mas
jamais aciona os meios de se corrigir; fala da morte, e vive como se jamais fosse
morrer; solta longo gemidos sobre os passos terríveis e inevitáveis após a
morte, mas permanece tranquilo, como se nada tivesse a temer, como se fosse
imortal aqui em baixo; fala dos benefícios preciosos e dos frutos salutares da
mortificação, mas não hesita em se atirar sem escrúpulos aos excessos e às
delícias da boa mesa; lê com frequência coisas relativas ao Juízo final, mas é
insensato o bastante para não lhes dar importância alguma, e chega mesmo a
brincar com elas; lê de passagem o que foi escrito sobre a vanglória, e esta
mesma leitura aumenta o próprio vício em seu coração miserável; louva a
vigília, mas mergulha nas doçuras do sono; destaca com eloquência a virtude e a
excelência da oração, mas tem horror a ela e só se dedica a este santo exercício
à força e com grande repugnância; assim, ele mesmo cria seu suplício e seu
tormento. O insensível louva e exalta a obediência, mas é o primeiro a
desobedecer; prodiga os elogios mais pomposos aos que não têm nenhum apego aos
bens frágeis e perecíveis deste mundo, mas não se envergonha de discutir e
disputar por um vil e mísero linho; encoleriza-se por disputar, irrita-se e se
indigna por ficar de mau humor; e ainda que caia e caia outra vez sem cessar,
insensato!, não se apercebe de suas quedas. Ele se arrepende de se entregar aos
excessos da intemperança, e um instante depois acrescenta um novo excesso aos
primeiros; beatifica o silêncio, mas, para não ter que conservá-lo, entrega-se
a longos discursos em seu louvor; faz excelentes exortações aos demais para
levá-los a praticar a mansidão, mas ele mesmo se indigna e se irrita com sua
própria indignação e impaciência; quando cai em si, vemo-lo gemer por seu
estado deplorável, mas, ao primeiro movimento que faz para sair dele, recai
numa letargia ainda mais profunda. Ele censura e condena severamente o riso e a
alegria, e ao mesmo tempo em que fala de penitência se põe a rir de tal modo
que desperta piedade e anuncia o desequilíbrio; acusa a si mesmo diante dos
demais por ser culpado de vanglória e, nesta mesma acusação, procura contentar
seu orgulho e sua vaidade; não cessa de recomendar aos irmãos para guardar
modéstia no olhar e praticar a castidade com escrupulosa atenção, mas o
miserável coloca sem cessar, e com intenções perversas, os olhos sobre os
objetos agradáveis e perigosos! Encontramo-lo no meio das pessoas do século?
Ele faz os maiores elogios da vida religiosa e solitária, mas, na sua estúpida
insensibilidade, não compreende que seus louvores condenam sua conduta; ele
cumula de honras e elogios os que cuidam dos pobres e que distribuem esmolas
entre os indigentes e os miseráveis, mas ele mesmo cobre os indigentes e os
pobres de injúrias, afrontas e ultrajes. E é assim que este pobre infeliz se
acusa e se condena em tudo e por tudo, sem pensar em se corrigir, em enrubescer
por seu triste e funesto estado, em se arrepender por sua conduta e se
converter. Ora, direi eu: será isto possível a ele?
4.
Já vi infelizes como estes que, ouvindo falar da morte e do julgamento terrível
que se seguirá, banhavam-se em lágrimas, e que no entanto, neste mesmo estado,
se apressavam a se sentar à mesa; surpreso e espantado, eu não conseguia
compreender de que modo a intemperança, mesmo fortalecida por um longo hábito
de vida na preguiça e na insensibilidade, fosse tão forte e potente para
resistir assim a uma dor tão viva e à virtude de lágrimas tão salutares.
5.
Entretanto, malgrado a fraqueza de meu espírito e de meu julgamento, eis em
poucas palavras o que eu penso haver descoberto sobre as astúcias infernais e
sobre as chagas profundas que caracterizam esta paixão dura, furiosa, tirânica,
perigosa e impertinente; pois eu não posso aqui me estender em dissertações
longas e raciocínios complexos, e conjuro aos que, com o socorro do céu e sua
própria experiência , tenham encontrado o remédio para a cura desta enfermidade
mortal, que não deixem de no-lo ensinar e aplicar. Quanto a mim, tudo o que
posso fazer é confessar francamente e sem rodeios que, diante de minha
impotência e do estado de servidão a que fui reduzido por esta cruel
dominadora, acho-me na impossibilidade de conhecer todos seus artifícios e
armadilhas; o que eu pude foi agarrá-la à força e usar de violência, amarrá-la
com as cordas do temor a Deus e os laços da perseverança na oração, forçando-a,
contra sua vontade, a fazer a confissão a seguir. E esta enganadora e tirânica
senhora me falou assim: “Quando os que se aliam a mim veem cadáveres diante de
seus olhos, eles não deixam de rir; durante a prece são duros como rochedos, e
seu espírito permanece envolto em trevas espessas que os impedem de enxergar.
Quando eles se apresentam diante da mas eucarística, o fazem sem nenhum
sentimento de piedade, e recebem e comem o pão divino como se fosse um pão
comum e ordinário. Se eu vejo pessoas tomadas de compunção, rio delas. Aprendi
com meu pai a fazer perecer todas as boas obras produzidas pela coragem e os
esforços de um coração generoso e bom. Eu sou a mãe da inconsequência e das
risadas, a nutriz do sono, a amiga das associações e das companhias, a companheira
fiel da falsa piedade; e, por esta última qualidade, eu desdenho da reprovação
que me é feita”.
6.
Estas respostas me encheram de espanto e surpresa, e me inspiraram o desejo
violento de perguntar ainda a esta furiosa paixão o nome de seu infame pai. Ela
me respondeu: “Eu não nasci de uma única raiz; minha origem é uma mistura
incerta, e o estado de minha geração é variado; o excesso no comer me dá
forças, o tempo me faz crescer e aumentar; os maus hábitos me afirmam de tal
maneira que aquele que se deixar levar por mim jamais escapará da escravidão.
Se você perseverar nas vigílias e no pensamento dos julgamentos de Deus, eu lhe
darei algum descanso. Descubram a causa que me gerou em cada um; pois ela não é
a mesma para todos, e ataquem-na rudemente. Rezem sobre os túmulos, e levem
consigo sempre a imagem da morte e dos que já não existem; mas não se esqueçam
de que se vocês não se servirem do jejum como pincel para pintar estas coisas
no seu espírito, jamais conseguirão triunfar sobre mim”.
DÉCIMO
OITAVO DEGRAU
Do
sono, da prece e do canto público dos salmos
1.
O sono consiste num certo estado, uma certa paixão da natureza que é produzida
pela paralisação dos sentidos; é a imagem da morte. O sono em si é algo único;
mas, assim como a cupidez, as causas que o produzem são numerosas; pois tanto
ele pode advir da própria natureza, como do trabalho realizado pelo estômago
que digere com dificuldade os alimentos recebidos, ou ainda de parte dos
demônios; algumas vezes tem seu princípio e sua causa no excesso de severidade
das austeridades; neste último caso, é a própria natureza que, sentindo-se
enfraquecida, tenta se aliviar e recuperar suas forças.
2.
Bebendo muito e frequentemente, adquirimos facilmente o hábito de beber; o
mesmo se pode dizer do costume de dormir. É por isso que os jovens iniciantes
devem se precaver contra esta paixão e esta necessidade corporais; pois, na
medida em que o pudermos ignorar, um hábito inveterado se corrige facilmente.
3.
Se quisermos prestar bem atenção, observaremos que, enquanto nossos irmãos se
reúnem ao toque da trombeta, nossos inimigos correm invisivelmente para nossos
leitos, a fim de que, ao acordarmos, nos obriguem a permanecer nas doçuras do
repouso: “Fiquem, nos dizem eles interiormente, esperem terminar os hinos que
precedem a salmodia; é cedo ainda para ir à igreja”. Outras vezes eles nos
fazem sentar durante a prece e nos conduzem ao sono. Ora eles nos incitam a
violenta necessidade de sair; ora nos pedem para sustentar discursos vãos e
inúteis. Alguns dentre eles têm como ocupação fatigar nosso espírito com maus
pensamentos; outros, de fazer com que nos apoiemos sobre qualquer objeto, como
um muro, por exemplo, persuadindo-nos de que estamos demasiado fracos e
fatigados; outros nos carregam com bocejos inoportunos; outros nos levam a rir,
a fim de que, em nossas próprias orações, atraiamos a ira do Senhor. Encontramos
alguns que nos tentam a correr com a
leitura dos versículos para que, terminando logo, tenhamos algum tempo para
preguiçar; encontramos outros que, ao contrário, fazem com que vamos
lentamente, para desfrutarmos de um certo prazer natural. Enfim, existem os que
se colocam sobre nossa língua e nossos lábios para nos fechar a boca, ou para
nos impedir de pronunciar com facilidade as palavras que compõem os salmos.
4.
Quem, durante a oração, pensar seriamente que está na presença de Deus, será
como uma coluna inamovível, e não se deixará surpreender por estas múltiplas
tentações. De resto, o lutador sincero e obediente, quando se trata de orar, se
vê iluminado por uma luz divina e se enche de alegria celestial; pois este bom
monge, semelhante a um soldado valente, se preparou para a prece longamente,
por meio de um fiel cumprimento de seus deveres e por uma obediência estrita.
5.
Se todos podem se dedicar à prece pública, devemos não obstante confessar que
existem alguns para quem é mais útil orar com alguém que não esteja unido a ele
pelo mesmo espírito e as mesmas inclinações. A prece solitária só convém a
poucos.
6.
Ao salmodiar na companhia de muitos, não
lhes será muito fácil entregar-se à meditação sem numerosas distrações; então,
para amarrar e aplicar seu espírito pesem e meditem as sagradas palavras que
recitam, a fim de que esta meditação seja para vocês como que uma prece,
enquanto a parte do coro à qual vocês não pertencem pronuncia seus versículos.
7.
Não é conveniente para ninguém se dedicar a outras coisas durante a oração,
mesmo que seja algo necessário. Santo Antônio nos assegura que foi um anjo que
lhe recomendou evitar esta falta.
8.
O fogo testa o ouro; mas a prece o faz em relação ao amor e à ligação que os
monges têm por Deus. Aquele a quem agrada o santo exercício da prece se une a Deus
com grande felicidade e coloca em fuga os demônios.
DÉCIMO
NONO DEGRAU
Das
vigílias do corpo, do modo como elas produzem as vigílias do espírito, e da
maneira como devem ser praticadas
1.
Dentre as pessoas que acompanham os reis da terra, existem aquelas que não possuem
armas, outras que trazem feixes, outras escudos, outras espadas. Nada disso é
por acaso, mas calculado: pois aqueles que não estão decorados senão com as
marcas de sua dignidade são comumente os parentes, os aliados ou no mínimo os
amigos íntimos e confidentes do príncipe; quanto aos demais, são seus oficiais
ou seus empregados domésticos: tal é a ordem que encontramos na corte dos
soberanos.
2.
Vejamos no presente qual é o lugar que ocupamos na casa de Deus, que é nosso
rei supremo, quando nos apresentamos a ele para nos dedicarmos aos exercícios
da oração do dia, do entardecer e da noite: pois existem alguns que, nas preces
do entardecer e da noite se apresentam diante de Deus livres de toda
inquietação em relação aos objetos visíveis, e revestidos apenas com os
ornamentos espirituais; outros se mostram assim com o canto dos salmos e dos
cânticos; alguns passam o santo tempo da prece na leitura das divinas
Escrituras; outros, mais fracos e menos avançados, trabalham com as mãos;
enfim, existem os que, pela meditação contínua da morte, incitam e entretêm em
seus corações sentimentos da mais viva e ardente compunção. Ora, é evidente que
de todas essas pessoas religiosas que passam assim as vigílias, são as
primeiras e as últimas que se comportam da maneira mais agradável a Deus; as
que colocamos em segundo lugar seguem os exercícios ordinários da vida religiosa;
as terceiras e as demais estão no último grau. Não obstante, Deus recebe e
aprecia todas essas maneiras de lhe oferecer homenagens, segundo o grau de boa
vontade, de fervor e de coragem das pessoas que lhe apresentam.
3. As vigílias do corpo purificam a alma de suas
manchas bestializa e cega o espírito.
4.
As vigílias combatem forte e vigorosamente os ardores da carne, expulsam os
maus pensamentos, produzem lágrimas em abundância, enternecem o coração,
extinguem as chamas da paixão, dão delicadeza à consciência, conservam os
pensamentos sob controle, consumem os alimentos que poderiam ser nocivos,
submetem a carne ao espírito, triunfam sobre os esforços e desarmam as
armadilhas do demônio, detêm a liberdade indiscreta da língua e dissipam
inteiramente as imagens e os fantasmas capazes de perturbar e consternar a
alma.
5.
Um monge que pratica as vigílias se parece a um pescador: pois no silêncio da
noite ele observa sem distração e compreende o alcance e o valor dos
pensamentos.
6.
Este ama sinceramente a Deus e, quando escuta soar o ofício, cheio de alegria e
contentamento grita: “Muito bem! Muito bem!”, enquanto que o monge preguiçoso
diz suspirando: “Bem, lá vamos nós outra vez...”.
7.
Não é difícil reconhecer o guloso à mesa carregada de finos pratos; e é fácil
reconhecer aqueles que amam a Deus, por seu zelo e seu amor pela prece. As
pessoas escravas da intemperança tremem de alegria à vista de uma mesa coberta
de pratos bem preparados; e ao contrário, ficam tristes e aborrecidas quando
chega o momento de se dedicar à oração, aquelas que não amam este santo exercício.
8.
O excesso de sono faz esquecer as verdades salutares e inspira o desgosto pelas
coisas espirituais; as vigílias purificam nosso espírito e nosso coração.
9.
Os trabalhadores ajuntam suas colheitas nos celeiros, os vinhateiros nos
lagares; os religiosos ajuntam suas riquezas espirituais nos exercícios da
oração, que acontecem principalmente ao entardecer e à noite.
10.
Um sono muito considerável é um mau companheiro que adotamos: ele faz com que o
preguiçoso perca metade, senão mais, do tempo que tem para viver.
11.
O mau monge está acordadíssimo quando se trata de se entregar a conversas e de
entreter-se juntos aos seus irmãos, mas quando se aproxima a hora da oração o
sono logo se apossa dele.
12.
O religioso relapso está sempre pronto e ativo para as palavras vãs, mas fica lento
e relapso ao ler os livros sagrados.
13.
Assim como os mortos se levantarão prontamente da poeira de suas tumbas ao som
das trombetas, também os religiosos dorminhocos se levantam celeremente de seus
túmulos de preguiça quando se anuncia a hora das recreações.
14.
O sono, sob as aparências enganadoras da amizade, exerce sobre nós uma tirania
bem funesta – às vezes ele se retira quando estamos saciados, outras vezes, quando
jejuamos e somos pressionados pelas dores da fome e os ardores da sede, ele nos
persegue exageradamente.
15.
Ele nos leva a nos ocuparmos de algum trabalho manual, a fim de que, por este
meio, se outros não funcionarem, ele possa nos perturbar e nos fazer abandonar
a prece. Para desencorajar os que entram para a vida religiosa, e impedi-los de
nela progredirem com felicidade, ele não cessa de persegui-los e de atormentá-los.
16.
É também assim que ele age, em relação àqueles para os quais deseja abrir a
porta do coração à paixão da luxúria.
17.
Assim, até que estejamos inteiramente livres das fadigas e da importunação do
sono, não devemos ser encarregados de cantar o ofício com nossos irmãos; pois
sua companhia e o temor de nos cobrirmos de vergonha e confusão nos impedirão
de dormir: com efeito, assim como o cão é inimigo da lebre, o demônio da
vanglória o é daquele do sono.
18.
Assim como o comerciante conta os ganhos do dia ao entardecer, também o
religioso deve, depois da salmodia, verificar os benefícios espirituais que
retirou daí.
19.
Vigiem a si mesmos atentamente depois da oração, e verão com espanto que
numerosos demônios, irritados por não terem podido nos vencer enquanto
orávamos, começam a seguir a fazer todos os esforços para nos fazer cair em
maus pensamentos. Sentem-se, mantenham-se atentos, e verão aqueles que costumam
vir para arrasar a colheita da alma.
20.
Acontece às vezes que, pelo costume que temos de recitar os salmos, nos ocorre
alguma lembrança, e que os divinos oráculos se tornem a própria matéria e o
objeto de nossos pensamentos durante o sono; mas também acontece de os
demônios, nossos inimigos, provocarem estas coisas em nós, a fim de nos
inspirar sentimentos de orgulho. Existe ainda uma coisa sobre a qual pretendia
silenciar, mas que uma pessoa me ordenou publicar: é que se uma alma que todos
os dias se alimenta da palavra de Deus por meio de uma meditação contínua e
profunda, começa costumeiramente, durante o sono, a recordar os santos
pensamentos tidos durante o dia, esta será uma recompensa preciosa concedida
por Deus; pois é desta forma que nos libertamos das ilusões do demônio. Aquele
que chegou até este décimo nono degrau recebeu em seu coração o tesouro de uma
luz celeste.
VIGÉSIMO
DEGRAU
Da
covardia pueril
1.
Aqueles que, nos mosteiros ou comunidades, se dedicam a adquirir a perfeição,
não costumam estar muito expostos a este temor; mas vocês que abraçaram a vida
eremítica e que habitam nos confins dos desertos, devem combater esta paixão
com todas as forças e jamais se deixar dominar por ela, pois ela é filha da
vanglória e da infidelidade.
2.
A covardia é uma paixão pueril que muitas vezes consiste na parte que cabe à
velhice ou a uma alma escrava da vaidade. Trata-se de uma falta de fé e de
confiança em Deus; ela se produz em nós pelas desgraças que imaginamos prever
que irão nos surpreender inopinadamente.
3.
Este medo consiste na previsão de perigos imaginários; é uma aflição penosa de
um coração perturbado e agitado pela ideia de acidentes incertos. Numa palavra,
diremos que esta apreensão é a ausência completa de confiança.
4.
É assim que vemos que uma alma orgulhosa e que só conta com suas próprias
forças teme e treme à vista de sua própria sombra.
5.
Penitentes que, num tempo, choraram sinceramente suas faltas, mas que em outro
tempo, por motivos de orgulho e de impenitência, deixaram de chorar suas
iniquidades, são completamente isentos de temor em certas ocasiões, enquanto
que em outras circunstâncias são atingidos e ficam tão apavorados que caem numa
desorientação e numa alienação extraordinárias. A razão dessas espantosas
vicissitudes é que o Senhor, soberanamente santo e justo, abandona a si próprios
estes miseráveis soberbos, a fim de que sua própria infelicidade os torne
sábios e os leve a renunciar a todo sentimento de orgulho.
6.
Se todos os escravos do amor próprio estão sob o jugo da covardia, nem todos os
que estão isentos dela são por isso pessoas doces e humildes de coração. Com
efeito, ladrões e violadores de tumbas, que certamente não são pessoas
devotadas à doçura e à humildade, estão bem longe de ser tímidos.
7.
Existem para você lugares que lhe inspiram medo? Não hesitem em escolher o meio
da noite para ir visitá-los; pois se vocês recuarem o mínimo que seja diante
dos objetos que lhes causam sentimentos de medo de uma maneira tanto vã como
ridícula, este medo se fortalecerá em vocês, e vocês o carregarão por toda a
vida. Assim, se puserem em prática a recomendação que lhes faço, armem-se
corajosamente com a oração e, nestes lugares assustadores voltem para os céus
suas mãos suplicantes, invoquem o doce nome de Jesus com uma fé viva e ardente,
e farão seus inimigos em pedaços. Eis as armas mais poderosas que vocês podem
encontrar sobre a terra e nos céus, para guerrear contra a covardia. Tiveram
vocês a felicidade de curar sua alma desta doença e obter uma alegre vitória
sobre si mesmos? Não deixem de dar testemunho de seu reconhecimento, por meio
de humildes cânticos e louvores, àquele que, com sua graça, os fez vencer e
triunfar. Esta conduta atrairá sobre vocês novos favores, e vocês serão
merecedores de uma proteção constante.
8.
Assim como um instante não basta para contentar e saciar o estômago, também não
será de um só golpe que vocês se libertarão de todo sentimento de medo e
terror. Mas podemos observar que, quanto mais avançamos no caminho da
penitência, mais a covardia nos abandona e nos deixa, e quanto mais nos
tornamos impenitentes, mais ela aumenta em nós e nos atormenta.
9.
“Meus cabelos, disse Elifaz, se eriçaram sobre minha cabeça e meus membros
tremeram de horror[20]”,
ao ver as armadilhas do demônio. Ora, às vezes é o corpo, às vezes é a alma que
cria esses sentimento de pavor, e às vezes os dois se juntam. Quando é apenas o
corpo que experimenta estes sentimentos, podemos acreditar que temos uma cura
certa, e veremos que estamos próximos de nos vermos livres desta funesta
paixão.
10.
Nem a solidão dos lugares e as trevas da noite fornecem armas aos nossos
inimigos, tanto quanto a esterilidade da alma. Por outro lado, Deus dispõe as
coisas assim para nos instruir.
11.
O servidor de Deus não teme senão a Deus; mas aquele que jamais sentiu o temor
ao Senhor tem medo de si próprio e de sua própria sombra.
12.
O corpo se arrepia e treme na presença de um espírito; mas os que vivem na
prática da humildade são inundados de alegria e contentamento na presença de um
anjo. É por isso que quando nos sentimos na presença dos anjos por causa desses
sentimentos interiores de alegria, devemos logo recorrer à prece; pois estamos
autorizados a pensar e crer que estes espíritos celeste que nos são enviados
para cuidar de nós, vieram unir suas preces às nossas. Aquele que venceu a
pusilanimidade, evidentemente consagrou sua vida e sua alma a Deus.
[1] Salmo 38: 2.
[2] Eclesiastes 20: 18.
[3]
Salmo 5: 7.
[4]
Mateus 25: 36.
[5]
Mateus 7: 13-13.
[6]
Salmo 34: 13.
[7] As
numerações entre colchetes não constam do original que passa do item 3 diretamente ao item 6.
[8]
Este parágrafo termina abruptamente no original.
[9] Efésios
5: 12.
[10]
Romanos 7: 24.
[11]
Romanos 11: 34.
[12]
O texto original encontra-se interrompido neste ponto. No entanto, a frase
admite uma continuidade no parágrafo seguinte: “Ora, se nosso espírito, por
causa de maus pensamentos surgidos enquanto dormimos, é levado a prazeres
desonestos, não durmam nem se levantem sem a lembrança da morte, e sem que a
oração os mantenha sempre unidos a Jesus”.
[13]
Cf. Mateus 1: 30.
[14]
Cf. Salmo 36: 35-36.
[15]
I Coríntios 4: 7.
[16]
Salmo 6: 3)
[17]
II Timóteo 3: 10.
[18]
Atos 20: 34.
[19]
Cf. Mateus 6: 26.
[20]
Jó 4: 15.
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