DUMITRU
STANILOAE
ORAÇÃO
E SANTIDADE
I
TERNURA
E SANTIDADE
Na pessoa do
santo, devido à sua disponibilidade, à sua extrema atenção para com os demais,
e pela prontidão com que se entrega a Cristo, a humanidade é curada e renovada.
E de que modo esta humanidade renovada se mostra na prática? O santo nos mostra
uma conduta cheia de tato, transparência, pureza de pensamentos e de
sentimentos, em relação a todos os seres humanos. Sua consideração se estende
ainda aos animais e às coisas, por que em todas as criaturas ele enxerga um
presente do amor de Deus, e não deseja ferir este amor tratando estes presentes
com negligência ou indiferença. Ele sente respeito por cada homem e por cada
coisa. Ele demonstra uma profunda compaixão diante do sofrimento de qualquer
homem ou animal.
Santo Isaac o
Sírio disse a respeito da compaixão do santo: “O que se pode dizer de uma alma,
ou de um coração, transbordante de compaixão? Trata-se de um coração que queima
de amor por toda criatura: homens, pássaros, animais, serpentes ou demônios.
Pensar neles ou vê-los faz com que as lágrimas do santo jorrem de seus olhos. E
esta enorme e intensa compaixão, que emana do coração dos santos, torna
impossível a eles suportar a visão do menor ferimento em qualquer criatura.
Assim é que eles oram entre lágrimas e incessantemente, mesmo para os animais,
para os inimigos da verdade e para aqueles que os condenam”.
É o caso de São
Callinicus de Cernica (o último dos santos canonizados na Romênia, onde faleceu
em 1867), que, estando numa cidade e sem dinheiro para distribuir aos pobres,
dirigia-se em lágrimas aos seus companheiros rogando-lhes lhe dessem algumas
moedas “para entregá-las àqueles pobres irmãozinhos de Jesus”.
Esta compaixão
revela um coração terno, extremamente sensível e isento de toda dureza,
indiferença ou brutalidade. Ela nos mostra que a dureza é o resultado do pecado
e das paixões. Na conduta do santo, e mesmo nos seus pensamentos, não existe
traço de vulgaridade, malícia ou baixeza; nenhum sinal de afetação, nenhuma
pretensão à solenidade. Doçura, sensibilidade e transparência atingem nele sua
plena expressão, combinadas com a pureza, a generosa atenção para com os homens
e o desprendimento com que ele compartilha de todo coração seu problemas e
preocupações. Em todas essas qualidades transparece no mais alto grau a plena
capacidade da natureza humana.
Existe ainda uma
distinção e nobreza cheia de sentimento nesta forma mais elevada de ternura,
que é completamente diferente da distinção e nobreza meramente distantes e
formais. Esta ternura não evita o contato com o mais humilde dos homens, e
permanece imperturbável em situações nas quais outros temeriam rebaixar-se. O
modelo desta ternura é a kenosis, a
condescendência, de Cristo. Ele jamais quis permanecer distante ou indiferente
em relação aos pecadores, nem tampouco para com o tipo de mulher que os homens
evitavam devido à sua reputação. A kenosis,
o auto esvaziamento de Cristo, consiste, em si mesma, na forma suprema da
ternura. Nela fica patente o desejo de não ser um peso para o humilde, de não
embaraçá-lo. Por meio da kenosis ele
queria acima de tudo abrir um caminho para alcançar seu coração. Por meio da
doçura ele tentava fazê-los abdicar de seu comportamento bárbaro, fechados
naquela rigidez típica por meio da qual o “inferior” se defende do desprezo com
que é tratado pelo “superior”.
Na doçura de seu
comportamento os santos são inspirados pela kenosis
de Cristo. Ao mesmo tempo eles constituem o indício de um nível mais elevado de
relações humanas nas quais a mansidão é o elemento mais eminente. Para a
humanidade, ainda insatisfeita pela igualdade exterior que os homens conseguem
demonstrar entre si, isto implica tender para um nível mais alto de relações
mútuas que trará em si a marca da ternura.
Graças à
consciência cuja sensibilidade foi alimentada e refinada pela sensibilidade do
Deus feito homem para os homens, uma sensibilidade que eles partilham, os
santos podem enxergar nos mais secretos lugares das almas das pessoas, e
previnem qualquer coisa que possa vir a ser uma pedra de tropeço para elas, sem
no entanto negligenciar ajudá-las a triunfar sobre suas fraquezas e a superar
suas dificuldades. Por esta razão o santo é procurado como confidente para os
segredos mais íntimos. Ele é capaz de discernir no outro uma dificuldade mal
articulada, pois todas as suas habilidades estão voltadas para desejar o que é
bom. Ele se apressa a satisfazer este desejo e se entrega por inteiro ao
fazê-lo. Mas ele também distingue as impurezas nas pessoas, mesmo as mais
escondidas. Então sua compaixão começa a purificar o outro por meio da suave
força de sua própria pureza, e pelo sofrimento que nele é causado pelas
intenções malignas dos outros ou por seus desejos perversos. E este sofrimento
permanece para sempre com ele.
Em cada uma destas
situações ele sabe quando é oportuno falar, e o que deve ser dito; e ele também
sabe manter silêncio e o que convém fazer. Podemos considerar este
discernimento sutil da parte dos santos como uma espécie de “diplomacia
pastoral”, mais uma expressão de sua distinção e nobreza de caráter.
O santo sempre
irradia um espírito de generosidade, de tolerância, de atenção e
disponibilidade para compartilhar, sem nenhum pensamento sobre si próprio. Seu
calor aquece os demais e os faz sentir que recuperam suas forças, e os faze
sentir a alegria de não estarem sós. O santo é como um cordeiro inocente,
sempre pronto a ser sacrificado e a tomar sobre si o sofrimento dos demais, mas
também é como uma muralha inamovível cujo apoio todos podem procurar. Ao
partilhar deste modo a carga dos outros o santo às vezes mostra-se discreto,
outras vezes expressa-se sem reserva, mas sempre com total ausência de
interesse pessoal em seus relacionamentos.
Ademais, ninguém é
mais humilde do que o santo, mais livre em relação a tudo o que é artificial,
mais distante em relação a qualquer espécie de vanglória, mais “natural” em seu
comportamento, por que ele aceita e entende tudo o que é verdadeiramente humano,
todos estes aspectos prosaicos e mesmo ridículos de nossa humanidade, que só é
grande quando não se jacta de sua própria grandeza. Assim o santo cria
imediatamente uma atmosfera de amizade, de familiaridade e de intimidade entre
si e os demais. Deste modo ele humaniza suas relações e deixa nelas a marca de
algo genuíno, por ter ele próprio se tornado profundamente humano e genuíno.
Ele fala com doçura e evita apontar as fraquezas do outro com demasiada
franqueza; mas ao mesmo tempo ele cria as condições para um relacionamento
direto, cândido e aberto entre ele e os demais. Ele os convida a confessar suas
fraquezas e pecados com sinceridade, e os fortalece em sua luta para
superá-los.
São Máximo o
Confessor diz que os santos alcançam a pura simplicidade por que superaram em
si toda dualidade e toda afetação. Eles ultrapassaram a luta entre alma e
corpo, entre as boas intenções e o trabalho realizado, entre as más aparências e
os pensamentos ocultos, entre o que se pretende ser e o que se é na realidade.
Eles se tornaram simples por que se entregaram por completo a Deus. Por isso
eles são capazes de se dar inteiramente aos homens em suas relações com eles.
Se eventualmente eles decidem não apontar as fraquezas abertamente, eles o
fazem para não desencorajar as pessoas, e também por que neles a discrição, a
delicadeza, a gratidão, a simplicidade e a sinceridade estão em constante
crescimento.
O santo sempre
traz encorajamento. Às vezes ele o faz reduzindo as proporções exageradas com
que os homens enxergam suas próprias fraquezas, pecados e paixões. Ele os
liberta de sentimentos de desespero e impotência. Outras vezes ele desmonta o
orgulho das pessoas com humor leve. Ele sorri, mas não ri alto e
sarcasticamente. Em outras ocasiões, confrontado com atos imorais ou paixões
vergonhosas, ele revela a gravidade de tais coisas, mas sem inspirar medo. Ele
atribui um valor infinito ao mais humilde dos homens, por que o próprio Filho
de Deus, ao se encarnar, atribuiu igual valor a todos os homens. Ele vê a
Cristo em todos os homens, como expressaram alguns dos santos Padres em seus
escritos. E por outro lado eles humilham o orgulho das pessoas apresentando a
si mesmos como exemplo de humildade. Desta forma eles estão todo o tempo
restabelecendo a equanimidade natural entre os homens.
Devido à sua
humildade o santo quase não é notado, mas ele sempre se apresenta quando alguém
precisa de apoio, consolação ou encorajamento. Ele permanece ao lado daqueles a
quem todos abandonaram. Com ele, nenhuma dificuldade é insuperável, nenhum
obstáculo invencível, quando se trata de arrancar alguém de uma situação de
desespero. Nestas horas ele mostra uma força e uma habilidade espantosas, junto
com uma calma e confiança imperturbáveis, por que ele acredita firmemente no
auxílio de Deus, que ele busca com orações persistentes.
Ele é o mais
humilde e humano dos homens, mas ao mesmo tempo uma figura surpreendente e não
convencional. Ele causa nos demais a sensação de terem descoberto nele, e,
através dele, em si próprios, a natureza da verdadeira humanidade.
Esta humanidade
foi de tal modo enterrada pelo artificialismo, pelo desejo de parecer, mais do
que ser, que quando ela revela sua verdadeira face ela causa espanto, como se
fosse algo antinatural. O santo é o mais cortês dos homens, e ao mesmo tempo,
quase sem intenção, ele causa reconhecimento. É ele quem atrai mais atenção e
inspira maior respeito. Ele se torna o amigo íntimo de cada um, a pessoa que
melhor lhe entende e mais o deixa à vontade, e que ao mesmo tempo o provoca tornando-o
consciente de quantas vezes você caiu e também dos pecados que você evita
encarar. Ele o oprime pela simples grandeza de sua pureza e pelo calor de sua
bondade e consideração; ele o faz se envergonhar por possuir padrões tão
baixos, por haver desfigurado em si a natureza humana, por ser impuro,
artificial, cheio de duplicidade e mesquinharia. Tudo isto é iluminado pela
comparação que você, involuntariamente, faz entre si e ele.
O santo não
exercita nenhum poder terreno; ele não estabelece suas regras com severidade,
assim sendo, nenhum pensamento crítico nasce nele a seu respeito, e você não
sente ressentimento em relação a ele. Ele torna a pessoa de Cristo real para
você, na sua doçura e fortaleza. Assim, você não tenta esconder-se dele ou
evitar seu olhar; mas também pode acontecer que você procure evitá-lo, mais até
do que a alguém que lhe impusesse ordens estritas. Por que você sente nele uma
irredutível firmeza, a total identificação de seu ser com a bondade, embora –
ainda uma vez – esta firmeza, em si e em suas convicções, sua vida, suas
opiniões e os conselhos que ele dá, é uma firmeza isenta de tensão e rigidez.
É por isso que,
pelo seu caráter totalmente paradoxal, as opiniões e os conselhos que ele lhe
dá tão gentilmente adquirem uma autoridade maior do que qualquer preceito
terreno; e você fará todos os esforços e suportará todos os sacrifícios para
segui-los. Por que a ternura do santo é ao mesmo tempo firmeza e bondade. As
duas coisas provêm da irradiação divina, e tornam evidente o caráter da bondade
divina que, com absoluta autoridade, se mostra na gentileza. Do mesmo modo, o
conselho do santo chega a você como uma libertação. Ele o liberta da
desfiguração e da impotência de seu estado, e da sua suprema falta de
confiança. Você experimenta aquilo que o santo lhe disse como uma força, e como
uma luz certa no caminho da salvação pelo qual você deve marchar se quiser se
salvar da passividade diante da perda de sua própria alma. O que você sente que
o santo lhe fornece não se resume apenas a força e luz, mas consiste ainda na
bondade que emana de uma fonte suprema de bondade. Você encolhe sob o olhar do
santo que penetra nas profundidades da sua alma, temendo que ele encontre aí
alguma verdade que o desacredite, ao mesmo tempo em que você espera esta
descoberta como se ele fosse um médico inquestionavelmente competente e um
amigo fiel. Ele fornecerá a você, e você sabe disto, o diagnóstico e o remédio
eficaz para cada moléstia que você pressente vagamente serem mortais.
Na mansidão,
gentileza e humildade do santo você percebe um poder que nenhum poder terrestre
é capaz de derrubar, para fazê-lo cair de sua pureza de coração, de seu amor a
Deus e pelos homens, de sua determinação em se entregar totalmente a Deus e a
serviço do homem, a ajudar a todos a que alcancem a salvação.
Quem quer que se
aproxime de um santo nele descobre a suprema bondade e a pureza sob um manto de
humildade que o torna ainda mais atrativo. É necessário um certo esforço para
descobrir as heroica qualidades de sua renúncia, seu ascetismo e seu amor pelo
homem; mas sua grandeza se faz sentir na mansidão, na simplicidade, humildade e
pureza que dele emanam. Nele coincidem a bondade mais exaltada e a
solidariedade. Ele exemplifica a grandeza por meio da kenosis, ou humildade. A pessoa do santo irradia uma calma e uma
paz que nada pode perturbar. Mas esta calma e esta paz foram obtidas com
grandes lutas. Ao mesmo tempo o santo partilha as angústias dos demais com
lágrimas. Ele está dirigido pela estabilidade do amor e do sofrimento do Deus
encarnado, pois este amor irradia fortemente do Deus que se fez homem para
sofrer junto com os homens. O santo habita na eternidade do poder e da bondade
do Deus que, em Cristo, como nos diz São Máximo o Confessor, se fez ao alcance
do homem; por que, assim como Melquisedeque, seu inteiro ser transparece o
testemunho da presença de Deus. Mas sua estabilidade no eterno amor a Deus e
pelo homem não evita que ele partilhe as tristezas dos homens ou sua aspiração
pela bondade, assim como Cristo nunca cessa de ser um sacrifício perpétuo para
eles, assim como os anjos nunca cessam de oferecer seu ministério. Pois a
estabilidade no sofrimento e o amor que vem em socorro, nestas coisas está a
eternidade, uma eternidade viva. Este é o “repouso”, a estabilidade, o sabath no qual penetraram os santos[1],
aqueles que abandonaram o Egito das paixões. Não se trata aqui de um sabath de um Nirvana insensível; por
que, ao repousar na eternidade do amor imperturbável, o amor de Deus pelo
homem, o santo conquista o poder de conduzir os outros para a eternidade e
auxiliá-los a superar suas dificuldades com coragem, e nunca ceder ao
desespero. Assim ele se torna o condutor e mantenedor da espécie humana no
caminho que conduz ao perfeito cumprimento do último Dia.
O santo triunfou
sobre o tempo, enquanto viveu intensamente este mesmo tempo. Assim ele alcançou
o máximo de semelhança com Cristo, que está nas moradas celestes e
simultaneamente sempre conosco, conduzindo as coisas realizadas ao passado. Ele
traz Cristo dentro de si com o invencível poder de seu amor, para a salvação
dos homens.
O santo nos mostra
um ser humano purificado de toda a sujeira das coisas sub-humanas. Nele podemos
ver a humanidade desfigurada e brutalizada reconduzida à sua forma correta; uma
humanidade cuja transparência restaurada revela a bondade ilimitada, o poder
sem fronteiras e a compaixão de seu protótipo – o Deus encarnado. É a imagem do
Ser absoluto, vivo e pessoal que se tornou homem, que se restabelece na pessoa
do santo. Ao se fazer verdadeiramente humano, ele alcança a estonteante altura
da percepção de Deus, ao mesmo tempo em que permanece em casa junto aos homens.
O santo é aquele que mantém um diálogo incessante e aberto com Deus e os
homens. Sua transparência revela a aurora da luz eterna e divina na qual a
natureza humana encontra sua realização. Ele é o reflexo completo da humanidade
de Cristo.
II
A
PRECE PERFEITA
A PRECE
DO CORAÇÃO E OS OBSTÁCULOS NO CAMINHO
Parte daquilo que
vou dizer é o que aprendi de um monge da Romênia. Ele próprio praticava a prece
do coração, amplamente fundamentada na tradição dos Padres do Oriente. Parte
será também uma reflexão minha a partir destes ensinamentos.
A prece pura é
definida como a reunião da mente (nous)
com o coração. Nem a mente, nem o coração, podem ser deixados isolados. A
oração que provém apenas da mente é fria; a que nasce apenas do coração é
sentimental e ignora tudo o que Deus nos deu, nos dá hoje e nos dará em Cristo.
Trata-se de uma oração sem horizonte nem perspectiva, na qual não sabemos o que
agradecer a Deus, o que pedir, o que perguntar. O homem que ora deste modo tem
a sensação de estar perdido num infinito impessoal. Este sentimento desconhece
por completo o encontro com o Deus pessoal. E isto não é oração.
Devemos deixar bem
claro que este encontro entre a mente e o coração não acontece pela subida do
coração à mente, mas pela descida da mente até o coração. Em outras palavras,
não é na mente que o coração encontrará repouso; mas será no coração (ou melhor,
nas profundidades onde o coração encontra as profundidades de Deus) que a mente
encontrará o descanso que procura.
Certamente os
Padres falam também em abrir a mente para a infinitude de Deus, mas parece ser
no coração que esta abertura tem lugar. Em sua busca por Deus a própria mente
penetra na realidade da profundeza do coração e a reconhece como uma
profundidade à parte de Deus, o verdadeiro Infinito. O abismo mostra um outro
abismo. A infinitude de Deus não pode ser experimentada independente de seu amor
por nós. Este amor de Deus por nós chama pelo nosso amor, e é por meio do
coração, o órgão do amor dentro de nós, que experimentamos seu amor. Mas
estamos falando aqui de um coração que conhece, graças à mente que nele
penetrou, que este infinito é o infinito de um Deus que é pessoal, e que Deus
entra numa relação íntima conosco por meio de Cristo. É por isso que é a mente
que entra em repouso no coração. No coração ela encontra o infinito de Deus.
Não é coração que repousa na mente, por que isto implicaria que a sensação do
infinito de Deus se tornasse mera teoria, alimentada pelo pensamento. Não é o
sentimento que deve ser alimentado pelo pensamento, mas o pensamento que deve
ser aquecido pelo sentimento do coração em contato real com a infinitude de Deus,
dando então a este sentimento um conteúdo definitivo.
Estritamente
falando, a partir do momento em que a mente desce ao coração, já não
encontramos a Deus por meio de ideias, mas através do conhecimento de sua
presença que nos permite submeter nossos pensamentos ao teste da realidade.
Aqui o sentimento de uma realidade inesperada que a mente experimenta se
resolve pela presença imediata de Deus. A ideia de Deus, ou nossas ideias a
respeito de Deus, são preenchidas e penetradas, trespassadas pela consciência
da realidade viva de Deus. A realidade toma o lugar da ideia e ao mesmo tempo a
verifica: e a ideia já não se coloca entre nós e Deus. Assim, o coração está
para a mente como um órgão sensório em relação a Deus, assim como os sentidos
corporais são o aparato que nos permite perceber e sentir as realidades com as
quais o corpo está em relação.
Claro que existem
obstáculos que podem obstruir a mente quando ela tenta penetrar no coração,
penetrar para além das ideias na experiência da realidade de Deus, ao mesmo
tempo em que verifica o conteúdo de suas ideias. Estes obstáculos provêm
parcialmente de sensações físicas e de imaginações que as refletem e as
estimulam. Em parte elas nascem da dificuldade que a mente tem em ir além das
ideias que lhe parecem naturais, mas estes obstáculos devem tender mais a
suprir o intelecto com evidências provisórias da insensível realidade de Deus,
do que a aprisioná-lo.
Os sentimentos e
imaginações que tendem a impedir a mente de penetrar no coração e se dedicar à
oração pura, ou prece do coração, são tanto os que resultam dos pecados, ou que
atraem para o pecado, como aqueles que nos fazem pensar que estamos sendo
conduzidos a boas ações e a um encontro real com o próprio Deus, mas que na
verdade não conduzem a Deus. É por isso que os Padres alertavam os monges
contra imagens que pareciam ser boas. Eles os exortavam a não ligar para nenhum
tipo de imaginação ou impressão. Inclusive os Padres consideravam o pensamento,
mesmo teológico, como um obstáculo não menos perigoso para a entrada da mente
no coração. É preciso cuidado para não permanecer num pensamento teológico, ou
para não escorregar para aí, quando nos preparamos para orar ou quando estamos
em oração. Pensar em Deus interrompe o encontro direto com ele. Por meio dos
pensamentos teológicos o homem permanece fechado em si próprio.
Os Padres falavam
da oração como consistindo num pensamento único, simples. Falando estritamente,
isto não chega nem a ser um pensamento, mas antes uma consciência de estar
totalmente absorvido na realidade de Deus. Podemos, é claro, chamar a esta
consciência de “pensamento”, por que não se trata simplesmente de um estado de
sentimento confuso ou da sensação de estar perdido no oceano de uma realidade
desarticulada, mas da consciência do encontro com a infinitude pessoal do Deus
que nos ama. Trata-se da confirmação mental da realidade. Eu não me perco nesta
infinitude, por que se trata da infinitude do Deus pessoal e de seu amor, ao
qual eu respondo com meu amor. Pois o coração é verdadeiramente o lugar onde
experimentamos o amor pelo próximo, e onde respondemos a ele. Eu não amo a mim
mesmo, pois quem faz as minhas delícias é o amor do infinito Deus pessoal; eu
dependo deste amor e de sua misericórdia, pois diante dele eu ainda me sinto
infinitamente pequeno e pecador.
Este encontro no
amor, e ao mesmo tempo esta sensação da infinita diferença entre Deus e eu,
esta necessidade de sentir a misericórdia de Deus, tudo isto está expresso na
Prece de Jesus. O coração é a fonte do sentimento, portanto do amor; e o amor
significa o encontro com o próximo. E por ser o amor impelido pelo movimento de
um desejo infinito, ele só pode ser satisfeito quando encontra a Deus, o
Infinito.
Mas o coração é
também a fonte da tristeza e o lugar onde ela é sentida. Diante da face de Deus
o coração conhece a tristeza por seus pecados e pelas ofensas causadas pelo
pecado. Em seu coração o homem chora e pede perdão. As lágrimas brotam do
coração, lágrimas de penitência, mas também lágrimas de alegria. Ali o homem abandona
os hábitos empedernidos da mente. Se, por outro lado, o coração descer a um
nível mais baixo, ele se torna o lugar das paixões, ou seja, de uma infinita
ligação para com o mundo e para consigo mesmo – para pessoas e coisas que são
finitas. Então, assim como o coração é capaz de irradiar um amor infinito, ele
também pode irradiar ódio quando encontra um obstáculo às suas ligações
pecaminosas. Bons pensamentos e boas palavras nascem do coração, mas também
pensamentos de aversão, ódio e morte. Mesmo pensamentos e palavras demoníacos
recebem uma certa qualidade de infinitude do coração, ainda que se dirijam a
realizar coisas finitas. Mas esta ligação infinita com coisas finitas não pode
satisfazer a verdadeira sede de infinitude do coração. Apenas o encontro do
coração com Deus pode satisfazer esta sede. E daí por diante o coração deve ser
liberto das paixões, de sua ligação com as coisas finitas, por sua
predisposição para o infinito.
No encontro com
Deus o infinito é percebido como uma alegria ilimitada e uma luz sem limites.
Ao expressar isto em palavras o homem pode apenas apontar para a alegria que
está além de toda limitação. As palavras da Prece de Jesus expressam, ainda que
fracamente, esta sensação de alegria, de gratidão, de amor e de infinita humildade.
Mas pronunciar as palavras não é o que realmente importa. O que importa é a
alegria, a gratidão, o amor e a humildade, mesmo a infinita tristeza causada
pelo pecado. A partir daí as palavras deixam de ser objeto de reflexão para
aquele que as pronuncia. Elas já não se colocam entre o homem e Deus, mas nelas
o homem se dirige a Deus na presença de Deus. A presença de Deus supre qualquer
ausência que se manifeste aí.
As palavras são
agora tanto pronunciadas como transcendidas, a um só tempo. Assim elas não nos
iludem com a semelhança de uma realidade independente, mas se tornam a
expressão de um contato imediato com a realidade de Deus. Nossa atenção não se
volta diretamente para as palavras, mas para Deus, para quem elas se dirigem
como num diálogo. Mas também é possível permanecer dialogando, sem nenhuma
palavra.
Por essa razão o
monge a quem me referi dizia que num estágio avançado é possível inclusive
abandonar a Prece de Jesus. Somente seu conteúdo deve ser retido. Voltamo-nos
para Deus e nosso ser inteiro exprime a oração a Deus, o sentimento de
maravilhamento diante dele, de gratidão e de humildade. Este estado de
sentimento profundo se expressa de forma mais adequada pelo ser total do que
por palavras, por que aquilo que está sendo expresso vai além das palavras. É a
pura oração, a oração do ser total, na qual os sentimentos são levados além de
todas as coisas, todos os pensamentos, além de si mesmo, ao encontro de Deus.
Este êxodo dos sentimentos é vivenciado no coração num estado de intensa prece.
No coração todo o ser é impulsionado em direção ao amor de Deus, num sentimento
de amor ilimitado.
III
SANTIDADE
DEUS
IRRADIA ATRAVÉS DA CONSCIÊNCIA HUMANA
Na pessoa do santo
Deus se revela como transcendente, ao contrário do que no mundo. A santidade
consiste no mistério ativo e luminoso de Deus presente em toda sua
transcendência, um mistério que ilumina e transforma. A santidade não pode
assim ser o atributo de alguma realidade impessoal que pertença à ordem
natural: o que é impessoal carece das profundezas do mistério. A santidade
pertence à ordem do mistério: por isso ela só pode ser atributo do próprio Deus
em sua natureza como pessoa transcendente. Daí a natureza paradoxal da
santidade: ela é a um só tempo transcendência e auto revelação, ou comunicação.
Uma vez que a
santidade é um atributo da transcendente e misteriosa pessoa de Deus, somos
tomados de tremor e acometidos de vergonha em sua presença: por que se trata da
manifestação de uma consciência superior à nossa, que nos faz ver nossa
miséria. A santidade é a irradiação que brilha a partir de uma pessoa
transcendente cujo objetivo ao se revelar é de nos erguer até si. Sentimo-nos
impelidos a deixar nosso estado de pecado para sermos capazes de permanecer em
sua presença, ao mesmo tempo que esta irradiação ilumina nossa própria
consciência, tornando-a mais sensível ao pecado. É como se a santidade de Deus
invadisse a consciência humana com uma urgência suprema e transcendente,
incendiando em nós o desejo de purificação e a ânsia por aquilo que é maior do
que nós mesmos. Este novo nascimento da humildade e o desejo de purificação
constitui o verdadeiro autoconhecimento. Na presença da santidade nossa consciência
desenvolve uma sensibilidade extrema; isto pode acontecer simplesmente por ter
nossa consciência recebido a revelação de algo que lhe é superior. São Simeão o
Novo Teólogo diz: “Quando a alma recebe esta marca, quando, por intermédio da
graça do Espírito Santo seu pensamento se vê imerso nas profundezas da
humildade de Cristo nosso Deus, ela cessa daí por diante de esperar pelo mundo
ou por aqueles que são do mundo, e ela volta toda a sua atenção para si mesma;
e quando, por meio da perseverança, este tipo de meditação se torna habitual
para ela, a alma já não enxerga nada a não ser a si própria em sua
insignificância e baixeza manifestas, e se convence de que não há no mundo alma
mais inútil do que ela”.
Por intermédio da
graça da luz divina, a intuição da inutilidade pessoal e uma aguda
sensibilidade da consciência unem-se paradoxalmente diante da glória de Deus, a
glória de uma consciência suprema que desperta a consciência em nós. Somente
uma consciência superior é capaz de despertar outra consciência; somente a luz
de Deus pode erguer a consciência do homem a seu ponto mais elevado, ao mesmo
tempo em que dá a ele uma percepção clara de sua própria insignificância.
Aquilo que é impessoal não desperta vergonha, não fere a consciência. É o fogo luminoso
do Deus que é consciência que nos queima quando sua santidade lança contra nós
insistentemente que devemos ser santos como ele é santo. Penetrado pela
santidade de Deus enquanto suprema consciência, o homem se torna uma sarça
ardente; ou melhor, na presença de um homem santo ele sente estar diante de uma
sarça ardente. A vergonha, o temor, experimentados na presença da santidade
excede qualquer coisa que possa surgir em resposta a seres humanos; é de outra
ordem, por que a realidade divina da suprema consciência, tornada visível para
nós pela consciência do santo, nos mostra a nós mesmos exatamente tal como
somos, e revela a si própria como supremamente urgente, julgando nossa condição
de pecadores. E ainda, ao mesmo tempo, a santidade nos atrai. Na Hierarquia Eclesiástica, Dionísio o
Areopagita identifica a santidade de Deus com sua perfeita pureza, e sua ação
santificadora com sua ação purificadora.
A perfeita pureza
de Deus provoca assim não apenas temor mas também alegria, por que ao expor
nosso foro mais íntimo e mostrar nosso pecado, ela também apresenta o que
existe de bom em nós; ela despertou em nós o desejo de nos lavarmos do pecado
de modo a agradar a consciência de Deus. Ficamos felizes por que o Deus
Santíssimo permitiu que nos tornemos puros, que deixemos para trás nossa
imoralidade; podemos trocar nosso entorpecimento por uma existência vital,
atraídos pela fonte exata de toda a existência, a pessoa de Deus em sua
flamejante caridade. Ficamos felizes por que o Deus Santíssimo não apenas não
nos rejeitou, como ainda levantou em nós o desejo de nos purificarmos. Ficamos
felizes por que fomos aliviados do peso que andamos carregando desatentos e por
que o obstáculo a uma vida plena foi retirado. Ficamos felizes por que já não
agimos hipocritamente, conduzindo-nos até o ponto no qual já não podíamos nos
reconhecer, nem tínhamos mais coragem de sermos nós mesmos, por medo de que a
baixeza de nossos corações nos desnudasse.
Então descobrimos
nosso ser mais íntimo se tornando livre para viver uma vida nova em real
comunicação com os outros. Quem se sente perdoado por Deus e liberto de um
estado de pecado adquire uma certa ousadia perante Deus e perante os demais;
ele se torna aberto e direto e desfruta de uma grande liberdade em seus
relacionamentos. Nada há de presunçoso nisto, mas apenas a candura inocente de
uma criança, despreocupada de qualquer indício de pecado. Trata-se de uma
candura imbuída de uma profunda confiança em Deus e nos demais; a pessoa se
coloca fora de si própria e se liga a Deus e aos outros; ela age de tal maneira
que Deus e os homens lhe abrem suas portas. O santo está longe da incerteza que
encerra o homem em si mesmo. A inocente ousadia da pureza e confiança é o meio
de sua união com os demais. Assim o santo obtém seu repouso em Deus e nos
outros homens, do mesmo modo como Deus e os homens, por sua vez, encontram seu
repouso nele[2].
“Por que sois Santo, Senhor, e encontrais vosso repouso nos santos”, canta a
Igreja do Oriente. Que Deus realmente descansa em seus santos é um fato que ela
guarda ciosamente. Isto implica ainda que Deus tem prazer nos santos, assim
como os santos se sentem em casa quando repousam em Deus. A consciência humana
pode sentir-se à vontade apenas em outra consciência, embalada pela consciência
amorosa de outra pessoa. Esta é a suprema coabitação, a co-inerência da
consciência de duas pessoas.
De modo a se
tornar um lugar de repouso para Deus, ou para encontrar seu próprio lugar de
repouso em Deus, o espírito do homem deve ser capaz de assimilar uma consciência
de infinita profundidade e brilho. Deus deve encontrar aí terreno para estender
sua luz infinitamente, uma capacidade ilimitada para aprofundar-se cada vez
mais. O homem deve ser capaz de renovar e aprofundar continuamente sua
experiência consciente de Deus; e Deus, por sua vez, satisfaz-se nesta
renovação perpétua de alegria no homem em quem ele repousa. O homem deve sempre
e sempre responder à experiência de Deus; somente assim o próprio Deus se
alegra em repousar continuamente no homem. O homem em quem Deus repousa e que
repousa em Deus deve refletir a infinitude da consciência luminosa de Deus; a
infinitude de Deus deve se tornar própria do homem, pela graça. É isto que
significa a divinização do homem em Deus e a humanização de Deus no homem. Trata-se
da união de Deus com o homem no Espírito Santo, o Espírito de luz: o Espírito
de Deus iluminado se torna o Espírito que ilumina o homem por meio da graça. A
consciência divina e a consciência humana se tornam transparentes uma em
relação à outra, co-inerentes. Ao afirmar que esta penetração mútua sem
confusão acontece entre Deus e o homem, o Cristianismo revelou o insondável e
indefinível mistério da pessoa humana e sua consciência.
Já se disse que o
Cristianismo eliminou o sagrado do mundo e da vida humana. A verdade é
exatamente o oposto. O Cristianismo revelou a aptidão de todos os homens para a
santidade, e a aptidão do mundo todo para refletir esta santidade. Ele fez isto
revelando a capacidade do homem de trazer em si conscientemente a infinitude de
Deus e de progredir ilimitadamente em direção a Deus, a infinitude da
consciência; sendo o Filho de Deus ele próprio infinita luz e consciência,
assumiu a natureza humana sobre si. A partir de então a natureza humana se
tornou o veículo para a manifestação da luz infinita, da consciência
infinitamente profunda e da divina hipóstase; ela se tornou apta a regozijar-se
nela e a refleti-la. A hipóstase divina em sua infinita consciência penetrou na
vida da natureza do homem de uma vez para sempre, sem por isso sofrer em si
limitação alguma; nossa vida humana natural movimenta-se eternamente no oceano
sem fronteiras da consciência da divina hipóstase, sem que se tenha dissolvido.
Existe uma predisposição para a infinita consciência divina em todo ser humano,
e nos padrões humanos de pensamento, sentimento, alegria, amor, comunhão, que
não obstante continuam sendo padrões humanos.
Os Padres viam a
santidade como uma crescente semelhança com Deus, produzida pela purificação
das paixões e pelo crescimento das virtudes, até culminar num amor ilimitado.
Isto implica um aprofundamento da consciência humana, iluminada pela luz da
consciência de Deus. De acordo com os Padres as virtudes são os atributos de
Deus em sua expressão humana, ou seja, elas são o reflexo cada vez mais
profundo desta luz, sua consciência, na consciência do homem. Por meio das
virtudes Deus primeiramente se torna homem no homem, e então ele faz com que o
homem se torne Deus. Isto significa que por meio das virtudes a consciência
humana nunca para de se expandir. As virtudes são as asas com as quais o homem
voa cada vez mais alto para a luz de Deus, enquanto sua consciência mergulha
cada vez mais fundo. Mas ele nunca se dissolve em Deus. Ele é capaz, e sente a
necessidade, de voar sempre a alturas mais elevadas para assimilar mais
benesses de Deus, para deixar sua consciência expandir-se – por que todo ser
culmina eternamente em Deus, a fonte de todo bem, a infinita fonte de toda consciência
ou luz.
Assim sendo, a
semelhança do homem para com Deus, em que consiste a santidade, é precisamente
este movimento contínuo do homem para Deus, esta interpenetração mútua mais e
mais intensa, esta iluminação cada vez mais brilhante da consciência humana
pela infinitamente luminosa consciência de Deus. A santidade é esta
transparência através da qual o espírito do homem, inteiramente preenchido com
a luz do Espírito Santo, é refletida por seu corpo e irradia ao seu redor. Esta
irradiação da consciência divina se estende até sua face e suas ações.
Nesta
transparência de Deus, a um tempo etérea e concentrada, o homem realiza sua
verdadeira natureza, a qual, no plano espiritual, consiste numa auto
comunicação. Comunicação significa troca entre dois ou mais seres conscientes.
Quanto maior a transparência, maior a comunicação. Quando o homem não se
comunica sinceramente, quando ele perde sua transparência, ele está escondendo
e deixando morrer à míngua sua verdadeira natureza, feita à imagem de Deus, e
sua capacidade de ser responsável por seus irmãos.
Minha face revela
a luz na qual minha consciência me mostra a face do irmão pelo qual eu me sinto
responsável. Quanto mais ainda revelam os rostos dos santos a luz em que suas
consciências lhes mostram a face de Deus diante de quem eles se tornam
responsáveis, e as faces dos outros homens pelos quais eles se sentem
responsáveis perante Deus! Isto intensifica a irradiação no rosto do homem
santo: sua própria luz e a luz dos que ele conduz se juntam à luz que para
todos eles provêm de Deus. Esta é a luz da bondade, e a bondade sempre possui
um caráter tripessoal. É a bondade do homem, mas no fim é a bondade de Deus,
por que toda bondade provém dele; e é também a bondade em relação ao próximo. A
bondade não pode existir sem um recipiente, e o que recebe esta bondade também
participa em tornar isto possível ao outro, para que ele se torne bom. A luz
necessita de um campo em que possa se projetar. Por esta razão a maior obra dos
santos consiste em orar pela salvação dos homens.
IV
ORAÇÃO
E LIBERDADE
A oração torna o homem livre, libertando-o de
sua servidão tanto em relação à natureza externa quanto em relação a si mesmo.
A oração mantém a alma aberta para Deus enquanto Pessoa. O home que não ora
permanece um escravo, fechado nos complexos mecanismos do mundo natural e nos
movimentos de suas próprias paixões, pelas quais ele é ainda mais dominado do
que pelo mundo exterior.
A oração assegura
a liberdade do homem em relação aos complexos mecanismos do mundo exterior, que
são produzidos pela interação das leis da natureza. Ao orar, o homem afirma sua
convicção de que estes mecanismos são meramente contingentes, e que eles têm
sua origem na livre intervenção da soberana Pessoa que os criou. Esta convicção
está baseada no fato de que mesmo as pessoas humanas possuem liberdade para
manipular alguns mecanismos das leis da natureza e dirigi-los a objetivos de
sua própria escolha. Minha mente tem o poder de fazer meu corpo executar os
movimentos que eu escolher; por meio destes movimentos e com as ferramentas com
as quais eu amplifico minha ação, minha mente tem poder sobre as coisas e sobre
as forças da natureza. Todos os homens são iguais na possessão deste poder. Se
eu faço solicitações a outro homem, se eu “oro” a ele, eu posso fazê-lo
intervir no mecanismo das leis naturais de modo a me beneficiar disto.
Portanto, por meio dos objetos naturais e das forças da ordem natural os homens
podem desenvolver um diálogo livre entre si. Cada homem afirma sua própria liberdade
quando age dentro da ordem natural, e afirma a liberdade dos demais homens
quando os solicita.
Podemos assim não
acreditar na possibilidade de intervenção pela soberana Pessoa que criou a
natureza e suas leis? Se a natureza manifesta um estado geral de contingência
em relação à mente humana, isto prova que ela foi criada como um campo de
contingência aberto à intervenção dos seres livres, o campo de um diálogo livre
entre homens. Ela foi, portanto, criada a serviço da liberdade, pelo Um que é
ele mesmo livre. Porque então não poderia esta Liberdade criativa continuar a
intervir nos mecanismos contingentes da natureza, fazendo-o de modo ainda mais
efetivo do que é capaz a liberdade humana? O mundo não tem sentido senão como a
esfera de diálogo entre Deus e o homem. O homem responde às ações de Deus no
mundo com suas próprias ações. Mas em suas orações o homem pede a Deus que
intervenha. Sua prece é uma afirmação consciente de que a liberdade de Deus
intervém no mundo para seu bem. Ao orar ele afirma sua convicção de ser mais do
que um dente de engrenagem na roda da natureza. Ao orar ele reconhece a si
mesmo como objeto de uma atenção especial de Deus.
Pode-se objetar
que o home intervém na natureza por que sua mente está de tal modo entretecida
com a composição do mundo físico (e por conseguinte com seu entorno imediato)
que seus movimentos inevitavelmente têm repercussões nãos movimentos da
natureza. Mas porque não aceitarmos também que exista uma conexão entre Deus e
o mundo, tão estreita que eles são como que inseparáveis; que o mundo está
enraizado em Deus, e que os movimentos da vontade de Deus, incondicionados como
são, sempre deixam sua marca no mundo condicionado? E então, assim como a
ligação entre o espírito humano e a natureza material é um grande e
impenetrável mistério, a ligação entre Deus e o mundo é um mistério ainda maior
e mais impenetrável. Nunca poderemos encontrar a matéria pura como uma
substância separada, seja no corpo humano, seja em qualquer das coisas
acessíveis ao homem através de seus sentidos. Menos ainda poderemos encontrar a
substância material do mundo todo perfeitamente destituída do espírito divino.
Se por acaso chegássemos a isto, estaríamos num mundo que, como um mecanismo
fechado em si mesmo e inteiramente governado por leis físicas, seria totalmente
desprovido de significado. Contra isto a oração do homem afirma e atualiza o
diálogo no qual homem e Deus se colocam livremente, neste mundo e além dele.
Mas orar também
afirma e atualiza a libertação do homem de suas paixões e de si mesmo. As
paixões são cadeias que prendem o homem à natureza exterior, tornando-o seu
escravo. Se a ciência faz dele em teoria escravo da natureza, suas paixões o
fazem em termos práticos e morais. Elas o escravizam a uma natureza rebaixada,
e o tornam descontrolado. Isto nos mostra ainda que jamais poderemos encontrar
a natureza em sua pura essência. As paixões são um amálgama de espírito e
natureza – mas um espírito debilitado que possui uma natureza perversa, e uma
natureza que, pervertida, domina o espírito,
A oração nos ajuda
a escapar das paixões e isto pressupõe a libertação em relação a estas. Ainda
aqui pode-se objetar que o homem que não ora pode igualmente dominar suas
paixões exercitando sua liberdade, e deste modo também ele pode se levantar
acima das inclinações cativas de sua natureza inferior. Mas se o homem não
reconhece nada acima de sua própria liberdade, ele ainda permanece escravo de
uma paixão, a saber, do orgulho, que é uma paixão como todas as demais. Ele
próprio escolhe o critério de suas ações. E aonde ele pensa que isto o levará,
se ele não agradece a Deus? Em última análise ele permanecerá prisioneiro no
reino da natureza cega, e será dissolvido com a chegada da morte.
A oração é, assim,
aquilo que ergue o homem acima de si mesmo. É apenas escapando de si mesmo,
daquilo que é concebido como sua liberdade de escolha, que o homem escapa à
natureza e à morte. É apenas quando ele se liberta de si mesmo que o homem se
torna livre no verdadeiro sentido da palavra, no sentido de não estar mais sob
o domínio de nenhuma paixão. Evagro o Pôntico diz: “O estado de prece pode ser
corretamente descrito como um estado habitual de calma imperturbável (apatheia). Ele alça às alturas da
realidade inteligível o espírito que ama a sabedoria e que está verdadeiramente
espiritualizado pelo mais intenso amor[3]”.
Na oração o homem
atinge a liberdade a respeito da natureza, por que ele encontra a si mesmo em
relação direta com Deus, o qual, enquanto Pessoa soberana, está acima da
natureza e acima de todas as paixões. “A oração é a conversação natural do
espírito com Deus. Qual estado de alma é requerido para que o espírito possa
esforçar-se perante seu Mestre sem oscilações, vivendo constantemente com ele
sem intermediários?[4]”.
Somente um
relacionamento de puro amor perante outra pessoa pode nos libertar do mundo
externo e de nós mesmos. Mas somente Deus pode nos dar e nos inspirar tal amor
em relação a todas as outras pessoas. Em nosso relacionamento com Deus obtemos
a verdadeira e derradeira liberdade em relação a nós mesmos, por que ele nos
conduz tão poderosamente com as infinitas riquezas e a generosidade de seu
amor, que nos esquecemos de nós mesmos nele. Consequentemente nossa relação com
Deus no dota de uma total liberdade diante da natureza e de nós próprios, e,
mais ainda, nos torna capazes de expressar esta liberdade em nossas relações
com as demais pessoas humanas.
É pelo fato de que
a oração é capaz de fazer isto por nós que reconhecemos ser ela a mais alta
atividade do espírito, por que nosso espírito se dirige, em sua verdadeira
natureza e dotado de seu poder intrínseco, para nos erguer e nos transportar
acima de nós mesmos, nos capacitando a entrar e permanecer numa relação de puro
amor com outra pessoa. Esta tendência e este poder provêm da relação viva do
espírito com a suprema Pessoa. A verdadeira liberdade é afirmada e mantida numa
relação de puro amor com outra pessoa, e em última instância com a Pessoa
soberana. Por que a Pessoa soberana jamais dominará por meio de nenhuma força na
ordem natural, e por conseguinte não será tentada a dominar, para não ser em
contrapartida ela própria dominada. Em nosso relacionamento com Deus somos
perfeitamente livres, por que Deus, a quem nada domina, tampouco busca dominar.
Somente num relacionamento entre seres autenticamente livres a liberdade de
cada um está assegurada; ninguém é dominado, ninguém pretende dominar.
Jamais podemos
assegurar nossa própria liberdade dominando os demais. Não existe verdadeira
liberdade no isolamento; se um homem se fecha no isolamento, ali ele
permanecerá, por que é impossível a alguém libertar a si próprio por si mesmo.
Ao pretender ser senhor de si, o homem descobre que ele está submetido a si
próprio; da mesma forma, em sua relação com a natureza, pretendendo ser senhor
do mundo natural ele se torna seu escravo. Certamente, o homem deve estar acima
da natureza, mas isto é algo bem diferente do desejo passional de dominá-la; o
homem é senhor da natureza apenas quando é livre em relação a ela.
Apenas um outro
ser autenticamente livre, que esteja liberto de todas as paixões e que,
portanto, não deseje dominar, poderá afirmar e manter minha própria liberdade.
Somente o relacionamento com a Pessoa soberana, cuja liberdade jamais pode ser
ameaçada, pode garantir minha própria liberdade.
Isto não significa
que o relacionamento entre seres libres seja algo exterior, um relacionamento
que deixa cada pessoa separada em sua própria liberdade. Ao contrário, cada
qual se torna uma espécie de suporte para a liberdade da outra. A verdadeira
liberdade torna uma realidade a liberdade do próximo. Em minha própria
liberdade eu sinto a liberdade da pessoa com a qual divido uma relação. A
liberdade dela não é como se ela não estivesse interessada em mim, nem como se
ela quisesse me dominar; trata-se de uma liberdade que age por meio do
verdadeiro amor, por meio do respeito à minha liberdade e à pessoa que eu sou.
Quando eu me
dirijo a alguém buscando atenção ou amor, estas coisas me são dadas por que eu
as quero, elas são demandadas pela minha liberdade. Se a pessoa me dá seu amor
a atenção sem pretender me dominar, ela me faz livre de mim mesmo. Pois, ao não
tentar defender minha liberdade, eu esqueço de mim. Eu vivo livremente com a
dádiva de seu amor, na sua liberdade de qualquer desejo de me dominar. Assim, a
verdadeira liberdade de outra pessoa sustenta a minha. Apenas no contexto da
liberdade do outro, minha própria liberdade se torna uma realidade. Somente a
liberdade do outro é capaz de afirmar e alimentar a minha. Mas é apenas no
contexto da Liberdade incriada que todas as liberdades criadas podem ser
afirmadas. É ela quem sustenta a todos no amor, dando e recebendo.
Em minha relação
com Deus, naturalmente, minha oração não tem reciprocidade: Deus não ora pelo
homem, o homem é que ora a Deus. Mas, apesar disto, existe uma doação mútua. O
homem realiza sua liberdade não apenas recebendo de Deus através da oração, mas
também se entregando a Deus. Somente assim o homem obtém a libertação de si
mesmo. Se ele tenta se agarrar à existência que recebeu do amor de Deus, ele
perde esta liberdade; ao tentar ser o árbitro de sua própria existência, ele se
torna escravo dela. Se ele pretende libertar-se de si mesmo, ele deve desejar
receber a vida sempre como um presente de Deus. Ele deve renunciar a si e se
entregar a Deus, de quem ele recebeu tudo o que possui. Ele só pode ser livre
se viver por Deus e em Deus, ele não pode montar guarda sobre sua liberdade
contra o Um que a deu a ele, mas, ao contrário, deve recebê-la continuamente de
Deus por meio da oração. Toda vez que o homem tenta dominar aquilo que possui, ele
se torna escravo da paixão e, consequentemente, de si mesmo.
Devemos nos
entregar a outro ser autenticamente livre de modo a recebermos a dádiva da
liberdade, e a única liberdade cuja natureza é inesgotável é aquela da Pessoa
suprema.
Orar é o contrário
do desejo de dominar. É por isso que a oração garante a liberdade do homem; ela
afirma uma outra Liberdade, e esta Liberdade assegura a liberdade àquele que
ora. A verdadeira oração é aquele dirigida a Deus; é o encontro com a própria
Liberdade, Liberdade ilimitada que nada pode ameaçar e que assim não representa
ameaça a ninguém. Esta Liberdade só deseja afirmar e suportar a liberdade de
todas as pessoas que se contentam em ser assim afirmadas sem afirmar a si
próprias.
Como expressão da
relação livre para com Deus, ou seja, como manifestação do Espírito Santo, a
oração também possui em si o poder do Espírito de Deus, que fortalece o
espírito do homem e torna sua relação com Deus uma realidade. “Assim o Espírito
nos ajuda em nossa fraqueza; pois não sabemos orar como se deve, mas o próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis[5]”.
O Espírito cria para nós uma relação tão próxima a Deus que temos a sensação de
sermos filhos de Deus, e nossa união com Deus na oração se torna tão perfeita e
completa que já não sabemos onde termina nossa obra e onde começa a obra de
Deus. A ação de Deus se torna a nossa e assim nos salvamos, não por nossa
própria correção, mas pela inteireza de Deus. No Espírito esquecemos de nós tão
imperativamente, deixamo-nos para trás tão completamente, que já não podemos
distinguir nossa ação da ação do Espírito de Deus. A liberdade do Espírito de
Deus se torna nossa própria liberdade e nossa fraqueza se torna a fraqueza de
Deus. Já não somos nós quem ora e afirma sua liberdade, mas o Espírito de Deus.
É na fraqueza da oração que a força da liberdade de Deus, que se tornou a nossa
liberdade, é afirmada. É em nossa superação de nós mesmos que a superação do
próprio Deus se revela a nós através do Espírito. Esta derradeira união, que é
vivida de modo paradoxal, também expressa, se podemos falar assim, nossas
condição de filhos pela adoção divina. Na oração nós nos entregamos
completamente a Deus e Deus se entrega completamente a nós, como um Pai a seu
filho. E adquirimos em nós a liberdade de filhos de Deus. Não sentimos que
somos dominados por Deus como escravos, mas que somos livres, herdeiros de sua
liberdade, nascidos livres e vivendo livremente.
V
O
PERDÃO E A RENOVAÇÃO DA IGREJA
Nosso Senhor ligou
indissoluvelmente o perdão dos pecados ao perdão que concedemos àqueles que nos
ofenderam[6].
Em muitos casos, os pecados pelos quais
pedimos perdão a Deus consistem de fato em malefícios que causamos a outras
pessoas. Consequentemente, devemos pedir perdão por estes pecados não apenas a
Deus, mas também àqueles que foram ofendidos. Se não o fizermos, Deus não nos
perdoará[7].
Por trás das pessoas a quem ofendemos, sempre está Deu; quando pecamos contra
Deus, sempre existe mais alguém envolvido.
Se desdenharmos a Deus prejudicaremos a predisposição para a bondade no
outro, dando a ele um mau exemplo. Um homem que é insensível em seu
comportamento para com Deus não será menos insensível em seu comportamento perante
o próximo, e contribuirá para embotar sua sensibilidade para com Deus.
Deus nos perdoa os
pecados que cometemos contra ele, somente na condição de que peçamos perdão ao
nosso próximo. Mas se necessitamos do perdão dos demais antes de recebê-lo de
Deus, também eles precisam do nosso perdão para que recebam o seu. Portanto,
para obter o perdão de Deus precisamos também perdoar aqueles que nos
ofenderam, e ao mesmo tempo pedir o perdão daqueles a quem ofendemos. Ambas as
coisas são difíceis para nós. Achamos mais fácil pedir a Deus que nos perdoe,
por que nos colocamos de certa forma numa posição de temor e respeito por sua
majestade, e é fácil para nós, como fiéis, reconhecer em teoria nossa
dependência em relação a ele. Por outro lado é muito difícil, mesmo para quem
acredita em Deus, não desprezar alguém que não nos impressione mediante marcas
visíveis de grandeza.
Mais uma vez, das
duas obrigações que temos, perdoar os outros e pedir aos outros seu perdão,
esta última é a mais difícil. Quando alguém nos pede para perdoá-lo, nos parece
ter esta pessoa se colocado numa posição de inferioridade, e nosso coração é
tocado por via deste apelo ao nosso orgulho. Mas pedir perdão para nós implica
descer de nosso pedestal de aparente superioridade, e isto implica reconhecer
nossa dependência em relação ao outro.
É sempre o mesmo
orgulho que nos embosca por trás de nossa recusa em perdoar e por trás do
esforço que nos custa pedir perdão. Quando perdoamos, não necessariamente
renunciamos ao nosso orgulho; ao passo que, se formos além, se de fato pedirmos
perdão, teremos feito isto até nosso último pedaço. Pois só assim teremos nos
movido genuinamente por um impulso do coração, sem nenhuma ambiguidade.
A recusa em
conceder o perdão ou em pedir perdão mantém a alma num estado de rigidez. Se
retivermos a lembrança da ofensa recebida, ela se instala em nós como uma
impureza; ela apodrece continuamente dentro de nós e seu odor nauseabundo
contamina todo o nosso ser. As falsas luzes ou sombras desta matéria venenosa
obstruem nossa visão e já não conseguimos enxergar o outro com pureza. Nestas
condições é impossível amar o próximo, bem como é impossível que ele nos ame.
Apenas um perdão
sincero é capaz de expulsar este intruso de nossa alma e retirar a trave de
nosso olho. Somente assim podemos receber o amoroso perdão de Deus. Abba Isaiah
disse: “Não carregue hostilidade ou malevolência em relação a ninguém, para que
seu trabalho não seja em vão; purifique seu coração perante todos os homens,
para que você encontre em si a paz de Deus. Pois, assim como quando um homem é
picado por um escorpião e seu veneno percorre todo o corpo até alcançar o coração,
o mesmo acontece quando existe malícia em nosso coração em relação ao próximo:
seu veneno, fere a alma e a coloca em risco devido à maldade. Portanto, quem
anseia para não perder o fruto de seus trabalhos deve primeiro lançar fora o
escorpião da hostilidade e da malevolência”.
Do mesmo modo, o
mal que fizemos a outrem perturba nossa alma. Sentimo-nos inquietos: não
conseguimos encarar a pessoa diretamente, com os olhos desanuviados. Quando a
encontramos nos sentimos desajeitados, pois receamos que ela esteja ruminando
na memória o mal que lhe fizemos. Nosso orgulho não nos permite purificar nossas
relações com ela. Somente um pedido de perdão de nossa parte pode nos devolver
um relacionamento aberto, inocente e livre. Se persistirmos na recusa em pedir
perdão, não poderemos encarar a Deus abertamente, nem permanecer diante dele
com o coração compungido. Por trás deste pedido de perdão deve haver um sincero
e vívido sentido de penitência. A penitência conduz a uma expressão de
permanente tristeza no olhar, mas os mesmos olhos que estão cheios de tristeza
mostram também um aspecto inocente e desanuviado. Somente então, em simples e
sincera penitência, poderemos nos apresentar a Deus para pedirmos seu perdão,
tendo já pedido o perdão de nosso próximo.
Meus pecados
perante Deus são inumeráveis e não têm fim. Tudo o que eu possuo recebi de Deus
e devo, de livre e espontânea vontade, devolver a ele e aos outros homens, e
devo orar constantemente a ele por sua bondade, em palavras e ações; mas eu
falho nisto. E por esta razão eu devo renovar perpetuamente minha penitência e
minhas preces por perdão e misericórdia. É por isso que os monges do Oriente
imploram pela misericórdia de Deus numa prece incessante. Assim é que, no
momento da morte, vemos santo Antônio o Grande implorar por mais tempo de
arrependimento. E, como os pecados que cometemos contra Deus são também pecados
cometidos contra nosso próximo, e vice versa, estes se tornam também
infindáveis, e assim devemos pedir seu perdão continuamente.
Em qualquer caso,
dificilmente eu posso afirmar que em minhas relações com os demais minha
própria conduta tenha sido irreprochável em todos os momentos, ou que eu tenha
dado o melhor de mim para todas as pessoas que encontrei. Desta forma, quando
alguém me repreende por uma atitude negativa que me passou desapercebida, eu
devo aceitar esta reprimenda e agradecer por me envergonhar. No mínimo foi
falta minha ter dado a impressão de ter tido esta atitude negativa da qual me
acusam. Abba Isaiah disse: “Se seu irmão lhe responde com impaciência, com
palavras álacres, receba-as com alegria, e, se você examinar seus pensamentos
segundo o juízo de Deus, verá que você pecou”. Eu nunca posso estar
inteiramente certo de não ter tido participação em criar atritos inadvertidos,
que aparecem constantemente entre os homens, e que afetam também a mim. Nunca
posso dizer que, em minhas relações com os demais, tudo na minha conduta,
pensamentos e ações, foi bom; que eu fui generoso em minha atenção para com
todos, e que eles jamais terão sentido em mim nem um grau de indiferença. Somos
sempre culpados por ofender a todos e cada um.
Devemos, portanto,
sermos penitentes em nosso tratamento para com o próximo. É por isso que sempre
nos encomendamos ao celebrante da Liturgia, pedindo que nosso nome seja
mencionado na Preparação, e por isso pedimos a todos os que encontramos que
rezem por nós. E também nós temos a obrigação de lembrar de todos em nossas
orações, tanto quanto possível, todos os que conhecemos, e, de modo genérico,
nos lembrarmos de todos os homens. Nosso perdão aos demais está implícito em
nossa oração por eles, e ao pedirmos por suas orações estamos igualmente
pedindo seu perdão.
Oramos pelos mortos
conhecidos, e ao orar por eles estamos de fato perdoando-os, e ao mesmo tempo
assegurando-nos de que, após nossa morte, receberemos as preces do que ainda
vivem e as preces da Igreja como um todo. Neste sentido pedimos para ser
perdoados antes de nossa morte, não uma vez apenas, mas constantemente,
enquanto viverem. Oramos por nossos antepassados, por todas a almas que
morreram na fé, e desejamos partilhar desta oração, enquanto o mundo existir. A
indiferença em relação às necessidades dos mortos é equivalente a um pecado, e
perturba nossa consciência.
As relações
existentes, direta ou indiretamente, entre todos os homens, são veículos das
imperfeições comuns a todos; é nosso desejo que, ao menos no seio da Igreja, estas
relações, que permanecem além da morte, sejam o veículo de um perdão mútuo
buscado e concedido, a prece de todos por todos, para que Deus nos perdoe a
todos.
Este é um elemento
essencial no catolicismo da Igreja. Nesta prece de todos por todos, nesta
penitência assumida por todos em benefício de todos, a Igreja é lavada
constantemente. A pureza da santidade da Igreja é um aspecto dinâmico de sua
vida. Os pecadores não são separados da Igreja, nem possui ela membros sem
pecado algum; todos são arrastados neste movimento de purificação por meio da
penitência, pela troca mútua de perdão, pelas orações endereçadas a Deus por
todos para que todos sejam perdoados. A Igreja não é uma sociedade estática,
fixa e imóvel, mas uma comunhão dinâmica feita de homens e mulheres que são pecadores
e que, ao mesmo tempo, são lavados pelas orações que fazem uns pelos outros –
não por algum “pecado” abstrato, mas por seus pecados reais, suas ações
imperfeitas e pela indiferença que tenham demonstrado em relação a pessoas
reais.
Nesta família viva
as enfermidades sempre se tornam aparentes, mas elas são recebidas, lavadas no
oceano do amor recíproco entre seus membros. Todos cometem pecados, mas todos
contribuem para o trabalho de purificação: ao pedir e conceder perdão, e por
meio de suas orações recíprocas pelo perdão de todos. Jamais se admite que o
pecado permaneça como um estado permanente. Os que pecaram não podem permanecer
indiferentes, e são compelidos a pedir perdão. Sua consciência, pressionada pelo
Espírito Santo, os leva a pedir. E nem bem pediram, a penitência começa a
desfazer seu pecado. O pecado é dissolvido pelas incessantes ondas de perdão,
oração e amor, colocados em movimento pelo Espírito Santo.
A este respeito, tudo
parece ser movido pelo Espírito Santo naqueles que estão unidos. O Espírito
Santo é o agente desta vida interpessoal que aponta sempre para a purificação,
e que é incompatível como um padrão rígido ou frouxo em relação à Igreja. Ele é
o Espírito da liberdade, das relações formadas na liberdade do amor, e assim
ele não pode ser acomodar a atitudes rígidas, endurecidas de desafio ou
indiferença criadas e mantidas por um orgulho que nem pede nem concede perdão.
Onde as paixões assumem o controle, apesar de sua aparência flutuante,
prevalece um espírito de intransigência, uma rigidez, um constrangimento que só
o Espírito Santo é capaz de suavizar e dobrar; e ele faz isto quando inspira os
homens a perdoar e a pedir perdão, erguendo-se acima de seu orgulho e de outras
paixões egoístas.
Este perdão
recíproco, junto com a intercessão de cada um por todos, não apenas anula o pecado;
positivamente, ele representa o sopro vivo do amor que abre o coração do homem
para o próximo. Quando falamos no sopro do Espírito, queremos dizer que ele é
quem traz o amor, a vida e a liberdade. A verdadeira liberdade é a que contém o
amor, e onde existe amor existe a própria bondade, a fonte de todos os bons
pensamentos, de todas as boas palavras e das boas ações. Esta é a vida
dinâmica, a serviço de todos, livre de toda escravidão do orgulho e das paixões
egoístas.
Assim a Igreja é
renovada através do Espírito Santo pelo perdão mútuo e a oração. Ela está
constantemente se renovando, reparando os laços internos de amor entre seus
membros. Em outras palavras, ela está recriando sua unidade interna, sua harmonia
e sua catolicidade.
A incapacidade dos
Cristãos de carregar o peso de sua culpa perante os demais, sua necessidade de
buscar e conceder perdão, revela a capacidade inerente à Igreja para a
purificação e a restauração contínua de sua unidade e de seus laços internos.
Assim a Igreja se torna como que uma sinfonia para Cristo, e revela o mistério
de sua continuidade e da perpétua renovação de sua juventude.
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