terça-feira, 21 de abril de 2015

São João Clímaco - A escada santa - Degraus 1 a 10


SÃO JOÃO CLÍMACO

A ESCADA SANTA


OBSERVAÇÕES INICIAIS

São João Clímaco viveu entre os anos de 580 e 650 na região do Sinai. Até os 35 anos viveu como cenobita, mas com a morte de seu Pai espiritual decidiu se tornar anacoreta, retirando-se para o deserto, onde viveu até os 70 anos. Nos últimos quatro anos de sua vida dedicou-se a escrever "A Escada Santa", onde resume em trinta degraus o caminho espiritual que deveriam seguir os monges de sua época. O texto a seguir foi traduzido da versão francesa, e deve ser lido com a consciência de que se trata de uma obra dirigida eminentemente a pessoas que seguem a vida monástica, e cuja aplicação aos dias de hoje é quase inteiramente impossível. Mas a "Escada Santa" permanece sendo uma referência para os que desejam se aprofundar no caminho da oração, e aprender um pouco sobre as armadilhas com as quais os demônios infestam a alma dos que almejam o Reino dos Céus.


PRIMEIRO DEGRAU


1. Antes de falar aqui dos Servidores de Deus, convém começar meu discurso por seu nome santo e adorável. Assim é que Deus, nosso rei supremo, dotou de livre arbítrio todas as criaturas racionais, às quais Ele concedeu ser e existir; entretanto, devemos lembrar que elas são diferentes umas das outras. Com efeito, algumas mereceram ser amigas de Deus para todo o sempre; outras são bons e fiéis servidores; outras não passam de maus servidores; outras se separaram inteiramente Dele; e outras, enfim, tornaram-se inimigos declarados e, embora nada possam contra Ele, não deixam de Lhe fazer uma guerra sacrílega.

2. Ora, meu Pai, malgrado minhas poucas luzes, eu penso que os amigos de Deus são as inteligências sublimes e espirituais que cercam seu trono eterno; que seus verdadeiros e fiéis amigos são aqueles que, com grande ardor e perfeita exatidão, cumprem sua santa Vontade em todas as coisas; que seus servidores inúteis são estas pessoas que, tendo sido purificadas e santificadas pela graça do batismo, não guardaram a promessa que lhe haviam feito, e violaram indignamente a augusta aliança que haviam contratado com Deus; que os que se separaram Dele, ou que caminham longe Dele, são ou os heréticos que corromperam a fé, ou os infiéis que jamais a tiveram; enfim, que seus inimigos são pessoas que não apenas se subtraíram à sua lei transgredindo-a com insolência, como ainda suscitam e exercem cruéis perseguições contra os que servem a Deus com amor e observam a santa lei com inviolável fidelidade.

3. Mas como seriam precisos muitos livros para dizer tudo o que há para ser dito sobre estas diferentes espécies de criaturas, e que um homem ignorante como eu seria incapaz de tamanha empreita, creio ser melhor que, para obedecer aos verdadeiros servidores de Deus, cuja amável piedade é uma violência para mim e cujo zelo e boa vontade me pressionam, eu me limite e me detenha nas coisas que podem servir de edificação às suas almas; que, por incapaz que eu me considere, eu tome a penas em minhas mãos e que, molhando-a com simplicidade na humilde submissão a seus votos declarados, eu possa, apesar de minha impotência e incapacidade, esperar e receber de minha obediência algumas graças e algumas luzes, a fim de que, traçando sobre o papel de admirável brancura as regras de uma vida santa e pura, possa também escrever em seus corações bem preparados e santamente purificados como quem escreve sobre misteriosos cadernos vivos. É desta maneira e com estas disposições que irei começar.

4. Deus é a vida e a salvação de todas as criaturas racionais que Ele tirou do nada, quer elas creiam Nele, quer neguem sua Existência; quer sejam justas ou desonestas; quer pratiquem a piedade ou se entreguem à irreligiosidade; quer tenham se libertado de suas paixões ou que sejam delas vis escravos; quer tenham entrado para uma comunidade religiosa ou que vivam no século; quer possuam a ciência ou vivam nas trevas da ignorância; quer desfrutem de boa saúde ou definhem sobre um leito de sofrimentos; quer estejam na flor da idade ou tenham chegado à velhice última. Todas essas pessoas estão destinadas à graça da salvação e dela poderão usufruir, assim como usufruem da efusão da luz, da vista e das benesses do céu, da variedade das estações e de todas as demais coisas que existem e que foram feitas para elas; pois, diante de Deus “não existe favoritismo[1]”.

5. Ora, chamo de “ímpio” aquele que, embora de natureza mortal e tendo recebido a inteligência, evita e foge de Deus, que apesar de tudo é sua vida; que não se ocupa de seu Criador, como se ele não existisse. Insensato, ele diz em seu coração: “Não existe Deus algum![2]”.

6. Chamo de “desonesto” aquele que corrompe e obscurece a lei de Deus, interpretando conforme seu próprio espírito, e que, mesmo seguindo sua opinião errada e às vezes até herética, prefere sua própria autoridade àquela de Deus, às suas luzes a as do Espírito Santo.

7. Chamo de “cristão” o fiel que, na medida de suas forças, coloca em suas palavras, suas ações e toda sua conduta caminhar sob os estandartes de Jesus Cristo, e que, por meio de uma fé pura, sincera e ardente, por uma vida santa e uma inflamada caridade, devota-se inteiramente à Santíssima Trindade.

8. Chamo de “amigo de Deus” aquele que, de acordo com as regras de justiça e de temperança, se utiliza das coisas que recebeu de Deus na ordem da natureza, e que não negligencia nenhuma boa obra que possa fazer.

9. Chamo de “homem casto” aquele que, em meio às tentações, armadilhas e agitações, toma precauções tão sábias, que segue em sua conduta as normas daqueles que estão fora de perigo.

10. Chamo de “monge” aquele que, num corpo terrestre e corrupto, se esforça, como se estivesse livre deste corpo, por imitar o estado e a vida das inteligências celestes.

11. Chamo de “monge” ao homem que, em todos os tempos, em todo lugar e em todas as coisas, segue exatamente a lei do Senhor e se conforma perfeitamente com sua santa vontade.

12. Chamo de “monge” ao homem que, violentando sua natureza, não cessa de vigiar seus sentidos e doma seus apetites desregrados.

13. Chamo de “monge” ao homem que conserva seu corpo com santidade, sua língua com pureza, e que orna seu espírito com as luzes do Espírito Santo.

14. Chamo de “monge” ao homem que, dia e noite, detesta e chora seus pecados, e não perde de vista o salutar pensamento da morte.

15. E por “renúncia ao mundo” eu entendo a aversão a tudo o que os mundanos amam e louvam, ao abandono voluntário dos bens caducos e perecíveis, no desejo e na esperança de obter e de possuir os bens sobrenaturais.

16. Três motivos principais levam a fazer generosa e prontamente o sacrifício das comodidades e dos prazeres da vida presente: um violento desejo de merecer o reino dos céus; um amargo e sincero arrependimento das enormes e numerosas faltas cometidas; um ardente amor a Deus. Ora, podemos assegurar que uma pessoa que tenha renunciado ao mundo sem ter algum dos três motivos de que falamos o fez sem prudência e sem reflexão; mas Deus, que é a própria Bondade e o soberano remunerador dos que agem e combatem por Sua glória, presta menos atenção aos motivos que primeiro nos levaram a entrar na carreira da virtude do que ao resultado a que chegamos afinal.

17. Assim, que aquele que entra para a vida religiosa com a intenção de chorar e gemer por seus pecados imite as pessoas que saem das cidades para ir a sentar-se e chorar sobre o túmulo de seus próximos. Que ele não deixe jamais secar a fonte de suas lágrimas amargas, nem fraquejar o fervor de seu arrependimento, e que arranque sem cessar de seu coração despedaçado longos gemidos e profundos suspiros, a fim de merecer ver a Jesus Cristo vir a ele para, desde o alto, aliviar da funesta pedra do endurecimento seu coração e escutar a este divino Salvador ordenar aos anjos que o libertem das amarras que o mantinham sob o jugo de Satanás; para que, liberto das perturbações e dos reproches de uma consciência justamente alarmada, ele alcance esta paz preciosa que traz a verdadeira felicidade. Ora, se ele agir de outra forma, que vantagem extrairá de sua renúncia ao mundo?

18. Mas lembremos aqui que, se realmente quisermos sair do Egito e nos livrarmos da servidão ao Faraó, precisaremos, assim como o povo judeu, de um Moisés que seja nosso mediador diante de Deus, que estenda com fervor as mãos suplicantes para o céu enquanto estivermos em combate, para conseguir para nós as forças e a coragem necessárias, e para nos conduzir de tal modo que possamos atravessar com sucesso o mar Vermelho de nossos pecados, e colocar em fuga ao Amalec de nossas paixões tirânicas[3]. É apenas por uma deplorável e funesta ilusão que alguns, cheios de confiança em sua próprias luzes, acreditam poder dispensar um condutor para lhes mostrar o caminho da vida espiritual e guiá-los por ele.

19. Os filhos de Jacó tiveram a Moisés para fazê-los sair da terra do Egito; a família de Lot teve um anjo para sair de Gomorra. Os que fugiram do Egito representam os pecadores que, para curar suas almas e purifica-las dos pecados, necessitam dos cuidados e das luzes dos médicos espirituais. Os que fugiram de Sodoma são a imagem das pessoas que desejam se ver livres das tendências de seus corpos miseráveis; é por isso que elas precisam de um anjo para socorrê-las, ou ao menos de um homem que, por assim dizer, não seja inferior a um anjo; pois, pela grandeza e a corrupção das chagas que possuem, necessitam de um cirurgião e um médico que sejam dotados de uma ciência e uma experiência pouco comuns.

20. Mas certamente só devemos tomar como testemunhos aqueles que, possuindo um corpo de pecado, decidiram-se por subir aos céus e se obrigaram às maiores violências para consigo mesmos e aos maiores esforços, devotando-se generosamente à mortificação mais austera e aos trabalhos mais difíceis, sobretudo no começo de sua conversão, até que o amor pelos prazeres a que estavam acostumados, que a preguiça na qual esmoreciam e que a insensibilidade de seus corações em relação à virtude se transformaram, por meio de uma penitência proporcional, num ardente amor por Deus e pelas boas obras, e uma perfeita santidade.

21. Sim, repito, eles tiveram que suportar muitos trabalhos, engolir muitas aflições, principalmente aqueles que tiveram a infelicidade de ter vivido sem jamais pensar em sua salvação, se quisessem que seu coração, depois de se assemelhar aos dos cães que só pensam em comer e ganir, possa atingir a simplicidade, a doçura, a paciência, o zelo, o fervor, a temperança, a pureza e o amor pela salvação eterna. Porém, por mais que sejamos dependentes de nossas tendências, por mais graves que sejam as enfermidades de nossas almas, não percamos a coragem; ao contrário, coloquemos nossa confiança em Deus, plena e inteiramente. Assim, mesmo quando nos sintamos fracos, sustentados pela firmeza de uma fé inquebrantável, apresentemo-nos diante de Cristo, e, como grande simplicidade e profunda humildade, exponhamos a ele nossa fraqueza e nossas misérias, o abatimento de nossas almas e de nossos corpos; e, por indignos que sejamos, ele nos estenderá a mão com bondade, e nos tomará sob sua poderosa proteção com terna caridade.

22. Que todos os que querem entrar para esta carreira que é bela, mas incômoda, que é rude e estreita, mas adoçada e alargada pela graça de Deus, precipitem-se com coragem no meio das chamas das mortificações e dos trabalhos espirituais, se for o amor de Deus que os inflama e anima. Mas que cada um experimente a si mesmo previamente, e somente depois coma o pão da vida religiosa com suas alfaces amargas, e beba esta bebida misturada com suas lágrimas; e que ele tome cuidado para que seu engajamento na milícia santa não se torne sua condenação. É fácil ver as razões pelas quais nem todos os batizados alcançam a salvação; não direi mais nada.

23. Querer servir a Deus séria e eficazmente por maio da vida religiosa equivale a dizer adeus a tudo, a desprezar tudo, rejeitar tudo e a tudo pisotear. Este é o único fundamento sólido do edifício espiritual. E este fundamento não será sólido senão na medida em que o edifício que se erguer acima dele for sustentado por três colunas: a inocência, a mortificação e a temperança. É pela prática destas três virtudes que devem começar aqueles que pretendem se tornar crianças em Cristo, pois as crianças serão seus modelos: nelas não vemos nem hipocrisia, nem malícia, nem duplicidade; elas não se atiram sobre os alimentos com avidez insaciável; em seus corpos inocentes a cupidez não se faz sentir com seus ardores culposos; é apenas quando crescem em idade e já não moderam o comer e o beber, que ficam sujeitas aos movimentos desregrados do corpo.

24. Um atleta que entra na arena sem força e sem coragem atrai o desprezo e a aversão dos espectadores e se expõe a uma derrota iminente; todos consideram que sua perda é certa. É-nos, portanto, importantíssimo e necessário começar nossa carreira religiosa com coragem, zelo e fervor, mesmo que depois de um tempo relaxemos um pouco. Com efeito, nossa alma, que durante um tempo se viu cheia de coragem e de ardor, e que se vê agora débil e languescente, encontra nesta comparação um verdadeiro aguilhão a excitá-la. É assim que muitos se reanimaram e reaqueceram-se na piedade.

25. Mas todas as vezes que uma alma falta contra si mesma e percebe que já não possui o santo fervor da devoção, ela deve se apressar em buscar a miserável causa disto, e então fazer todos os esforços para destruí-la; ela deve estar totalmente convencida de que o meio de restabelecer o fervor é fazê-la sair pela porta pela qual entrou, expulsando-a.

26. Parece-me que podemos comparar o homem que só obedece pelo temor aos perfumes que queimamos: primeiro eles espalham um odor agradável, mas depois só resta uma fumaça fatigante. Aquele que se submete por motivo de recompensa, podemos compará-lo à roda do moinho, que só gira de uma maneira. Mas os que, por afeição e por amor a Deus, abandonam o mundo para abraçar os estreitos caminhos da vida religiosa se veem logo abrasados pelo sagrado fogo da caridade; e, assim como o furor e a atividade do fogo natural aumentam na medida em que ele penetra na floresta em que se iniciou, também a chama do amor divino se estende nos seus corações na mesma medida, produzindo um incêndio feliz.

27. Mas prestem atenção, porque são três os tipos de trabalhadores que erguem o edifício espiritual de sua salvação: uns trabalham colocando tijolos, depois de terem usado pedras nas fundações; outros erguem colunas sobre a terra; e outros enfim, vendo-se no local onde devem trabalhar, começam a correr com espantoso ímpeto e, uma vez aquecidos, já não sentem a si mesmos nem são mais donos de si. Quem tiver inteligência entenda este discurso alegórico.

28. Ora, como é Deus nosso rei supremo, que nos chama a seu serviço, corramos com todas as nossas forças para atendermos ao seu apelo, de medo que, tendo pouco tempo de vida, não nos encontremos, na hora derradeira, miseráveis e privados dos méritos das boas obras; e que não pereçamos nos horrores da fome. Semelhantes aos soldados que se estudam para se tornar agradáveis ao seu general, não negligenciemos nada que possa nos tornar agradáveis a Deus; pois ele nos pede que, depois de nos enrolarmos em seus estandartes, o sirvamos com fervor e fidelidade.

29. Tenho vergonha de dizer, mas temamos ao menos o Senhor como tememos a certos animais; já vi bandidos sobre quem o temor a Deus não tinha nenhum poder, mas que, tendo partido a cometer roubos se detiveram e voltaram de mãos vazias sem consumar o crime, apenas por terem ouvido latir os cães no local para onde os conduzia sua desonestidade. Assim, aquilo que o temor a Deus não pode fazer por eles, o medo dos cães os obrigou.

30. Amemos a Deus do mesmo modo como costumamos gostar de nossos amigos: já conheci a muitos que, tendo ofendido ao Criador não experimentaram nenhum desconforto, mas que, tendo fatigado seus amigos ficaram desolados, empregaram mil maneiras e mil artimanhas para expressar seu arrependimento, não temendo nem humilhações nem sacrifícios para acalmá-los, e, seja por si mesmos, seja por amigos comuns, ofereceram grandes e penosas satisfações para obter a reconciliação, acrescentando a todos estes meios ricos presentes, a fim de poderem voltar à antiga amizade.

31. Não é senão com muitas penas e esforços que podemos praticar a virtude no começo de nossa conversão; mas logo que fazemos algum progresso avançamos quase sem dificuldade; e, a partir do momento em que temos a felicidade de nos tornarmos mestres dos sentidos de nossos corpos, submetendo-os à nossa consciência, ah!, então é com ardor, alegria, prazer e bom humor que nos dedicamos à prática das boas obras; ficamos abrasados pelo fogo sagrado da caridade.

32. É assim que devemos tanto louvar aqueles que, desde o princípio de sua consagração a Deus, fazem todos os esforços para cumprir exatamente e com alegria a santa lei do Senhor, como devemos condenar aos que, depois de passar anos inteiros a serviço de Deus, não praticam a virtude senão com dificuldade e repugnância.

33. Mas não temamos nem condenemos as pessoas que se entregaram a Deus por algum acidente curioso que as tenha forçado a isto; pois já conheci alguns que, enquanto faziam todos os esforços para não encontrar seu Rei Supremo, Jesus Cristo, o encontraram contra a vontade e foram envolvidos a contragosto em seus adoráveis estandartes, entrando em seu palácio e assentando-se à sua mesa. Também vi a semente da graça, caída por assim dizer sem destino e ao acaso nos corações, produzindo aí uma colheita abundante de excelentes virtudes. Foi assim que uma pessoa que conheci, mesmo tendo ido a uma escola de medicina espiritual por razões estranhas à sua consciência, caiu alegremente nas mãos de um médico que bem soube prende-la, que lhe falou com afetuosa benevolência, a tal ponto que ela se converteu e abriu seus olhos à luz. Assim, acontece muitas vezes que uma conversão que parecia não ter acontecido senão por acaso se tornar mais sólida e constante que uma outra ocorrida com propósito deliberado.

34. Que ninguém, por considerar a enormidade e o número de suas faltas, encontre nisto uma razão ou um pretexto para se crer incapaz de se converter e de abraçar a vida religiosa; pois é para se temer que este julgar-se indigno esconda um desejo de não renunciar aos prazeres de que desfrutava, de não deixar a preguiça que o mantinha cativo, e que deste se possa dizer: “Eles procuram desculpas para seus pecados[4]”. Não é assim? Meu Deus, não é justamente quando existe mais pus e podridão numa ferida que se necessita de um médico hábil e experiente, e não foi nosso divino Salvador quem disse que “não são os saudáveis que precisam de médico”?

35. Quando um grande rei, pretendendo empreender uma expedição importante, nos chama à sua presença e nos declara que intenta servir-se de nós, ah!, obedecemos prontamente, não usamos de nenhum subterfúgio, não alegamos nenhum pretexto; mas, abandonando tudo, apressamo-nos em nos apresentar diante dele para receber e executar suas ordens. Ora, será com o mesmo zelo e a mesma diligência que respondemos à voz do Rei do s reis, do Senhor dos senhores e do Deus dos deuses, que nos chama e quer n os envolver sob os estandartes de sua milícia celeste, fazendo-nos entrar nos caminhos da vida religiosa? Não é de temer que nossa preguiça e nossa negligência em responder a seu apelo nos coloque sem escusa e sem defesa quando formos citados para comparecer diante de seu temível tribunal?

36. Não podemos negar que aquele que se acha ligado por cadeias de ferro devido aos cuidados e embaraços da vida mundana não é capaz de caminhar com facilidade pelas vias da salvação e, se caminha, o faz com grande dificuldade. Eles se parecem com estes infelizes que estão sob o peso de correntes, ou em cujos pés foram colocadas pesadas travas: a cada momento, tentando caminhar, eles caem e se ferem cruelmente. É por isso que eu comparo o homem que, não sendo casado, permanece na vida secular só para cuidar dos assuntos temporais, a alguém que tem algemas nas mãos, pois, se ele quiser, poderá abraçar a vida religiosa, enquanto que comparo o homem casado a alguém que tem as mãos e os pés acorrentados.

37. Um dia, encontrei algumas pessoas que viviam no esquecimento de sua salvação; eles me perguntaram: “Como nos será possível pensar na vida religiosa e solitária, nós que somos obrigados a viver com nossas esposas e que somos oprimidos sob o peso de nossos assuntos temporais?”. Eu me contentei com lhes responder: “Não deixem de fazer todas as boas obras que puderem; fujam da mentira com horror; que o orgulho não os faça desprezar a ninguém; não tenham raiva de ninguém; assistam regularmente aos ofícios da Igreja; sejam caritativos e benevolentes para com os pobres; jamais escandalizem seus irmãos; respeitem a mulher do próximo, e que cada um se contente com sua esposa. Se vocês agirem e viverem assim, vocês não estarão longe do Reino dos céus”.

38. Corramos com uma alegria mesclada de temor ao combate para o qual Deus nos chama. É aos demônios que devemos fazer a guerra; não tenhamos medo deles, pois, ainda que não os possamos ver, eles nos conhecem e penetram no fundo de nossas almas; e se eles a encontrarem perturbada e medrosa, não acharão que nos damos por vencidos? Não se precipitarão sobre nós terrivelmente encarniçados, a fim de nos tornar seus miseráveis escravos? Ora, como conhecemos suas armadilhas, armemo-nos contra eles com coragem; pois quando alguém vê uma armada composta por soldados valentes e corajosos, ansiosos por se medir com o inimigo, hesita em se lançar à luta.

39. De resto, Deus, em sua Sabedoria e Bondade infinitas, cuida em especial daqueles que não tem outra coisa a fazer do que se engajar a seu serviço: Ele mesmo adoça suas penas e seus trabalhos, a fim de que o primeiro choque e o primeiro assalto que eles tenham que sustentar não sejam demasiado violentos e os levem a retornar para o século. Generosos servidores de Deus, esta certeza não os enche de alegria e felicidade? Não encontram vocês, nesta admirável conduta do Senhor, uma prova incontestável de sua afeição e sua ternura por vocês, e um testemunho seguro de que foi Ele quem os fez entrar neste gênero de vida?

40. Entretanto, já observamos que muitas vezes, encontrando Deus corações fortes e generosos, Ele costuma entrega-los, já no começo de sua conversão, a combates rudes e violentos; mas é para poder lhes dar logo a seguir a coroa e a recompensa de uma vida feliz e cheia de méritos.

41. Mas também, por uma providência paternal, pode acontecer que Deus esconda daqueles que ainda estão no mundo as penas e as dificuldades encontradas na vida religiosa, não os deixando entrever senão os modos fáceis da santificação; pois ele sabe que, se fossem conhecidos os penosos trabalhos que se deverá suportar, não haveria quem se engajasse.

42. Assim, consagrem a Cristo a flor de sua juventude, e trabalhem para sua Glória com zelo ardente; e, numa idade avançada, a lembrança de suas boas obras os inundará de deliciosa alegria, pois aquilo que ajuntamos e recolhemos na juventude, nutre e consola nas fraquezas e langores da velhice. Enquanto estamos cheios de força e saúde, trabalhemos com nobre ardor, e percorramos a carreira religiosa com sabedoria e prudência; pois a morte é incerta, e teremos que nos haver como inimigos desonestos, cruéis, poderosos, vigilantes, incorpóreos, invisíveis, e sempre armados com tochas incendiárias para reduzir a cinzas os templos vivos do Senhor.

43. Que sobretudo os jovens evitem escutar a voz destes espíritos ciumentos e mentirosos; pois eles lhes sugerirão sem cessar de não submeter a carne a tantos rigores, a fim de evitar as doenças e enfermidades que eles inventam: “Será possível encontrar, e sobretudo neste século em que vivemos, será possível encontrar alguém que, por meio de imoderadas mortificações, haja triunfado sobre seu corpo, matando suas paixões, privando-se de coisas necessárias? Não basta se abster da intemperança, e se proibir os alimentos sofisticados?” Esta é a linguagem insidiosa dos demônios. Mas não é evidente que sua intenção, falando-nos assim, é de nos desencorajar e nos tornar tímidos, preguiçosos e negligentes desde nossa entrada ao serviço de Deus, a fim de que estejamos tão pobres e miseráveis no final da carreira quanto no começo?

44. Antes de tudo, é de extrema importância para os que querem servir a Deus com ardor e fidelidade, que procurem e encontrem, seja pela prudência e a sabedoria de alguns padres experientes, seja pelas luzes e o testemunho de sua própria consciência, os lugares, o tipo de vida, a moradia e os exercícios que lhes sejam mais convenientes e apropriados; pois eu creio que os que amam as delícias não são feitos para a vida em comunidade, e os que tem um humor irascível não devem abraçar a vida solitária. Cada qual deve examinar diante de Deus o tipo de vida que melhor lhe convém.

45. Eu penso que todas as formas de vida religiosa se reduzem às seguintes três: a primeira consiste em viver em perfeita solidão; a segunda, em viver no deserto, mas com mais um ou dois monges; a terceira, em viver em comunidade. Mas em tudo devemos observar este conselho que nos dá Salomão: “Não vá nem à direita nem à esquerda[5]”: siga com perseverança o caminho real de Jesus Cristo. O segundo tipo de vida religiosa parece convir a muitos; o mesmo Salomão nos diz: “Infeliz do que é só, porque se ele cair ninguém o ajudará a que se levante[6]”. Que acontecerá então ao monge que, estando só, tiver a infelicidade de se aborrecer, de adormecer, de se tornar preguiçoso ou chegar ao desespero? Será melhor lembrar as boas palavras de nosso Senhor: “Quando dois ou três estiverem reunidos em meu Nome, Eu me encontrarei no meio deles[7]”.

46. Portanto, quem será o monge fiel e prudente? Eu respondo sem hesitar que é aquele que conservou com perseverança o fervor de sua entrada na religião, e que, até o final de sua carreira, não cessou de ajuntar chama sobre chama, fervor sobre fervor, precaução sobre precaução, desejo sobre desejo. Portanto, vocês que subiram este primeiro degrau, não olhem para trás.



SEGUNDO DEGRAU

Da necessidade de se despojar das afeições e dos cuidados com as coisas do mundo.

1. Quem ama a Deus com todo seu coração, que deseja ardentemente o Reino dos céus, que trabalha com coragem para se purificar das faltas que cometeu e para se corrigir dos maus hábitos adquiridos, que não perde jamais de vista o juízo final e os suplícios eternos, que alimenta em sua alma o pensamento e o temor da morte, este não tem mais amor nem inclinação pelo dinheiro e as riquezas, por seus parentes ou pela glória do mundo, por seus irmãos e amigos, enfim, por todas as coisas frágeis e perecíveis; ele expulsou de seu coração todo sentimento, toda ligação e todo cuidado; ele odeia sua própria carne, e, num estado de perfeita nudez, ele estuda por seguir a Cristo com indizível ardor; ele não suspira senão pela felicidade do céu, e é apenas de Deus que ele espera todo o socorro necessário para alcançá-la. Ele diz com Davi: “Minha alma só está ligada a você, ó meu Deus[8]”; e com o ilustre profeta: “Eu não canso de segui-lo, Senhor; eu não busquei o julgamento dos homens nem suas consolações[9]”.

2. Mas certamente seria uma vergonha para nós se, depois de havermos abandonado todas as coisas de que falamos, depois de nos termos devotado, não a seguir um homem, mas a servir ao Senhor que nos envolveu em seus estandartes, ainda nos divertíssemos buscando objetos incapazes de nos trazer o menor alívio para a extrema necessidade em que nos veremos na hora da morte. Comportarmo-nos assim não equivale a violar o preceito de Jesus Cristo que nos proíbe de olhar para trás? Não é o mesmo que nos declararmos ineptos para o Reino de Deus?

3. Para nos evitar esta infelicidade, nosso divino Salvador, que conhece bem até que ponto nossa fragilidade nos expõe à inconstância e o quanto é fácil para nosso coração se voltar para as coisas da terra a que havíamos renunciado – basta conversarmos ou termos qualquer relação com as pessoas do mundo –, para nos evitar esta infelicidade Ele nos dirigiu estas palavras memoráveis, ditas ao jovem que pediu permissão para enterrar seu pai antes de segui-lo: “Deixe que os mortos enterrem seus mortos[10]”.

4. Lembremo-nos que os demônios, depois que renunciamos às coisas do século, procuram nos fazer crer que só são felizes os que, no mundo, fazem o bem aos indigentes, e que somos infelizes na vida religiosa, porque não temos esta facilidade. Ora, o que os inimigos de nossa salvação se propõem com esta tentação, é nos levar a voltar para o século, ou nos atirar ao desespero se perseverarmos em viver retirados.

5. Na vida religiosa, encontramos pessoas que, por orgulho, desprezam as pessoas que vivem no mundo, e se colocam acima delas. Vemos também que eles as desprezam com o único objetivo de sufocar em si próprios pensamentos de desencorajamento que os assaltam, e de se fortalecer na esperança e na confiança em Deus.

6. Portanto, escutemos com especial atenção o conselho que nosso Senhor deu um dia ao jovem que até então bem observara a lei de Deus: “Só lhe falta uma coisa, que é vender todos os seus bens, dar o dinheiro aos pobres e seguir-me[11]”, a fim de que, fazendo-se voluntariamente pobre, você seja obrigado a recorrer à caridade dos outros.

7. Nós, que resolvemos seguir nosso curso com ardor e prontidão, estejamos atentos à condenação que o Senhor levantou contra os que vivem em mosteiros, e que, vivos, estão como mortos, quando Ele disse: “Deixe os que estão no mundo e que estão mortos, que enterrem os que estão corporalmente mortos[12]”.

8. Mas as riquezas que aquele jovem rico possuía não foram obstáculo para que ele recebesse o batismo; é por isso que nós pensamos que se enganam os que dizem que o Senhor lhe ordenara vender tudo o que tinha para então receber o batismo. Na verdade, o divino Salvador quis com isto nos fazer compreender que exigia mais dele para leva-lo ao estado de perfeição que lhe proporá, do que para admiti-lo a receber o batismo. Esta prova deve nos convencer da excelência de nossa profissão.

9. Podemos aqui examinar porque certas pessoas que, enquanto viviam no mundo se entregavam a penosas vigílias, jejuns rigorosos, trabalhos fatigantes e toda sorte de mortificações, chegadas à vida solitária abandonaram estas práticas de piedade por as verem como falsas e más.

10. É que a vida religiosa permite distinguir as verdadeiras virtudes das que não passam de virtudes hipócritas, mostrando-nos a carreira na qual podemos correr e combater com sucesso e benefícios reais; pois estou quase afirmando que a maior parte das boas obras praticadas por quem vive no século são plantas regadas com a água gasosa e infecta da vanglória, cultivadas e nutridas em meio à ostentação, os aplausos e os louvores; uma vez transplantadas para a solidão dos anacoretas, inacessíveis aos olhares das pessoas do mundo, e não mais encontrando a umidade mundana da água corrompida da vanglória, essas pretensas boas obras, essas falsas virtudes, não tardam em perecer; pois essas plantas, nascidas em terra úmida, não podem prosperar num terreno seco e árido, privado de todos os louvores humanos, como o são as santas escolas da solidão e dos desertos.

11. Aquele que odeia o espírito do mundo se livra alegremente de tudo o que pode lhe causar penas e aflições; mas quem se deixa conduzir por este espírito e conserva ainda a feição pelas coisas da terra não está certamente isento de tristeza e aborrecimento. Como poderá este, sem penas, se ver privado das coisas que ama?

12. Ah! Se em todas as coisas devemos ter muita prudência e circunspecção, aqui mais do que em tudo devemos ser sábios e discretos; pois não é raro ver um grande número de pessoas que,  mesmo agitadas no mundo por cuidados e inquietações, sobrecarregadas de afazeres e de ocupações, enfraquecidas pelas vigílias profanas, conseguiram se preservar da loucura e do contágio dos prazeres carnais, mas que caíram vítimas da mais vergonhosa paixão assim que entraram para o repouso e a tranquilidade da vida religiosa, ou para o silêncio da solidão.

13. Tomemos especial cuidado para evitar que, pensando e dizendo estarmos caminhando pela via estreita e difícil, estejamos na verdade marchando pela via larga e espaçosa. Ora, os sinais que nos permitem reconhecer que estamos no caminho que conduz ao céu são a mortificação no comer, as vigílias, a privação até de água para beber e de pão para comer, o amor às humilhações, a paciência nas injúrias, nas zombarias e nos ultrajes, a renúncia às próprias vontades, a mansidão nas reprovações e nas afrontas, o silêncio da boca e do coração quando nos desprezam, a perfeita tranquilidade em meios aos piores tratamentos, a coragem constante em suportar com bondade aos que nos fazem injustiças, que nos difamam com maledicências, que nos cobrem de ignomínias e nos condenam injustamente. Felizes os que, depois de entrarem na vida religiosa, seguem esta via! Pois “o Reino dos céus lhes pertence[13]”.

14. Ninguém será recebido na sala nupcial do Paraíso para aí receber a coroa da imortalidade se não tiver praticado as três renúncias de que falei: primeiramente, se não tiver dito adeus a todas as coisas, a seus parentes e amigos e a todo o mundo; depois, se não renunciar à sua própria vontade; e em terceiro lugar, se não imolar a vanglória que costumamos buscar até mesmo nos deveres da obediência.

15. Foi com esta finalidade que o Senhor nos mandou dizer por seu profeta: “Saiam do meio deles, mantenham-se separados, não se sujem com as impurezas do mundo[14]”. Será possível encontrar dentre os mundanos alguém que tenha feito coisas dignas de ser admiradas, que tenha devolvido a vida aos mortos ou expulsado os demônios? Procuraríamos em vão. Estas maravilhas normalmente são recompensas que Deus concede aos que estão inteiramente a seu serviço; os mundanos não são susceptíveis disto, e se pudessem aspirar a tanto, de que adiantaria deixar o mundo e se consagrar aos penosos trabalhos de uma vida religiosa?

16. Se, depois de deixarmos o mundo, os demônios nos perturbam e nos tentam comas lembranças dolorosas e ternas de nossos pais e mães, de nossos irmãos e irmãs, saibamos recorrer às santas armas da oração, ao pensamento das chamas eternas, a fim de que a lembrança destas chamas terríveis extinga em nós o fogo por meio do qual os demônios querem reduzir a cinzas nossas generosas resoluções.

17. Lembremos aqui que aquele que se crê independente de tudo e que renunciou a tudo vive uma funesta ilusão, se ainda experimentar um sentimento de tristeza por não possuir aquilo que deseja.

18. As pessoas que, em sua juventude, tiveram a infelicidade de se deixar levar pelo amor e pela fruição dos prazeres carnais, mas que apesar disso formaram o desejo e tomaram a resolução de entrar para uma comunidade religiosa, devem se dedicar com o maior cuidado às regras austeras da sobriedade e da temperança, se entregar inteiramente aos sagrados exercícios da oração, recusar severamente a seus corpos todo prazer e tudo o que possa lhe trazer bem-estar e alegria, abster-se de toda espécie de desregramentos e sensualidades, no temor que seu último estado não se torne pior do que o primeiro[15]. Pois a religião é um porto no qual encontramos a salvação; mas nele também podemos encontrar o naufrágio, e os que já viajaram por este mar espiritual podem atestar esta verdade. É um triste espetáculo ver pessoas que, depois de atravessar o mar raivoso do mundo, vêm naufragar miseravelmente e perecer no porto. Este é o segundo degrau; se você subir nele, que em sua fuga imite a Lot, não à sua esposa.


TERCEIRO DEGRAU

Da fuga do mundo.

1. A retirada, ou a fuga do mundo, consiste numa renúncia eterna a tudo o que pode se opor aos desígnios de piedade que criamos; trata-se de uma mudança feliz de hábitos e de conduta, uma sabedoria desconhecida, uma prudência que foge com horror dos olhares dos homens, uma vida oculta, um fim e um objetivo interior e secreto, uma meditação doce e tranquila, um zelo para com o desprezo e as humilhações, um desejo ardente por austeridades e sofrimentos, um fundamento sólido de afeição e amor a Deus, uma fonte fecunda de caridade, uma renúncia perfeita à vanglória e um profundo silêncio.

2. Abandonar e deixar seus próximos e aquilo que eles possuem no mundo, eis o projeto que no mais das vezes com mais violência agita aqueles que, desde o começo de sua conversão, se ligam fortemente a Deus e ficam como que abrasados por um fogo inteiramente celeste. Ora, o que os leva a este piedoso desígnio, seus novos amantes de beleza nobre e excelente, é o desejo de se devotar a todo tipo de humilhações e a toda espécie de penas e de sofrimentos. Mas quanto mais esta resolução é generosa e louvável, mais é necessária prudência e discernimento para cumpri-la; pois eu estou longe de dar minha aprovação a qualquer retirada feita com a maior coragem.

3. Com efeito, se nosso divino Salvador nos assegura que “ninguém é bom profeta em seu próprio país[16]”, é para nos advertir a que tomemos cuidado com que, renunciando à nossa pátria, não o façamos apenas para reencontrá-la na vanglória com que nos propusemos fugir ao mundo; pois a fuga do mundo não é outra coisa que uma separação franca e verdadeira de todas as coisas da terra, de modo a que nossa alma esteja invariavelmente unida a Deus sem mais separar-se dele. Essencialmente, ela deve produzir em nós a dor e o arrependimento por nossas faltas. Aquele que se separou do século é alguém que renunciou a toda afeição carnal pelos seus e pelas coisas que são estranhas ao seu novo estado.

4. A vocês que pensam em sair do mundo, eu lhes peço que, para fazê-lo, não esperem que seus amigos tenham se desembaraçado de seus negócios: temam a morte que poderá surpreendê-los antes de que tenham cumprido seu desígnio. Pois muitos se enganaram! Eles queriam salvar a outros, preguiçosos e negligentes; mas ao esperá-los, deu-se que o fogo do amor divino que os abrasava extinguiu-se pouco a pouco em seus corações, e eles pereceram miseravelmente junto com aqueles a quem pretendiam salvar. Ora, se vocês sentem em si os ardores celestes do amor divino, e não sabem quando ele poderá desaparecer deixando-os em meio às trevas, caminhem e corram para onde Deus os chama, lembrando que o Apóstolo nos advertiu de que não estamos encarregados da salvação de nossos irmãos: “Irmãos, cada qual prestará contas de si mesmo a Deus[17]”; e ele acrescenta em outra parte: “Como? Vocês querem ensinar a outras pessoas sem que tenham instruído a si mesmos?[18]”. É como se ele dissesse: “no que se refere aos outros, eu nada sei; mas n o que toca a cada um de nós em particular, sei bem que estamos obrigados a nos conhecer e nos salvar”.

5. Vocês que empreendem a viagem que irá fazê-los sair do mundo, vigiem a si próprios com o maior cuidado; pois o demônio tentará torna-los inconstantes e sensuais, e sua própria retirada fornecerá a ele os meios e as ocasiões.

6. Existe o maior mérito diante de Deus em se despojar de toda afeição pelas coisas da terra, e é a fuga do mundo que nos coloca neste estado feliz.

7. É por isso que quem, por amor ao Senhor, deixou o mundo, não deve mais ser animado senão pelo desejo de agradar a este divino Salvador; de outro modo, ele seguiria ainda cegamente as afeições e as paixões de seu coração.

8. Vocês que disseram adeus ao mundo deixem de se misturar aos afazeres do mundo; lembrem-se de que os desejos que vocês sufocaram no coração tentam novamente se estabelecer ali.

9. Foi pela força e contra sua vontade que Eva foi expulsa do Paraíso terrestre; mas é por um ato de sua própria vontade que um monge deixa seu país para encerrar-se num lugar distante. Se Eva ainda tivesse permanecido no delicioso jardim onde tinha sido colocada ela não teria deixado de desejar comer o fruto que a levara à primeira desobediência; e o monge, permanecendo no mundo, encontraria inúmeros perigos de se perder no meio de seus parentes e de seus amigos.

10. Evitem as ocasiões de cair e de pecar, no mínimo com o mesmo cuidado com que evitariam uma pena ou um grave suplício que alguém lhes quisesse infligir. Os frutos que não vemos não nos expõem à tentação e ao desejo de comê-los como aqueles que vemos.

11. Conheçam bem as armadilhas e os artifícios que  os espíritos tenebrosos do inferno utilizam para nos derrubar; eles procuram nos fazer crer que não devemos nos retirar nem dos embaraços do século nem do meio dos irmãos, porque fazendo-o estaremos perdendo uma grande recompensa e uma grande glória; eles nos dizem interiormente, “que mérito não terá uma pessoa que triunfar sobre si mesma reprimindo os fogos impuros quando encontra alguma beleza terrestre?”. Ah! Cuidemos de não ouvi-los em circunstâncias análogas; façamos o contrário do que nos sugerem.

12. Assim, se depois de havermos abandonado nossos próximos e nossa família, depois de termos passado alguns ou muitos anos na vida monástica, depois de termos feito progressos na piedade e na prática da virtude, depois de havermos chorado amargamente e reparado o tempo de vida que passamos no pecado e no contentamento de nossas paixões, depois de termos alegremente recebido os dons da castidade e da continência, se depois de tudo isto nos vier ao espírito pensamentos vãos e frívolos, como os de retornar à pátria sob o pretexto falacioso de edificar com nossa nova e virtuosa vida aqueles a quem havíamos escandalizado com nossa vida licenciosa e desregrada, e, com nossa eloquência, nosso saber e nossos talentos, nos tornarmos os salvadores do povo, suas luzes, seus doutores e condutores... Ah! Estejamos certos de que isto não passa de uma armadilha que os demônios nos colocam: eles querem que percamos em alto mar o tesouro que conseguimos adquirir longe das tempestades em nosso porto.

13. Nesta ocasião, devemos imitar a Lot e não à sua esposa; pois quem quer que retorne ao lugar que deixou e às coisas que abandonou se tornará como o sal insípido, e merecerá permanecer imóvel como a mulher de Lot, que foi transformada em estátua de sal.

14. Fuja para longe do Egito e não conserve sequer o pensamento de retornar ali; pois os que voltaram para o Egito em pensamentos e desejos perderam a paz e a tranquilidade da Jerusalém celeste.

15. Mas aconteceu algumas vezes que pessoas que deixaram o mundo para conservar sua influência, depois de terem fortificado solidamente sua virtude e purificado santamente sua consciência, voltaram ao mundo produzindo grandes benesses e contribuindo poderosamente para a salvação de outros, sem negligenciar a sua própria. Assim foi que Moisés, depois de ter contemplado no deserto a face de Deus, recebeu a ordem de voltar para o Egito para salvar ali os de sua nação, coisa que ele fez em meio aos maiores e mais iminentes perigos e as mais profundas trevas.

16. Vale infinitamente mais descontentar a nossos pais do que descontentar a Deus; pois ele é o Mestre soberano de nossos próximos, e foi ele quem nos criou e resgatou. De resto, não é raro que os pais causem a perda de seus filhos, mesmo os amando, atirando-os aos suplícios eternos.

17. Dizemos que alguém está verdadeiramente separado do mundo quando já não fala nem compreende a linguagem do mundo.

18. Quando deixamos o mundo para abraçar a vida solitária, isto não é devido ao ódio que sentimos por nossos próximos nem à aversão         que sentimos por nossa pátria: tão horrível crime está longe de nós. Quando deixamos o mundo para abraçar a vida solitária é unicamente para evitar que nos percamos eternamente.

19. Nisto como em todas as coisas é ao Senhor que escutamos, e cujas pegadas seguimos; pois sabemos que Ele mesmo abandonou muitas vezes seus pais segundo a carne. Com efeito, tendo um dia alguém o advertido de que sua mãe e irmãos o procuravam, o divino Mestre, para nos mostrar que existem ocasiões nas quais devemos fugir santamente dos parentes deu esta admirável resposta: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que cumprem a Vontade de meu Pai que está nos céus[19]”.

20. Reconheçam como pai aquele que pode e quer aliviá-los do peso enorme dos seus pecados; e como mãe, a compunção do coração, capaz de purifica-los de toda mancha; como irmãos, os que podem ajuda-los a obter os dons celestes, trabalhar e combater com vocês; como esposa, unida indissoluvelmente a vocês, o pensamento constante da morte; como únicos filhos amados, os gemidos do coração; como escravos, seus sentidos e sua carne; e como amigos, as legiões celestes, que lhes trarão mais benefícios na hora da morte na medida em que durante a vida vocês tenham tido o cuidado de manter sua amizade. Este é o santo parentesco dos que buscam sinceramente ao Senhor[20].

21. Que o desejo do céu faça pronta e facilmente desaparecer as afeições carnais que sentimos pelos próximos! É um erro grosseiro imaginar que é possível ao mesmo tempo amar a seus parentes segundo a carne e amar o céu segundo Deus, porque nosso divino Salvador emitiu esta sentença condenatória: “Ninguém pode servir a dois mestres[21]”.

22. Em outra passagem, ele nos declarou positivamente não ter vindo à terra “para trazer a paz, mas a guerra e a espada”, ou seja, que ele não veio trazer aos pais e irmãos um amor carnal por seus filhos e irmãos que quisessem se consagrar a seu serviço, mas que ele veio para separar os que amam e servem a Deus dos que amam e servem o mundo; os que estão ligados à terra dos que colocam sua atenção nos céus; os que buscam o orgulho dos que só se sentem bem na humildade: pois Ele ama esta divisão e separação espirituais.

23. Cuidado, eu repito, para que o afeto que vocês sentem pelos próximos e pelas coisas da terra não os faça naufragar em meio às águas de pecado de que o mundo está inundado. E se vocês não quiserem chorar eternamente, não sejam sensíveis às lágrimas de seus pais e amigos.

24. Assim, se para detê-los em seus piedosos desígnios eles os cercarem como moscas ao redor do mel, ou melhor, como marimbondos, e para fazê-los desistir, eles se rasgarem em lamentações, coloquem prontamente em seus espíritos o pensamento da morte e os terríveis perigos a que vocês estarão expostos, e, sem desviar sua atenção destes dois objetos, comparem a pena que lhes propõem seus próximos com a que farão a si próprios expondo-se à infelicidade eterna, como quem fecha um buraco com outro buraco.

25. Estas pessoas que parecem ser devotadas aos nossos interesses e que realmente não querem nos fazer mal nos prometem montanhas de ouro e nos asseguram com zelo que só farão coisas que nos sejam agradáveis e úteis. Mas todos estes testemunhos são enganosos: tudo o que eles propõem é que nos desviemos do caminho que nos conduzirá à felicidade eterna, e nos levar a seguir suas próprias vontades.

26. Quando finalmente deixarmos o mundo, é importante nos retirarmos para lugares onde encontremos o mínimo de consolações humanas, o mínimo de ocasiões de vanglória, onde estivermos menos expostos à funesta celebridade; de outro modo nos pareceremos aos pássaros que mudam de ares: nosso coração permaneceria o mesmo e nossas paixões continuariam a imperar sobre nós.

27. É ainda de muito proveito esconder o esplendor de seu nascimento ou o brilho do seu nome, a fim de que sua vida e suas ações não anunciem outra coisa que o amor a Deus e sua salvação.

28. Dificilmente encontraremos alguém que tenha abandonado sua pátria e seus próximos com uma generosidade e uma perfeição semelhantes às do santo patriarca Abraão. Mal ele havia escutado as palavras de Deus: “Deixe seu país, seus pais e o seio de sua família[22]”, e se pôs a caminho, sem hesitar, ainda que fosse para se colocar no meio de povos bárbaros cuja língua ele ignorava.

29. Existem assim alguns a quem o Senhor cobriu de glória por haverem imitado esta grande personagem, deixando generosamente tudo o que possuíam neste mundo. Entretanto eu creio que, embora esta glória venha de Deus, devemos evitá-la, e não nos propormos a ela senão com um espírito de humildade.

30. Quando os demônios, ou mesmo os homens, louvam nossa retirada como sendo uma ação forte e generosa, é para nos fazer conceber um sentimento de orgulho. Expulsemos imediatamente esta tentação, pensando que por amor a nós e para nossa salvação o Filho de Deus se rebaixou a deixar os esplendores eternos de sua Glória para vir habitar humildemente sobre a terra; e saberemos que, ainda que vivêssemos toda uma eternidade, seríamos incapazes de fazer algo semelhante para lhe testemunhar nosso reconhecimento.

31. A afeição que conservamos interiormente por nossos próximos, e mesmo pelos estranhos, pode se tornar funesta para nós; ela nos levaria pouco a pouco a retornar para o mundo, ou no mínimo poderia extinguir em nós o fervor da piedade e da compunção.

32. Assim como é impossível mirar o céu com um olho e ao mesmo tempo fixar o outro na terra, também é impossível a uma pessoa que não se retirou do meio de seus próximos e de todas as pessoas que lhe são caras segundo a carne, por uma separação perfeita de espírito e de corpo, deixar de se expor ao perigo evidente de uma perda espiritual.

33. Saibamos assim que só com muitas penas e trabalhos conseguiremos reformar nossos hábitos e nossa conduta, e que pode muito bem acontecer de perdermos num instante tudo o que adquirimos com um trabalho longo e penoso; pois os discursos vãos e profanos, e sobretudo os maus, rapidamente corrompem os bons hábitos[23].

34. Portanto, aquele que, tendo renunciado a tudo, não deixa de seguir os costumes e frequentar as pessoas do mundo, cairá nas mesmas armadilhas que eles e manchará seu coração com o pensamento de coisas profanas; ou, se não encher sua consciência de coisas mundanas, a encherá com juízos temerários que fará a respeito de quem achar que está sujo por maus pensamentos. É assim que, de um lado ou de outro, ele não se preservará de pecar com os seculares. São sonhos que costumam perturbar o sono de quem deixou o mundo.

35. Seria vão eu tentar esconder o quanto meu espírito é pouco sutil e penetrante, o quanto meus conhecimentos são limitados e minha ignorância profunda. Assim como o palato da boca julga o gênero e a natureza dos alimentos, assim como os delicados ouvidos dos auditores julgam a beleza dos pensamentos do orador, assim como o brilho do sol nos faz ver a fraqueza dos olhos, também minhas palavras ilustram minha pouca capacidade; mas às vezes o amor nos leva a empreender coisas que estão acima de nossas forças. Assim é que eu penso, sem ousar afirmá-lo, que, depois de ter falado – ou melhor, falando da fuga do mundo – convém dizer algumas coisas a respeito dos sonhos, a fim de que se saiba que os demônios se servem deles coo armadilhas para perder as almas.

36. Digo que o sonho não é outra coisa do que um movimento e uma agitação do espírito, enquanto os sentidos do corpo estão em suspenso.

37. Uma visão imaginária é uma ilusão por meio da qual a imaginação sozinha, sem poder julgá-la, crê perceber certos objetos no momento mesmo do despertar: trata-se de uma representação de coisas que não têm nem ser nem existência.

38. O motivo que nos leva a falar dos sonhos, depois de termos dito algumas coisas sobre a fuga do século, deve parecer evidente. De fato, a partir do momento em que, por amor ao Senhor, renunciamos a nossos bens e a nossos próximos, e que, no exílio voluntário, nos consagramos e como que nos vendemos a seu serviço e ao amor dos bens celestes, os demônios, invejosos de nossa felicidade, tratam de espalhar a perturbação e a inquietude em nossas almas por meio dos sonhos. Assim é que eles nos representam nossos próximos, às vezes em prantos, às vezes estendidos num leito de morte, ou mergulhados em amargura por nossa causa, ou atormentados por alguma infelicidade; aquele que acredita nos sonhos como sendo algo real se assemelha a uma pessoa que corre atrás de sua própria sombra esforçando-se para apanhá-la.

39. Lembremos aqui que os demônios, para nos vender qualquer fumaça de vanglória, se fazem de profetas para nós: eles nos anunciam em sonhos coisas futuras que adivinharam pela sutileza de suas conjecturas; e, vendo acontecer aquilo que víramos em sonhos, ficamos surpresos e admirados. E assim eles nos conduzem ao orgulho, fazendo com que pensemos que é Deus quem nos faz conhecer as coisas futuras.

40. É preciso confessar aqui que, para os que acreditam nas coisas do demônio, este espírito de malícia revela coisas que acabam acontecendo; mas para os que desprezam os sonhos que ele dá, ele não passa de um mentiroso; pois, sendo um puro espírito, ele pode com mais facilidade conhecer as coisas que acontecem no universo. Assim, por exemplo, sabendo que uma pessoa está perto de morrer, eles podem em sonhos anunciar esta morte aos que se prestam às suas insinuações.

41. Quanto às coisas futuras, disto nada sabem: sua presciência não chega a tanto. E do mesmo modo, médicos hábeis e experientes poderiam também fazer as mesmas previsões sobre a morte de certos doentes.

42. Saibamos que estes espíritos das trevas se transformam muitas vezes em anjos de luz, aparecendo-nos em sonhos, sob a figura de algum mártir, a fim de que, ao despertarmos, nos façam experimentar uma funesta alegria, inspirando-nos uma opinião orgulhosa a nosso próprio respeito.

43. Eis a marca pela qual vocês poderão reconhecer a fraude e os artifícios dos demônios em relação aos cuidados que os anjos têm para conosco: estes últimos, nos sonhos de que são autores, não nos fazem ver outra coisa do que os suplícios eternos, o juízo final, a temida separação dos bandidos e das pessoas de bem, inspirando-nos um temor e uma tristeza salutares ao despertarmos.

44. Se acreditarmos nas coisas que os demônios nos inspiram durante o sono eles brincarão conosco mesmo durante a vigília. Assim, devemos dizer que quem crê nos sonhos não tem luz nem discernimento, e que é prudente e sábio que ele não lhes dê nenhuma fé.

45. Não respeitem senão os sonhos que representam as penas eternas e os julgamentos de Deus. Ser, ao contrário, os sonhos os levarem ao desespero, tenham mais certeza ainda de que se trata de obra dos demônios. Este terceiro degrau completa o símbolo da santíssima Trindade; e, se você tiver a felicidade de ter subido nele, não olhe nem à direita nem à esquerda.


QUARTO DEGRAU

Da bem-aventurada e sempre louvável Obediência.

1. É apenas aos que combatem sob os estandartes de Jesus Cristo que dirigiremos a palavra daqui por diante, de acordo com a ordem que estabelecemos; pois assim como a flor antecede o fruto a fuga do século antecede a obediência, seja porque renunciamos ao mundo por uma separação real, seja porque o deixamos renunciando a seu espírito e suas máximas. É em cima destas duas separações do mundo que a alma, sobre asas de ouro, se esforça para subir aos céus; é o que o salmista cantava nestes versos tão doces e agradáveis: “Quem me dará, dizia ele, asas semelhantes às da pomba, para que eu possa voar até o céu e aí repousar deliciosamente depois de haver trabalhado, meditado e praticado uma humildade profunda e uma obediência perfeita?[24]”.

2. Mas eu creio que cabe considerar aqui quais são as armas espirituais de que se servem os generosos soldados de Jesus Cristo de que falamos aqui, e de conhecer de que maneira eles seguram o escudo da fé e da confiança em Deus, para afastar para longe deles todo pensamento de infidelidade e de desobediência: como eles sempre mantêm a espada do espírito de Deus fora da bainha para imolar todos os movimentos de sua própria vontade, como eles estão inteiramente cobertos com as couraças da paciência e da doçura para amaciar todas as pontas perigosas das injúrias, das zombarias e das palavras ultrajantes, e como eles trazem sobre a cabeça o capacete da salvação, que consiste nas preces ferventes de seu superior, que os defende das flechas incendiárias de seus inimigos. Vocês verão como eles são firmes e inamovíveis em suas posições, e como apesar disso eles desfrutam da deliciosa liberdade das crianças de Deus; pois enquanto eles estão imóveis em suas preces contínuas, eles não deixam de exercer os deveres da caridade em favor de seus irmãos em Deus.

3. A obediência é assim uma renúncia perfeita à própria vontade, que se faz presente em ações exteriores; ou antes, é uma mortificação completa das paixões numa alma cheia de vida, é um movimento que nos faz agir com uma perfeita simplicidade e sem nenhuma preferência, é uma morte voluntária, uma vida isenta de toda curiosidade, uma segurança no meio dos perigos, um excelente meio de defesa para aparecer diante de Deus, uma segurança desejável na hora da morte, uma navegação sem recifes nem tempestades, uma viagem feita em segurança e sem dificuldade. Sim, a obediência dá à alma a paz e a calma contra o temor da morte, enterra a vontade e faz viver a humildade; ela não resiste e não contradiz jamais; ela não pronuncia nenhum julgamento e vê com igual indiferença os bens e os males da vida presente. O homem que tiver mortificado santamente seu coração sob o jugo da obediência nada temerá em suas ações, e aparecerá diante de Deus com uma confiança segura. Enfim, a obediência é uma renúncia completa às próprias luzes e ao próprio julgamento, pela submissão perfeita às luzes e ao julgamento de um superior.

4. Entretanto, é preciso confessar, o começo desta mortificação, ou antes, desta morte religiosa com a qual é preciso crucificar a vontade do coração, os sentidos da carne, são acompanhados de muitos trabalhos e de penas; os progressos feitos na obediência são ainda seguidos de alguns suores e algumas dificuldades; mas ao final nos encontramos alegremente libertos de toda sensação penosa e dolorosa, e entramos numa paz e numa tranquilidade perfeitas: pois a única pena que experimenta este homem obediente , ao mesmo tempo morto e vivo, consiste em saber que seguiu sua própria vontade em qualquer seja lá o que for: então ele teme ter que responde a Deus pela determinação que tomou por conta própria.

5. Vocês, que para correr mais depressa e com mais desembaraço se descarregam de tudo; que desejam carregar apenas o jugo de Jesus Cristo; que buscam por meio da obediência se desfazer do pesado fardo que carregavam; que, para usufruir da única verdadeira liberdade querem se tornar escravos da vontade de outros; que, sustentados e protegidos pelo socorro de outros, se decidem a atravessar o mar imenso que separa o tempo da eternidade: saibam, e não esqueçam jamais, que escolheram o caminho mais curto e mais seguro, embora seja o mais difícil e mais áspero, e que, seguindo-o, vocês não se perderão a menos que se deixem confiar em seu próprio julgamento e se recusarem a se deixar conduzir por seus superiores. Com efeito, todos eles chegaram ao final feliz a que se propuseram, tendo sido, nas coisas boas, religiosas e agradáveis a Deus, dirigidos pelas luzes e pela sabedoria de seus diretores: pois a obediência consiste essencialmente em desconfiar de si mesmo em todas as coisas.

6. Assim, quando enfim tomamos a resolução de carregar o jugo de Jesus Cristo, e de confiar a um pai espiritual o cuidado e a conduta de nossa alma, devemos, se nos resta um mínimo de julgamento e sabedoria, ver e pesar bem quais são as luzes e a prudência daquele a quem iremos confiar uma tarefa de tão grande importância; e, se posso me expressar assim, devemos empregar todos os recursos para conhecer o diretor que escolhemos, a fim de não termos a infelicidade de cair nas mãos de um mau imediato, em lugar de um piloto experiente; de um homem ignorante e doente, em lugar de um médico sábio e prudente; de uma pessoa cheia de vícios, em lugar de um de virtude consumada, e de um escravo das paixões ao invés de alguém perfeitamente liberto; e que assim, pretendendo evitar Sila, não caiamos em Caribde, naufragando lamentavelmente. De resto, uma vez entrados na carreira da piedade e da obediência, devemos nos proibir absolutamente todo julgamento sobre o virtuoso diretor que escolhemos, e de modo algum censurar sua conduta, ou suas ações, ainda que possamos notar nele algumas imperfeições ou quedas; ora, nenhum homem sobre a terra está isento! Mas se agirmos de outro modo, não obteremos nenhum fruto de nossa obediência.

7. Que esta consideração nos faça compreender o quanto é necessário, para que tenhamos uma perfeita e constante confiança em nossos diretores, gravarmos profundamente em nossos espíritos e nossos corações as boas obras e as virtudes que os vemos praticar; que nada possa apaga-las de nossa memória, e que, quando os demônios nos tentarem nos levar a desconfiar das luzes e da sabedoria dos diretores que nos conduzem, afastemos vitoriosamente esta tentação por meio das lembranças de suas boas e santas ações. Pois não podemos anular pela dúvida aquilo que nos decidimos a fazer sob suas ordens, e com maior zelo e prontidão na medida em que tenhamos mais confiança naquele que está no comendo. Podemos assegurar que aqueles que não têm confiança em seus diretores estão muito perto de cair, se é que já não caíram, pois “tudo o que não vem da confiança é pecado[25]”.

8. Assim, se lhes vierem pensamentos no sentido de julgar ou condenar seu diretor, rejeitem-nos com tanto horror como devem fazer a um pensamento desonesto com uma virgem. Esta tentação é uma víbora do inferno à qual vocês devem fechar toda entrada, toda abertura, e recusar qualquer espaço em seus corações. Digam a este dragão, com santo orgulho: “Saiba, infame impostor, que não fui eu quem recebeu o poder de julgar as ações de meu pai espiritual, e que eu sei perfeitamente que é ele quem tem o direito de julgar as minhas”.

9. Nossos ancestrais nos ensinaram que podemos encontrar nossas armas espirituais no canto dos salmos, que os exercícios da oração são muralhas para nos defendermos, que as lágrimas de penitência são um banho em que nossa alma se purifica de suas manchas, e que, sem obediência, que é a confissão do Senhor, ninguém, carregando seu pecados, verá a Deus.

10. Quem é perfeitamente submisso e obediente, proclama contra si mesmo; e se, para agradar a Deus, ele obedece perfeitamente, ainda que o que faça não esteja isento de imperfeição, de nada precisará prestar contas apo soberano Juiz. O mesmo não podemos dizer de quem segue sua própria vontade em qualquer coisa, ainda que lhe pareça estar cumprindo as ordens de seu superior; pois ele prestará contas a Deus daquilo que fez, em seu ato de obediência, conforme sua própria vontade. Se, nestas circunstâncias, o superior do mosteiro não cessar de corrigi-lo e repreende-lo, nem tudo está perdido para ele; mas se por infelicidade o superior ficar em silêncio, já não ouso dizer aqui o que eu penso.

11. Todos aqueles que, no Senhor, obedecem com simplicidade de coração, percorrem alegremente a carreira religiosa; pois, evitando pela obediência toda busca curiosa sobre as coisas que lhes são ordenadas, escapam das armadilhas e dos embustes dos demônios.

12. A primeira coisa que devemos fazer em relação ao diretor que escolhemos é fazer-lhe uma confissão exata de todos os pecados de nossa vida, e, se ele julgar a propósito que façamos uma confissão pública, nos submetermos a esta ordem de bom coração; pois esta confissão de nossas faltas, seja secreta, seja pública, contribuirá em muito para cicatrizar e curar as feridas que elas produziram em nossa alma.


História de um ladrão penitente.

13. Tendo eu ido um dia a um mosteiro cujo abade era um juiz e um pastor excelente, ouvi ser pronunciado um julgamento terrível. Eis o que se passou: enquanto eu estava no mosteiro, chegou nele um ladrão famoso, que pedia com grandes brados para entrar e abraçar a vida monástica. O abade, como bom pai e bom médico, lhe ordenou descansar por sete dias, para que também conhecesse os usos e o modo de vida do mosteiro. Passado este lapso de tempo, chamou-o em particular e lhe perguntou se ainda desejava permanecer no mosteiro e viver segundo as regras da casa; Como ele respondeu afirmativamente com candura e franqueza admiráveis, o abade lhe disse que seria preciso que ele fizesse uma confissão completa e detalhada dos crimes com que manchara sua vida. Mal tinha o abade lhe dado esta ordem, o ladrão apressou-se a executá-la, declarando-lhe todos os seus pecados com sinceridade e prudência espantosas. Mas para prová-lo ainda, o abade perguntou se ele consentiria em fazer a mesma confissão diante da comunidade. O homem não hesitou um segundo, respondendo afirmativamente, tão viva e sincera era sua aversão e a contrição que sentia por seus pecados, e tamanha vergonha de declará-los tinha na alma; ele chegou até a dizer que, se preciso fosse, os proclamaria no meio de Alexandria. O santo abade, vendo tão feliz disposição, reuniu todos os monges na igreja do mosteiro. Eram trezentos, e isto aconteceu no domingo após o Evangelho. Ele fez vir o ladrão, que já estava justificado. Este tinha as mãos amarradas às costas, o corpo vestido de cilício, a cabeça coberta de cinzas; alguns irmãos o levavam por uma corda enquanto outros lhe batiam levemente com varas. Como nem todos sabiam o que se passava, este espetáculo atemorizou de tal modo os religiosos, que eles não puderam conter os gritos e os gemidos. Quando o ladrão chegou à porta da igreja, o superior, cheio de zelo e de sabedoria, lhe disse com voz forte e terrível: “Detenha-se, pois você não é digno de entrar na casa de Deus!”. Estas palavras, saídas da boca deste prudente diretor, que estava no interior do lugar santo, impuseram ao ladrão tamanho terror, que ele pensou não ouvir uma voz humana mas um golpe de trovão e, tomado de temor e de horror, caiu com o rosto por terra; isto ele nos assegurou muitas vezes depois sob juramento. Ora, enquanto o ladrão penitente estava assim prosternado, lavando o chão com uma torrente de lágrimas, o abade, que com estas ações só buscava a salvação deste infeliz, e que queria apresentar a seus monges um modelo eficaz de uma profunda e salutar humildade, lhe ordenou que declarasse em ordem, com detalhes e diante de todos, os crimes que cometera e as faltas que fizera; ele o fez, tremendo, e causando nos que o ouviam confessar crimes horríveis um espanto e um terror inexprimíveis: pois ele confessou não apenas os pecados que cometera violando as leis ordinárias da natureza e levando a brutalidade além do razoável e racional, mas ainda envenenamentos, homicídios e outros atos tão execráveis que não é dado aos ouvidos escutar, nem à pena escrever. Quando ele terminou, o abade ordenou que cortasse o cabelo que fosse recebido em meio aos irmãos.

14. Cheio de admiração pela sabedoria deste santo homem ousei perguntar-lhe em particular quais eram as razões que o haviam levado a dar a seus monges um espetáculo tão extraordinário. Eis a resposta que me deu este excelente médico de almas: “Agi assim, disse ele, por duas razões principais. A primeira, para que este penitente, pela vergonha temporal e passageira que sofreu confessando publicamente seus pecados, se preservasse da confusão futura e eterna; e foi isto que felizmente lhe aconteceu, pois ele ainda não havia se levantado do chão e Deus generosamente o perdoara de todos seus crimes; e você não deve duvidar disto, caro abade João, pois um dos nossos monges que estava presente e muito atento me garantiu ter visto um homem de aspecto terrível que em uma das mãos tinha um papel escrito e na outra uma pena com a qual riscava sobre o papel cada pecado, na medida em que este penitente, prosternado por terra, ia confessando. E isto não deve nos surpreender, pois está escrito: ‘Tão logo, ó Deus, tomei a resolução de confessar minhas iniquidades diante de meu Deus e de mim mesmo, você me perdoou do negrume e da impiedade de minhas faltas[26]’. A segunda razão para eu ter me comportado deste modo é que tenho em minha comunidade alguns monges que ainda não confessaram suas faltas, e aproveitei a ocasião para incentivá-los a fazê-lo; pois, sem a confissão, ninguém pode receber o perdão dos seus pecados”.


Outras mostras de virtude.

15. Mas, além daquilo que contei, eu vi neste abade e no mosteiro que ele dirigia com tanta prudência e sabedoria muitas outras coisas que me deixaram espantado e admirado, e que merecem ser contadas. Tentarei ao menos contar as principais; pois fiquei muito tempo nesta casa, para me instruir exatamente na vida, na disciplina e na conduta dos monges que a habitavam; e lhes asseguro que considerando o ardor com que esses pobres mortais se esforçavam para imitar a vida e a perfeição das inteligências celestes, ficava fora de mim, e meu espanto não tinha limites.

16. Uma santa amizade os mantinha estreitamente unidos, a caridade que tinham uns pelos outros os ligava por cadeias indissolúveis; e o que me espantava era que sua afeição era isenta de toda familiaridade e toda leviandade, seja em suas relações com outros, seja em suas conversas. Acima de tudo, eles tinham o maior cuidado em nunca ferir a consciência dos irmãos. Se alguma vez um irmão deixava transparecer qualquer aversão por outro, o abade o purgava do mosteiro, enviando-o em exílio para outra casa, como um miserável. Ora, eis o que aconteceu diante de meus olhos: um dia um monge disse algumas palavras injuriosas a outro; logo que o abade soube disso, ordenou que ele fosse expulso do mosteiro, dizendo-lhe que não era possível manter dois demônios na mesma casa, um visível e um invisível, ou seja, um demônio real e um homem que era semelhante a um demônio.

17. Dentre estes respeitáveis monges vi outras coisas que podem ser úteis a nós e nos encher de admiração: por exemplo, lembro de uma sociedade de irmãos, formada no espírito de Deus e fortificada na mais perfeita caridade. Eles partilhavam tudo o que tinham de mais excelente, fosse na ação ou na contemplação; eles se dedicavam com tanto ardor aos exercícios da vida religiosa que quase não precisavam de opiniões nem conselhos de seu superior, pois tanto eles estimulavam uns aos outros no fervor e numa diligência quase divinos. Eles haviam combinado, regrado e determinado algumas práticas de piedade muito especiais; assim, por exemplo, se durante a ausência do abade um deles falasse a outro de modo inconveniente ou o condenasse por um julgamento inconsiderado, ou mesmo dissesse palavras inúteis, logo um irmão o advertia de sua falta por um sinal secreto e o reconduzia ao dever; se este monge parecesse não entender ou não se visse o sinal, o que o advertira devia se prosternar e se retirar. Nos momentos de recreação o pensamento da morte e do juízo era o objeto habitual de suas conversas.

18. É impossível não lhes falar aqui da virtude rara e singular do irmão encarregado de preparar os alimentos. Como nas ocupações tumultuadas de seu cargo eu o via num recolhimento admirável e sempre banhado em lágrimas, pedi-lhe que não me censurasse por lhe perguntar de que maneira teria ele obtido de Deus tão grande favor. Vencido pela minha insistência, ele me deu enfim esta resposta: “É que em meu posto eu nunca me vejo servindo os homens, mas a Deus mesmo; eu me considero indigno de qualquer repouso, qualquer tranquilidade; e, vendo diante de mim todos os dias o fogo material, eu me lembro sem cessar do fogo eterno”.

19. Vejamos ainda outra prática de piedade não menos rara e espantosa. À mesa, estes fervorosos monges não interrompiam suas santas meditações e, com sinais particulares advertiam uns aos outros a que renovassem o espírito de prece e oração; e não era só aí que agiam assim, mas todas as vezes em que se encontravam e se reuniam.

20. A caridade entre eles era admirável; pois, se acontecia a um deles cometer alguma falta, os outros o procuravam pedindo-lhe com insistência que descarregasse sobre eles o cuidado e a pena de prestar contas ao superior de tal fraqueza, para que recebessem a reprimenda e a punição. Desta forma o abade, que conhecia quais eram os sentimentos de caridade que reinavam nos corações de seus monges, não podendo ignorar que o culpado não estava entre os que se apresentavam diante de si, os repreendia com menos severidade e os punia com menos rigor; em algumas ocasiões ele nem tentava descobrir o autor da falta.

21. De resto, nunca os ouvi conversar sobre assuntos vãos, ridículos ou cômicos. Quando acontecia que alguém tivesse um pequeno contencioso com um irmão, outro irmão que se achasse presente, prosternando-se por terra, colocava fim à questão; se este método não funcionasse e não fizesse cessar o azedume e o ressentimento, o padre que substituía o abade era avisado, a fim de que tomasse as medidas eficazes para conseguir uma reconciliação perfeita antes do por do sol. Enfim, se este último recurso fosse inútil e o coração dos irmãos ofendidos permanecesse inflexível, era-lhes proibido todo alimento até que se reconciliassem perfeitamente; em último caso, os irmãos contendores era impiedosamente expulsos do mosteiro e da comunidade dos irmãos.

22. Ora, esta disciplina, tão regular e louvável, não era estéril, como se pode pensar: ela produzia grandes benesses e trazia as maiores vantagens; pois a maior parte dos irmãos faziam grandes progressos tanto na vida ativa como na contemplativa, e, cheios de luz e discernimento, eram de uma modéstia perfeita e de uma humildade profunda. Via-se assim no mosteiro um espetáculo celeste, capaz de trazer a maior admiração. Ali estavam anciãos, cujo rosto brilhava com venerável majestade, correr como crianças para receber as ordens do superior, colocando toda sua glória e toda sua felicidade em executá-las com escrupulosa exatidão e inteira submissão.

23. Penetrado de re3speito pelos monges que já haviam passado de cinquenta anos em exercícios constantes de obediência, um dia não pude me impedir de lhes perguntar que consolo extraíam da prática tão penosa e dolorosa desta virtude. Ora, uns me responderam que pela prática da obediência haviam descido a um tal ponto de humildade que se tornaram isentos de qualquer outro combate e experimentavam continuamente as doçuras de uma profunda paz; outros me confessaram que eles tinham a felicidade de não experimentar a menor perturbação em meio a injúrias e ultrajes.

24. Dentre esses homens respeitáveis e dignos de eterna memória, ainda observei alguns anciãos cuja cabeça era branca pela idade e que mais se assemelhavam a anjos do que a homens. Ora, estes anciãos, conduzidos e dirigidos pelo espírito de Deus, santificados pelos esforços contínuos de sua boa vontade, haviam atingido o mais alto grau de inocência, simplicidade e sabedoria; pois, enquanto que os hipócritas apresentam duas faces, uma que podemos ver e outra oculta e invisível, o homem amigo da simplicidade não apresenta senão uma única e mesma face que manifesta o que ele é. Estes anciãos estavam ainda bem longe de anunciar o enfraquecimento da razão e de apresentar o menor sinal que mostrasse o caráter desta leviandade pueril que, no século, censuramos aos velhos. Neles não víamos senão uma mansidão encantadora, uma bondade arrebatadora e uma alegria cheia de gravidade; em sua conduta e em suas conversações nada percebíamos de dissimulado, estudado, falso ou pouco sincero, coisa raríssima de encontrar entre os homens. Suas santas almas não tinham senão uma ambição, a de repousar em Deus e de obedecer a seu superior; é por isso que para seus superiores eles eram como filhos sem malícia e sem fraude, ao mesmo tempo em que estavam cheios de vigor e de coragem contra os demônios e os vícios, perseguindo a uns e outros quase com furor.

25. Mas oh! pai santo, e vocês, rebanho fiel tão amado por Deus, toda minha vida não seria bastante se eu quisesse contar aqui todas as virtudes e as ações verdadeiramente celestes desses monges; entretanto, acho importante repassar a vocês seus trabalhos e seus suores: esta visão será capaz de inflamar seus corações com um nobre ardor pelo céu, mais do que as instruções que lhes dou e as exortações que dirijo a vocês. De resto, todo mundo sabe que muitas vezes as coisas defeituosas são corrigidas por aqueles que são mais perfeitos. O que eu lhes peço que me concedam, é que acreditem que tudo o que eu lhes contar aqui não contém nem fábula nem ficção, mas que é a exposição da mais exata verdade: pois eu sei que uma simples dúvida sobre a veracidade de um fato basta para impedir que dele se retirem frutos e benefícios. Mas retomemos nosso discurso.


História de Isidoro.

26. Nos tempos em que estive no mosteiro conheci um homem de qualidade que se chamava Isidoro. Ele havia sido um dos principais magistrados de Alexandria; mas tendo generosamente renunciado aos negócios do século, em cuja gestão fizera grande renome e uma brilhante reputação, ele se retirou para esta casa religiosa. O santo abade que o recebeu percebeu logo que toda a vivacidade de seu espírito e todo o ardor de seu coração haviam sido voltados para o mal; que ele era violento, impiedoso, arrogante e cheio de si. Mas a sabedoria e a prudência deste excelente superior permitiram-lhe romper as amarras com que os demônios mantinham cativo a este homem; e eis de que maneira ele o fez: “Isidoro, disse-lhe ele, se você tomou a firme resolução de levar o jugo de Jesus Cristo, quero antes de mais nada que você se exercite na prática da obediência”. Isidoro respondeu: “Santíssimo Pai, eu me entrego a você para ser tão submisso quando o ferro na mãos do ferreiro”. Esta resposta satisfez e encorajou o abade, que, encantado com a comparação, colocou-o a seguir como sobre uma bigorna. “Muito bem, meu caro irmão, lhe disse o abade, eu considero conveniente e lhe ordeno que se mantenha à porta do mosteiro e que se ponha de joelhos diante de todos os que entram e saem, dizendo: meu Pai, ore por mim, que não passo de um epilético espiritual”. Isidoro obedeceu ao abade com a mesma submissão e a mesma exatidão com que os anjos obedecem a Deus. Assim ele passou sete anos consecutivos. Ora, depois de ter passado este tempo neste duro e penoso exercício e de ter adquirido uma obediência perfeita, uma humildade profunda e uma viva compunção por seus pecados, o abade, do alto de sua sabedoria, considerou que por estas sólidas virtudes este homem se tornara digno de ser recebido entre os irmãos e de poder entrar para a ordem sagrada; mas Isidoro, que durante todo este tempo havia praticado uma paciência extraordinária e uma submissão generosa, fez inúmeras instâncias, por si, pelos outros, por mim próprio, no sentido de que lhe fosse permitido terminar sua carreira naquele mesmo lugar e nos mesmos exercícios, dando a entender que ele acreditava não ter mais muito tempo de vida e que ele estava a ponto de deixar este mundo, e, conforme se conta, o abade lhe concedeu aquilo que solicitava com tanto zelo e ardor. E dez dias depois, este ilustre penitente entrava na posse da glória eterna que havia merecido pelo desprezo perfeito que tivera pela glória temporal; e sete dias depois de sua morte, conforme prometera a ele, chamou para o céu o porteiro do mosteiro, pois lhe havia dito logo antes de morrer: “Se eu tiver qualquer poder diante de Deus no céu, logo estaremos reunidos junto dele, para não nos separarmos mais”. Ora, foi isto que aconteceu, porque o Senhor quis mostrar, de um modo sensível e dramático, a excelência e o mérito da obediência pela qual ele não teve vergonha de fazer exatamente e de coração as coisas baixas e humilhantes que lhe haviam sido ordenadas, e a excelência e o mérito de sua profunda humildade, com a qual imitara com tanta perfeição o Filho de Deus.

27. Ora, enquanto Isidoro ainda vivia assim à porta do mosteiro, eu me permiti um dia lhe perguntar quais eram os pensamentos que enchiam seu espírito e quais sentimentos agitavam seu coração. Como ele viu que, respondendo, contribuiria para minha salvação e me seria útil de alguma maneira, ele não hesitou em me dar a seguinte resposta: “No primeiro ano, disse-me ele, eu repeti para mim mesmo que haviam sido os meus pecados que me haviam vendido e me tornado escravo. Esta consideração me perfurava o coração de amargura e dor, e me levava a me violentar para cumprir as ordens que me haviam sido dadas; é por isso que, me prostrando aos pés dos meus irmãos, eu os lavava de lágrimas, e algumas vezes com sangue. Depois deste primeiro ano, tive esperança de que Deus recompensaria minha submissão e minha paciência, o que me fez cumprir sem esforço minha penitência. Enfim, nos cinco últimos anos eu não senti em mim mesmo senão um vivo sentimento de minha indignidade, que me fazia considerar-me indigno não apenas de entrar no mosteiro, mas até de permanecer aonde estava; de gozar da presença e da conversa dos irmãos; de ser admitido a participar dos santos mistérios; e até mesmo de ser visto pelas pessoas, quem quer que fossem. É por isso que, mantendo meus olhos e meu coração voltados para a terra, eu pedia aos que entravam ou saiam, que orassem a Deus por mim”.


História de Lourenço.

28. Um dia em que eu estava à mesa junto ao superior, ele se inclinou docemente para mim e me disse ao ouvido: “Quer que eu lhe mostre, num ancião extremamente velho, uma razão e uma sabedoria totalmente celestes?”. Como eu lhe fiz sinal de que o desejava e lhe pedi que o fizesse, ele chamou um bom padre chamado Lourenço, que estava sentado em outra mesa. Este respeitável monge passara quarenta e oito anos no mosteiro e era o segundo em dignidade na igreja da comunidade. Ele se colocou imediatamente ao lado do superior e pôs-se de joelhos, segundo o costume da casa, para receber a bênção; depois se levantou para receber suas ordens, mas o abade não lhe disse nada e o deixou em pé diante da mesa, sem lhe dar de comer. Isto aconteceu no início da refeição. Ele passou assim uma hora ou mais, imóvel e sem movimento, o que me causou tal confusão que eu não conseguia nem olhar este bom padre todo branco de velhice, pois ele tinha oitenta anos. Quando a refeição terminou, seu superior lhe ordenou que fosse encontrar Isidoro, o grande penitente de que falamos, e lhe recitasse estas palavras do salmista: “Eu esperei um longo tempo pelo Senhor, e não deixei de esperá-lo[27]”.

29. Ora, como eu sou muito malicioso, não perdi ocasião para falar com este venerável ancião e perguntar-lhe em que pensava ele durante o tempo em que permaneceu de pé diante da mesa. “Eu vi, respondeu-me, o próprio Jesus Cristo na pessoa de meu superior, e assim não considerei que a ordem me tivesse sido imposta a partir de um homem, mas de Deus; é por isso, caro padre João, que eu estava bem longe de me ver em pé diante de uma mesa ao redor da qual estavam reunidos simples mortais; mas imaginando estar diante do altar do Senhor, eu lhe dirigi fervorosas preces, tanto quanto pude; e posso lhe assegurar que sequer me veio ao espírito um mau pensamento contra meu superior, tamanha é a confiança que tenho nele, e tamanha afeição lhe dedico; pois, acrescentou ele, ‘o amor não pensa mal de ninguém[28]’. De resto, meu Pai, saiba que o demônio não encontra por onde entrar num coração que está inteiramente devotado e consagrado à simplicidade, à inocência e à bondade”.


História de um ecônomo.

30. Como Deus, em sua Misericórdia e sua Justiça, havia dado aos religiosos deste mosteiro que era um sábio pastor e um terno salvador, também dera um ecônomo, um administrador admirável; pois se tratava de um homem cheio de moderação e prudência, de doçura e de paciência, como poucos podemos encontrar. Ora, como o abade queria que o exemplo de sua humildade e paciência servisse à salvação dos irmãos, repreendeu-o um dia severamente, ainda que ele fosse inocente, e levou esta severidade a ponto de expulsá-lo vergonhosamente da igreja. Sabendo eu que não tinha sido ele quem cometera a falta pela qual o estava punindo com tanto rigor, chamei à parte o superior para me colocar como advogado de seu ecônomo; mas este sábio diretor me respondeu: “Sei tão bem como você, meu Pai, que ele é inocente; mas assim como não convém a um pai, e é até uma coisa condenável, negar ao filho que tem fome um pedaço de pão, também o pai espiritual prestará a si mesmo e a seu inferior um mau serviço, se não buscar nele a todo momento novos méritos e novas coroas, fazendo-lhe reproches e apresentando-lhe humilhações, seja cobrindo-o de desprezo, seja lhe fornecendo mortificações, seja enfim exercitando-o nas repreensões e nas condenações, na medida em que o saiba capaz de suportar a tudo com paciência e resignação. Do contrário, este inferior será privado de três grandes benefícios: o primeiro será o de não receber a recompensa de uma correção caridosa sofrida com paciência; o segundo, que seus irmãos sejam privados dos bons efeitos que seu exemplo produzirá neles; enfim o terceiro, que é também o pior mal que lhes pode acontecer, será que os inferiores percam pouco a pouco a doçura e a paciência, pois muitas vezes acontece que estes, que em seus trabalhos espirituais e em suas humilhações parecem ser em verdade homens de paciência, se não forem de tempos em tempos exercitados, repreendidos e humilhados por seu superior, que os vê como pessoas virtuosas e perfeitas, caem depressa num funesto relaxamento; e suas almas, embora seja de boa terra, úmida e fértil, se não forem regadas periodicamente com a água da humilhação, perdem depressa e facilmente sua fertilidade, acabando por produzir não mais do que os arbustos e espinhos de orgulho, do desregramento dos costumes e de uma confiança presunçosa, que expulsa todo temor a Deus. Isto não era ignorado pelo grande Apóstolo, quando deu este conselho a seu querido Timóteo: ‘Insista, dizia ele, no tempo oportuno e no inoportuno.’[29]

31. A todas estas razões eu repliquei que poderia acontecer por circunstâncias infelizes e sobretudo pela fraqueza da natureza humana que muitos, vendo-se repreendidos sem razão – e até com razão – poderiam abandonar o mosteiro; mas a resposta deste tesouro de sabedoria não se fez esperar: “Uma alma, respondeu ele, que Jesus Cristo ligou a seu pastor pelas cadeias do amor e da fé, conservará invariavelmente esta santa união; ela preferirá derramar todo o seu sangue a rompê-la, sobretudo se Deus dele se serviu para curá-la das feridas que o pecado fez nela; pois ela se recorda que está escrito: ‘Nem os anjos, nem os principados, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que é nosso Senhor Jesus Cristo[30]’; e se esta alma não está ligada, amarrada e unida inseparavelmente de seu diretor, não consigo conceber como ela poderá, de um modo útil, permanecer num lugar aonde não a retém senão uma obediência falsa e enganadora”. É preciso confessar que este homem não se enganava, porque, pelos meios de que se utilizava, ele dirigia e conduzia seu mosteiro com sucesso, oferecendo e consagrando a Jesus Cristo um grande número de almas, que eram como hóstias vivas.


História de Abacir.

32. Consultemos assim a Sabedoria de Deus, pois ela se encontra até mesmo nos vasos de barro; é isto o que deve nos causar a maior admiração. É a resolução que me fez tomar a conduta de alguns jovens religiosos, pois eu fiquei fora de mim ao ver com que vivacidade de fé, com que constância, com que paciência e força de alma eles sofriam ser repreendidos, mortificados e desprezados, não apenas por seu superior, mas também por irmãos que estavam bem abaixo deles. Havia no mosteiro um irmão que chamava minha atenção de maneira especial: ele se chamava Abacir e tinha pouco mais do que quinze anos. Eu percebi que ele era quase sempre maltratado pelos outros monges, e não se passava um dia sem que aqueles que serviam a mesa o expulsassem do refeitório, porque ele era naturalmente falador. Procurei uma ocasião para conversar com ele e, tendo-o encontrado, perguntei-lhe insistentemente por que razões o expulsavam assim do refeitório e o mandavam dormir sem ter comido nada. “Creia-me, padre, respondeu-me com simplicidade, os monges me tratam assim para conhecer minhas disposições interiores e para saber se eu estou pronto para levar uma vida solitária; não é por severidade, mas pelo caridoso desejo de me testar que eles agem assim. É por isso que, conhecendo perfeitamente as piedosas intenções de nosso excelente superior e dos outros padres, eu sofro tudo com alegria e prazer. Faz quinze anos que estou no mosteiro, e me tratam como você viu. Quando cheguei a esta casa, os padres esconderam de mim que eles testam durante trinta anos aqueles que renunciaram ao mundo; e certamente, caro padre João, não é sem boas razões que eles mantêm esta conduta; pois não é no cadinho e pelo fogo que se passa o ouro para o depurar e polir?”.

33. Este corajoso Abacir viveu ainda por dois anos durante minha estada nesta comunidade e, como ele estava a ponto de deixar este mundo, disse aos irmãos que cercavam seu leito de morte: “Eu lhes agradeço, irmãos, e dou graças a Deus, por me haverem tratado como fizeram; pois há dezessete anos vocês me puseram ao abrigo das provas e das tentações do demônio”. Estas palavras causaram uma viva impressão no espírito do abade, este justo apreciador das virtudes de seus irmãos, que ele colocou Abacir no grupo dos confessores e fez com que colocassem seu corpo junto aos dos santos padres que repousavam no interior do mosteiro.


História de Macedônio.

34. Seria uma verdadeira pena para todos os que têm zelo e amor pela prática da virtude, se eu não dissesse nada aqui dos santos exercícios e dos grandes trabalhos de Macedônio, primeiro diácono deste mosteiro. Este grande servidor de Deus, tão favorecido por seu divino Mestre, solicitou ao abade, dois dias antes da solenidade de Reis, a que os gregos chamam de Teofania, permissão para ir a Alexandria por causa de negócios importantes que exigiam sua presença. Foi-lhe dada a permissão, mas com a condição expressa de retornar ao mosteiro em tempo de preparar tudo o que  era necessário para a solenidade. Mas o demônio, inimigo jurado da virtude, dez surgir tantos obstáculos, que Macedônio não conseguiu retornar no prazo estipulado, chegando no dia seguinte à festa. Para puni-lo pela desobediência, o abade suspendeu-o de suas funções e o condenou a servir entre os noviços. Ora, este santo diácono, grande por sua paciência e maior ainda por sua constante humildade, recebeu esta ordem e aceitou a penitência com a mesma calma e tranquilidade de espírito como se as coisas não se passassem com ele. Depois de ter passado quarenta dias entre os noviços, o abade resolveu devolver-lhe o cargo e suas honoráveis funções; mas no dia seguinte, quando o abade o restabeleceu em sua dignidade, ele foi procurar seu superior para pedir-lhe insistentemente a que o deixasse naquele estado de humildade e penitência, e que o deixasse viver no meio dos irmãos mais jovens até o fim de sua vida. Para obter esta graça, ele assegurou ter tido a infelicidade de cometer uma grande falta durante sua viagem a Alexandria, que o tornava indigno de perdão. Embora o santo abade soubesse perfeitamente que isto não acontecera, e que seu diácono só alegava isto como pretexto para poder permanecer no estado de rebaixamento em que se encontrava, cedeu ao louvável desejo, feito com fervor e humildade. Assim é que víamos então, no meio dos jovens monges, um homem venerável pela dignidade de sua idade, pedindo-lhes o auxílio e a assistência de suas orações, a fim de obter de Deus o perdão pela execrável desobediência de que se tornara culpado em sua viagem a Alexandria. Este santo diácono, por indigno que eu fosse, ensinou-me um dia a razão particular que o tinha feito desejar permanecer neste estado tão humilhante: “Jamais, disse-me ele, me vi menos atacado por perturbações interiores, nem menos agitado pelos trabalhos da guerra espiritual que fazemos ao demônio, nem jamais experimentei tão deliciosamente as doçuras abundantes da luz celeste, como a partir do momento em que fui posto no exercício desta penitência”.


História do ecônomo do mosteiro.

35. “É característico dos anjos, acrescentou ele, não estar mais expostos a quedas, e mesmo, conforme alguns doutores ensinam, não poderem cair; é típico dos homens cometerem faltas, mas pela graça de Deus eles podem se levantar todas as vezes em que lhes acontece estas infelicidades. Ao contrário, os demônios caíram para nunca mais se levantarem desta queda”. Eis agora o que me contou o ecônomo deste mosteiro célebre: “Quando eu era jovem, ele disse, era encarregado de cuidar dos animais de uma casa, e tive a infelicidade de cometer uma falta enorme; mas, como eu tinha por costume jamais manter oculto em meu coração a serpente que nele se escondera, tomei-a pela cauda assim que a percebi e a mostrei ao médico espiritual de minha alma; eu lhe contei a enganadora ação da qual fui considerado culpado. Olhando-me com um rosto sorridente e me dando um tapinha, ele me dirigiu estas palavras: ‘Vai, meu filho, continue com seus exercícios costumeiros como dantes, e nada tema’. Eu confiei inteiramente nas suas palavras; e alguns dias depois tive a certeza de minha cura. A partir daí caminheis pelas vias do Senhor com grande alegria, embora sempre com temor e com tremor”.

36. Alguns doutores observaram sabiamente que, como existem certas diferenças essenciais entre todas as criaturas às quais Deus deu existência, também nas casas religiosas vemos diferentes modos de caminhar e de avançar na carreira e na prática da virtude, e diversas inclinações más que é preciso combater e mortificar. É assim que o sábio médico que presidia este mosteiro, tendo percebido que alguns monges se deliciavam, por ostentação e vaidade, em aparecer diante dos seculares quando estes vinham ao mosteiro, os humilhava severamente em sua presença, tanto lhes ordenando o que havia de mais baixo e mais desprezível quanto reprovando-os ignominiosamente, de modo que estes monges eram obrigados, para evitar esta afronta, a se esconder assim que viam chegar as pessoas do mundo. Ora, esta conduta produzia m efeito espantoso, pois ela fazia com que a vanglória perseguisse a vanglória, impedindo estes monges de dar espetáculo aos outros.


História de são Menas.

37. Como Deus, por uma graça insigne, não quis me privar do auxílio das orações de um santo padre que se encontrava nesse mosteiro, ele o chamou sete dias antes de minha partida. Este santo homem se chamava Menos. Ele havia passado cinquenta e nove anos nesta casa, e havia exercido sucessivamente todos os cargos aí estabelecidos, sendo então o primeiro depois do abade. Ora, no terceiro dia depois de sua morte, enquanto celebrávamos seus funerais e fazíamos as orações de costume, o lugar onde estava seu santo corpo foi subitamente tomado por um perfume doce e de suave odor. O abade, que estava presente, nos ordenou que abríssemos o caixão e então vimos que de seus veneráveis pés saíam como que duas nascentes de óleo odorífico. Então este excelente mestre das vias religiosas nos dirigiu estas palavras: “Vocês todos são testemunhas, disse-nos ele, deste milagre; mas saibam que seus trabalhos e seus suores tiveram também um perfume delicioso e agradável a Deus”.

38. Ele tinha razão; pois os padres se puseram a contar algumas excelentes ações deste santo homem, e, entre outras, que um dia o abade resolvera colocar à prova sua paciência celestial. Eis o fato: retornado de fora numa tarde, ele tinha ido se prosternar aos pés do abade, a fim de lhe pedir a bênção, conforme o costume; mas o abade deixou-o assim prosternado até a hora do ofício, quando o abençoou e permitiu que se levantasse. Depois disto ele lhe fez severas admoestações sobre sua ostentação, sua vaidade e sua pouca mansidão e paciência. Ora, o abade só se comportava assim por saber com quanta coragem e generosidade este santo ancião sofreria este tipo de humilhante mortificação, e o quanto seu exemplo serviria à edificação dos outros. Foi o que me assegurou em particular um dos discípulos deste santo monge, acrescentando que lhe perguntara em outra ocasião se ele não tinha adormecido enquanto se encontrava prosternado aos pés do abade; e ele lhe respondeu candidamente que não, mas que ele havia recitado o saltério inteiro.

39. Não cometerei nenhuma falta se enfeitar aqui meu discurso com o relato de um fato que o fará brilhar como uma esmeralda faz brilhar uma coroa. Aconteceu que, enquanto eu vivia no meio dos ilustres padres deste mosteiro, a conversa caiu sobre a vida dos anacoretas; então eles me disseram com o rosto cheio de doçura e benevolência: “Quanto a nós, caro padre João, por sermos tão grosseiros e tão pouco espirituais, acreditamos que não devemos abraçar senão a vida que mais nos convém. É por isso que empreendemos uma guerra proporcional à nossa fraqueza, e consideramos que é mais vantajoso para nós não termos que combater senão contra homens que se enraivecem e agridem, mas que depois voltam a si e se acalmam, do que demônios que estão em permanente furor e armados contra o gênero humano”.

40. Ora, dentre estes homens de eterna memória, que me amava muito em Deus e que me falava com grande liberdade. Um dia ele me disse, com afeição especial: “Se você, meu pai, que é um sábio, experimentar a força daquele que, no arrebatamento de seu coração, exclama: ‘tudo posso naquele que me fortalece![31]’; se o Espírito Santo descer sobre você como um orvalho de graças e pureza, como desceu antes sobre a santa Virgem, e se a força do Altíssimo o rodear de paciência, cinja os rins, a exemplo do Homem-Deus, com o linho branco da obediência e, como Ele, levante-se da mesa, ou seja, saia da solidão; para lavar os pés dos seus irmãos na água pura da compunção e da penitência, ou de se atirar a seus pés com o sentimento da humildade mais profunda; coloque nas portas de seu coração sentinelas que não dormem jamais e que jamais são coniventes com o inimigo; detenha a instabilidade e a leviandade de seu espírito, fixando invariavelmente, malgrado as distrações e a dissipação que lhe causam sem cessar a agitação dos negócios e das importunações dos sentidos; conserve um repouso perfeito no meio dos movimentos e cuidados com a vida se agita continuamente; e, o que é mais difícil e mais admirável, permaneça firme e imóvel no seio das perturbações e das tempestades que se sucedem todo o tempo. Prenda sua língua com as cadeias de um silêncio perfeito, e impeça-a de cair em disputas ácidas e em contradições audaciosas; combata setenta e sete vezes por sai  contra esta soberana impiedosa e tirânica; carregue a cruz de Jesus Cristo em seu coração, e, assim como ´pregamos um prego na madeira, pregue seu espírito nela, de sorte que ele seja capaz de resistir a todos os golpes, a todas as tentações, a todas as afrontas, a todas as calúnias, a todas as intrigas e a todas as injustiças que possam lhe acontecer, de modo a nunca ser ferido, nem ofendido, nem agitado, nem afligido, nem desencorajado, nem abatido, mas persevere imutavelmente na paz e na calma. Despoje-se de toda sua vontade, como de uma veste de ignomínia, e entre nu na carreira celeste; e, o que é bem mais raro e mais difícil, permaneça numa confiança total e inquebrantável naquele que deve e que vai coroá-lo após a vitória, e que esta seja tal que não possa ser penetrada nem pelas flechas da dúvida nem pela lanças da desconfiança. Mortifique seus sentidos com as austeridades da temperança, e cuide para não sofrer com seu furor audacioso e insolente. Sirva-se vantajosamente da meditação da morte para combater e vencer a curiosidade dos olhos, que pedem sem cessar a contemplação da beleza das criaturas sensíveis. Faça de modo a reter a indiscrição e a injustiça de seu espírito, que, enquanto você se entrega à negligência mais condenável, o leva a julgar mal as ações e a conduta dos seus irmãos; e se esforce para exercer sempre uma caridade sincera para com todos. É por meio dessas coisas que saberemos que você é realmente discípulo de Jesus Cristo, segundo a palavra: ‘Todo o mundo saberá, disse Ele, que são meus discípulos, se na sociedade em que se reúnem amarem uns aos outros e derem testemunho de uma afeição mútua[32]’. Venha, venha, venha para cá, acrescentou este excelente amigo, fixe aqui sua moradia, beba conosco da água amarga das admoestações e das humilhações; ela logo se tornará doce e salutar. Lembre-se de que Davi buscou por longo tempo aquilo que pudesse ser mais doce e mais agradável ao homem, sem poder encontrar; e foi perguntando a si mesmo que coisa seria esta que ele deu a si mesmo esta admirável resposta: ‘Como é bom e agradável viver em meio aos meus irmãos![33]”. Mas se Deus não considerar a propósito nos fazer participar da excelente benesse desta paciência e desta obediência, ao menos nos será benéfico reconhecer nossa fraqueza e nossa miséria, a fim de que, se tivermos que passar nossa vida longe desta carreira, permaneçamos cheios de estima pelos que a percorrem, e, por intermédio de nossas preces, peçamos a Deus as graças de que eles necessitam para combater corajosamente e obter a vitória”. É assim que este bom padre, este excelente mestre da vida espiritual me convenceu por passagens e autoridades extraídas do Evangelho e dos Profetas, e pela terna afeição que ele demonstrava, que nada havia de comparável à recompensa e à coroa que se pode obter vivendo sob o jugo da obediência. Antes de partir deste paraíso de delícias para regressar aos arbustos e espinheiros das minhas palavras, que não podem senão lhes desagradar e ser-lhes inúteis, quero ainda lhes dizer algumas coisas dos religiosos deste mosteiro, e das raras virtudes que eles praticavam vocês encontrarão grandes benefícios espiritais.

41. Tendo o abade deste mosteiro avisado que durante o ofício, ao qual eu assistira muitas vezes, alguns irmãos haviam andado trocando palavras, lhes ordenou em tom severo que permanecessem na porta da igreja durante uma semana, prosternando-se diante de todos os que entravam e saíam para lhes pedir perdão. Ora, os que ele condenara assim eram clérigos, e dentre eles havia alguns que tinham sido honrados com o sacerdócio.

42. Observei um dia que durante o canto dos salmos havia um monge que era mais atento do que os outros, que tinha uma devoção extraordinária e que, sobretudo no começo dos salmos e dos hinos parecia falar a alguém. Perguntei-lhe porque agia assim. “É para que, respondeu-me ele, desde o começo, eu reúna todos os meus pensamentos e as faculdades de minha alma para lhes dirigir estas palavras: venham adorar a Jesus Cristo, nosso rei e nosso Deus, e prosternem-se a seus pés[34]”.

43. Prestei também especial atenção ao que era encarregado do refeitório, e vi com espanto que ele trazia pequenas tabuinhas à cintura, sobre as quais escrevia a cada dia todos os pensamentos que tinha, a fim de prestar contas exatas ao abade que comandava o mosteiro. Aquilo que ele fazia outros também faziam, e entendi que era porque o superior lhes havia ordenado.

44. Um irmão, por haver falsamente acusado a outro de se entregar a conversas vãs e tolas, foi impiedosamente condenado pelo superior a ser vergonhosamente expulso do mosteiro, e a permanecer por sete dias inteiros no vestíbulo que ficava à porta da casa, durante os quais ele não devia fazer outra coisa do que suplicar que lhe deixassem entrar e que lhe perdoassem a falta cometida. Ora, ele cumpriu esta penitência de tão bom coração que o abade, sabendo-o, e sabendo também que durante os seis primeiros dias ele não comera nada, mandou dizer-lhe que, se ele tinha um desejo verdadeiro de retornar ao mosteiro, deveria estar resoluto em viver daí por diante dentre os penitentes, o que este irmão, tocado de verdadeiro espírito de compunção, aceitou de bom grado. O abade então ordenou que o reintroduzissem e o encaminhassem ao lugar destinado aos que choravam e expiavam seus pecados, o que foi executado imediatamente.  E como a ocasião nos leva a falar deste mosteiro dos Penitentes, contarei algumas coisas deste.

45. Este local ficava a aproximadamente uma milha do mosteiro e era comumente chamado de Prisão. Todas as consolações humanas estavam ali banidas; jamais se via ali fogo algum, o óleo e o vinho não entravam nos mantimentos consumidos, que consistiam em pão e alguns legumes insípidos. O abade enviava para esta triste casa todos os monges que, depois de sua profissão religiosa, caíam em alguma falta considerável, e eles eram de tal modo encerrados, que não lhes era possível sair nem viver juntos, mas apenas a sós ou, no máximo, em dois. Eles aí permaneciam até que o Senhor desse a conhecer ao abade que suas faltas haviam sido perdoadas e que eles estavam reconciliados com Deus. O superior geral lhes havia dado como superior específico um excelente homem chamado Isaías, que deles exigia uma oração quase constante e praticamente não lhes dava descanso. Entretanto, para impedi-los de cair no abatimento e no desânimo, ele distribuía entre eles uma certa quantidade de folhas de palmeira, com as quais eles teciam pequenas cestas. Assim era a vida e a disciplina dos penitentes, que buscavam com ardor ver a face do Deus de Jacó.

46. É belo admirar seus trabalhos e sua penitência, mas é salutar imitá-los; mas seria tolice não reconhecer a fraqueza humana e pretender imediatamente seguir suas pegadas.

47. Assim, se nossa consciência nos dirige admoestações merecidas, consideremos com dor os pecados que cometemos, até que Deus queira lançar um olhar favorável à penitência que fazemos, aos esforços que nos conduzem a desejo violento de nos reconciliarmos com Ele, de recebermos o perdão por nossas faltas, de transformarmos o arrependimento e a dor dilacerante de nossos corações em deliciosa alegria, conforme as palavras do rei-profeta: “Suas consolações, meu Deus, encheram meu coração de alegria, segundo a multitude e a grandeza das dores que afligiam meu coração[35]”. Lembremos ainda, segundo nossa necessidade, destas outras palavras de Davi: “Senhor, foram grandes, numerosas e cruéis as aflições com que você me oprimiu! Mas enfim você se voltou para mim, deu-me a vida e me retirou do abismo em que eu havia caído[36]”.

48. Feliz, portanto, quem, no desejo de agradar a Deus, se violenta todos os dias e suporta com paciência e resignação o desprezo e as injúrias! Este participará abundantemente, não duvidemos, da glória dos mártires e da alegria dos supliciados. Feliz o monge que, em sua profunda humildade, não se vê senão como o mais vil e desprezível dos homens, e não crê merecer senão a humilhação e o rebaixamento! Feliz aquele que soube deixar morrer sua própria vontade, e se abandonar sem reservas à conduta do diretor que Deus lhe deu como pai e mestre espiritual! Seu lugar será à direita de Cristo crucificado.

49. Mas observem bem que o homem que não quer sofrer nenhuma correção, justa ou injusta, age diretamente contra os interesses eternos de sua salvação, enquanto que aquele que a recebe com paciência e alegremente obtém incontestavelmente o perdão de seus pecados.

50. Assim, apresentem a Deus, em espírito e verdade, a confiança e o afeto que vocês têm para com seu pai espiritual; e, por uma graça singular, Deus o fará conhecer o amor e a ternura que vocês têm por ele, e este conhecimento os inspirará a tratá-lo com doçura e respeito; e, conforme vocês o queiram, ele se tornará seu amigo devotado.

51. Não é pequena prova de confiança em seu superior apresentar-lhe todas as tentações que você experimenta: desta forma você seguirá o caminho da salvação, mas dele se afastará terrivelmente se esconder nas trevas interiores do coração estas serpentes cruéis e funestas.

52. Se vocês querem saber se têm pelos irmãos um amor sólido e verdadeiro e uma afeição terna e sincera, verifiquem se os pecados dos quais você os considera culpados o entristecem e desolam, e se as graças abundantes que eles recebem de Deus, e o progresso que fazem na virtude o enchem de alegria e de prazer.

53. Numa discussão, quem quer sustente obstinadamente uma opinião, mesmo verdadeira, e um sentimento fundamentado, demonstra estar enfermo da doença do demônio, que é o orgulho. Se for diante de seus iguais que ele age assim, talvez ainda possa se curar pela correção que irá receber de seus superiores; mas se for diante de seus superiores, cremos, humanamente falando, que sua doença é incurável.

54. De fato, como poderá observar as regras e os deveres de obediência em suas ações alguém que os viola com tanta insolência em suas palavras? E não agirá ele nas outras coisas mais necessárias e mais importantes tal como o faz nas que são menores e menos necessárias? Vemos assim que ele trabalha em vão e que não colherá, com sua pretensa obediência, senão um julgamento terrível e uma sentença de morte.

55. Quem, com disposição santa e intenção pura e reta, se submete e se dedica inteiramente à vontade de um diretor sábio e zeloso, não vê a morte chegar senão como um doce sono, ou melhor, ele a espera e a deseja todos os dias como sendo o começo de uma nova vida; pois ele confia em que não será dele, mas do diretor de sua alma, que Deus cobrará explicações.

56. Quem recebe com prazer e por haver solicitado, das mãos de seu superior, alguma função ou cargo a exercer, e que em seguida comete alguma falta ou tropeça no exercício desta tarefa, será a si mesmo e não a seu superior que deverá culpar, pois as armas que recebeu, recebeu por seu próprio movimento e por sua própria vontade. Ele deveria usá-las contra o inimigo e desastradamente se serviu delas para ferir seu próprio coração. Mas se, ao contrário, foi contra sua vontade, depois de lembrado seu superior de sua fraqueza e de sua incapacidade e depois de ter rogado humildemente e com insistência que este não pensasse nele, se apesar disto ele foi obrigado a receber este encargo e a se dedicar a executá-lo, deve fazê-lo com coragem; pois se ele vier a cair, sua queda não será mortal.

57. Mas eu ia esquecendo de lhes apresentar, caros amigos, um pão delicioso e salutar para alimento de suas almas; quero lhes falar da virtude admirável desses monges que, para se acostumar a receber com a maior paciência e a mais perfeita caridade as injúrias, as afrontas e o desprezo dos outros, se reuniram para exercitar a resignação sob toda espécie de humilhações, ultrajes e admoestações.

58. A alma que pensa sem cessar em confessar seus pecados encontra em cada pensamento um antídoto eficaz contra o perigo de cometê-los novamente; pois nós nos entregamos com muita facilidade às faltas que escondemos nas trevas.

59. Assim, ainda que não estejamos na presença de nosso superior, se, por meio de uma viva representação, o imaginamos no meio de nós, esta imagem de sua presença em muito contribuirá para que evitemos com cuidado tudo o que sabemos desagradá-lo em nossas tarefas, nossas conversas, nosso repouso, nossa alimentação e em todas as coisas; se nos conduzirmos desta maneira, praticaremos uma verdadeira obediência. De resto, os discípulos verdadeiros e sinceros veem a ausência de seu superior como uma infelicidade real, e se afligem com isto, enquanto que os maus discípulos se alegram.

60. Um dia eu perguntei a um dos mais virtuosos padres do mosteiro como ele tornara a obediência uma companheira fiel e inseparável da humildade; eis a resposta que ele me deu: “Quem pratica a obediência, disse-me ele, não é apenas obediente, mas é ainda cheio de reconhecimento. Assim, mesmo que ele ressuscite os mortos, que ele possua o dom das lágrimas, que ele desfrute da paz soberana do coração, ele sempre pensará que só possui estes benefícios por intermédio de seu superior, que ele só desfruta deles em virtude de suas orações”.

61. “Por isso ele estará isento de todo sentimento de presunção e de vanglória. Como poderá ele se orgulhar, sabendo que não é por seu mérito nem por suas virtudes que ele possui todas estas coisas, mas apenas pelo auxílio de seu superior? É isto que faz com que o hesiquiasta seja de certo modo incapaz de partilhar desta humildade interior em meio às coisas de que falamos, pois é mais fácil para ele crer que é por suas forças e seu trabalho que ele consegue levar a cabo as boas obras que pratica”.


As duas armadilhas do demônio.

62. Assim, quando um monge que está submetido a um superior evitar as duas armadilhas do demônio, ele permanecerá, como um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, sob o jugo de uma obediência eterna.

63. O demônio não cessa de tentar de mil maneiras diferentes aos que fazem profissão de obediência: tanto ele procura perturbar e manchar sua imaginação com pensamentos e imagens impuras, a fim de revoltar a carne contra o espírito, quanto ele enche seus corações de penas, sofrimento e tristeza; aqui ele os incentiva à irritação e ao mau humor, e procura todas as vias capazes de paralisar sua vontade e de tornar sua virtude estéril e vã; lá ele leva à intemperança nas refeições, à negligência na prece, à preguiça no sono; enfim ele envolve seu intelecto em nuvens e trevas espessas, a fim de que, afadigando-os, os faça crer que é inútil praticar a obediência, que eles não extraem nenhum benefício espiritual de seus esforços e dos sacrifícios que fazem, e que, ao invés de avançar na perfeição, dão marcha a ré. É assim que pouco a pouco ele os desencoraja e os desgosta das santas ocupações comandadas pela obediência, e os fazem abandonar miseravelmente o campo de batalha; muitas vezes ele sequer lhes dá tempo de ver e reconhecer que Deus, para fornecer a seus servidores uma ocasião favorável para praticar de modo mais perfeito a humidade e a obediência, permite que o tesouro de suas virtudes lhes seja subtraído; mas este é um efeito da Bondade de Deus, e ele nos devolverá este tesouro mais rico e mais precioso.

64. Porém, malgrado as longas importunações do demônio, acontece a alguns de alcançar o objetivo, por sua corajosa paciência, vencendo-o e pondo-o em fuga. Mas assim que acabamos de vencer este demônio da desobediência, já outro aparece, com novos truques e novas tentações, para nos tentar e nos perder.

65. Com efeito, eu vi monges que, depois de se terem inteira e generosamente entregues ao espírito da obediência, obtiveram de Deus, com o auxílio de seu superior, grandes sentimentos de compunção e de penitência, alcançando um estado de sublime doçura, modéstia, castidade, fervor e constância, vencendo e submetendo seus apetites desregrados e vivendo num santo e fervoroso amor a Deus. Ora, os demônios, invejosos de sua felicidade, para conseguir fazê-los cair deste bem-aventurado estado, trabalharam por inspirá-los interiormente e para que cressem que seriam capazes de viver na solidão daí por diante, e que eram fortes o bastante na virtude para ousarem esperar, no repouso da solidão, a paz soberana da alma e uma doce e celeste tranquilidade. Mas o que aconteceu? Estes infelizes se deixaram enganar. Eles deixaram o porto e se fizeram ao mar; a tempestade os surpreendeu sem condutor e sem piloto; as ondas furiosas dos pensamentos impuros e das outras tentações logo atacaram e emborcaram a frágil barquinha que carregava seu tesouro e a eles próprios. Foram-se assim num triste naufrágio e pereceram da maneira mais miserável.

66. De fato, não é necessário que o mar se agite, se enfureça e se revolte para rejeitar sobre a praia os restos e as imundícies que os rios e os córregos despejam nele?  Do mesmo modo nossa alma é agitada de tempos em tempos para se desembaraçar da sujeira que nossas paixões, que são como rios em relação a ela, lhe trazem; e, se refletirmos bem, veremos que em nossa alma, como no mar, uma grande tempestade é normalmente seguida de uma grande calmaria.

67. Quem tanto obedece como desobedece a seu superior é semelhante a alguém que coloca sobre os olhos doentes ora um excelente colírio, ora cal viva. A Escritura diz: “Se um edifica e outro destrói, o que poderá obter cada um, senão trabalho e sofrimento?[37]”.

68. Portanto, vocês que são filhos e servidores obedientes do Senhor, não se deixem confundir pelo demônio do orgulho e jamais confessem seus pecados ao seu superior usando um nome falso; pois é a vergonha que vocês experimentam neste mundo que evitará a vergonha eterna no outro. Mostrem, sim, mostrem a nu todo seu mal a seu médico espiritual; digam-lhe sem temor e com simplicidade: “Meu Pai, esta falta é toda minha; este ferimento é minha própria obra; tanto um como outro me ocorreram por que vivi na negligência; não posso culpar a ninguém: eu mesmo fui seu autor, é impossível eu me escusar por ter sido levado pelos maus exemplos de meus irmãos, pelas tentações dos demônios, pelas fraquezas e limitações de meu corpo ou por qualquer outra causa; foi apenas em razão de minha tibieza, de minha preguiça e de minha negligência que eu caí”.

69. Quando vocês se apresentarem para fazer a confissão de seus pecados, adotem os modos, a postura e as maneiras de um criminoso; que seu rosto anuncie modéstia e humildade e que você encham seu espírito com o pensamento de seus pecados; que seus olhos não mirem senão a terra; se puderem, lavem os pés de seu pai espiritual com lágrimas amargas e abundantes, como fariam se estivessem diante do próprio Jesus Cristo. Porém, ao confessar os pecados, cuidado e defendam-se de uma tentação muito funesta: os demônios redobram então seus esforços para nos levar a não fazer uma confissão completa e sincera, ou a nos confessarmos sob um nome inventado, ou para não colocarmos nossas faltas sobre outro, como se tivessem sido a causa ou a ocasião.

70. Se o hábito que adquirimos de fazer uma coisa qualquer se torna tão forte e tão poderoso que pode vencer e sobrepujar todos os obstáculos da natureza, quanto mais não poderá o hábito de fazer boas obras, ajudados e sustentados pela graça de Deus?

71. Creiam-me, meus filhos, se desde o início vocês se entregarem inteiramente ao desprezo, aos sofrimentos e às humilhações, vocês não terão que combater suas paixões por muitos anos, logo vocês as vencerão e encontrarão a preciosa paz do coração.

72. Portanto, não negligenciem em fazer a confissão de seus pecados ao seu diretor com disposições tão santas e humildes como se fosse ao próprio Deus. Oh! Já vi pecadores felizes que, por sentimentos de verdadeira contrição, por uma confissão humilde e completa, por preces fervorosas, logo amoleceram a severidade de seu juiz, que parecia inexorável e transformaram seu rigor e sua indignação em misericórdia e ternura. É por isso que vemos no Evangelho que são João, este digno precursor de Jesus Cristo, tendo de conferir o batismo aos que se apresentavam para o receber, obrigava-os a fazer a confissão de seus pecados. Ora, ele não tinha necessidade desta confissão, mas a exigia para buscar a salvação dos pecadores que recorriam ao seu ministério.

73. Não devemos nos espantar se, depois de havermos confessado nossos pecados com as disposições requeridas, ainda nos restem combates a sustentar; pois devemos saber que é mais fácil lutar contra a corrupção de nossos corpos, que nos humilha, do que contra o coração que se enche de si, que nos eleva.

74. Vão com calma e amansem seu ardor, quando lhes contarem a vida e as virtudes dos anacoretas que vivem no deserto; e não creiam poder abraçar este tipo de vida que estaria acima de suas forças, pois, pela obediência, vocês caminham sob o estandarte do primeiro mártir.

75. Assim, se lhes faltar força e coragem durante o combate, não abandonem o posto que ocupam, pois é nos momentos difíceis da vida que temos mais necessidade de um médico esclarecido e hábil. Ora! É preciso dizê-lo? Aquele que, ainda que protegido e dirigido pela sabedoria e a experiência de um superior, mesmo assim se deixa cair, levaria um tombo mortal e não conseguiria mais se levantar se estivesse a sós e privado de socorro!

76. Assim sendo, é verdadeiro afirmar que quando temos a infelicidade de cair em alguma falta, os demônios, para aproveitar nossa queda e preparar nossa perda eterna, nos sugerem e nos inspiram fortemente o desejo e o desígnio de nos retirarmos para a solidão. Mas é evidente que por meio desta tentação, se eles pudessem nos fazer sucumbir a ela, estes inimigos de nossa salvação querem apenas acrescentar uma ferida sobre outra e nos desorientar eternamente.

77. Se o médico espiritual que temos no momento nos declara que é impossível conseguir a cura que queremos para nossa alma, não devemos perder a coragem, mas buscar um outro e nos confiarmos às suas mãos; pois devemos saber que muito poucos doentes se curaram sem o socorro de um médico. Eh! Quem ousará sustentar um sentimento contrário? Um navio que naufraga apesar de ser dirigido por um bom e valente piloto teria se salvado da tempestade se ele não estivesse ali? Quem ousará afirmá-lo?

78. É a obediência que produz a humildade e a humildade produz a paz e a calma na alma; pois ela a liberta das tempestades das paixões e lhe leva à perfeita vitória sobre seu próprio coração. É isto que o rei-profeta nos ensina com estas palavras: “O Senhor se lembrou de nossa humilhação e nos libertou das mãos dos nossos inimigos[38]”. Nada pode nos impedir de afirmar que a obediência engendra a preciosa paz do coração, pois ela produz a humildade e a humildade faz existir esta paz, que por sua vez aperfeiçoa e coroa esta humildade. Assim, a obediência é o princípio e a causa da humildade, e a paz da alma, que é filha da humildade, confere à sua mãe a perfeição última. É assim que Moisés, que é a imagem da obediência, deu começo à lei, e que Maria, que é a imagem da perfeita paz da alma, conferiu a perfeição final à humildade.

79. Merecem ser severamente punidos por Deus estes doentes que, conhecendo a destreza e a sabedoria de seu médico pelos benefícios já obtidos, abandonam-no com desdém, e recorrem aos cuidados de outro qualquer a quem preferem.

80. Não deixem as mãos de quem em primeiro lugar os apresentou ao Senhor, pois vocês não encontrarão outro por quem possam ter uma afeição mais respeitosa.

81. Assim como um soldado sem experiência se expõe a um grande perigo se se separar de sua companhia para ir sozinho combater o inimigo, também se expõe ao perigo o monge que, sem ter passado pelos exercícios espirituais e sem conhecer o modo como são combatidas e vencidas as paixões, deixa a sociedade dos irmãos para dirigir-se só, na solidão, fazer a guerra aos demônios. A temeridade do soldado coloca-o em risco de perder a vida do corpo, e a do monge de perder a vida da alma. É assim que o Espírito Santo nos diz que “vale mais estarem dois juntos do que permanecer só[39]”; ou seja, para combater eficazmente seus maus hábitos com o auxílio e a assistência do Espírito Santo, é preciso que o filho seja assistido pelo pai espiritual.

82. Tirar de um cego seu guia; do rebanho, seu pastor; do passageiro, o condutor; da criança, seu pai; do doente, seu médico; do navio, o piloto; não equivale a colocar todas essas pessoas e coisas em perigo de morrer? Não estará exposto à mesma infelicidade aquele que, sem o socorro de seu pai espiritual será temerário o bastante para declarar e fazer a guerra aos demônios? Ora! Seus inimigos se lançarão sobre ele, o perfurarão c om suas lanças e o deixarão estendido no campo de batalha.

83. Aqueles que pela primeira vez se apresentam num lugar onde se cuida de doentes, deve ter tomado precauções no sentido de conhecer as doenças que os afetam; e os que pensam em se submeter ao jugo da obediência devem saber qual a humildade que possuem no fundo do coração, pois, se os doentes percebem que sua cura se opera na medida em que as dores diminuem, os doentes da alma não podem sentir sua cura espiritual senão na medida em que vejam a humildade crescer em seus corações, na medida em que envergonhem, se condenem e detestem suas vidas passadas.

84. Portanto, consultem sua consciência para ver as marcas de suas almas, assim como consultam o espelho para ver as marcas de seu rosto. Se agirem assim, isto lhes bastará.

85. Os monges que vivem na solidão sob a direção de um pai espiritual só têm por inimigos os demônios que se opõem normalmente à salvação dos homens; mas os que passam sua vida num mosteiro têm que combater não apenas os demônios, mas muitas vezes os homens. Os primeiros, por estarem sempre sob os olhos de seu pai, cuidam de não transgredir suas ordens; os últimos, por estarem raramente em presença de seu superior, estão expostos a viver na negligência. Mesmo assim, estes últimos, caso estejam cheios de fervor e paciência, podem vantajosamente suprir esta ausência pela doçura, a resignação e a humildade com as quais suportarão tudo o que os pode mortificar e fatigar de parte de seus irmãos, e assim merecer a dupla coroa da glória.

86. Estejamos atentos e tomemos todas as precauções possíveis; pois um mosteiro é como um porto cheio de navios: é fácil que seus balanceios constantes os joguem uns contra os outros, ferindo-os mutuamente. O mesmo pode ser dito dos monges, ainda mais se em meio a eles existir alguns com humor bilioso e irascível.

87. Quando estivermos em presença de nosso superior, mantenhamos o mais escrupuloso silêncio, e não deixemos transparecer que o fazemos por sua causa, mas porque aquele que ama e observa o silêncio é discípulo da sabedoria e atrai para si as maiores luzes em todas as coisas.

88. Um dia observei um monge interromper seu superior; e lhes digo que desisti de vê-lo alguma vez sob o jugo da verdadeira obediência, porque ele usava as palavras de seu pai espiritual não para se humilhar, mas para se elevar.

89. Devemos distinguir com prudência e sabedoria, observar com toda atenção possível e pesar com perfeita circunspecção o tempo, a maneira e as condições em que devemos preferir à oração os exercícios de que nos encarregamos, pois não devemos fazê-lo – preferir os exercícios à oração – nem sempre, nem nas mesmas condições, nem da mesma maneira.

90. Quando você se encontrar no meio dos seus irmãos, cuidado para não parecer mais justo nem mais sábio do que eles, seja no que for; do contrário, você incorrerá em dois males: primeiro, você fatigará sensivelmente seus irmãos com esta justiça falsa e que não passa de aparência; segundo, você não tirará para si senão uma tola vaidade e um orgulho bobo.

91. Seja zeloso para com sua alma, mas jamais deixe transparecer exteriormente sua regularidade; jamais se sirva, para este miserável fim, nem de ações, nem de gestos, nem de palavras, nem de qualquer outro sinal secreto, e viva sempre com esta precaução até sentir que se corrigiu desta paixão que o faz buscar os louvores dos outros e que o leva a julgar e desdenhar seus irmãos. Se ainda assim você notar que ainda está inclinado a desprezá-los, estude a si mesmo fortemente para conformar sua conduta à deles, e para jamais se distinguir nem se separar deles por um espírito de vaidade e de vanglória.

92. Conheci um discípulo que, em presença de outros, se servia dos louvores que seu superior merecia, bem como de suas virtudes, para gloriar a si mesmo; mas este miserável, por colher assim no campo de seu mestre, ao invés da glória e da honra que imaginara colher, só encontrou vergonha e confusão, pois todos se puseram a lhe dizer: “Como pode acontecer que uma árvore tão boa e excelente produza um ramo tão ruim e marcado por tamanha esterilidade?”.

93. Não pensemos ter adquirido uma paciência perfeita apenas porque aguentamos sem tremer, ou porque sofremos generosamente as admoestações e as reprimendas humilhantes de nosso superior. Suportaríamos da mesma maneira os ultrajes e as injúrias feitas por todo tipo de gente? Ora! Se sofremos mansamente o que nosso superior nos faz suportar é porque o tememos, porque não queremos desagradá-lo, nem faltar-lhe com o reconhecimento pelos serviços que nos presta, o que aliás é o mínimo que lhe devemos.

94. O essencial para nós é receber humilhações e desprezo da mão de quem quer que seja e fazê-las passar por dentro de nossa alma como uma água que dá saúde e vida; pois esta bebida amarga não nos é apresentada senão para que dela nos sirvamos para nos purificar dos humores malignos e corrompidos que tornam nossa alma doente. Se você receber assim as contradições e o desprezo, é porque uma pureza perfeita estará se tornando ornamento de sua alma e que o brilho da luz divina não mais se eclipsará no seu espírito.

95. Quem quer que veja um grande número de monges repousarem tranquilamente sobre a sabedoria e os cuidados que tenha por eles, este deve cuidar para não se glorificar, mas deve se lembrar de que existe sempre uma infinidade de ladrões e de bandidos ao seu redor e ao redor dos seus, prontos a lhes estender armadilhas ocultas. Gravem profundamente em seus corações este aviso que nos deu Jesus Cristo: “Depois que vocês tiverem feito tudo o que lhes foi ordenado, digam ainda: Somo servidores inúteis, só fizemos o que devíamos fazer[40]”; pois somente na hora da morte saberemos de fato o juízo que será feito a respeito de nossas boas obras e de nosso trabalho.

96. Um mosteiro é nesta terra uma espécie de paraíso; convém, portanto, que sendo assim imitemos os sentimentos e as afeições dos anjos que rodeiam o trono de Deus no céu, e que cumprem com tanta perfeição suas adoráveis vontades. Ora, neste paraíso terrestre, vemos monges cujo coração é tão seco e duro como as pedras; em compensação, há outros que, por suas lágrimas de terna e sincera compunção merecem as consolações divinas. Mas lembremos aqui da bondade inefável do Senhor: os primeiros são duros e insensíveis para que não caiam no orgulho, que lhes caberia se tivessem a sensibilidade dos segundos; e estes são consolados pela abundância de lágrimas que espalham.

97. Um pequeno fogo é capaz de amolecer uma grande massa de cera; muitas vezes uma pequena humilhação, um ligeiro desdém inesperado pode amansar, corrigir e fazer desaparecer a rudeza de espírito, a dureza, a insensibilidade e o endurecimento do coração.

98. Conheci dois monges que se escondiam num lugar secreto para examinar os trabalhos e para escutar os gemidos de alguns santos atletas de Jesus Cristo. Um deles agia assim com um coração direito e simples: era pelo ardente desejo de imitá-los; o outro, ao contrário, tinha uma péssima intenção: ele o fazia a fim de poder depois rir-se publicamente destes bons monges, ridicularizá-los e desviá-los de seus santos exercícios de piedade.

99. O monge que vive numa comunidade não extrai tantos frutos do canto dos salmos como da oração, pois a confusão das vozes dissipa a atenção e perturba o intelecto.

101. Combata corajosamente a leviandade do espírito, quando os pensamentos são vagabundos e voláteis, e force-o a retornar sobre si mesmo. De resto, Deus não exige dos que ainda são crianças em relação à obediência que façam orações isentas de toda distração. Não se desencorajem então se, durante suas orações, seu espírito vague de lá para cá por causa de pensamentos involuntários; mas conduza-o fortemente do recolhimento interior. Somente os anjos são capazes de uma atenção sustentada e perseverante.

102. Quem quer que, no segredo de seu coração, tenha resolvido se expor mil vezes à morte do que, por toda sua vida, não sustentar com vigor a guerra que iniciou um dia para salvar sua alma, este não cairá facilmente nos inconvenientes que acabei de assinalar. A inconstância e as mudanças de lugar são fontes inesgotáveis de males e infelicidades; assim é que os que passam de um lugar a outro, de um mosteiro a outro, não estão longe de receber o epíteto vergonhoso de infames. Nada é melhor para produzir a esterilidade das boas obras numa alma do que esta inconstância continuada.

103. Assim, se vocês chegarem a uma escola de medicina espiritual que lhes seja totalmente desconhecida e se se colocarem sob a direção de um pai espiritual que vocês não conhecem, o que devem fazer é examinar com atenção qual é o espírito e qual a maneira de viver de todos os que estão reunidos naquele local. Se vocês acharem que os operários e os ministros da salvação são capazes de lhes trazer algum alívio e de contribuir para a salvação de sua alma, sobretudo se vocês encontrarem aí um remédio singular e eficaz contra a vaidade e o inchaço do coração aproximem-se deles sem temor e com confiança, reúnam-se com eles, vendam-se a eles; e para passar o contrato de venda, apresente-lhes o ouro precioso da humildade; como papel, a obediência; como lacre, seus serviços e trabalhos; e por testemunhas os anjos. Rasguem diante deles a cédula vergonhosa por cujo valor vocês se tornaram escravos de suas próprias vontades; pois se vocês até então erraram por aí, sem se fixar em parte alguma, perderam o preço pelo qual Jesus Cristo os resgatou. Que este mosteiro seja para vocês como um túmulo, de onde os mortos não devem sair senão para comparecer diante do soberano Juiz; e se alguns saem por outras razões, temo que seja porque estão realmente mortos. É por isso que devemos pedir ao Senhor que nos afaste desta espantosa infelicidade.

104. Os preguiçosos, para não fazer as coisas cansativas que lhes são ordenadas, costumam alegar a necessidade de orar; mas quando as ordens são doces ou agradáveis, têm tanta vontade de orar quanto de se queimar.

105. Existem monges que desistem dos encargos e dos empregos que exercem no mosteiro, mas por motivos bem diferentes; pois uns os abandonam em favor de um irmão, ou porque alguém lhes pede; outros não querem exercê-los por preguiça e comodidade; estes renunciam por uma vã ostentação, aqueles os deixam com grande prazer para serem mais livres.

106. Se você entrar para uma comunidade e perceber que sua alma, em lugar de se iluminar com novas luzes, mergulha ao contrário nas trevas mais profundas, não há outra coisa a fazer do que sair o mais depressa possível; pois ainda que o homem de bem possa sempre e em qualquer lugar permanecer um homem de bem, o bandido não se torna bom em parte alguma.

107. No mundo, as maledicências e as calúnias produzem normalmente discussões e animosidades; num mosteiro a intemperança mata todas as virtudes e inspira o horror à vida religiosa. Assim, se lhes foi dado reduzir à escravidão este domínio tirânico, vocês desfrutarão da paz e da tranquilidade da alma em qualquer lugar; mas se ela estabelecer seu império sobre vocês, sua salvação estará em perigo iminente de agora até a morte.

108. Deus, por um favor singular, concede aos que são verdadeiramente crianças obedientes de ver e contemplar as virtudes de seu superior, e lhes esconde corretamente as más qualidades e as más ações. O demônio, que é o inimigo declarado da virtude, faz tudo ao contrário.

109. Amigos, tomemos o mercúrio como imagem da perfeição da obediência; e atentemos para o fato de que embora ele esteja continuamente em movimento e se coloque sob os demais líquidos ele é sempre puro e não se mancha com nenhuma impureza.

110. Portanto, quem praticar a virtude com santo ardor deve cuidar para não crer que os demais se entregam à negligência; pois eles merecem ser julgados e condenados mais severamente do que os que condenam e criticam a preguiça. Eis por que eu penso que o bom patriarca Lot fui considerado digno de ser chamado de justo, porque, vivendo no meio de ímpios, ele jamais condenou ninguém.

111. É verdade que sempre e em toda parte devemos trabalhar para preservar nossa alma da dissipação, das perturbações e da inquietude; porém isto é ainda mais importante no momento em que nos entregamos aos exercícios da prece e ao canto dos salmos: pois é então que os demônios redobram seus esforços para encher nosso espírito de distrações, a fim de que percamos o fruto de nossa santa ocupação.

112. É verdadeiramente servidor de Deus aquele que, ao mesmo tempo em que serve a seus irmãos, eleva seu coração ao céu e nele fixa seus votos, sua afeição e seus sentimentos, e não cessa de bater à porta de Deus com preces fervorosas.

113. As injúrias, o desdém, as humilhações e todas as coisas duras e sofridas produzem a amargura do absinto na alma de quem está devotado aos deveres da obediência; enquanto que os louvores, os aplausos e as honras enchem de uma doçura semelhante à do mel o coração de quem só busca as coisas doces e agradáveis. Mas lembremo-nos de quais são as propriedades do mel e do absinto: enquanto que este purifica o estômago e as entranhas dos humores malignos e biliosos, aquele quase que só os faz aumentar.

114. Tenhamos uma confiança sem limites naqueles que, no Senhor, são encarregados de conduzir nossa alma ao porto da salvação, ainda que nos pareça que eles de nós exigem coisas contrárias à salvação; pois é sobretudo nestas circunstâncias, nestas circunstâncias penosas, que nossa confiança em suas luzes e em sua sabedoria é testada no fogo da obediência e da humildade; e a marca menos equívoca que podemos dar da firmeza de nossa fé consiste em cumprir sem hesitar aquilo que nossos superiores nos ordenam, ainda que suas ordens nos pareçam opostas ao que esperamos e desejamos.

115. Já dissemos que a humildade nasce da obediência; e a prudência religiosa tem sua origem na humildade. Os doutores a chamam de discernimento. Cassiano disse desta virtude coisas admiráveis num excelente tratado específico sobre o tema. Ora, esta excelente virtude orna o espírito com luzes e lhe comunica até a faculdade de prever as coisas futuras. Considerando assim estas vantagens, quem poderá se recusar a percorrer a bela carreira da obediência? Foi ela que o salmista cantou: “Você preparou, meu Deus, em sua grande Bondade, um tesouro para seu povo”; e este povo feliz, podemos assegurar que são os monges obedientes, e que este tesouro preciosa é a presença de Deus em seus corações.

116. Não percam jamais a lembrança deste grande servidor de Deus, deste intrépido atleta de Jesus Cristo, o qual, durante os dezoito anos em que viveu em perfeita obediência a seu superior, nunca recebeu dele uma só vez estas palavras de consolo: Meu filho, desejo que você se salve! Mas, enquanto os homens lhe recusavam esta consolação, o próprio Deus o consolava admiravelmente, pois ele não dizia apenas no fundo do seu coração: “Desejo que você seja a sombra dos meus eleitos”, palavras que parecem expressar algo incerto, mas ele assegurava que ele de fato fora salvo; na verdade, o que ele lhe anunciava era um estado certo e indubitável.

117. Dentre os que vivem sob o jugo da obediência, existem alguns que não dão atenção ao fato de viver uma ilusão bastante funesta: trata-se daqueles que, conhecendo a condescendência de seu superior, lhes pedem e obtêm cargos, encargos e exercícios conforme a seus gostos e inclinações; mas que saibam e compreendam estes infelizes que assim obtendo o que desejam perdem todo direito à coroa e à recompensa destinadas à perfeita obediência: pois a obediência consiste numa renúncia completa e absoluta a toda dissimulação ou vontade própria.

118. Acontece às vezes que um monge, tendo recebido uma ordem de seu superior, prevê que se a cumprir sofrerá, e assim, por este motivo, não a cumpre; como também acontece que outro monge, prevendo a mesma coisa, executa sem hesitar a ordem recebida. Pergunto: qual dos dois monges teve a conduta mais santa e mais conforme ao espírito da obediência?

119. É preciso nunca pensar que o demônio possa agir de modo contrário à vontade que ele sente de nos fazer mal; vocês devem estar convencidos desta verdade pelo exemplo daqueles que, tendo vivido por algum tempo numa cela ou num mosteiro, com doçura e paciência, caíram depois no relaxamento. Assim, se experimentamos em nós o desejo de deixar um mosteiro para passar a outro, devemos, a fim de saber o que Deus quer de nós, examinar seriamente se não lhe agradará mais que permaneçamos aonde estamos; pois me parece que esta é uma tentação que devemos combater; ao sermos atacados assim pelo demônio, devemos nos defender.


História de santo Acácio.

120. Eu me tornaria culpado de malícia e crueldade se passasse em silêncio certas coisas a respeito das quais não se pode calar. Ora, foi João Sabaíta, a quem prezo muitíssimo, que me contou estas coisas maravilhosas; e você sabe por experiência própria, caro pai, o quanto este grande homem foi isento de paixões e de exaltação, e o quanto lhe aborrece a vanglória nas palavras. Eis o que ele me disse: “Havia num mosteiro na Ásia onde eu vivi um tempo, um ancião muito negligente e de má conduta; digo-o não para julgar as intenções secretas de um homem, mas em honra da verdade. Aconteceu, não sei como, que este ancião tinha como discípulo Acácio, jovem de admirável simplicidade e espantosa prudência. Este jovem monge sofria de parte de seu mestre tantos e tão maus tratos, que muitas pessoas recusariam crer; pois ele não se contentava em cobri-lo e oprimi-lo com injúrias, ultrajes e humilhações, mas ainda o espancava e enchia seu corpo de ferimentos e chagas por causa dos golpes que descarregava sobre ele todos os dias. Acácio sofria todas essas indignidades com uma paciência e uma sabedoria verdadeiramente espantosas. Ora, como eu via que a cada dia este jovem era tratado mais cruelmente, como se fosse o mais vil dos escravos, lhe dirigia algumas palavras de consolo quando o encontrava: ‘Caro Acácio, dizia-lhe eu, com está você hoje? O que há de novo?’. Como resposta, este bom monge me mostrava os olhos ternos e sem vivacidade, um pescoço maltratado e uma cabeça cheia de feridas e contusões; e como eu sabia quão grande e generosa era sua paciência, eu me contentava em lhe dizer, para encorajá-lo: ‘Coragem, caro irmão, tudo vai bem, sim, tudo vai bem: sofra sempre com doçura e resignação, e logo você colherá os frutos abundantes da paciência’. Ora, depois de haver passado nove anos sob a ferocidade deste impiedoso ancião, sua alma santa voou para o céu. Cinco dias depois da morte de Acácio, seu mestre foi procurar um ancião solitário, homem muito recomendado por suas virtudes, e, depois de tê-lo saudado, lhe contou da morte de seu santo e fervoroso discípulo. Mas o bom velho lhe respondeu que em verdade ele não podia acreditar. Então o mestre de Acácio acrescentou: ‘Venha comigo, e verá que não o engano’. O ancião se levantou, e foi com este padre até o túmulo daquele grande e valente atleta de Jesus Cristo. Quando ali chegou, como se Acácio estivesse vivo – e, de fato, ele não estava morto, mas dormia o sono dos justos – ele lhe dirigiu estas palavras: ‘Irmão Acácio, é verdade que você morreu?’. Então aquele nobre filho da obediência, mesmo morto, deu este ilustre exemplo de submissão: pois ele obedeceu àquele que o interrogava, e lhe respondeu: ‘Como poderia, meu Pai, um discípulo sincero da obediência morrer?’. Estas palavras tocaram o mestre do jovem monge com tão grande terror que, desmanchado em lágrimas, este caiu com o rosto por terra e se apressou a pedir ao superior do mosteiro que lhe permitisse fixar moradia junto ao túmulo de seu discípulo. Ele obteve esta permissão e aí passou o resto de sua vida, praticando uma modéstia, uma paciência e uma submissão perfeitas. Ele não cessava de repetir aos padres desta comunidade: ‘Pais meus, eu cometi um homicídio’. Ora, meu pai, acho bom lhe dizer que o ancião que falou com o jovem Acácio foi o próprio abade João, que nos conservou e contou esta história, sob outro nome, até que eu descobri que fora com ele mesmo que a coisa tinha se passado.


História de João o Sabaíta, ou de Antióquio.

121. Ele me disse que enquanto vivia ainda no mesmo mosteiro, notou um outro monge que estava sob a disciplina de um padre, homem de idade avançada, de espírito manso, paciente, razoável e moderado; mas como seu jovem discípulo percebeu que seu mestre era cheio de respeito e precaução para com ele, considerou sabiamente que esta conduta lhe seria tão funesta e daninha como fora a muitas outras pessoas. Ele se permitiu solicitar ao bom monge que lhe permitisse se retirar de sua companhia. Ora, como este tinha ainda um outro discípulo, não viu dificuldade em atender ao pedido. Então o jovem deixou seu mestre, que bondosamente lhe deu muitas cartas de recomendação, para que ele pudesse entrar para outro mosteiro no Ponto. Na primeira noite em que ele passou neste mosteiro, ele viu em sonhos pessoas que o pressionavam fortemente a que lhes pagasse uma soma de dinheiro que ele lhes devia; estas, depois de examinarem seriamente as coisas, convenceram-no de que ele era devedor de cem libras de ouro. Ao acordar, ele entendeu o que significava esta visão. Por isso ele não cessava de repetir para si mesmo: “Infeliz Antióquio (este era seu nome), é bem verdade que lhe restam muitas dívidas a quitar”. Continuou ele: “Eu passei três anos neste mosteiro obedecendo cegamente a tudo o que me ordenavam e, como eu era estrangeiro, todo mundo me desprezava, me humilhava e me maltratava. Depois de haver passado assim esses três primeiro anos, tive uma segunda visão, na qual alguém me quitava apenas dez libras de outro das cem que eu devia. Ao acordar, compreendi a advertência que me vinha do alto e disse para mim mesmo: ‘Se durante três anos de trabalhos e penas você não pagou mais do que dez libras de ouro, quando poderá você, miserável, quitar o restante? É preciso, pobre Antióquio, que para se libertar inteiramente você suporte trabalhos maiores e devore humilhações mais profundas’. Tomei a resolução extraordinária de me fingir de louco, mas sem fazer crer que havia perdido inteiramente a razão. Os padres do mosteiro, vendo-me neste estado, e conhecendo por outro lado a prontidão com que eu cumpria as ordens que me eram dadas, me encarregaram de todas as ocupações mais penosas e mais difíceis da casa, considerando a mim como o dejeto da comunidade. Passei mais treze anos neste estado, ao fim dos quais as mesmas pessoas que vira me apareceram outra vez durante o sono e me quitaram enfim toda a dívida. Ora, durante todos esses anos, quando os padres me oprimiam com maus tratos, o pensamento da enorme dívida que eu tinha a pagar me enchiam de força e coragem e me faziam a tudo sofrer com paciência e resignação”. Eis, meu caro padre João, aquilo que João o Sabaíta, este tesouro de sabedoria, me contou a respeito de si mesmo, sob o nome falso de Antióquio. Foi ele próprio quem por sua heroica paciência, pode ser libertado de toda a dívida e mereceu o perdão de todos os seus pecados.

122. Mas consideremos ainda qual foi sua rara prudência nos julgamentos que fazia sobre as disposições internas dos homens, prudência admirável que ele só adquiriu por causa de uma perfeita obediência. No tempo em que permaneceu no mosteiro de São Sabas, três monges se apresentaram a ele para se colocar sob sua disciplina. Ele os recebeu com afeto especial, e fez tudo o que sua caridade lhe sugeriu para aliviá-los da fadiga da viagem; mas, depois de três dias este santo ancião lhes dirigiu estas palavras: “Meus irmãos, ele lhes disse, eu não passo de um miserável pecador; é impossível para mim fazer o que vocês me pedem”. Porém, os monges não levaram em conta sua resposta nem as razões que ele alegava, e lhe pediram insistentemente para que os recebesse como discípulos, tão grande consideravam sua virtude. E, como viram que nada o poderia fazer mudar de ideia, lançaram-se a seus pés e imploraram que ele lhes desse ao menos algumas regras salutares de conduta e que lhes dissesse de que modo e em que lugares deveriam passar o resto de suas vidas. Cedendo então à suas ardentes súplicas e sabendo que eles receberiam seus conselhos com submissão e humildade, este santo ancião disse a um deles: “Meu filho, agradará a Deus que você viva na solidão sob a direção de um pai espiritual”. Depois, dirigindo-se ao segundo: “Quanto a você, vá e consagre ao Senhor sua vontade, sem nada reservar para si, carregue a cruz que ele lhe destinou: viva num mosteiro, em sociedade com os irmãos, e você terá indubitavelmente um tesouro no céu”. Enfim ele disse ao terceiro: “Quanto a você, é preciso que não haja um instante sequer de sua vida em que você não pense nesta sentença do Senhor: ‘Aquele que perseverar até o final, este será salvo[41]’. Vão, então, e façam de modo a que dentre todos os homens não haja ninguém mais severo do que aqueles que vocês tomarem como mestres e condutores de suas vidas religiosas; jamais se separem deles e a cada dia avaliem como leite e mel os desprezos e humilhações que os fizerem passar”. A estas palavras, um dos irmãos respondeu a este grande homem: “Mas, se este pai espiritual viver na preguiça e na negligência, o que devemos fazer?”. Ele disse: “Ainda que você o veja cair em alguma falta que lhe cause horror, permaneça com ele e contente-se em dizer para si mesmo: ‘meu amigo, o que você veio fazer aqui?’. Então, triunfante da tentação, você sentirá todo o balão do orgulho se esvaziar, e o fogo da concupiscência diminuir e se extinguir”.

123. Todos nós que tememos ao Senhor devemos nos esforçar para combater sob seus estandartes com toda a energia e coragem de que somos capazes, por medo de, colocados numa escola de virtude, ao invés de aprendermos a ciência feliz das boas obras, aprendermos a funesta arte de nos tornarmos viciosos e falsos, astuciosos e enganadores, raivosos e coléricos; e não se espantem que estas infelicidades ocorram às vezes: pois, na medida em que estamos neste mundo, seja dentre tripulantes, seja dentre operários, seja onde for, os inimigos de nosso rei, os demônios, não nos atacam com grande violência; mas quando eles nos veem sob os estandartes de nosso divino General, e percebem que ele nos recebeu a seu serviço, dando-nos armas, uma espada, um uniforme militar, então eles fremem de furor, procuram e empregam toda sorte de meio de armadilhas para nos derrotar; é por isso que estamos essencialmente obrigados a vigiar sem cessar, por nós e ao redor de nós.

124. Eu vi crianças amáveis pela inocência e simplicidade de suas almas e pela beleza de seus corpos que, enviadas para casas de educação para aí se formar na ciência e na sabedoria e adquirir outros conhecimentos úteis, pelo comércio que tiveram com condiscípulos viciosos e perversos, se perverteram também, e infelizmente só aprenderam a mentira, a astúcia e a corrupção do coração. Quem tiver inteligência que entenda porque falo isto.

125. É impossível que aqueles que se aplicam com todas as forças para adquirir a ciência da salvação não façam nela grandes progressos. Mas admiremos aqui a divina Providência: enquanto uns sabem o progresso que adquiriram, outros não o percebem.

126. Um banqueiro que pretende gerenciar bem seus negócios não deixa de verificar diariamente, a conta exata e circunstanciada dos ganhos e perdas que fez durante a jornada. Mas ele não poderá saber com certeza aonde está, se, a cada instante, não anotar os negócios que trata; é desta maneira que lhe será possível ter um conhecimento exato daquilo que fez a cada dia.

127. Quando recriminamos um mau monge, o vemos em seguida triste e de mau humor, ou então se atirando com baixeza aos pés do superior que o admoestou, a fim de lhe apresentar mil desculpas. Mas ao se humilhar assim, o faz menos pelo desejo de praticar a humildade e a submissão do que para por fim a uma coisa que o afadiga. Assim, se vocês forem mortificados por reprovações amargas, saibam guardar um silêncio salutar e suportem com paciência corajosa o ferro e o fogo das correções severas aplicadas às suas almas, que os purificarão e espalharão no seu espírito luzes abundantes; e quando seu médico espiritual terminar sua operação prosternem-se aos seus pés para pedir-lhe perdão; porque se vocês o fizerem no momento em que ele os repreende com zelo, ele poderá não os escutar, e até rejeitá-los.

128. Os que vivem em comunidades devem sem dúvida travar uma guerra mortal contra todos os vícios; mas existem dois, acima de tudo, que devem atacar todos os dias com mais vigor e coragem do que todos os outros. Estes dois vícios são a intemperança e a cólera. Ora, eu digo que estes dois vícios devem ser objeto especial dos cenobitas, porque estas paixões encontram na sociedade dos homens que vivem conosco os alimentos que melhor lhes convêm.

129. Ainda que estejamos bem longe de praticar virtudes raras e sublimes, o demônio, para nos fazer quebrar o jugo da obediência sob o qual temos a felicidade de viver, não deixa de nos sugerir isto em pensamento e nos inspirar um desejo intenso disto. Penetrem no íntimo dos monges imperfeitos e temerários e vocês verão que eles suspiram pela vida solitária, que eles desejam com ardor os jejuns mais rigorosos, a prece mais contínua e mais recolhida, a humildade mais profunda, a mais constante meditação da morte, a compunção mais viva, a vitória mais completa sobre suas paixões, o silêncio mais absoluto e uma pureza de anjo. Mas como, por uma conduta secreta da divina Providência, eles não puderam, desde o começo de seu noviciado, praticar segundo seu desejo estas belas e excelentes virtudes, logo se desencorajaram, abandonando as práticas mais comuns e se retirando do mosteiro. O demônio os enganou, fazendo-os desejar fora de hora a prática destas virtudes, a fim de que eles não pudessem, pela perseverança, adquiri-las no tempo conveniente. Mas não são apenas os monges cenobitas que o demônio busca enganar, ele ataca também os anacoretas. É assim que, para desencorajar e derrubar os solitários, este inimigo enganador e mentiroso lhes prega e exalta a felicidade dos monges que vivem em comunidade; ele elogia a hospitalidade que eles exercem, os serviços de caridade que fazem uns aos outros, sua afeição e sua união fraternais, os cuidados afetuosos e assíduos que eles têm para com os doentes, e mil outras vantagens a fim  de os fazer desgostar do gênero de vida que abraçaram, e fazê-los se perderem por uma falsa via.

130. Mas é preciso confessar que a hesíquia só está alcance de um pequeno número, e esta vida de perfeição não convém senão àqueles a quem o Senhor, por graças especiais e consolações celestes, sustenta e fortifica nos trabalhos penosos que eles têm que suportar e nos combates difíceis e cruéis que eles têm que sustentar.

131. O conhecimento que temos de nossas más disposições e de nossos defeitos deve nos fazer buscar e escolher de preferência o estado de obediência como sendo o mais apropriado e mais conveniente. Por conseguinte, aquele que se sente levado à intemperança e aos prazeres carnais cuide para se colocar sob a disciplina de um superior experimentado e de inflexível rigor na prática da temperança e da sobriedade, mais do que de um fazedor de milagres, de um amigo da hospitalidade ou de um homem que goste de servir os outros à mesa. Quem sente seu coração agitado pela vaidade e possui o orgulho escolha como pai espiritual um homem de grande severidade e perfeita austeridade, que jamais lhe mostre um rosto risonho e satisfeito, mas que seja constantemente sem clemência nem doçura.

132. Jamais devemos procurar como diretor um homem que, por sua sabedoria e luzes, seja capaz de predizer as coisas futuras e de prever o que vai acontecer. Desejemos e procuremos os verdadeiros doutores, que, por seus bons exemplos na prática da obediência e da humildade, e por sua sólida ciência, possam nos curar de nossas enfermidades espirituais, nos dar regras de conduta, nos fazer conhecer o estado e o lugar que são necessários para que nos santifiquemos.

133. Assim, se vocês têm o desejo sincero de se devotarem inteiramente à obediência, não percam nunca de vista o exemplo que nos deu Abacir; como este grande servidor de Deus, digam com frequência a si mesmos: “Meu superior quer provar e conhecer a minha fidelidade; é por isso que ele me coloca à prova”. Este pensamento os impedirá que se enganem, vocês não se afastarão da via a seguir; e se vocês tiverem nele uma confiança tão mais completa e um amor tão mais afetuoso quanto mais ele os repreender com rigor e severidade, esta será uma marca certa e indubitável de que o Espírito Santo concedeu em visitá-los e que ele habita secretamente em seus corações. De resto, observem bem que, se vocês sofrerem com paciência corajosa e constante às admoestações e humilhações de seu superior, longe de se glorificar e regozijar por isto, terão mil razões para chorar e gemer; pois foi sua conduta que mereceu estas reprimendas ou estas correções humilhantes, e que fez com que seu pai espiritual ficasse de mau humor contra vocês.

134. Não se perturbem nem fiquem espantados com o que vou dizer, pois eu o direi apoiado e fundamentado sobre uma autoridade sólida: Moisés. Eu lhes digo que é menos funesto pecarmos contra Deus do que contra nosso pai espiritual. E eis a razão: se com nossos pecados irritamos a Deus contra nós, nosso pai espiritual pode acalmá-lo e nos reconciliar com ele; mas quando ofendemos nosso pai em Deus, a quem poderemos recorrer para tornar Deus propício a nós? Entretanto, parece-me que Deus acalmará nosso superior, assim como nosso superior acalmou a Deus em nosso favor.

135. Em tudo o que dissemos, existe uma coisa que devemos examinar, considerar e pesar com grande cuidado e sem paixão: é saber em que circunstâncias somos obrigados a sofrer com amor e reconhecimento, com paciência e sem nada dizer as admoestações feitas por nosso superior, e em que circunstâncias nos é permitido, para nos desculparmos, explicar a ele o porquê de nossa conduta merecedora de sua indignação e reprimendas. Quanto a mim, penso que todas as vezes em que as humilhações não recaem senão sobre nós devemos guardar silêncio; pois é uma excelente ocasião para enriquecer e ornamentar nossa alma. Mas se estas humilhações são nocivas ao próximo, me parece que, por caridade e pelo bem da paz, estamos autorizados a romper o silêncio e defender nosso irmão, cuja inocência conhecemos.

136. Ninguém pode instruir tão bem sobre as vantagens da prática da obediência como aqueles que não mais a praticam, pois eles compreendem bem em que estado de felicidade viviam enquanto estavam sob o jugo da submissão.

137. Quem estiver verdadeiramente possuído do desejo de adquirir a paz e a tranquilidade da alma, e de encontrar a Deus, sente uma grande perda quando passa um dia em sua vida sem sofrer alguma humilhação.

138. Assim como as árvores mais lançam raízes fortes e profundas quanto mais são agitadas pelo vento, também os que vivem na obediência se tornam fortes e invencíveis quanto mais são testados e provados.

139. Podemos dizer que era cego e recobrou a visão que nos dá Jesus Cristo aquele que, reconhecendo ser fraco demais para levar a vida eremítica, sai da solidão e se dirige para um mosteiro para aí se consagrar e se dedicar inteiramente aos salutares exercícios da obediência.

140. Generosos atletas do Senhor tenham coragem, tenham coragem, sim, eu repito pela terceira vez: tenham coragem! Perseverem em correr nesta bela carreira da obediência e escutem atentamente as palavras do Sábio: no mosteiro, “o Senhor os testa como quem prova o ouro na fornalha e os recebe em seu seio com as vítimas que são sacrificadas para serem oferecidas a ele nos holocaustos[42]”. Até agora, tratamos dos degraus do paraíso que estão expressos no número dos quatro evangelistas. Atleta, continue a correr sem temor!


QUINTO DEGRAU


Da verdadeira e sincera penitência.

1. Naquele tempo, João correu mais depressa do que Pedro[43]; é por isso que a obediência vem aqui antes da penitência. Pois quem chega primeiro é a imagem da obediência, e o outro a imagem da penitência.

2. A penitência é o restabelecimento do batismo. É uma espécie de contrato por meio do qual prometemos a Deus corrigirmos as faltas de nossa vida passada e viver melhor o futuro. A penitência, se eu ousar me servir desta expressão, esta carregada com os interesses da humildade; trata-se de uma renúncia perfeita a todos os prazeres dos sentidos, de um julgamento severo que fazemos contra nós mesmos, da ocupação mais séria de uma alma que se aplica de bom grado aos afazeres de sua salvação eterna. Ela é a filha mais velha da esperança e a inimiga mortal do desespero. O verdadeiro penitente é um criminoso que confessa seus pecados sem desculpar nenhuma infâmia. A penitência tem o dom de nos reconciliar com Deus, fazendo com que pratiquemos as boas obras opostas às faltas cometidas; é ela que descarrega. Purifica e santifica a consciência; é ela que nos leva a sofrer generosamente todas as penas e todas as aflições que nos acontecem. Aquele a quem ela anima se torna de uma atividade admirável no sentido de buscar e empregar todos os meios capazes de puni-lo; é ela que combate e supera a intemperança, e que acusa sem negociar no tribunal da consciência.

3. Todos vocês que, com suas múltiplas ofensas, irritaram a cólera de Deus, acorram, aproximem-se, venham e escutem: reúnam-se aqui e considerem comigo as maravilhas que aprouve a Deus me permitir descobrir e me dar a conhecer, para o exemplo e a salvação de todos. Comecemos por dizer algumas coisas a respeito desses homens devotados a Jesus Cristo por meio de profundas humilhações, dignos, por isso mesmo, dos nossos louvores e dos primeiros lugares. Escutemos, contemplemos e imitemos estes belos modelos, nós todos que tombamos em faltas mortais! Levantem-se e estejam atentos, vocês que ainda estão sob o vergonhoso jugo do pecado! Irmãos, deem ouvidos às minhas palavras; e vocês, quem quer que sejam, se desejam sinceramente se reconciliar com Deus por meio de uma verdadeira conversão, não deixem de prestar aqui toda a sua atenção.

4. Tendo eu sabido – eu, que não passo de um homem preguiçoso e imperfeito – no tempo em que eu residi no grande mosteiro de que falei, que havia alguns religiosos que, num outro mosteiro aos qual chamávamos de Prisão, levavam uma vida especialmente extraordinária e que praticavam toda a perfeição da humildade, pedi ao santo abade do grande mosteiro, ao qual estava submetida esta outra comunidade, permissão para ir até lá, para ser testemunha do que lá se passava. Ora, este grande luminar, este santo abade me permitiu de boa vontade, até por que ele temia causar-me a menor pena.

5. Assim que cheguei ao mosteiro dos Penitentes (que poderíamos chamar de região do choro e dos gemidos, a Prisão, para dizer numa palavra), fui testemunha, se me é permitido dizer, de coisa que o olho de um moleirão e preguiçoso jamais viu, que o ouvido de um negligente jamais escutou, e que o espírito de um indolente jamais compreendeu; fui testemunha, repito, de ações e de palavras capazes de fazer violência ao próprio Deus, de trabalhos e de mortificações tão poderosas a ponto de merecer em pouco tempo sua Clemência e sua Misericórdia.

6. Vi alguns destes culpados inocentes passar noites inteiras de pé, com os pés imóveis, lutando vigorosamente contra o cruel e inoportuno sono, não se concedendo o menor repouso, acusando a si próprios de lassidão e negligência, instando a si mesmos na perseverança e fazendo a si próprios as mais humilhantes reprimendas.

7. Vi outros que, com os olhos humildemente postos no céu, imploravam pela Clemência e a Bondade de Deus com palavras e um tom de voz que penetravam a alma de piedade e compaixão.

8. Vi ali outros que, como infames celerados, com as mãos amarradas às costas e cobertos de opróbrio, presas da mais dilacerante aflição, curvavam humildemente o rosto à terra, considerando-se indignos de olhar o céu, e que não ousavam falar, nem soltar gemidos, nem fazer preces.

9. O pensamento aterrorizador de seus pecados, os remorsos abrasadores de sua consciência terrificada, a vergonha e o opróbrio que sentiam, os preenchiam, e atormentavam de tal maneira, que eles eram incapazes de ousar pronunciar o santo nome de Deus para invocá-lo, eles não sabiam nem como começar nem como terminar as preces que queriam lhe endereçar, e eram assim obrigados a lhe apresentar uma alma muda, um espírito cheio de trevas, um coração quase entregue aos horrores do desespero. Outros vi que, tristemente sentados no chão, cobertos de cinzas e vestidos com um rude cilício, escondiam o rosto entre os joelhos e arranhavam a face penitentemente.

10. Vi ainda outros que batiam no peito sem cessar, relembrando com arrependimento inexprimível o estado de felicidade em que viviam quando praticavam a virtude. Dentre estes ilustres penitentes, alguns inundavam a terra com a abundância de suas lágrimas; outros, incapazes de chorar, feriam-se com golpes; outros, não conseguindo comprimir a dor que lhes trespassava o coração, o exprimiam por soluções semelhantes aos lamentos dos que assistem ao funeral de seus próximos; outros, em suas celas, rugiam como leões em suas cavernas, frementes de temor e medo, afogando-se em seus gemidos, ou, por vezes, incapazes de conte-los, explodiam em gritos contundentes e lamentosos.

11. Vi alguns que por seus gestos pareciam estar fora de si, e que, pela dor que suportavam, permaneciam numa estupefação indizível, e mantinham o mais triste silêncio. Poderiam ser tomados facilmente por pessoas privadas de razão, insensíveis e mortas para todas as funções da vida; e, no entanto, eles só se achavam neste estado por terem descido às maiores profundezas da humildade, e as lágrimas que derramavam não eram outra coisa que a expressão de sua contrição viva e inflamada.

12. Observei outros que, com a cabeça encurvada para o chão, imóveis como estátuas, estavam entregues a profundas meditações, e que, pelos muitos movimentos de suas cabeças, anunciavam a grandeza de sua aflição, gemiam e rugiam de tempos em tempos como leões. Encontrei ainda alguns outros, cheios de uma deliciosa esperança, que conjuravam o Senhor com preces admiráveis pedindo-lhe que lhes concedesse a remissão de todas as suas faltas. Outros vi que, devido a uma inexprimível humildade, julgavam ser indignos de perdão, e proclamavam em alta voz que lhes era impossível satisfazer à justiça de Deus, por causa da grandeza e da enormidade de seus crimes. Alguns conjuravam sem cessar a Deus que os punisse severamente neste mundo, mas que lhes concedesse sua Amizade e os coroassem com suas Misericórdias no outro. Alguns ainda, oprimidos sob o peso terrível da reprovação de suas consciências, oravam com humildade e fervor ao Deus de toda bondade que ao menos os preservasse dos suplícios eternos que eles mereciam, e se declaravam pública e sinceramente indignos do Reino dos céus.

13. “Oh!, clamavam eles, desde que esta graça não nos seja recusada, devemos estar contentes.” Isto foi o que vi destas almas verdadeiramente humildes, mortificadas e varadas de dor, que conheciam e sentiam toda a enormidade de seus pecados. E eles ainda soltavam gritos e lamentos, dirigindo a Deus preces tão fervorosas e animadas, que teriam amolecido a dureza e a insensibilidade de rochedos. Eu podia ouvi-los em seu santo estremecimento, humildemente prosternado contra a terra, repetir sem cessar: “Sim, Senhor, nós reconhecemos e confessamos que muito merecemos toda sorte de penas e castigos, e que, ainda que o universo inteiro se reunisse a nós para chorar pelo número e a grandeza de nossas ofensas, todas estas lágrimas não seriam suficientes para lavar nossas almas e satisfazer sua Justiça; apenas uma graça lhe pedimos, suplicamos com insistência e lhe conjuramos que não no-la recuse: de não sermos corrigidos por sua Cólera, nem castigados por sua indignação[44], mas sermos recebidos nos braços de suas Misericórdias. Basta-nos, Senhor, não precisarmos mais temer as terríveis Ameaças, e que sejamos preservados dos suplícios inexprimíveis e incompreensíveis que merecemos; pois não ousamos pedir que nos livre de todas as penas que nos pecados atraíram, nem que nos conceda um perdão inteiro e perfeito. Oh, Senhor, com que descaramento poderíamos nós solicitar tal favor – nós que tivemos a audácia sacrílega de profanar e de violar os votos de nossa santa profissão, e de pisotear indignamente a graça inestimável que recebemos – que sejam perdoadas, tão generosamente e com tanta bondade, as faltas que cometemos antes de deixar o mundo”.

14. Caros amigos, foi neste lugar, sim, neste lugar de penitência que eu vi pontualmente a realização daquilo que Davi dizia de si mesmo[45], foi lá que tive sob meus olhos o espetáculo enternecedor de pessoas mergulhadas na mais desoladora aflição, e curvadas até o fim da vida sob o peso imenso de sua dor; que todos os dias traziam a amargura de sua tristeza estampada em seus rostos e expressa em seus movimentos e no seu caminhar; e que, pela horrível purulência que exalava de suas chagas, anunciavam que seus corpos, com os quais não tinham nenhum cuidado e nem sequer pensavam neles, estava coberto de ulcerações. Aí eu vi homens que esqueciam de comer seu pão, que misturavam suas lágrimas à agua que bebiam, que se alimentavam de cinzas em lugar do pão; cujos ossos, secos, eram envoltos apenas por uma pele enrugada colada a eles; e cujo coração havia secado como a erva batida pelos ardores do sol[46]. Não os ouvi dizer senão estas palavras: “Infelizes de nós, os miseráveis! Infelizes de nós!”; e também: “É com justiça, sim, com justiça, que estamos neste estado destroçado”; enfim, também estas noutras: “Perdoe-nos, Senhor, nós lhe pedimos, perdoe-nos”. Mais adiante, outros enchiam o ar apenas com estas palavras: “Piedade, Senhor! Piedade!”, enquanto outros ainda não cessavam de repetir, com a voz lamentativa: “Oh, Senhor, se ainda podemos esperar, perdoe-nos! Sim, Senhor, queira nos perdoar!”.

15. Ora, dentre estes penitentes, havia alguns que, pelo ardor de sua dor, tinham a língua tão inflamada e ardente que não a suportavam dentro da boca; você encontraria os que, em busca de novos sofrimentos, permaneciam expostos aos ardores do sol, enquanto outros se expunham aos rigores mais insuportáveis do frio; outros só bebiam água o suficiente para não morrer de sede; outros comiam com esforço um mínimo de pão, rejeitando o resto com justa indignação, e diziam a si mesmos que, tendo estado desprovidos de sentimentos por tanto tempo a ponto de viverem como vis animais, tinham se tornado indignos de se alimentar como as criaturas racionais.

16. Ah! No meio desses homens, poderíamos encontrar o menor sinal de alegria? Poderíamos ouvir aí sequer uma palavra inútil? Seríamos testemunha de qualquer impaciência ou cólera? Eles haviam esquecido até que os homens fossem capazes de se atirar aos enfrentamentos, tanto sua grande aflição havia extinguido em seus corações todo movimento desregrado. Encontraríamos entre eles a menor aparência de discussão, o menor relaxamento, a menor licença nas conversações, o mais ordinário cuidado com o corpo, o menos aparente vestígio de vanglória, a mais fraca inclinação peara as facilidades e as comodidades da vida? Pensariam eles no vinho, nas frutas, nas comidas temperadas e nas carnes preparadas? Teria o alimento que tomavam o menor sabor? Ora, eles haviam perdido todo o sentimento por qualquer destas coisas. Ocupar-se-iam eles talvez dos negócios do mundo? Teriam algum pendor para fazer julgamentos, temerários ou fundamentados, a respeito de qualquer um dos irmãos? Jamais.

17. Eles não falavam senão por meio de seus gemidos e suas lágrimas, assim como a Deus. Alguns, como se estivessem às portas do Paraíso, mortificando o peito com golpes redobrados, clamavam: “Abra-nos, ó justo Juiz dos vivos e dos mortos; abra-nos, nós o conjuramos, esta porta de felicidade eterna, que fechamos com nossos pecados. Abra-nos!”. Outros não cessavam de repetir esta oração admirável do Salmista: “Mostre-nos apenas, Senhor, um rosto favorável, e seremos salvos das mãos cruéis de nossos inimigos[47]”. Você poderia encontrar alguém que dizia sem cessar, como Zacarias: “Meu Deus, faça brilhar sua luz sobre todos os infelizes que se assentam no meio das trevas e das sombras da morte[48]”. Mais adiante você veria um que dirigia a Deus esta prece fervorosa: “Que suas Misericórdias nos previnam prontamente, ó meu Deus[49]; pois estamos reduzidos à última miséria, estamos perdidos sem você, nos deixamos ir ao desespero e tombamos em total erro”. Noutra parte, você poderia escutar alguém se perguntando esta triste questão: “Pensam vocês que o Senhor nos mostrará jamais um rosto sereno e benevolente, e que ele derramará sobre nós as luzes de sua glória?[50]”, enquanto outro indagaria com santa e penosa inquietação: “Creem vocês que possamos esperar que nossa alma atravesse esta torrente de trevas, cujas águas são intransponíveis[51], e que o Senhor nos conceda alguma consolação?”. “Oh! – acrescentariam outros – estamos de tal maneira ligados às cadeias do pecado, que na verdade poderíamos esperar que o Senhor nos diga: ‘Saiam, sejam enfim libertos de suas correntes criminosas, vocês que vivem os rigores da penitência’? Ah! Chegarão até ele nossos gemidos e nossos gritos dolorosos?”.

18. Enfim, eu os via todos imóveis, fixados no pensamento da morte, dizendo a si mesmos: que nos acontecerá no momento da última hora? Qual será nosso julgamento?  O que nos tornaremos durante a eternidade? Passaremos desta terra de exílio ao céu, nossa pátria querida? Pode ainda haver alguma esperança para estes pobres pecadores imersos nas trevas e cobertos de confusão? Terão nossas preces e nossas lágrimas conseguido subir até o trono da divina Misericórdia? Ah! Quantos motivos temos para pensar e crer que elas foram rejeitadas, desprezadas e feridas por um ignominioso desdém! E, ainda que tenham sido recebidas favoravelmente, terão sido capazes de apaziguar a justa Cólera de nosso Juiz? Quanto terão elas conseguido abreviar nossa reconciliação com Deus? Em que estado nos terão elas colocado diante de sua santa Presença? Que favores e que graças terão elas obtido para nós? Oh! Nossas bocas impuras e criminosas, nossos corpos cheios de pecado certamente paralisaram sua eficácia. Terão elas conseguido, seja muito, seja ao menos um pouco, nos reconciliar com nosso soberano Juiz? Podermos nós ser aliviados da metade das nossas iniquidades e curados da metade de nossas chagas espirituais? Ah! Como são imensas as dívidas que contraímos! Quantos trabalhos não suportamos!  Que satisfações teremos que prestar para ficarmos quites? Será que afinal nossos anjos guardiões, que tão indignamente expulsamos, se reaproximarão de nós? Não estarão eles demasiadamente afastados? Oh! Se estes espíritos celestes não se dignarem retornas a nós, nossos esforços e nossos trabalhos de nada nos servirão, estaremos para sempre sem esperança de sermos libertados e de recuperar a preciosa liberdade dos filhos de Deus[52], nossas preces não poderão inspirar nenhuma confiança bem fundamentada, elas não terão a santidade necessária para alcançar o trono do Senhor, pois é preciso que nossos anjos, tornando-se outra vez nossos amigos, as apresentem a Deus com suas mãos puras e santas.

19. Indo adiante, ouvi outros que comungavam seus temores e suas esperanças, dizendo entre si: pensam que fizemos algum progresso com nossas penitências? Acham que obteremos enfim o objeto de nossos votos e de nosso desejo? Escutará Deus as nossas orações? Creem que ele nos abrirá o seio de suas Misericórdias e de sua Ternura? A todas estas questões, outros respondiam: quem sabe se, como nossos irmãos habitantes de Nínive, não poderemos dizer que Deus revogará a sentença terrível que pronunciou contra nós, e que nos livrará dos castigos rigorosos que merecemos? Ah! Para receber este favor insigne, redobremos o zelo e a coragem, cumprindo exatamente nossa penitência. Quanta felicidade será para nós se ele abrir as portas de sua Ternura! E mesmo que ainda não no-las abra, não deixemos de louvar e bendizer seu santo Nome, pois sua Conduta a nossos olhos é sempre justa e cheia de equidade, e perseveremos até o fim de nosso caminho, batendo na porta de seu Coração com nossos gemidos e nossas lágrimas. Esta importunação constante e esta perseverança talvez lhe façam alguma violência, e quem sabe obteremos o que buscamos com tanto ardor. Era assim que eles encorajavam uns aos outros. Gritavam eles com santo entusiasmo: corramos, caros irmãos, pois temos que correr, e correr com todas as nossas forças, pois perdemos a companhia celeste na qual transcorriam nossos dias tão doces e agradáveis, e agira estamos perdidos! Corramos, então, corramos, e não poupemos esta carne de pecado e corrupção: matemos, imolemos generosamente nossos corpos: eles causaram a morte de nossas almas!

20. Tal era a conduta, tais eram os sentimentos, e tais as palavras destes santos penitentes que eram enviados à Prisão. À força de permanecerem de joelhos, eles haviam coberto esta parte do corpo de espessas calosidades; seus olhos, de tanto derramarem lágrimas, estavam ressecados, já não tinham cílios e afundavam nas órbitas; as maçãs do rosto eram pálidas e tão magras que mais se assemelhavam às de pessoas mortas; o peito estava ferido pelos repetidos golpes que se infligiam, e estes golpes lhes causavam dolorosos sangramentos. Encontraríamos neste mosteiro camas arrumadas? Veríamos roupas apropriadas e capazes de proteger contra o frio? Tudo aí estava em farrapos, largado, feio e cheio de vermes. Para finalizar, diremos que os tormentos daqueles que são possuídos pelo demônio, a dor cruel dos que choram a morte de seus próximos, o coração rasgado dos que são condenados ao exílio, o suplício dos parricidas, estas coisas não passam de uma fraca imagem das dores, da aflição e dos sofrimentos destes santos penitentes; as penas que essas pessoas que mencionamos tiveram que suportar por necessidade nada são comparadas com aquelas que estes generosos penitentes sofriam voluntariamente. E não pensem, irmãos, que estou relatando uma fábula da imaginação: esta é a própria verdade.

21. Eu via estes penitentes extraordinários conjurar seu superior, este pastor excelente, este juiz sábio e esclarecido, este anjo entre os homens, que lhes colocassem colares de ferro ao pescoço, como se fossem infames criminosos, algemas nas mãos, pesos nos pés, e que os deixassem neste estado cruel até que a morte os levasse ao túmulo; e muitos ainda se consideravam indignos de serem enterrados.

22. Não me calarei; não, não passarei sob silêncio por este novo tipo de humilhação, ainda que inspire arrepios, nem por este humilde amor a Deus, nem por este excesso de penitência; falarei agora da conduta de alguns dentre eles, quando acreditavam haver chegado à última hora e a ponto de comparecerem diante do temível tribunal de Deus. Quando estes ilustres penitentes eram conduzidos ao lugar do mosteiro reservados aos que estavam gravemente doentes, eles conjuravam seu superior, ele que era este tesouro de luz e sabedoria, por tudo o que lhe fosse de mais sagrado e respeitável, que lhes concedesse a graça de não honrá-los com a sepultura que é dada a todos os homens, mas que atirasse seus corpos ao rio, ou que os abandonasse no campo para a voracidade dos animais selvagens. Assim o superior ordenava que seus cadáveres fossem atirados fora do mosteiro, recusando a eles as honras do sepultamento e as preces costumeiras da Igreja.

23. E que horrível e arrepiante espetáculo tínhamos diante dos olhos, quando algum destes santos penitentes chegava à sua última hora! Neste momento todos os seus fervorosos companheiros cercavam seu leito de morte; e estes homens, devorados por uma sede ardente, presas da mais cruel das aflições, inflamados pelo ardor e a vivacidade de seus desejos e de seus votos, lhe exprimiam, com a contenção que lhes inspirava a compaixão, por meio de suas palavras lamentativa, por seus movimentos de cabeça, os sentimentos da mais terna e maior comiseração. “O que há, querido irmão, terno companheiro, diziam-lhe com uma doçura que tocava o coração, o que há de novo com você? Como se sente neste momento? Quer nos dizer alguma coisa? Quais são suas esperanças? Quais são suas afeições e seus pensamentos? Você acredita ter obtido aquilo que buscou com tantas penas e tanto ardor, ou teria você trabalhado sem sucesso? Você conseguiu alcançar o porto da salvação, ou ainda teme um triste naufrágio? Você chegou diretamente ao fim de sua viagem, ou ainda se encontra perdido? Você tem uma esperança certeira de haver recebido o perdão de seus pecados, ou não tem nenhuma garantia de sua salvação? Você se encontra em plena liberdade de espírito ou ainda permanece em meio à perturbação e à angústia? Sua alma foi iluminada pelas luzes consoladoras do céu ou está ainda nas trevas e na noite da confusão? Terá você enfim escutado as palavras: ‘Você está curado[53], seus pecados foram remidos[54], sua fé o salvou[55]’? Ou, ao contrário, estas sentenças terríveis: ‘Que os pecadores sejam lançados aos infernos[56], amarrem-lhes os pés e as mãos e atirem-no às trevas exteriores[57], que o ímpio seja levado, pois ele não verá a Glória do Senhor em seu Templo[58]’? Que respostas, caro irmão, poderá você dar a todas estas questões? Fale-nos sem subterfúgios e com toda franqueza, a fim de que possamos conhecer um pouco da sorte que também nos aguarda, pois, para você, o tempo de vida está se esgotando, e quando você penetrar na eternidade, já não existirá tempo”. Alguns respondiam com estas palavras: “Bendito seja Deus para sempre! Pois ele não rejeitou minha oração nem retirou de mim sua Misericórdia[59]”. Outros respondiam: “Bendito seja o Senhor, que não nos deixou ser vítimas do furor e da voracidade dos dentes cruéis de nossos inimigos[60]”. Outros, oprimidos pela dor que traziam no coração, se contentavam em dizer: “Poderá nossa alma atravessar esta torrente impetuosa, na qual as potências do inferno procuram fazê-la perder-se?[61]”. Estes falavam da sorte, pois não estavam seguros de sua salvação, e temiam a conta terrível que teriam que prestar a Deus. Outros ainda davam uma resposta ainda mais aflitiva: “Infelizes de nós, clamavam, infeliz da alma que não guardou os votos de sua profissão! Eis a hora única em que ela é capaz de saber o que ela merece por toda a eternidade!”.

24. Tais são as coisas que vi e ouvi durante o tempo em que permaneci neste mosteiro, e confesso com franqueza que ao comparar minha preguiça e negligência com as impressionantes mortificações que estes ilustres penitentes praticavam com tanto zelo e coragem, eu fui violentamente tentado a me deixar levar pelo desencorajamento e o desespero. De resto, de qualquer ângulo que se olhasse o mosteiro, era difícil crer que aquilo fosse uma morada habitada por homens: pois ele não se fazia notar senão pelas trevas e a obscuridade que reinavam em todos os seus cômodos, pelo mau odor que exalava de todos os cantos e pelo lixo e os trastes que estavam por toda parte. Assim, é com razão que ele era chamado de “prisão” e cubículo de criminosos; pois, apenas o olhávamos, e nos sentíamos penetrados pela tristeza e levados a sentimentos de penitência. Mas o que parece difícil e impraticável a certas pessoas, se torna fácil e mesmo amável aos que conhecem e sentem a perda que tiveram por abandonar a inocência e, com ela, os dons preciosos do céu. Com efeito, uma alma que se veja privada da santa amizade que a unia deliciosamente a Deus, e da confiança tão doce e consoladora que nele depositava; que perdeu toda esperança de poder neste mundo desfrutar da paz perfeita do coração e da suprema tranquilidade, que violou o selo de sua virgindade; que por si mesma se despojou do tesouro inestimável da graça e das consolações divinas; que rompeu a aliança augusta que fizera com o Senhor; que extinguiu em si miseravelmente os ardores celestes da caridade e fez secar a fonte das lágrimas que derramava com tanta doçura; uma alma que já não é açoitada pela lembrança dilacerante dos bens que perdeu e dos males que fez, e que se encontra como que rasgada, destroçada pela dor que sente à vista de sua loucura e de seus crimes, não apenas se desvelará e se consagrará prontamente e com ardor aos trabalhos e exercícios penosos de que falamos, mas, na medida em que for capaz, se punirá e se purificará por meio de exercícios espirituais. E como poderia ela agir de outra maneira, se ainda conservou em si a mínima centelha de amor e de temor a Deus? Tais eram os sentimentos destes homens de quem falamos; pois, ao fazer todas estas reflexões salutares, e conhecendo de que alto grau de virtude caíram, eles não cessavam de repetir: “O que aconteceu com os dias felizes que vivemos? Que fizemos nós das boas obras que então praticávamos com ardor? Em outras ocasiões, eles clamavam: Onde estão Senhor, suas antigas Misericórdias[62], das quais recebíamos tantas e tão grandes provas? Um outro dizia: Lembre-se, Senhor, das humilhações, das vergonhas e dos trabalhos de seus servidores! Outro ainda gritava: Quem poderá me devolver ao estado em que me encontrava nos tempos felizes que se foram, quando o próprio Senhor velava por mim para me proteger, e sua lâmpada derramava uma luz benfazeja sobre minha cabeça[63] e meu coração?

25. Era assim, e derramando lágrimas abundantes, que eles expressavam o arrependimento por haverem dissipado tão grandes riquezas espirituais, e, no abismo profundo de sua desolação, alguns pediam com inacreditável ardor que fossem possuídos pelo pior dos demônios, a fim de começarem a sofrer desde já; outros pediam insistentemente a Deus que os castigasse com uma vergonhosa e humilhante epilepsia; outros desejavam se tornar inteiramente cegos e ser transformados em monstros medonhos, capazes de infundir horror aos homens e lhes servir de espetáculo, enquanto outros ainda queriam perder o uso dos nervos e dos músculos e serem tomados de uma paralisia universal; todos se considerariam felicíssimos se, sofrendo de tais males, pudessem evita os suplícios eternos. Quanto a mim, caros amigos, confesso que não consigo justificar o motivo pelo qual permaneci com prazer nesta morada de tristeza e prantos; mas o fato é que ali estava eu, tão satisfeito e contente, que já não pensava em mim, e, arrebatado de espanto, já não era mestre de meus pensamentos nem de meus sentimentos. Mas voltemos ao nosso tema.

27. Depois de permanecer por um mês no mosteiro da Prisão, e como, devido à minha indignidade, já não conseguia suportar, retornei o grande mosteiro e fui ao encontro do abade que o presidia. Vendo-me diferente do que estava costumado, e percebendo com a penetração de seu espírito o espanto e a admiração em que me encontrava, ele compreendeu facilmente qual seria a causa de meu estupor e do meu arrebatamento, e me disse: “Muito bem, caro João, o q eu tem você? Pode examinar de perto os combates, os trabalhos e os exercícios de nossos penitentes?”. “Si, meu Pai, respondi-lhe, eu os vi e admirei; e estimo mais admiráveis estes homens decaídos, mas que choram e expiam suas faltas, do que os que não caíram e que nem pensam em chorar; pois, reerguendo-se desta maneira, eles se colocam na feliz posição de não mais cair”. “Você tem razão”, respondeu-me ele.

28. Esta língua que jamais soube mentir me contou o seguinte fato: “Há quase dez anos, tínhamos aqui um irmão que era tão cheio de piedade, que prestava tanto cuidado e atenção em ser um verdadeiro soldado de Cristo, que estava animado de um zelo tão vivo e de tão grande ardor nos exercícios da vida religiosa, que, vendo-o em tão boas disposições, eu tremia por ele e temia muito que o demônio, invejoso de seus virtudes e de seus méritos, não se serviria de seu ardor e seu zelo para bater seu pé contra alguma pedra de tropeço. Ora, aquilo que quase sempre acontece com os que caminham com excesso de precipitação, infelizmente aconteceu a este irmão: ele teve uma queda. Mas logo veio me procurar. Era perto do crepúsculo. Ele me encontrou e mostrou a ferida que fizera em sua alma; no abismo de sua dor, ele me conjurava insistentemente que ali aplicasse ferro e fogo, e que lhe ordenasse os remédios convenientes. Como ele viu que seu médico espiritual não iria aplicar o rigor e a severidade que ele desejava, e como este pobre religioso não era indigno de indulgência, ele se atirou aos meus pés, molhando-os com suas lágrimas e me pedindo que o enviasse à Prisão que você visitou; e, para conseguir me convencer, ele não cessava de repetir que era impossível dispensá-lo de tal condenação. Assim, pela violência com que me tratou, ele praticamente me forçou a converter em rigor e severidade a doçura e a ternura que eu sentia por ele. Pude ver neste religioso o que não é costumeiro ver nos doentes, e que é o contrário aos curso natural das coisas. E assim que eu concordei em dar-lhe a permissão que pedia com tanta insistência, ele correu prontamente para os penitentes, para se tornar seu confrade e imitador de seus trabalhos e de suas lágrimas. A contrição que seu amor a Deus lhe fizera conceber a respeito de sua falta era tão viva e violenta, que oito dias depois de entrar no mosteiro ele partiu deste mundo para se apresentar diante do Senhor; mas, antes de morrer, ele teve o cuidado de pedir que seu corpo fosse provado de sepultura. Desta vez, porém, eu achei por bem não ceder ao seu desejo, e fiz com que levassem seu corpo e o depositassem no cemitério destinado ao sepultamento dos padres. Eu o considerei digno desta honra, por que após uma penitência de sete dias na Prisão, Deus o considerara capaz, no oitavo, de desfrutar da liberdade e da felicidade dos céus. Com efeito, existe um religioso que soube de maneira certa que antes mesmo que este ilustre penitente se levantasse diante dos pés vis e desprezíveis daquele que lhe fala, ele já havia recebido o perdão de seu pecado e estava perfeitamente reconciliado com Deus. Eh! Não nos espantemos, por que ele tinha no coração a mesma fé que a pecadora do Evangelho, e foi com esperança e confiança perfeitas em Deus que ele molhou com suas lágrimas meus miseráveis pés. Pois tudo é possível àquele que crê[64]”. Quanto a mim, vi almas manchadas de pecados, e até possuídas pela loucura e o amor pelos prazeres sensuais, e que, não obstante, por meio de exercícios de penitência, pela presente dos que amam a Deus e sobretudo pela consideração profunda de seu triste estado, entregaram seu coração a Deus, amaram-no unicamente, triunfaram de todo temor servil e conseguiram por fim se entregar inteiramente aos santos ardores da caridade3. Lembremo-nos de que nosso Senhor não disse à pecadora convertida: “Ela tremeu muito”, mas: “Ela muito amou[65]”. E foi por este amor ardente que ela se livrou do amor carnal e profano.

29. Depois de tudo, ilustres Padres, não posso me impedir de pensar que as coisas extraordinárias que lhes contei parecerão inacreditáveis a quase todo mundo, que alguns as verão como impossíveis e que enfim outros as tomarão como motivo para se desencorajar e cair no desespero. Mas também é verdade que os corações generosos e cheios de boa vontade e coragem delas se servirão como um aguilhão para estimulá-los na prática perfeita das virtudes mais heroicas, como uma flecha a trespassá-los no amor a Deus, enchendo-os de zelo e fervor. Para os que ainda não estão tão avançados na piedade, estes trabalhos os farão sentir mais e mais sua hesitação e sua negligência, e, pelas reprimendas que serão obrigados a fazer a si próprios, comparando-se com estes fervorosos religiosos e estes ilustres penitentes, eles adquirirão uma humildade profunda, farão mais esforços para imitar estes corações generosos, e poderão, quem sabe, alcançá-los. Quanto aos que ainda não possuem senão hesitação e negligência, é imprudente que tentar fazer como estes corações fervorosos e generosos, e que tentem caminhar nas pegadas destes homens perfeitos: o que eles devem fazer presentemente é não abandonar aquilo que começaram, a fim de que sob eles não paire esta ameaça: “Ser-lhes-á tirado até mesmo o que eles pensam possuir[66]”.

30. Não nos esqueçamos de que, uma vez que tenhamos a infelicidade de cair no abismo do pecado, dele não poderemos sair senão à custa de exercícios de uma verdadeira penitência, que dele nos retirem e nos precipitem alegremente no abismo da humildade.

31. A humildade plena de tristeza que reina no coração dos verdadeiros penitentes é muito diferente daquela que se encontra nos pecadores, a quem condenam apenas os remorsos da consciência, e mesmo da que Deus inspira aos que vivem na perfeição da virtude. Não tentemos aqui expressar no que consiste a humildade destes homens perfeitos: não chegaríamos a nenhum resultado. Quanto à humildade dos que fazem penitência, vocês a reconhecerão por causa da paciência em meio às humilhações e ao desprezo. Mas seus maus hábitos ainda os poderão derrubar em determinadas faltas.

32. As quedas não devem nos surpreender; pois os motivos de Deus, assim como frequentemente a causa e o princípio das faltas que cometemos, são cobertos por espessas trevas, impenetráveis ao espírito humano, e nos é verdadeiramente impossível distinguir as quedas em que incorremos por nossa própria negligência daquelas que nos acontecem por permissão de Deus e das que causamos por que Deus, em sua justa indignação, nos entrega à nossa fraqueza. Já ouvi dizer que, com a permissão de Deus, os que caem em algum pecado não permanecem aí longo tempo, por que Deus não permite que permaneçamos demasiado sob a escravidão desta falta.

33. Depois de nossas quedas, apliquemo-nos de modo especial a combater o demônio da tristeza. Ele nunca deixa de nos atacar no momento das nossas orações, a fim de que, reconstituindo fortemente em nosso espírito o estado feliz em que nos encontrávamos antes de pecar, nos desvie a atenção que devemos aplicar ao santo exercício da prece, e nos inspire a perturbação e ao desencorajamento.

34. Acreditem, irmãos: ainda que vocês cometam faltas todos os dias, evitem perder a coragem, não abandonem seus exercícios de piedade, mas perseverem generosamente e fortemente no serviço de Deus; e seu anjo da guarda respeitará sua heroica paciência e sua bem-aventurada perseverança.

35. Prestem atenção no seguinte: uma ferida recente é fácil de curar. Mas se a negligenciamos, os humores se alteram e se corrompem: a partir daí, ela só cicatriza com dificuldade e, muitas vezes, para curá-la, são precisos muitos cuidados, tempo e trabalho, e às vezes são necessários ferro e fogo, e o emprego de um sem-número de remédios. Vocês nunca viram chagas como estas se tornarem incuráveis? Mas Deus, para quem nada é impossível, pode nos livrar até mesmo destas.

36. Eis outra observação importante: os demônios, estes inimigos cheios de ardis e artifícios, antes de nos empurrar para o pecado e para nos fazer cair mais facilmente, nos representam a Deus cheio de bondade e de compaixão por nós. Mas quando obtêm sucesso em seu cruel projeto e nos fazem violar a lei santa do Senhor, eles o mostram como um juiz terrível, severo e inexorável.

37. Evitem confiar em qualquer um que, sabendo que vocês se tornaram culpados de qualquer falta considerável, lhes sugira não dar atenção às faltas leves a que todos estamos expostos diariamente, e que lhes diga, por outro lado, em relação à falta maior, que seria desejável que não a tivessem cometido, e, por outro lado, em relação às faltas leves, que elas nada são; pois os cuidados múltiplos que empregamos são semelhantes aos pequenos presentes que fazemos. E não é verdade que muitas vezes estes pequenos presentes, à força de se multiplicarem, acalmam a cólera do soberano juiz?

38. Devemos dizer que quem está resolvido a satisfazer a Justiça de Deus pelas faltas cometidas, perde qualquer jornada na qual não tenha se consagrado ao pranto e aos gemidos da penitência, ainda que tenha nestes dias praticado as mais excelentes obras da piedade.

39. Quanto aos que choram seus pecados, evitem aguardar a hora da morte para se assegurar que estes lhes foram perdoados; pois nunca poderão ter disto plena certeza. Ao contrário, devemos sempre fazer esta oração: “Dê-me, Senhor, a doce esperança de ter perdoado meus pecados, a fim de que eu não deixe este mundo na cruel incerteza de minha salvação[67]”.

40. Entrementes, para nossa instrução e nossa consolação, lembraremos que os laços do pecado são destruídos naqueles em que reside o Espírito de Deus; e diremos o mesmo daqueles em cujo coração reina uma humildade sincera. Ah! Que quem parte deste mundo sem ter possuído uma destas duas coisas não caia numa funesta ilusão: ao contrário, estejam convencidos que ainda se encontram sob o jugo de seus pecados.

41. Todos os que passaram suas vidas no mundo, aí vivendo segundo seu espírito e suas máximas, ao deixarem a vida, não terão em si estas duas marcas essenciais da justificação, sobretudo a segunda. Não obstante, existem entre estas pessoas do mundo as que preparam sua última hora por meio de obras de misericórdia e penitência: eles receberão destas o prêmio e a recompensa.

42. Quem chora amargamente suas próprias faltas está longe de se ocupar da penitência e das faltas de seus irmãos, e de lhes fazer reprimendas.

43. Um cachorro mordido por um animal selvagem se atira sobre ele com toda a fúria de que é capaz; pois a intensidade da dor que eles experimenta o faz correr contra ele com uma determinação implacável.

44. Prestemos atenção ao silêncio de nossa consciência, e fiquemos preocupados: não esteja nossa consciência silenciosa por termos nosso coração cego e endurecido, e não por a termos purificado.

45. Uma das provas que podemos ter neste mundo, agora e daqui para frente, de que foram quitadas as dívidas que contraímos por nossos pecados, consiste em crer que somos ainda culpados e devedores perante a Justiça de Deus.

46. Nada pode se comparar às Misericórdias do Senhor: elas estão soberanamente acima de qualquer coisa. Assim, não esperar em Deus equivale a querer se perder eternamente.

47. A marca verdadeira e o sinal inequívoco da penitência consiste em estar convencido e persuadido que merecemos, seja no corpo, seja no espírito, todas as penas, todos os males e todas as aflições que suportamos, e que merecemos sofrer ainda mais.

48. Moisés, ainda que tenha visto a face de Deus e a sarça ardente, não obstante retornou ao Egito, vale dizer, às trevas do século, para se encarregar de produzir tijolos a serviço do Faraó, que era a figura do demônio. Porém, ele não tardou em regressar para junto do arbusto, e pouco tempo depois ele mereceu subir até a montanha santa onde Deus havia fixado sua morada de maneira visível. Quem compreender o significado da figura a seguir jamais desesperará de sua salvação: Jó, este homem eterno, de prosperidade e riquezas extraordinárias, caiu numa pobreza espantosa; e, no entanto, a seguir se tornou duas vezes mais rico do que jamais havia sido.

49. Esses monges preguiçosos e negligentes que, depois de sua santa profissão, caem em faltas, sofrem na realidade quedas perigosas e funestas; pois estas normalmente os fazem perder a esperança de alcançar a paz do coração, e os fazem acreditar que podem se dar por felizes se conseguirem se reerguer e merecer o perdão.

50. Mas atentem para o fato de que não é possível que a preguiça que nos separou de Deus seja o meio capaz de nos reenviar a ele; é preciso outra maneira, para que possamos nos aproximar do Senhor.

51. Eu conheci dois religiosos num mosteiro que se dirigiam a Deus ao mesmo tempo e pela mesma via. Um era um ancião exercitado depois de longos anos de trabalhos de penitência; o outro era um noviço nos caminhos da vida religiosa. E no entanto, este último corria mais depressa do que o primeiro; desta forma, também ele mereceu o primeiro lugar no túmulo da humildade.

52. Devemos tomar cuidado, principalmente nós que caímos no pecado, em não deixar envenenar o espírito e o coração com o erro contagioso de Orígenes. A miserável doutrina deste doutor sobre a excessiva Bondade de Deus para com os homens é saboreada e apreciada por todos os que só se agradam dos mais grosseiros prazeres dos sentidos.

53. Quanto a nós, acreditemos que é em nossas meditações fervorosas, e mais ainda em nossos exercícios de penitência, que se inflamará o fogo de nossa prece, o qual devorará a matéria de nossos pecados.

54. Que os penitentes que eu lhes apresentei neste quinto degrau sejam seus guias e seus condutores; que sua penitência, e o fim a que se propunham, seja o modelo e a imagem da sua penitência e o fim ao qual vocês se proponham, consagrando-se aos seus salutares exercícios! E estejam certos de que durante sua peregrinação pela terra, vocês não terão necessidade de outro livro para conduzi-los e fazê-los chegar com felicidade ao porto da salvação, até que por fim Jesus Cristo, o Filho único de Deus, lhes apareça e ilumine com suas luzes na ressurreição produzida por uma verdadeira e sincera penitência. Amém.

Pela penitência vocês subiram até o quinto degrau; assim, com seu auxílio, vocês purificaram os cinco órgãos de seus corpos, e, por meio de expiações voluntárias, evitaram as penas e os suplícios que teriam merecido sofrer na eternidade.



SEXTO DEGRAU

Do pensamento da morte

1. O pensamento precede necessariamente as palavras que o expressam. É assim que o pensamento da morte e a lembrança dos pecados precedem as lágrimas e os gemidos que uma e outra nos fazem derramar; é por isso que falaremos destas coisas aqui, segundo sua ordem e seu lugar.

2. Assim é que afirmamos que o pensamento da morte é uma espécie de morte cotidiana, e que a lembrança de nossa hora derradeira é um gemido contínuo.

3. Foi a desobediência do homem que deu nascimento ao temor da morte, e é por isso que o temor da morte se nos tornou, de certa forma, natural. Mas vocês sabem o que nos demonstra este temor? Ele nos mostra que nossa alma ainda não está perfeitamente lavada nem purificada pelas lágrimas e as austeridades da penitência.

4. Cristo, para nos ensinar que ele é a um tempo Deus e homem, e para nos ensinar que os atributos da natureza divina e da natureza humana nele estavam partilhados, teve medo à vista da morte; mas o divino Salvador não a temeu.

5. Ora, assim como, de todos os alimentos com os quais nutrimos nossos corpos, é o pão o mais necessário, da mesma forma, de todas as coisas que devem alimentar e manter viva nossa alma, nada é mais necessário do que a lembrança e o pensamento da morte.

6. É o pensamento da morte que faz com que os monges que vivem em comunidade abracem todos os trabalhos e as austeridades da penitência; é ele que os faz amar as delícias do desprezo e das humilhações; é também o pensamento da morte que faz com que os solitários que vivem nos desertos e longe do tumulto renunciem generosamente a toda preocupação com as coisas presentes, a fim de se consagrar unicamente aos santos exercícios da prece e da meditação, e de vigiar assiduamente seu espírito e seu coração. Estas virtudes são igualmente filhas do pensamento da morte.

7. Mas observemos aqui que, embora o estanho tenha muita semelhança com a prata, podemos distingui-lo facilmente quando o aproximamos dela; da mesma forma, os que possuem alguma experiência nas coisas relacionadas à salvação, sabem muito bem colocar uma diferença entre o pensamento da morte produzido por um sentimento e um movimento da natureza, e o sentimento da morte produzido pela impressão da graça.

8. A prova certa e indubitável de que tememos a morte por um movimento da graça é que este temor nos leva a nos despojar de toda afeição pelas coisas criadas, e nos faz renunciar perfeitamente à nossa própria vontade.

9. É louvável pensar todos os dias na morte, como se a cada dia ela nos pudesse atingir; mas é um sinal de santidade desejá-la e aguardá-la.

10. Evitemos pensar que todo desejo de morte seja bom e salutar; pois existem os que desejam a morte porque se veem expostos – pelos pendores que ainda não conseguiram vencer inteiramente e pelos hábitos que não lhes é possível corrigir perfeitamente – a incidir sempre e sempre em novas quedas e novos pecados; existem outros que só desejam a morte por um movimento de desespero: são pessoas que não querem fazer a penitência; outros ainda chamam a morte por acreditarem estar livres da servidão das paixões, pensando haver alcançado a impassibilidade; enfim, há os que, movidos e conduzidos pelo movimento e as luzes do Espírito Santo, desejam sair deste mundo. Mas estes últimos são bastante raros.

11. Alguns homens penam, e gostariam de saber, considerando que o pensamento da morte é tão salutar, por que Deus não quer que conheçamos o momento em que ela irá nos alcançar. Mas estas pessoas não consideram que Deus, fazendo desta maneira, só visa nossa própria salvação. De fato, se a hora da morte fosse conhecida, quem dentre os homens se apressaria em receber o batismo, em se converter ou em abraçar a vida religiosa? Ah! A maior parte passaria a vida no crime, e somente na última hora pensariam em recorrer ao santo batismo ou à penitência.

12. Vocês que choram seus pecados, evitem as armadilhas do demônio: ele tentará enganá-los, dizendo que Deus é bom e misericordioso. Esta é uma verdade que só devemos ter em mente para os preservarmos do desespero; mas o demônio, ao sugeri-la, quer com isto banir de seus corações o horror e a dor de seus pecados, e fazê-los perder o temor a Deus, o único que concede a verdadeira segurança.

13. Sabem com quem devemos comparar aqueles que, pretendendo nutrir em sua alma o pensamento da morte e a lembrança do Juízo, não deixam ao mesmo tempo de abraçar toda espécie de preocupações e de ações profanas? Comparam-nos a pessoas que tentam nadar tendo amarrados os pés e as mãos.

14. O pensamento da morte, que devemos tomar como verdadeiro e eficaz, é o que extingue em nós a intemperança; pois, uma vez que trinfamos sobre esta paixão, conseguiremos facilmente vencer as demais.

15. A insensibilidade do coração produz a cegueira na alma; a quantidade de comidas faz secar inteiramente a fonte das lágrimas; a sede, a fome e as vigílias afligem o coração; e um coração aflito e mortificado conforme a Deus derrama lágrimas abundantes e salutares. Sem dúvida estas verdades parecerão duras aos que amam a boa vida, e impraticável aos que vivem nos braços da preguiça, mas um coração fervoroso e generoso as apreciará e as praticará com alegria; e adquirindo o costume, se tornará fiel com indizível facilidade. Mas que tentar conhece-las apenas para falar delas, só encontrará penas e tristeza.

16. Assim como nossos pais nos ensinaram normalmente que a caridade perfeita é imune à queda, eu direi que a perfeita meditação da morte é imune de qualquer temor.

17. Uma alma que procura por todos os meios assegurar sua salvação se ocupa de muitos pensamentos salutares: ela pensa no amor que Deus tem por ela, na morte, na presença de Deus, no Reino celeste, no fervor dos mártires; mas é sobretudo o pensamento de Deus presente em toda parte que a absorve inteiramente. É por isso que ela medita sem cessar estas palavras: “Eu olhei continuamente para o Senhor, e o tive sempre diante de meus olhos[68]”. Ela não perde de vista a lembrança dos anjos e das potências celestes, sem sua derradeira hora neste mundo, nem o momento terrível em que comparecerá diante do tribunal do soberano Juiz, nem os suplícios eternos, nem, por fim, a sentença que condenará os pecadores a tal. Estas são as grandes verdades de que se ocupam as almas que desejam servir a Deus. Nós apresentamos aqui em primeiro lugar os que nos pareceram mais respeitáveis, e a seguir os mais capazes de inspirar o horror ao pecado e de nos impedir de tombar.

18. Um certo monge do Egito me contou um dia o que lhe acontecera. Ele me disse que havia gravado de tal maneira em seu coração a lembrança e o pensamento da morte, que este pensamento produzira nele uma impressão tão vívida e poderosa, que, quando procurava qualquer alívio para seu corpo, que muito necessitava, este pensamento, como um juiz inexorável, se opunha vitoriosamente; e, o que lhes parecerá ainda mais espantoso, acrescentou ele que tentava por vezes rejeitar, ainda que por um instante, este pensamento, sem nunca o conseguir.

19. Conheci outro monge que vivia num lugar chamado Tholas. Nele, o pensamento da morte fazia com que perdesse todo sentimento; vendo-o, era de se crer que ele houvesse evanescido, ou que tivesse caído em estado epilético. Diversas vezes seus irmãos de mosteiro o encontraram neste estado, e o transportaram como a um morto.

20. Não posso deixar de contar o que se passou com um solitário, chamado Hesíquio, da montanha de Horeb. Este pobre solitário teve a infelicidade de passar os três primeiros anos de seu retiro esquecido de sua salvação, negligenciando todos os exercícios da vida religiosa. Enfim, Deus o atingiu com uma doença tão grave que, por mais de uma hora, ele foi considerado morto. Quando ele voltou a si, pediu-nos com insistência que fôssemos embora e o deixássemos só. Nós o obedecemos, e logo ele fechou a porta de sua cela e aí permaneceu recluso de tal maneira, que durante os doze anos em que viveu depois disto, jamais voltou a trocar uma palavra sequer com quem quer que fosse, e se alimentava de um pouco de pão e da água que lhe levávamos; ele permanecia sentado todo o tempo no mesmo lugar e jamais mudava; ele repassava tão fortemente as coisas terríveis que presenciara em sua visão, que seu corpo mantinha sempre a mesma posição e a mesma atitude, e, sempre sob o impacto do mesmo terror, e fora de si, ele mantinha o mais absoluto silêncio e chorava lágrimas ferventes. Por fim, quando soubemos que ele estava chegando ao fim da vida, forçamos a porta de sua cela para aí entrar e lhe fazer muitas perguntas que desejávamos saber. Mas foi em vão, pois dele só obtivemos uma única palavra: “Perdoem-me, irmãos, mas nada posso lhes dizer, senão que é impossível que ouse pecar quem tiver o pensamento da morte gravado em seu espírito”. Esta resposta nos deixou espantados, e nos admirávamos que um homem de quem havíamos conhecido a preguiça e a negligência pudesse ter mudado e se transformado em outro homem, e que houvesse adquirido tão grande perfeição e uma santidade tão prodigiosa. Ao final, ele faleceu e o enterramos no cemitério próximo ao mosteiro. No dia seguinte fomos visitar seu túmulo, para ver o santo corpo deste solitário; mas ele já não estava ali. Foi sem dúvida para dar uma lição aos homens, que Deus permitiu esta maravilha: ele quis nos fazer compreender que, mesmo depois de abandonar a virtude e negligenciar a salvação, a conversão sincera e a adoção de uma nova vida de penitência por parte deste solitário lhe foi preciosa e agradável, e, por conseguinte, agradável seria igualmente a penitência de todos os pecadores.

21. Assim como dizemos que um abismo possui uma profundidade de água insondável (e por isso lhe damos este nome), também o pensamento da morte produz em nós um abismo sem fundo de pureza e boas obras. É o que nos demonstra o fato que lhes contei acima, pois os penitentes que, assim como este santo homem, possuem continuamente no espírito a imagem da morte, sentem aumentar em si o temor e o medo que ela inspira, até que por fim ela os consuma até a medula dos ossos.

22. De resto, conforme devemos perceber, estejamos certos de que este temor não é das menores benesses que recebemos de Deus: pois não é verdade, e não nos atesta nossa própria experiência, que muitas vezes, mesmo no meio dos túmulos, mostramos uma insensibilidade férrea, sem derramar uma lágrima sequer, enquanto que em outras ocasiões, sem estarmos em meio aos mortos e sem a visão da triste imagem da morte, vertemos torrentes de pranto?

23. Quem pensa verdadeiramente na morte, mata em si toda afeição pelas criaturas e pelas coisas do mundo; mas quem ainda é dominado pelos desejos profanos não cessa de colocar armadilhas diante de seus próprios pés.

24. Não use palavras para dizer às pessoas que você gosta delas, que você as ama comum amor afetuoso; contentem-se em pedir a Deus que as faça saber, do modo como lhe aprouver, os sentimentos de caridade e de ternura que você sente por elas; pois se você agir de outro modo, nem todo o tempo de sua vida será suficiente para testemunhar a seus amigos a afeição que você tem por eles, e ao mesmo tempo para incitá-lo à compunção e à dor de seus próprios pecados.

25. Não se deixem enganar, vocês que são louvados por trabalhar na vinha de Cristo, e não pensem que podem resgatar o tempo com o tempo; pois cada dia vivido não basta para quitar as dívidas que contraímos a cada instante que vivemos.

26. É assim que um Padre nos disse que pobres mortais, como nós, não conseguem passar um dia sequer de suas vidas de modo santo e louvável, se não considerarem para si próprios que este dia é o último de sua existência nesta terra. E o que é surpreendente é que alguns escritores, mesmo no seio do paganismo, dizem algo semelhante: pois eles escreveram que o amor à sabedoria não era outra coisa do que o pensamento da morte. Quem alcançar este sexto degrau já não se deixará cair em pecado, conforme o oráculo divino: “Lembrem-se de seu fim derradeiro, e não pequem jamais[69]”.


SÉTIMO DEGRAU

Da tristeza que produz a alegria


1. A tristeza segundo Deus é uma aflição do coração e um sentimento de dor que a alma penitente experimenta: sentimento inefável que a faz buscar com ardor aquilo que ela deseja intensamente; que, não obtendo este bem desejado, a faz enfrentar trabalhos inacreditáveis; que, quando sente que não a pode obter, ela lança gritos de dor e gemidos lamentáveis.   

 2. Podemos dizer que esta tristeza é um aguilhão precioso da alma que, pelas preciosas agulhadas que causa, a livra e purifica de todas as afeições terrestres, e que, pela dor que lhe inflige, a fixa e a obriga unicamente a velar sobre si mesma e a cuidar de sua salvação.

3. A compunção que os monges chamam de compunção religiosa é um remorso da consciência por meio da qual esta força uma alma a se acusar interiormente como sendo culpada e criminosa, e, por meio desta confissão interior a abrasa com um fogo divino e lhe traz um maravilhoso refresco.

4. Esta confissão ainda faz com que esqueçamos das preocupações da natureza, conforme esta palavra de Davi: “Eu esqueci de comer meu pão e de tomar meu alimento[70]”.

5. A penitência é uma alegre e agradável renúncia a toda espécie de consolação humana.

6. O silêncio e a temperança são a alegre partilha de todos os que progridem nesta tristeza salutar. A mansidão e o esquecimento das injúrias ornam o coração das pessoas que, por meio de combates sustentados com coragem, obtiveram alguma vitória; enfim, os que com toda felicidade alcançaram a perfeição desta bem-aventurada tristeza, se enchem de afeto e amor pela prática da mais profunda humildade, são devorados por uma sede ardente pelo desprezo e as humilhações, por uma fome violenta por todas as coisas que assustam e fazem gritar a natureza; de resto, eles queimam com uma caridade tão pura e forte por seus irmãos, que não apenas perdoam-lhes as faltas que os veem cometer, como ainda seu coração é tocado por uma compaixão celeste em relação a eles. Devemos aprovar os que fizeram algum progresso, louvaram os que obtiveram algumas vitórias, e proclamar felizes os que têm fome de humilhações e sofrimentos: pois estes últimos serão saciados com este alimento celeste que jamais inspira desgosto.

7. Assim, se vocês tiverem a felicidade de obter o dom das lágrimas, empreguem todos os meios capazes de conservá-lo. Pois assim como a cera se derrete facilmente no fogo, este dom, caso não possua raízes firmes na alma, se perde e desaparece depressa por causa das inquietudes do espírito, pelos cuidados que tomamos com o corpo, com os prazeres sensuais e sobretudo pela coceira de falar, pela inconsequência e a petulância.

8. E, ousaremos dizê-lo? Esta feliz fonte de lágrimas é, de certa forma, mais forte e poderosa do que a água do batismo. Com efeito, o batismo nos purifica das faltas de que somos culpados ainda antes de receber este sacramento; mas o dom das lágrimas nos purifica de todas as faltas que tenhamos cometido no decorrer de nossa vida. O batismo que recebemos em nossa infância no conferiu uma graça infinitamente preciosa, e nos colocou num estado sobrenatural; mas os pecados em que caímos de forma miserável nos fez perder esta graça inestimável e este estado feliz; o dom das lágrimas nos faz recuperar esta graça, e, de certo modo, restabelece o batismo em nós. Devemos concordar que seriam bem raros os homens capazes de alcançar a salvação, se Deus, em sua infinita Bondade, não nos houvesse concedido o dom das lágrimas.

9. Vejam como os gemidos e a aflição de um coração contrito e arrependido penetra até o trono de Deus, como as santas lágrimas que o temor ao Senhor nos faz derramar são como emissários que enviamos adiante de nós para lhe pedir graça e misericórdia; e como aquelas que seu Amor nos faz derramar nos dão a segurança deliciosa de que nossas preces e nosso arrependimento lhe é agradável.

10. Mas lembremo-nos bem que, se nada é mais conforme e favorável à verdadeira humildade do que as lágrimas de uma penitência sincera, também nada é mais contrário e nocivo do que a dissipação de uma vida mundana.

11. Conservem portanto, na medida do que forem capazes, a tristeza salutar de uma santa compunção; ela lhes trará a alegria sólida e verdadeira; não cessem de aumentá-la a aperfeiçoá-la em vocês até que ela os desembarace de todas as coisas da terra, purifica suas almas e toda mancha, a apresente a Cristo seu sacrifício puro e santo.

12. Esforcem-se continuamente, tanto para a mortificação dos sentidos, como para o recolhimento do espírito e uma profunda meditação, para representar para si próprios este abismo imenso, esta fornalha abrasada por chamas tenebrosas, este juiz severo e inexorável, esta vasto caos dos fogos eternos, estas descidas estreitas e obscuras dos lugares subterrâneos, estas moradas desesperadas e estes precipícios profundos. Sim, gravem com força no espírito a ideia e a imagem de todas estas coisas assustadoras e outras semelhantes, a fim de que, se seu coração se dirigir infelizmente a uma vida mole e relaxada, atingido por um justo terror ele se aplique em procurar uma castidade incorruptível, e que, pelos sentimentos de uma tristeza salutar ele possa usufruir das luzes espirituais, e se tornar mais puro e mais luminoso do que as chamas mais puras e mais resplendentes.

13. Quando vocês se dedicarem ao santo exercício da oração, estejam diante de Deus como um criminoso diante do juiz; tremam e façam de modo a que, pela postura humilde do corpo e mais ainda pelas disposições internas da alma, tenham a felicidade de acalmar sua justa Indignação: pois ele não pode rejeitar uma alma que se apresenta a ele da mesma maneira que a viúva desolada de que fala o Evangelho, e que, pelo fervor e a persistência de sua prece, continuou a bater à porta de sua Bondade suprema.

14. Quem recebeu o dom das lágrimas sempre está bem, para chorar seus pecados, em qualquer lugar que seja; mas quem não chora senão por razões humanas escolherá os locais mais convenientes às suas disposições naturais, e ficará feliz em ter testemunhas de suas lágrimas.

15. Assim como um tesouro escondido está menos exposto à rapacidade dos ladrões do que o que está à vista de todo mundo, também as lágrimas interiores estão menos propensas a serem perdidas do que as exteriores.

16. Evitem imitar aqueles que enterram seus mortos: vocês os verão chorar por um momento sobre o túmulo, e um instante depois os encontrarão em plena bebedeira. Façam como se trabalhassem como condenados nas minas e que a toda hora são cruelmente chicoteados pelo encarregados de vigiar.

17. Aquele que ora chora, ora se entrega à alegria e ao prazer, se parece com um homem que, para se desembaraçar de um cachorro de rua, lhe atira um pão ao invés de lhe atirar pedras: é evidente que ao agir assim, ao invés de afastar o animal, fará com que este o siga todo o tempo.

18. Assim é que vocês que choram seus pecados devem ser inimigos de toda ostentação, aplicando-se unicamente à guarda do coração. Os demônios temem tanto as pessoas que vivem no recolhimento e na vigilância, como os ladrões temem os cães de guarda à noite.

19. Meus amigos, Deus, ao nos chamar para a vida monástica, não nos chamou para as núpcias para que nos entreguemos à alegria; ele deseja que choremos por nós mesmos.

20. Existem pessoas que, por um lamentável erro, ao derramarem lágrimas de dor e de arrependimento, violentam-se para não pensar em nada. Eles ignoram que as lágrimas, sem os bons pensamentos, podem convir a criaturas desprovidas de razão, mas não às criaturas dotadas de intelecto e de razão: pois não é dos pensamentos que nascem as lágrimas? E não é por meio do espírito e da razão que são produzidos os pensamentos?

21. Quando vocês forem repousar, tenham o cuidado de assumir a mesma posição em que serão colocados no túmulo, e vocês experimentarão menos as delícias dos sonhos. Quando estiverem à mesa, pensem na triste e fúnebre mesa na qual vocês próprios servirão de alimento aos vermes, e estarão menos tentados a se entregar à sensualidade. Vocês se sentem sedentos e querem aliviar a sede? Lembrem-se da sede devorante que sofrem os condenados em meio às chamas do inferno, e será fácil violentar a natureza, não concedendo a ela tudo o que ela pede.

22. Não sofreu Nosso Senhor humilhações desonrosas e honrosas a um só tempo? Ele nos faz reprimendas amargas, e nos inflige penitências rigorosas? Lembremo-nos esta sentença fulminante do soberano juiz: “Retirem-se de mim, malditos![71]”, e esta lembrança, como uma espada de dois gumes, rasgará e dará morte em nós aos injustos e funestos sentimentos de tristeza e amargura, e nos conduzirá a viver na paciência e na resignação.

23. O tempo, conforme o santo homem Jó, faz secar o mar[72], e, por meio da paciência, nos fará adquirir e aperfeiçoar em nós as virtudes de que falamos.

24. Que o pensamento das chamas eternas os acompanhe ao entardecer, quando vocês se dirigirem ao leito; que ao amanhecer ele presida ao seu despertar, e estejam certos de que a preguiça e a negligência jamais dividirão seus corações: acima de tudo, vocês serão preservados durante suas orações e a recitação dos salmos.

25. Que os cuidados que vocês têm para com seus corpos e o hábito monástico que vestem os instiguem a chorar por suas faltas; pois os que trazem em si o luto se revestem de hábitos com o mínimo de cores. Se vocês não choram ao menos chorem por não chorar; e, se vocês choram, que seja por que seus pecados os fizeram perder o estado feliz em que estavam pela graça e a amizade de Deus, reduzindo-os ao penoso estado em que se encontram agora.

26. Em nosso pranto e nossa penitência, como em todas as demais coisas, Deus, que é um juiz cheio de clemência e equidade, terá olhos para a nossa fraqueza. Mais de uma vez me aconteceu ver pessoas que, derramando poucas lágrimas, as vertiam com tão grande dor que as tomaríamos por gotas de sangue, assim como vimos outras que choravam abundantemente e sem esforço. Eu estimo mais a violência da dor do que a abundância das lágrimas; e creio que Deus julga da mesma maneira.

27. Não convém aos que choram tratar e se ocupar de matérias relevantes e de questões teológicas: semelhante ocupação poderia secar a fonte de suas lágrimas; pois quem se aplica a estas ciências é semelhante a um doutor gravemente sentado numa cadeira para, com sua autoridade, dar aula aos outros; enquanto que aquele que chora suas faltas não deve ter nenhuma semelhança senão como alguém sentado sobre uma esterqueira e coberto com um saco e um cilício. É por esta razão que Davi, por maior que tenha sido sua ciência e por mais profunda que tenha sido sua sabedoria, respondeu aos que lhe pediam que cantasse os cânticos: “Como poderíamos cantar cânticos de louvor ao Senhor, estando numa terra estrangeira?[73]”; ou seja, no país para onde nossos pecados nos conduziram em cativeiro.

28. No curso natural das coisas, existem aquelas que possuem um movimento por si mesmas, e outras que o recebem de uma causa externa a eles. Ora, na penitência de nossos pecados, existem lágrimas que correm por si sós de nossos olhos; mas também existem aquelas que que só derramamos com esforço e violência. Assim, quando sem movimento ou esforço nos sentimos enternecidos e derramamos com abundância lágrimas de uma doçura celeste, neste momento devemos nos apressar em correr para o Senhor; pois esta é uma prova de que, sem que tenhamos lhe pedido, ele veio a nós para nos presentear com a esponja misteriosa da tristeza que lhe é agradável, para criar em nós uma fonte de água refrescante, e para nos fazer dom dessas lágrimas felizes que apagam nossos pecados do livro de sua eterna Justiça. Conservemo-la preciosamente com o maior cuidado, guardando-a até que ele considere que deva no-la retirar; pois esta dor, que sua graça produz em nós, possui mais virtude para nos purificar de nossas faltas do que a que provocaríamos em nossos corações por meio de muitos esforços e violências.

29. Quem chora quando quer certamente não recebeu de Deus o dom das lágrimas; recebeu este dom aquele que chora o que quer chorar, ou melhor, aquele que chora as coisas que Deus quer que ele chore.

30. É muito comum que às lágrimas da penitência misturemos as da vanglória, que são odiosas aos olhos de Deus. É a prudência e a verdadeira piedade que nos fazem conhecer esta falsa tristeza. Como poderíamos esperar sinceridade de nossas lágrimas, se, ao mesmo tempo em que as derramamos, deixamos de corrigir nossos defeitos?

31. A verdadeira compunção é isenta de todo inchaço do coração e de toda vaidade, e não nos traz nenhuma consolação humana, mas nos lembra continuamente de nossa última hora e nos faz esperar de Deus, o único Consolador dos humildes de coração, as consolações e as doçuras inefáveis que devem ser para nós um banho refrescante e de paz.

32. Todos os que receberam esta aflição divina e consoladora sentem uma santa aversão pela vida presente, vendo-a como fonte e princípio funesto de todas as suas penas e de suas misérias, e sentem contra seus próprios corpos a mesma raiva que temos contra um inimigo que tenta nos matar.

33. Assim é que, se percebemos, nos que se acreditam verdadeiramente aflitos segundo Deus, certos movimentos de cólera ou sentimentos de orgulho, podemos, sem medo de errar, considerar que suas lágrimas não são sinceras nem produzidas por uma verdadeira compunção; pois, como disse são Paulo: “O que existe de comum entre a luz e as trevas?[74]”.

34. A verdadeira compunção derrama consolações nas almas; a falsa só produz orgulho.

35. Assim como o fogo consome a palha, também as lágrimas sinceras consomem e fazem desaparecer inteiramente as sujeiras visíveis e invisíveis da alma.

36. Muitos padres não hesitam em afirmar que não é difícil distinguir as lágrimas sinceras das que não o são, principalmente em pessoas que estão no começo da penitência, quando seu discernimento ainda está cheio de trevas e obscuridade; pois, dizem eles, as lágrimas podem ser produzidas por diversas causas diferentes: tanto por um sentimento natural e por um motivo louvável, como por uma razão vergonhosa. Neste último caso, o princípio terá sido a vanglória ou um amor desregrado e profano; no primeiro, terão sido produzidas pelo pensamento da morte ou por muitas outras boas considerações do gênero.

37. Depois de nos termos servido do temor a Deus para descobrirmos e conhecermos a fonte das lágrimas que vertemos, dediquemo-nos a procurar as que são causadas pelo pensamento de nossa última hora, pois este tipo de lágrima é pura e sincera; elas não susceptíveis de vaidade nem de ilusão, elas purificam nossa alma e acendem em nosso coração o fogo do santo amor a Deus; por fim, elas apagam os pecados, e nos trazem o bem inestimável da paz no coração.

38. Evitemos ficar surpresos e espantados, se por vezes lágrimas produzidas por uma dor sincera do pecado ou por uma outra boa causa insuspeita se tornem apesar disso más e condenáveis; o que nos deve encher de espanto é ver lágrimas que, tendo desde o começo um mau princípio e uma fonte envenenada, cheguem a se tornar sobrenaturais e santas. As pessoas levadas à vanglória não deixarão de compreender o que queremos dizer aqui.

39. Não contem com a abundância de suas lágrimas, se vocês não se sentirem purificados de seus pecados. O vinho que acaba de ser retirado do lagar não merece elogio nem depreciação.

40. Ninguém duvida que as lágrimas produzidas pela graça de Deus nos são soberanamente úteis e salutares; mas somente na morte conheceremos perfeitamente sua utilidade e seus preciosos benefícios.

41. Assim, aquele que passa sua vida a derramar constantemente lágrimas agradáveis a Deus, celebra todos os dias novas bodas espirituais, enquanto que quem passa os dias em prazeres e alegrias profanas chorará pelos séculos infinitos da eternidade.

42. Podem os criminosos experimentar algum prazer na prisão? E como poderiam os verdadeiros experimentá-los na terra? E não era com este sentimento que falou este grande penitente, tão célebre pela sinceridade e a pureza de suas lágrimas, quando disse: “Tire, ó Senhor, minha alma deste lugar onde me encontro encerrado[75]”, a fim de que eu estremeça de alegria no seio de sua luz incompreensível.

43. Conservem-se no meio de seus corações como um general em meio à sua armada; ordenem ao coração com absoluta autoridade todas as práticas da mais profunda humildade. Assim, quando vocês ordenarem à alegria que se retire, dizendo-lhe: ‘vá’, ela irá; e, quando disserem às lágrimas: ‘venham’, elas virão; e ao seu corpo, que é seu escravo: ‘faça isso’, ele o fará[76].

44. Qualquer um que tenha se revestido do dom das lágrimas como de uma roupa nupcial, sentirá o que é a doçura inexprimível da alegria espiritual.

45. Que monge terá vivido tão santamente para poder dizer que, desde sua entrada na religião, não perdei um só dia, uma só hora, um só momento, mas que consagrou ao serviço de Deus sua vida inteira, com o pensamento de que um dia perdido não voltará jamais?

46. Este monge será verdadeiramente feliz, este que, pela vivacidade de sua fé, pode contemplar a beleza dos anjos e usufruir assim da convivência com estas Inteligências celestes; mas é também feliz, de outro modo, aquele que, pela meditação da morte, pela lembrança amarga de seus pecados e pelas lágrimas abundantes de sua fervorosa penitência, conseguiu se colocar no estado feliz de não recair no pecado. É difícil me convencer, eu creio, de que, para chegar à perfeição do primeiro estado, não se deva primeiro passar pelo segundo.

47. Eu vi pobres cuja audácia chegou ao ponto de se dirigirem diretamente a reis, e que os pressionaram com palavras tão engenhosas e maneiras tão envolventes, que estes se enterneceram em vista de sua posição miserável e foram levados a sentir piedade de sua miséria. Mas também vi pobres de outra espécie, os quais, sem absolutamente virtude alguma, se dirigiram ao Rei do céu. Eles reclamavam seu socorre e seus favores com uma perseverança e uma assiduidade que poderíamos chamar de inoportunas; em tudo isso não empregavam expressões escolhidas e estudadas, mas se contentavam em lhe expor suas necessidades prementes com uma modéstia perfeita, uma humildade profunda e um temor respeitoso; não cessavam de lhe expressar os sentimentos de sua dignidade e de lhe repetir com um tom de profunda dor e inteira convicção não serem merecedores de ser escutados nem atendidos; e, no entanto, esta violência com que agiram, de alguma forma o forçou, a ele, o Rei, a sentir compaixão por eles e a lhes conceder aquilo que pediam.

48. Aquele que se sente envaidecido por haver recebido o dom das lágrimas, e que condena os demais por ainda estarem privados disto, se parece com alguém que pediu armamentos ao seu soberanos e, tendo-os recebido, ao invés de usá-los contra os inimigos de seu príncipe, dele se serve para ferira si mesmo e acabar morrendo.

49. Não nos esqueçamos de que Deus não precisa de nossas lágrimas, e que ele não gosta de ver que as inquietudes e a tristeza devoram e consomem nossos corações; o que ele deseja é que, abrasados pelo fogo sagrado de seu Amor, experimentemos e saboreemos as delícias de uma felicidade pura e totalmente espiritual.

50. Retirem o pecado de seus corações, e vocês não terão mais motivos para derramar lágrimas. Por que razão alguém colocaria um emplastro sobre um dos membros de uma pessoa que não tivesse ferida alguma? Derramaria lágrimas Adão, antes de sua desobediência fatal? Ou o farão os justos, depois da ressurreição e da inteira abolição do pecado? Não está escrito que então “não haverá nem pranto, nem gemidos, nem dor, nem aflição[77]”?

51. Vi pessoas que pareciam não ter tristeza, ainda que estivessem na realidade aflitas; mas exteriormente as tomaríamos por pessoas felizes, e não tomadas pela aflição. O Amor de Jesus Cristo as mantinha ao abrigo de todo perigo; os demônios nada podiam contra elas, pois a elas poderíamos aplicar as palavras: “O Senhor ilumina as trevas dos cegos[78]”.

52. Também é comum acontecer de as lágrimas encherem de vaidade aos que não possuem senão uma virtude fraca e cambaleante. Então, por uma traço admirável de sua Providência, Deus os priva deste dom que para eles se tornou funesto, a fim de que, desejando e pedindo estas lágrimas, eles se aflijam e se condenem, que vivam em suspiros e gemidos, na dor e na tristeza, nas duras inquietações e na ansiedade dilacerante; pois, nos desígnios de Deus, todas estas penas que eles suportam então tomam o lugar do dom das lágrimas, e, embora a eles pareça não retirar daí nenhum fruto, elas lhes são infinitamente vantajosas.

53. Observando atentamente os diversos artifícios do demônio, veremos que muitas vezes ele nos faz cair numa ilusão bastante funesta e bem própria a nos causar pena, e que ele nos engana de maneira bem patética. Com efeito, por acaso é raro que, estando bem saciados e contentes em nossa sensualidade, ele nos amoleça e nos faça derramar lágrimas em abundância, e que, quando observamos fielmente o jejum e as regras da temperança, ele nos endureça e faça secar a fonte de nosso pranto? Ora, quem não vê que, pelas falsas lágrimas que ele coloca em nossos olhos, ele quer que nos abandonemos à intemperança e à sensualidade, duas fecundas fontes de vícios? Assim, em lugar de cairmos nestas armadilhas, estejamos atentos para fazer o contrário do que ele nos sugere.

54. Quanto a mim, eu lhes confesso que ao considerar a natureza da compunção do coração eu fico cheio de espanto, e não posso deixar de me admirar como é possível que a dor e a aflição da penitência encerrem em si mesmas a felicidade e a alegria, como uma colmeia de abelhas esconde o mel. Mas o que nos ensina esta maravilha? Que a tristeza e as lágrimas de uma alma contrita e penitente são real e verdadeiramente um dom de Deus; pois o que faz com que esta alma arrependida experimente este prazer e esta alegria interiores, tão doces e consoladores, é que o próprio Deus, de um modo secreto e invisível, comunica aos corações aflitos e quebrantados pela dor de suas faltas as doçuras e as consolações de uma alegria celeste.

55. Mas nada, creio eu, poderá contribuir mais a nos convencer o quanto temos necessidade de chorar nossos pecados, e o quanto as lágrimas de uma doçura sincera são úteis à nossa alma, como a história verdadeiramente extraordinária a surpreendente que eu vou lhes contar. Havia no mosteiro em que eu estava um monge chamado Estevão; como ele amava a vida solitária e eremítica, desde de muitos anos ele vivia inteiramente separado dos irmãos e tinha se tornado um exemplo por seus jejuns rigorosos, suas lágrimas abundantes e por outras virtudes semelhantes. Ele havia fixado sua cela ao pé da santa montanha onde um dia estivera Elias na presença de Deus. Mas este homem verdadeiramente respeitável, desejando praticar exercícios de uma penitência mais austera e mais laboriosa, se retirou para o deserto dos Anacoretas, chamado Sidon, e aí viveu muitos anos na mais severa e estrita disciplina. Este lugar, inteiramente privado de qualquer consolação humana, era de início quase inacessível, distante setenta milhas de toda habitação. Por fim este santo ancião, chegado ao final de seus dias, retornou para sua primitiva cela na montanha de Elias, onde tinha por discípulos dois monges da Palestina, que eram muito piedosos e severos observadores da disciplina religiosa. Eles haviam permanecido nesta cela durante a ausência do ancião, o qual, depois de alguns dias de seu retorno, caiu perigosamente doente, e esta doença o conduziu ao túmulo. Durante a vigília de sua morte ele esteve arrebatado fora de si, e neste arrebatamento ele olhava à direita e à esquerda, como se houvessem pessoas ao seu redor; e ele prestava contas de sua vida a estas pessoas, em tão alta voz, que todos os que estavam presentes podiam ouvi-lo. “Sim, dizia ele algumas vezes, é verdade; eu cometi esta falta, mas jejuei muitos anos para expiá-la”; e outras vezes: “Não, eu não cometi esta falta; vocês me acusam erradamente”. Depois ele acrescentava: “Eu confesso que me tornei culpado desta fraqueza; mas eu a chorei, fiz penitência e busquei afastá-la de mim por meio de santos exercícios e de obras de caridade. E é absolutamente falso que eu seja acusado disto agora”, dizia vivamente. Sobre outras questões, ele dizia: “Vocês têm razão, eu confesso que sou culpado e que nada tenho a apresentar para me justificar, que não tenho outro recurso senão a Misericórdia de Deus, em quem ponho toda minha confiança”. Ora, este exame extraordinário era um espetáculo tanto mais amedrontador e terrível na medida mesma em que este pobre monge era acusado de faltas que não havia cometido. Ah! Justos céus! Se um fervoroso solitário, um anacoreta que, durante quarenta anos passados em vida eremítica, chorara tão amargamente seus pecados, e os tinha expiado por meio de toda espécie de austeridades, se este homem confessava que determinadas faltas eram-lhe ainda indesculpáveis, que poderia então acontecer a mim? Não devo eu clamar: Infeliz que sou! Sim, infeliz, miserável, pois este grande solitário não foi capaz de calar os demônios que o acusavam com estas palavras de Ezequiel: “O Senhor disse: eu os julgareis segundo seus caminhos.[79]”? Mas glória seja dada a Deus, o único que conhece as coisas ocultas! E no entanto muitas pessoas me disseram que, enquanto vivia no deserto, este bom solitário dera com suas próprias mãos de comer a um leopardo. E foi no decurso deste exame rigoroso, enquanto prestava contas de sua vida, que ele entregou sua alma a Deus, sem que pudéssemos saber o final deste julgamento, e qual teria sido a sentença recebida.

56. Assim como uma pobre viúva, após a morte de seu marido, só encontra consolo no único filho que lhe resta, também uma alma que caiu no pecado não consegue encontrar nenhum alívio no momento de deixar a vida senão nos trabalhos penosos que suportou, nos rigorosos jejuns praticados, nas lágrimas vertidas e na penitência realizada.

57. Estes tipo de penitentes não se permitem sequer cantar hinos e cânticos quando estão a sós, por que estes cânticos seriam capazes de sufocar seus suspiros e diminuir suas lágrimas. Então, se vocês imaginam que, cantando os hinos, incitarão em si sentimentos de penitência, saibam que estão bem longe disto, e que a penitência está bem longe de vocês. A penitência é uma dor da alma que vem habitar nela depois de muito tempo, e que nela se conserva por intermédio do fogo do amor.

58. Esta penitência precede na alma a paz e a tranquilidade do coração: é ela que, purificando-a e buscando a vitória sobre as paixões e os maus hábitos, a reveste de seu primeiro ornamento.

59. Eis o que me contou a respeito de si próprio um homem ilustre por sua longa e rigorosa penitência: “Quando eu era tentado a me entregar à vanglória, à impaciência, à intemperança, a lembrança de minha penitência se opunha fortemente e me fazia escutar dentro de mim estas palavras severas: ‘Cuidado para não se deixar levar pela vanglória, pois do contrário eu o abandonarei’; e o mesmo acontecia em relação às outras tentações. Então eu lhe respondia, dizendo que jamais a desobedeceria até que pudesse ser apresentado com segurança diante do tribunal de Jesus Cristo”.

60. Mas se uma alma profundamente penitente e sinceramente afligida por seus pecados recebe de Deus consolações inefáveis, uma alma pura e santa recebe dele luzes extraordinárias. Ora, esta iluminação divina é uma impressão doce e forte, que não podemos exprimir, nem compreender, nem ver: somente a fé é capaz de compreendê-la, vê-la e senti-la. Quanto às consolações da alma penitente, é um certo frescor doce e agradável que torna de certo modo esta alma semelhante a uma criança que chora e ri ao mesmo tempo. Este frescor, por um efeito admirável, renova esta alma aflita e faz com que suas lágrimas, de amargas, se tornem doces e agradáveis.

61. As lágrimas produzidas pelo pensamento da morte fazem nascer o temor a Deus nos corações; este temor a Deus engendra a confiança, e esta firma confiança produz uma alegria perfeita, que enfim gera a flor divina do amor.

62. Afastem para longe, com um espírito de verdadeira humildade, toda alegria estrangeira, como sendo indigna de vocês; e não deixem de temer que, pelas mentiras do demônio, venham a receber um lobo devorador aos invés do pastor de suas almas.

63. Cuidado para não desejar, antes do tempo, se elevar a uma sublime contemplação; façam de modo a que, pela perfeição de sua humildade, seja ela a procurá-los e capturá-los para se unir à sua alma numa união pura e indissolúvel.

64. Vejam como uma alma religiosa se assemelha à de uma criança: apenas se aproxima o pai e ela se enche de uma alegria que não consegue expressar; e, se por qualquer razão seu pai se ausenta, quando ele retorna, a criança mostra ao mesmo tempo seu contentamento e sua pena: seu contentamento, por que ela recebe seu pai depois de uma ausência que muito custou a ela; sua pena, por que ela ficou tanto tempo privada de sua presença.

65. Também esta alma se parece com uma criança: vejam como uma mãe se esconde e se oculta da vista de seu filho, mas que, assim que ouve seus gemidos e vê suas lágrimas, experimenta um prazer delicioso, por que o está ensinando a sentir a importância e a necessidade de não se afastar de sua presença; deste modo ela nutre e aumenta em seu filho o afeto que ele sente por ela. Ora, disse o Senhor: “Quem tiver ouvidos para ouvir, escute estas palavras[80]”.

66. O criminoso condenado à pena capital por acaso pensa nos exercícios do Ginásio ou nas peças apresentadas no teatro? Ora, quem pensa nos pecados que lhe condenam aos tormentos eternos, será este capaz de se entregar ao prazer, à vanglória, à cólera e ao mau humor?

67. A penitência, que consiste numa viva e profunda dor da alma, não deve ela nos fornecer a cada dia novos motivos para nos afligir e sofrer? Não se parece a alma penitente com uma mulher que se encontra nas dores do parto?

68. O Senhor, cuja justiça iguala sua santidade, recompensa, pelo sentimento de uma compunção cheia de fé, o monge que, na solidão, vive segundo a fé e as regras da santidade, assim como recompensa, por meio de inefáveis consolações, o monge que, por motivos louváveis, habita num mosteiro para aí viver santamente sob a autoridade e a obediência de um superior. Mas quem, sinceramente e segundo Deus, não abraça nenhum destes modos de vida, estará infelizmente privado do dom das lágrimas.

69. Afastem e expulsem para longe o demônio do desespero, este cão raivoso, que, vendo-os considerar com dor os pecados cometidos, faz todos os esforços para lhes apresentar um Deus sem clemência, sem bondade e sem misericórdia; se vocês prestarem atenção, verão que, antes de fazê-los cair nas faltas que agora choram, este miserável lhes pintava vivamente a bondade, a clemência e a misericórdia de Deus e, sobretudo, sua admirável facilidade em receber os pecadores e perdoá-los.

70. O santo exercício da penitência produz seu próprio e feliz costume em nossa alma, e este costume o torna fácil e agradável. Eis por que ele coloca em nossos corações raízes tão forte e tão profundas que se torna difícil arrancá-lo de nós.

71. De resto, será inútil nos entregarmos aos mais excelentes exercícios de piedade, se não tivermos esta dor interior e sincera por nossos pecados; neste caso, não seremos nada, nada estaremos fazendo; pois para nós, que manchamos e perdemos a graça preciosa do batismo, que enchemos nossas mãos de iniquidades, é absolutamente necessário que nos purifiquemos e, por meio do fogo ardente e contínuo do arrependimento e pelo azeite da misericórdia de Deus, consigamos derreter esta graxa repugnante dos nossos vícios.

72. Conheci pessoas que estavam, por assim dizer, no último degrau da penitência. Elas sentiam uma contrição tão viva e aguda de seus pecados, que chegavam a vomitar sangue. Esta visão me lembrou as palavras do salmista: “Eu fui flagelado, Senhor, pelo rebenque se sua cólera, como a erva pelos raios do sol, e meu coração ressecou[81]”.

73. As lágrimas que o temor a Deus nos faz verter produzem em nós o temor de vê-las secar e a vigilância necessária para conservá-las. Os que não choram seus pecados senão pelo movimento de uma caridade pouco inflamada e que não tem a perfeição requerida, logo as verão desaparecer. Não se pode dizer o mesmo dos que choram suas faltas por que seu coração está abrasado no tempo por uma fogo digno de uma memória eterna; e acrescentemos aqui que em nossa penitência, para nossa admiração, foi o mais humilde e o mais abjeto que criou em nós realmente a maior certeza e segurança de ser agradável a Deus.

74. Existem coisas que fazem secar as lágrimas da penitência, e outras que nelas misturam, se podemos nos exprimir assim, a lama e as bestas selvagens. As primeiras foram causa do incesto de Lot com suas duas filhas, e as segundas, da queda de Lúcifer e de seus anjos.

75.  A malícia dos inimigos de nossa salvação é verdadeiramente incrível: eles se servem de tudo para transformar nossas virtudes em vícios e para nos encher de orgulho em coisas das quais devíamos nos cobrir de vergonha.

76. A solidão em que nos encontramos, as celas que ocupamos, os diversos objetos que encontramos, são muitas vezes capazes de nos levar à compunção; e não é isto o que nosso Senhor, Elias e são João Batista nos ensinam com seu exemplo? Pois eles se retiraram para o deserto para estará aí mais desimpedidos para a oração, e para oferecer a Deus o tributo de suas lágrimas.

77. E no entanto acontece também, e eu próprio já vi isto, que no centro das cidades e nomeio do tumulto e das agitações do século, monges derramassem lágrimas abundantemente. Mas não nos enganemos com isto: o inimigo quer nos levar a que entremos no mundo, fazendo-nos crer que não sofreríamos nenhum prejuízo nem perda espiritual alguma por frequentarmos os homens, e para que nos coloquemos no meio das coisas e dos negócios do século, e que, por conseguinte, é errado temermos assim o mundo e suas agitações tumultuadas.

78. Não percamos de vista que às vezes basta uma palavra para fazer secar a fonte das lágrimas de uma alma penitente.

79. Podemos dizer que, sem algum tipo de milagre, uma só palavra é capaz de fazê-las jorrar outra vez? Eh! Meus ternos amigos, na hora de nossa morte, o soberano Juiz não considerará um crime não termos feito milagres durante a vida, ou não termos tratado com sutileza as matérias elevadas da teologia, ou não havermos alcançado um elevado grau de contemplação, mas sim o não termos chorado nossos pecados de modo a obter seu perdão. Este é o sétimo degrau da escada do paraíso. Aquele que chegou até aqui, por favor dê-me sua mão, pois somente isto é possível com o auxílio de alguém, que também chegou a este ponto e que tenha se purificado dos pecados cometidos durante sua vida.





OITAVO DEGRAU

Da Mansidão, que triunfa sobre a cólera.


1. A água que é pouco a pouco derramada sobre um incêndio acaba por extingui-lo inteiramente; é o que fazem as lágrimas vertidas por causa de uma verdadeira dor pelos pecados, apertando e fazendo morrer os movimentos da cólera e acalmando a impetuosidade do coração: é por esta razão que vamos tratar agora da mansidão e da bondade da alma.

2. A vitória que obtemos sobre a cólera consiste essencialmente numa sede inextinguível e num desejo insaciável de menosprezo e humilhações, assim como a vaidade consiste num desejo imenso de honras e elogios. A mansidão é assim uma vitória que obtemos sobre a natureza, sofrendo toda sorte de injúrias com inviolável paciência, que ao final irá coroar nossos combates e nossas fadigas.

3. É assim que ela torna a alma inquebrantável e impassível em meio ao despreza e às humilhações, dos aplausos e dos elogios.

4. Manter nossa língua em cativeiro e guardar silêncio quando nosso coração é violentamente agitado, são as primeiras armas desta virtude e as primeiras vantagens que ela obtém sobre a cólera: saber acalmar o tumulto interior de nossos pensamentos e de nossos sentimentos nos momentos em que estamos agitados, são progressos que fazemos na prática da mansidão; mas conservar nossa alma em calma e tranquilidade em meio aos ventos mais impetuosos, as tempestades mais furiosas, eis aqui a perfeição da mansidão e da vitória que obtemos sobre a cólera.

5. Esta paixão se alimenta num pensamento de raiva secreta e na lembrança das injúrias recebidas; ela nos leva a buscar a vingança contra os que nos ofenderam.

6. O furor é uma paixão instantânea e violenta da alma.

7. O azedume ou a amargura do coração consiste num sentimento, ou antes numa sensação cheia de malícia que habita o coração e o precipita no abatimento e na tristeza, sem lhe trazer nenhum contentamento.

8. A cólera já corrompeu rapidamente muitos hábitos doces e tranquilos, aviltando o coração e cobrindo-o com uma horrível deformidade.

9.  Assim como as trevas se põem em fuga quando o sol derrama seus raios sobre a terra, também o azedume e a cólera desaparecem prontamente quando a humildade se apresenta e verte seus perfumes olorosos.

10. Apesar disso, encontramos ainda pessoas que, embora tenham podido atestar o quanto uma experiência deplorável é capaz de conduzi-las a movimentos de cólera, não buscam nem empregam os meios e os remédios capazes de curar seus corações desta funesta enfermidade. Insensatos! Esquecem-se desta sentença memorável: “O momento da cólera é o momento da perda e da ruína da alma[82]”.

11. Os movimentos de cólera são muito semelhantes aos movimentos de uma mó de moinho: eles são capazes de num instante fazer uma alma perder mais farinha e benefícios espirituais, do que outros levariam nisto um dia inteiro.

12. Eles se assemelham também a estas chamas que, empurradas por um vento impetuoso, logo reduzem tudo a cinzas. Portanto, vigiemo-nos com grande atenção, a fim de nos opormos com vigor às suas devastações terríveis e instantâneas.

13. Não esconderei de vocês, meus amigos, que muitas vezes os demônios, estes implacáveis inimigos de nossa alma, sabem destramente cessar de nos tentar, a fim de que pouco a pouco nos tornemos negligentes, que encaremos como leve e pequeno o que é grave e criminoso, até que por fim tombemos em enfermidades incuráveis e mortais.

14. Uma pedra aguda, à custa de bater contra outras pedras, perde suas pontas e se torna arredondada. Da mesma forma uma pessoa dom temperamento bilioso e colérico, vivendo entre pessoas do mesmo tipo, experimentará necessariamente um destes dois efeitos: ou corrigirá por meio da paciência seu humor irritadiço e violento; ou, vencido pelas injúrias que irá receber, se retirará de seu convívio, e mostrará com esta retirada o quanto ela perdeu de força e de coragem.

15. Um homem escravo da cólera é um epilético espiritual que, primeiro pela própria vontade e depois pela necessidade do hábito, se arranha e se despedaça.

16. Nada é mais funesto aos que choram seus pecados do que esta paixão funesta: ela perturba seus corações e os impede de retornar a Deus através dos sentimentos de humildade que lhes inspirava a vida religiosa que abraçaram; pois a cólera é a prova evidente de que se está sob o domínio do orgulho.

17. Se a perfeição da mansidão é ser calmo e tranquilo e conservar sentimentos de amor e afeto pela pessoa que nos ofendeu, mesmo em sua presença, será o cúmulo do furor nos irritarmos e manifestarmos nossa cólera por palavras e ações contra quem nos mortificou e irritou, quando estamos a sós e a pessoa está longe de nós.

18. Se o Espírito Santo é chamado de paz da alma – e o é, com efeito – e a cólera é chamada de perturbação da alma – e o é, igualmente – não devemos concluir necessariamente daí que é sobretudo a cólera que nos priva da presença deste Espírito divino?

19. Dentre os numerosos e traiçoeiros filhos da cólera existe um que, apesar de sua maldade, nos traz algum benefício. De fato, já vi pessoas que, estando inflamadas de furor, por um movimento súbito e violento expulsaram de seu coração uma aversão que nutriam há muito tempo; pois com isto possibilitaram a quem os havia ofendido, ou de lhes dizer de seu arrependimento pela conduta passada, ou de lhes dar satisfação pelo mal feito. Desta forma, por um movimento de cólera, elas se livraram desta paixão. Mas também vi outros que, por uma hipocrisia infernal, faziam cara de sofrer com paciência as injúrias que lhes era dirigidas, mas que guardavam delas uma lembrança exata e perfeita.

20. Eu creio que estas pessoas são piores do que as que se deixam levar pelos rompantes da cólera; pois elas mancham e empanam a brancura e a simplicidade da pomba com a cor negra e infecta da raiva.

21. Não existe precaução excessiva contra tão infame conduta: trata-se de uma serpente da qual devemos desconfiar em todas as coisas; é um demônio que, semelhante ao demônio da impureza, tenta nos por a perder, favorecendo as inclinações da natureza corrompida.

22. Eu já vi que certas pessoas são de tal modo transportadas pela cólera, que não podem sequer comer, e esta abstinência, ao invés de acalmar seu furor, só o faz aumentar; mas, ao contrário, observei que existem outras que, em seus acessos de cólera e acreditando estar certas, se atiram com uma espécie de raiva sobre a comida, devorando-a com ferocidade aterradora: e assim estes miseráveis caem da fossa no abismo. Por fim, vi também alguns que, mais sábios e semelhantes a médicos experientes, sabem guardar o justo meio entre estas duas extremidades, extraindo daí grandes benefícios.

23. O canto é apropriado para trazer à alma a calma e a paz; mas ele também pode prejudicá-la levando a ela prazeres e alegrias; mas quem souber consultar as circunstâncias e as conveniências dele poderão se servir sabiamente.

24. Num dia em que fui encontrar alguns anacoretas por motivos pessoais, detive-me por algum tempo fora de suas celas, e ouvi que faziam um grande barulho, e que discutiam entre si como perdizes numa gaiola, tal era a fúria que os animava. Tamanha era ela que, embora aquele que os irritara estivesse ausente, eles agiam como se ele estivesse presente e os estivessem vendo ali diante deles. Eu os aconselhei a que deixassem suas celas e se retirassem com toda simplicidade para um mosteiro; pois eu temia que, de homens que eram, pudessem se transformar em abomináveis demônios. Em outras comunidades eu vi coisas de natureza completamente diferente: tratava-se de pessoas indolentes e afeminadas, homens sujeitos à intemperança e à sensualidade, demasiado afetados e lisonjeiros uns em relação aos outros, e que tomavam todos os cuidados mais minuciosos com a higiene e a beleza de seus corpos. A estes eu aconselhei que se retirassem para o deserto, por que a solidão é a inimiga irreconciliável da luxúria e da sensualidade; pois eu temia que de homens racionais que eram, se tornassem como animais desprovidos de razão. E quando acontecia de encontrar pessoas que padeciam amargamente de se ver tentados pela cólera e para indolência, eu as pressionava fortemente a não se conduzirem por si próprias, mas que vivessem sob o jugo da obediência. Assim eu pedia caridosamente a seus superiores que lhes permitissem viver tanto na solidão como no interior do mosteiro, de maneira a que, pelo menos, em um ou outro destes estados, elas estivessem sempre na dependência e sob a autoridade de seus superiores.

25. Se é verdade que aqueles que são levados aos prazeres dos sentidos e à indolência, não apenas perdem a si mesmos como põem a perder as pessoas que lamentavelmente se ligam a eles e os frequentam, é também verdade que, como um lobo furioso, o homem colérico é capaz de perturbar toda uma comunidade e levar à perdição um grande número de almas.

26. Eu penso que se trata de um crime hediondo perturbar o olho de seu coração, atitando-se à fúria, conforme a palavra: “A fúria turvou meus olhos[83]”; mas penso também que é um crime ainda mais temível mostrar por palavras amargas a agitação interior na qual nos encontramos; enfim, penso que o cúmulo da infâmia é chegar às vias de fato: isto é o que há de mais contrário à vida angélica, religiosa e quase divina que nos propusemos vive.

27. Mas devemos frisar aqui que, se você quer retirar do olho de seu irmão uma palha que você viu ali, cuidado para que este não seja um desejo enganador; não se utilize, para esta operação delicada, de um instrumento grosseiro, mas empregue algum que seja próprio e conveniente, e cuidado para não a afundar ainda mais, em lugar de retirá-la. O instrumento grosseiro é a imagem da reprovação dura e humilhante que fazemos aos outros, e os modos bruscos e violentos com que a manifestamos; o instrumento delicado é a imagem de uma reprimenda cheia de bondade, doçura e benevolência. O Espírito Santo nos disse: “Repreendam, corrijam e peçam”; mas ele não nos disse: “batam”. Se formos obrigados a fazê-lo, que seja muito raramente; e que isto só aconteça por mãos de terceiros.

28. Se prestarmos atenção, veremos que existe nas pessoas violentas e coléricas uma inclinação pronunciada para a prática do jejum, das vigílias e do silêncio. É assim que o demônio, este inimigo cheio de astúcia, sob o pretexto da penitência e do derramamento de lágrimas, lhes fornece a matéria e os meios de aumentar seu humor violento e azedo.

29. Se um mau monge, como dissemos acima, auxiliado pelo demônio e semelhante a um lobo, é capaz de perturbar toda uma casa religiosa, um bom monge, pela razão contrária, escolhido dentre os mais prudentes e sábios, e ajudado por um anjo, poderá derramar o azeite precioso da doçura em meio a seus irmãos, apaziguar as tempestades excitadas e os ventos furiosos da cólera e conduzir com sucesso o navio ao porto da tranquilidade e da calma. Assim, do mesmo modo como o mau monge deve ser julgado, condenado e punido por sua conduta, o bom monge, que por sua doçura se tornou exemplo e modelo para seus irmãos, é digno de receber uma recompensa proporcional à grandeza e à importância dos serviços prestados.

30. O primeiro grau da mansuetude consiste em sofrer os ultrajes e as humilhações, por mais amargura e dor que a alma ainda possa sentir; o segundo grau consiste em suportar estas coisas com calma e tranquilidade; o terceiro, que é a perfeição da mansidão, consiste em receber o desprezo e as injúrias com mais prazer do que recebem os mundanos os elogios que lhes são dirigidos. Mas onde está este homem que alcançou tal perfeição? Fique contente quem chegou ao primeiro grau; persevere com constância, quem alcançou o segundo; mas quem atingiu o terceiro, este terá triunfado no Senhor.

31. Mas eis uma coisa verdadeiramente digna de pena: é que as pessoas irascíveis costumam, devido a uma inconcebível vaidade, se irritar e se encolerizar por se deixarem vencer por seu mau humor. Em verdade, não é lamentável voltar a cair, pretendendo se punir por haver caído uma primeira vez? Quanto a mim, considerando a excessiva malícia do demônio, eu me proíbo disto, pois, observando estas pessoas, eu percebo que elas não estão longe de cair no mais funesto desencorajamento.

32. Se alguém percebe que se deixa facilmente vencer pela vaidade e a cólera, pela maldade e a hipocrisia, e decide empregar contra esses vícios a espada de dois gumes da doçura e da paciência, eu o aconselho fortemente a entrar para uma comunidade de irmãos, como numa oficina que lhe será muito salutar; a escolher, se deseja de todo seu coração corrigir-se, a morada onde as regras e a disciplina forem mais austeras, a fim de que, por meio das humilhações, do desprezo e das mais duras provas ele seja como que flagelado, despedaçado, retalhado, apagado e pisoteado. É assim que ele irá purificar sua alma das faltas cometidas e compreenderá a verdade de uma palavra muito empregada no mundo; pois, para se glorificar, não é raro ouvirmos dizer aos que foram oprimidos com injúrias e ultrajes: “Eu lavei sua cabeça ao meu modo”.

33. Existe uma diferença essencial entre a vitória que os jovens conversos obtêm sobre a cólera, servindo-se das armas de uma humilde penitência, e a imobilidade tranquila dos que alcançaram a perfeição da doçura, pois, entre os primeiros, as lágrimas, como correntes, amarram e reprimem a cólera, enquanto que, nos últimos, a calma e a tranquilidade de seus corações insensíveis às injúrias levaram à morte este paixão, como o faria uma espada a uma serpente.

34. Certo dia, diante de meus olhos, três monges receberam o mesmo ultraje. Um sentiu-se ferido mas sofreu em silêncio, afogando a mágoa que sentia; outro alegrou-se internamente, mas se sentiu aflito interiormente por caridade e benevolência em relação a quem o maltratara; o terceiro, enfim, esqueceu-se totalmente de si para só se ocupar de seu irmão, por quem chorava cálidas lágrimas, tamanha era a caridade que devorava seu coração. Assim podiam-se ver nestes monges três excelentes virtudes: o temos a Deus, a esperança e o amor.

35. Como acontece com nossos corpos, embora a febre seja sempre a mesma, ela não deixa de ter múltiplas causas; também a cólera, assim como outras paixões, tem muitas causas e inicia-se de várias maneiras. É impossível fornecer aqui instruções específicas e relativas a cada causa ou início. Tudo o que eu posso fazer é aconselhar aos que se sentirem afetados por esta paixão, que busquem os remédios convenientes e capazes de curá-los, e sobretudo que conheçam as causas do mal, a fim de que, conhecendo-a perfeitamente, possam, com a Bondade de Deus e sob a direção de seu médico espiritual, empregar os remédios necessários. Que se apresentem, e que conosco entrem nesta busca que propusemos aos monges, todos os que, tocados pelas palavras que lhes dirigimos, desejam conhecer o verdadeiro estado de sua alma; que examinem seriamente, e no mais profundo silêncio, quais são os tristes efeitos e os funestos princípios das paixões que acabamos de descrever.

36. Um coração colérico e furioso deve ser acorrentado como um cruel tirano, mas com as cadeias de uma doçura e paciência constantes; é preciso vergastá-lo com o chicote da clemência, e conduzi-lo por meio da caridade ao tribunal da razão soberana de Deus, para responder às questões que lhe serão feitas. Diga-nos, tola e impudente paixão da cólera, o nome de seu pai, da mãe que infelizmente a deu à luz, e dos filhos corrompidos que nasceram de você. Diga-nos quem são aqueles que, combatendo-a, a poderão exterminar e fazer desaparecer. A estas questões, quais respostas nos dará a cólera? Eu quase a ouço dizer: “Muitas causas concorreram para a minha existência; eu não tenho apenas um pai, mas muitos, e o primeiro a contribuir para a minha existência foi o orgulho. Eu tenho muitas mães, dentre as quais estão a vanglória, a avareza, a intemperança, a luxúria. Minhas filhas são o pensamento das injúrias, a raiva, as discussões e as inimizades; e os inimigos que podem me vencer e acorrentar são as virtudes opostas às minhas filhas, e ainda a paciência e a moderação; mas a virtude que maior mal me faz é a humildade”. Com o tempo, vocês aprenderão de onde esta virtude extrai sua origem. É neste oitavo degrau que se encontra a coroa da doçura e da mansidão. Aquele que, pela compleição de sua natureza, é de um temperamento doce e tranquilo, eventualmente poderia não merecê-lo. Mas o merece aquele que, por seus esforços laboriosos, obteve a vitória sobre a cólera, passando sucessivamente pelos sete primeiros degraus: dele é esta bela coroa.



NONO DEGRAU

Do Ressentimento.


1. É com razão que podemos comparar as virtudes ais diversos degraus da escada de Jacó, e os vícios às correntes que caíram dos pés e das mãos de são Pedro, príncipe dos apóstolos. Com efeito, estando as virtudes unidas umas às outras por anéis admiráveis, eles permitem subir até os céus aqueles que têm a felicidade de praticá-las, enquanto que os vícios, ligados entre si por laços diabólicos, conduzem à infelicidade eterna os que se deixam miseravelmente conduzir por eles. É por isso que pensamos ser aqui o lugar para tratarmos da lembrança das injúrias, por que ouvimos da própria boca da cólera que esta é uma de suas perversas filhas.

2. Ora, nós diremos que a lembrança das injúrias, na medida em que representa o cúmulo da cólera, é também sua cauda. É ela que faz viver os pecados numa alma, que nela alimenta o ódio à justiça, que causa a morte das virtudes, que envenena o coração, que obscurece a inteligência, que cobre de vergonha os que recitam a oração dominical, que paralisa a prece, que destrói a caridade, que trespassa sem interrupção os corações com suas flechas afiadas, que os enche de amargura e aí faz reinar, com um império absoluto, o pecado, o crime e a maldade.

3. Ora, como a lembrança das injúrias extrai sua origem de algumas outras paixões vis e abjetas, e como ela não as apresenta, senão raramente, dela diremos pouca coisa.

4. Quem mata a cólera, mata, por isso mesmo, a lembrança das injúrias. Mas enquanto esta violenta paixão domina o coração, ela aí gera novos filhos.

5. Observem atentamente como e quão rápido expulsa e bane de sua alma a cólera, o homem que queima de amor por seus irmãos, e quantas penas e inquietudes vergonhosas cria para si mesmo o que se entrega a esta paixão brutal.

6. Saibam que uma pequena refeição de caridade dissipa a raiva, e que presentes feitos com intenções puras e sinceras acalmam e conquistam os corações; enquanto que um festim, no qual as leis da sobriedade não são observadas, dá lugar à licenciosidade, e assim, sob pretexto de fazer um gesto de caridade, nos entregamos aos excessos do comer e do beber.

7. Eu já vi a cólera romper de um só golpe uma velha ligação, profana e criminosa, e degenerando em ódio violento, contra a expectativa geral, manter a lembrança das injúrias recebidas, de modo a perseverar nesta ruptura até o fim. Mas neste caso, trata-se mais da obra de Deus do que da do demônio.

8. A lembrança das injúrias é sempre infinitamente oposta ao amor, coisa que não podemos assegurar em relação às tendências criminosas, pois estas se misturam facilmente com esta virtude para manchar e corromper a brancura e a pureza desta inocente pomba.

9. Vocês querem não esquecer das injúrias recebidas? Eu o consinto, desde que sejam aquelas recebidas do demônio. Quem quiser nitrir em seu coração o ódio e a inimizade, que o faça, mas contra seu próprio corpo, que é seu mais perigoso inimigo; pois este corpo miserável, sob o enganoso título de amigo, não passa de um ingrato e de um traidor: quanto mais cuidamos dele, mais mal ele nos faz.

10; A lembrança das injúrias é um péssimo intérprete das santas Escrituras. Ela não sabe explicar os oráculos sagrados do Espírito Santo a não ser conforme seus gostos depravados e seu senso corrompido. Que a prece que nosso Senhor nos ensinou cubra de confusão aqueles que se deixam conduzir por tão mau doutor. Eh! Como poderão estes recitar esta admirável oração, com Jesus Cristo e segundo suas intenções, se o pensamento das injúrias se mantém gravado em sua memória?

11. Se vocês lutaram contra si próprios por muito tempo e com todo vigor, para esquecer um ultraje, sem conseguir desenraizar sua lembrança de seu coração, eis o conselho que eu acredito poder lhes dar: humilhem-se na presença daquele que os ofendeu, dirigindo-se a ele com palavras doces; vocês verão que pouco a pouco começarão a enrubescer devido a esta longa dissimulação, e que assim, continuamente agitados pelas reprimendas de sua própria consciência, vocês acabarão por consumir a inimizade no fogo da caridade, reconciliando-se perfeitamente com seu irmão.

12. Vocês saberão que seu coração está livre de todo sentimento de ódio, não apenas por que oram pela pessoa que os ofendeu, nem por que lhe oferecem presentes e o convidam à mesa, mas apenas quando, sabendo que a ele aconteceu algum acidente – no corpo ou na alma – vocês se sentirem desolados e aflitos, como se a infelicidade acontecesse com vocês mesmos.

13.Um monge que conserva em seu coração a lembrança das injúrias guarda aí um ninho de serpentes, e traz seu veneno no próprio seio; e este veneno é mortal.

14. O pensamento e a meditação das injúrias e dos sofrimentos que Jesus Cristo suportou com paciência exemplar são ideais, por nos cobrirem de uma salutar confusão, para expulsar de nosso coração a lembrança dos ultrajes que recebemos.

15. Os vermes, como sabemos, são gerados na madeira; mas podemos ignorar que a cólera se torna hóspede dos corações que não possuem senão uma doçura exterior e aparente? Quem quer que, por seus esforços, conseguir expulsá-la para longe de si, merece o perdão de seus pecados; mas quem conserva e alimenta esta paixão se torna indigno de toda misericórdia.

16. Vemos muitas pessoas empreenderem grandes trabalhos e se condenar a rigorosas privações para obter a remissão de suas faltas; mas avança muito mais na obra admirável da justificação aquele que baniu de seu coração toda ideia e toda lembrança das injúrias recebidas. É o que nos assegura o oráculo de eterna verdade: “Perdoem, e serão perdoados[84]”.

17. Si, eu repito, o esquecimento dos ultrajes é a marca segura de uma penitência sincera e eficaz. Engana-se grosseiramente quem, não querendo esquecer, se convence de estar tocado e animado por uma verdadeira dor por seus pecados. Infeliz! Assemelha-se a um homem que, em seu sonho, pensa que corre.

18. Eu encontrei pessoas que, mesmo conservando em si a lembrança das ofensas recebidas, exortavam com grande zelo a outras pessoas que se encontravam no mesmo estado a renunciar a toda lembrança das injúrias recebidas. Estas pessoas, tocadas pelas exortações que faziam aos outros, acabaram por renunciar inteiramente à lembrança dos ultrajes que elas próprias haviam recebido.

19. Que ninguém imagine que o pensamento e a lembrança das injúrias não passam de um pequeno defeito e de uma paixão perdoável. São males funestos que penetram nos corações mais piedosos e mais religiosos, que os corrompem e os perdem miseravelmente. Portanto, vocês que alcançaram este degrau, peçam com confiança ao Deus Salvador o perdão e a remissão dos seus pecados.



DÉCIMO DEGRAU

Da Maledicência.


1. Não há pessoas que goste de refletir e que seja capaz de dizer que a maledicência não é uma filha da cólera e da lembrança das injúrias, e de não concordar que temos razão em dizer algumas palavras a respeito deste detestável vício, depois de havermos tratado dos dois primeiros.

2. A maledicência é gerada pela raiva. É uma paixão muito sutil; não obstante é uma sanguessuga gorda e voraz, que se esconde destramente para trair e sugar todo o bom sangue da caridade. Sob o pretexto enganador do amor e da afeição, a maledicência exerce a devastação de um ódio implacável e assassino, mancha horrivelmente o coração, carrega enormemente a consciência e destrói inteiramente a castidade.

3. Assim como existem filhas do sexo que perpetram o mal sem enrubescer, outras se escondem para pecar e, por isso mesmo, cometem faltas ainda mais graves: assim é também a marcha normal das paixões. Elas cobrem nossa alma de ignomínia, pois, muitas vezes semelhantes às jovens dissimuladas, elas deixam exteriormente manifestar exatamente o contrário daquilo a que se propõem de fato. Ora, as paixões que se conduzem assim são a hipocrisia, a malícia, a tristeza, a lembrança das injúrias, o julgamento temerário, as condenações da conduta de outrem e a maledicência.

4. Tendo um dia encontrado algumas pessoas que falavam mal de outras, tomei a liberdade de repreende-las com severidade. Eis o que elas responderam diante de minha correção, e a desculpa que alegaram por suas línguas maledicentes: “Não falamos ao acaso, disseram, mas por motivos da mais ardente caridade, e com o desejo sincero de buscar a salvação para aqueles cuja conduta condenamos”.  Diante desta resposta, eu confesso que retruquei com emoção: “Coragem, amigos; com semelhante caridade vocês poderão acusar como mentiroso este oráculo do Espírito Santo: ‘Porei a perder os que maldizem ao próximo em segredo’[85]. Infelizes! Se vocês amam verdadeiramente a estas pessoas, ofereçam por elas a Deus preces secretas e fervorosas; mas não manchem sia reputação com palavras difamatórias, pois a melhor maneira de amar aos irmãos é orar a Deus por eles; esta é a conduta que agrada ao Senhor”.

5. Se vocês desejam de todo coração se abster de fazer julgamentos injuriosos a respeito dos que caem em alguma falta, eu lhes peço, prestem atenção numa coisa: não pertencia Judas ao sagrado colégio dos apóstolos? Não estava o ladrão entre os homicidas? E que mudança espantosa aconteceu com estes dois homens!

6. Quem estiver resolvido a vencer em si mesmo o espírito de maledicência, jamais atribuirá o pecado ao homem que o cometeu, mas ao demônio que o fez cometer; pois, ainda que caiamos voluntária e livremente no pecado, não obstante ninguém, ao pecar, se propõe como fim o pecado em si mesmo, na medida em que ofende a Deus.

7. De resto, não pode acontecer aquilo que eu vi com meus próprios olhos? Uma pessoa teve a infelicidade de cometer uma falta publicamente, mas fez secretamente uma severa penitência; ora, vejam que, enquanto por uma má disposição de espírito eu considerava culpada e criminosa esta pessoa, Deus não via nela senão um coração puro e casto, por que, por meio de uma conversão sincera ela havia se reconciliado com o Senhor.

8. É por isso que, se vocês se encontrarem na companhia de maledicentes, evitem se deixar dominar pelo respeito humano e temer impor-lhes o silêncio, dizendo-lhes, por exemplo: “Calem-se, eu lhes peço; pois eu tenho cometido diariamente faltas maiores. Como, então, posso eu condenar meu irmão?”. Assim vocês obterão dois benefícios preciosos: vocês se preservarão do pecado, e conseguirão a cura de seu próximo. E observem aqui que o caminho mais curto e mais seguro para alcançar a remissão dos pecados consiste em jamais julgar nem condenar nossos irmãos. É o que nos ensina Jesus Cristo com as palavras: “Não julguem para não serem julgados[86]”.

9. Não é tão contrária a água ao fogo, como os julgamentos temerários o são em relação ao verdadeiro espírito de penitência.

10. Ainda que vejamos uma pessoa cometer uma falta no momento mesmo da morte, devemos nos abster de julgá-la e condená-la; pois os homens ignoram completamente os desígnios de Deus.

11. Existem pessoas que, depois de cometer publicamente grandes faltas, conseguiram repará-las vantajosamente por meio de obras santas e de virtudes perfeitas. Enquanto isso, os impiedosos críticos da conduta alheia, ao condenar estas pessoas, enganaram-se grosseiramente: eles tomaram a neblina pelo sol.

12. Vocês que tão acidamente censuram as ações de seus irmãos, escutem-me e creiam-me. Não deveriam vocês tremer? Pois é verdadeira a sentença: “Vocês serão julgados do mesmo modo como julgam os outros[87]”. Então, não devemos temer que, seja pelo corpo, seja pela alma, estamos sujeitos a cair nos mesmos erros que condenamos em nosso próximo? É certeza!

13. Todos os que criticam com tanta facilidade e azedume a vida e os defeitos dos outros, normalmente são pessoas que não se lembram de suas próprias imperfeições, que perderam de vista a lembrança dos seus pecados, e que não tomaram nenhum cuidado em se corrigir. De fato, as pessoas que, sem amor próprio, examinam as faltas que mancham sua consciência, não veem elas que nenhum espaço de tempo, ainda que vivam cem anos, será suficiente para chorar o tanto necessário os pecados cometidos, e que será ainda inútil que derramem tantas lágrimas quanta água corre no Jordão?

14. Da mesma forma eu já frisei que não se encontra o menor vestígio de maledicência naqueles que foram verdadeiramente tocados pelo sentimento de um arrependimento vivo e sincero, nem traço algum de julgamento temerário e de condenação de seus irmãos.

15. É também por isso que os demônios, estes inimigos irreconciliáveis de nossa salvação, quando não podem nos fazer cair diretamente em pecado, fazem todos os esforços para nos levar a julgar e condenar os que caíram, a fim de que também nós sejamos manchados.

16. Não se esqueçam de que uma marca segura para reconhecer os vingativos e os invejosos é a facilidade com a qual eles criticam a doutrina malignamente, bem como a conduta e as ações dos demais. É um espírito de ódio que os leva a falar desta maneira. Vejam ainda até onde pode ir a cegueira a este respeito.

17. Conheci alguns que, em segredo e sem testemunhos, haviam cometido faltas execráveis; e, acreditam vocês? Eles confiavam de tal maneira na boa opinião que sabiam que os demais depositavam em sua santidade e inocência, que eles insultavam e atacavam a reputação dos que havia cometido publicamente as menores faltas.

18. Dar a si próprio a liberdade de julgar seus irmãos equivale a se atribuir um direito e usurpar impudentemente este direito, que só pertence a Deus. E condená-los equivale a condenar a si próprio, é causar a própria morte.

19. De fato, se o orgulho, sem mais vícios, é capaz de nos fazer perder, não devemos dizer o mesmo dos julgamentos temerários? Não é a desgraça que aconteceu ao fariseu, da qual se fala no Evangelho[88]?

20. Assim como um produtor de vinhos sábio e prudente sabe escolher as vinhas maduras e boas, rejeitando as que não estão maduras e as que são ácidas, também a alma que possui a bondade e a sabedoria cuida para observar nas demais apenas as virtudes e as boas obras que elas praticam. O insensato só presta atenção nos vícios e nos defeitos. É dele que está escrito: Eles procuraram crimes, e foram feridos[89].

22. Não devemos julgar nossos irmãos sob a perspectiva de nossos próprios olhos. Com efeito, ainda que os vejamos cair em pecado, evitemos condená-los. Não é raro nos iludirmos e nos enganarmos sobre este ponto tão delicado. Aquele que alcançar vitoriosamente este décimo degrau, só se conduzirá segundo as leis de uma caridade sincera e de uma sólida penitência.




















[1] Romanos II, 11.
[2] Salmo XIII, 1.
[3] Êxodo XIV, 15-22; XVII, 8-13.
[4] Salmo CXL, 4.
[5] Provérbios IV, 27.
[6] Eclesiástico IV, 10.
[7] Mateus XVIII, 20.
[8] Salmo LXII.
[9] Jeremias XVII, 16.
[10] Mateus VIII, 22.
[11] Marcos X, 21.
[12] Mateus VIII, 22.
[13] Mateus V, 9-12.
[14] II Coríntios VI, 17.
[15] Cf. Mateus XIV, 15.
[16] João IV, 44.
[17] Romanos XIV, 12.
[18] Romanos XIV, 21.
[19] Mateus XII, 49.
[20] Cf. Salmo XXIII, 6.
[21] Mateus VI, 24.
[22] Gênesis XII, 1.
[23] Cf. I Coríntios XV, 33.
[24] Cf. Salmo LIV, 7.
[25] Romanos VIX, 23.
[26] Salmo XXXI, 5.
[27] Salmo XXXIX.
[28] I Coríntios XIII.
[29] II Timóteo IV, 2.
[30] Romanos VIII, 38-39.
[31] Filipenses IV, 13.
[32] João XIII, 35.
[33] Salmo CXXXII, 1.
[34] Orações iniciais do ofício, cf. Salmo XCIV, 1.
[35] Salmo XCIII.
[36] Salmo LXX.
[37] Eclesiástico XXIV, 23.
[38] Salmo CXXXV, 23-24.
[39] Eclesiastes IV, 9.
[40] Lucas XVII, 10.
[41] Mateus X, 22.
[42] Sabedoria III, 6.
[43] Cf. João XX, 4.
[44] Cf. Salmo 6: 2.
[45] Cf. Salmo 37: 6-7.
[46] Cf. Salmo 101: 4-12.
[47] Salmo 79: 4.
[48] Cf. Lucas 1: 79.
[49] Cf. Salmo 78: 8.
[50] Salmo 66: 2.
[51] Isaías 49: 9.
[52] Cf. Romanos 8: 21.
[53] João 14.
[54] Mateus 8.
[55] Marcos 5.
[56] Salmo 9.
[57] Mateus 22.
[58] Isaías 22.
[59] Salmo 45.
[60] Salmo 123.
[61] Salmo 123.

[62] Salmo 88: 49.
[63] 29: 2-3.
[64] Mateus 9: 22.
[65] Cf. Lucas 7: 47.
[66] Mateus 25: 29.
[67] Cf. Salmo 38: 14.
[68] Salmo 15: 8.
[69] Eclesiastes 7: 36.
[70] Salmo 101: 5.
[71] Mateus 25: 41.
[72] 14: 11.
[73] Salmo 136: 4.
[74] 2 Coríntios 6: 14.
[75] Salmo 141.
[76] Cf. Mateus 8? 9.
[77] Apocalipse 21: 4.
[78] Salmo 145: 8.
[79] Ezequiel 33: 13.
[80] Lucas 14: 35.
[81] Salmo 101: 5.
[82] Eclesiastes 1: 22.
[83] Salmo 6: 8.
[84] Cf. Mateus 6: 14-15.
[85] Salmo 100: 5.
[86] Lucas 6: 37.
[87] Mateus 7: 2.
[88] Cf. Lucas 18: 14.
[89] Cf. Salmo 63: 7.

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