OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO
No final da Filocalia foram inseridos alguns opúsculos ou extratos de
obras de Padres traduzidos (provavelmente pelos próprios compiladores, Macário
e Nicodemo) em grego demótico, o grego moderno falado, com o objetivo de
torna-los acessíveis a todos os cristãos, em razão de sua utilidade. Alguns
destes textos já se encontram em um ou outro dos autores publicados; as
concordâncias encontrar-se-ão assinaladas.
Sobre as palavras
da prece divina
Interpretação do
Kyrie eleison
De São Simeão o
Novo Teólogo:
Discurso sobre a fé e o ensinamento
Sobre os três modos da prece
De são Gregório o
Sinaíta
Da vida de são
Máximo o Capsocalyvita
Da vida de são
Gregório de Tessalônica
SOBRE AS PALAVRAS DA
PRECE DIVINA
O “Discurso sobre as palavras da
prece divina” é o primeiro dos sete textos em língua demótica que aparecem como
o testamento da Filocalia, pois as dificuldades dos tempos pediam, para os
editores de 1782, uma interiorização e uma realização da vida monástica na
oração permanente de todos os cristãos. Este discurso, atribuído pela Filocalia
a um “santo anônimo”, é de fato a paráfrase de um texto das primeiras décadas
do século XV, devido a Marcos Eugênicos, arcebispo de Éfeso, morto em 1429. Ele
se segue naturalmente aos capítulos de Simeão de Tessalônica. Mas Simeão
apresentava e exortava, enquanto Marcos de Éfeso aprofunda e explica. Ele
esclarece que a “prece divina” – a prece do coração – tem sua origem na Sagrada
Escritura, que ela perpetua e realiza lembrando continuamente estes dois polos:
o nome e a graça de Deus. O próprio nome – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”
– nos foi confiado pelos três testemunhos-chave do Novo Testamento, Paulo, João
e Pedro. E o apelo à graça – “tenha piedade de mim” – nos foi transmitido pelo
cego que, no Evangelho, implora pela compaixão de Jesus. A prece do coração
integra assim os dados fundamentais da revelação evangélica (o Senhor é Jesus,
Jesus é o Cristo, o Cristo é o Filho de Deus) e estabelece o fiel, por meio da
piedade e a graça, no coração da redenção. Ela é assim a própria ortodoxia da
fé cristã. Ela explicita a natureza humana e a natureza divina de Cristo, ao
mesmo tempo que a união e a distinção das duas naturezas numa mesma hipóstase:
a resposta, pura e simples, lapidar e luminosa, a todas as heresias, e
sobretudo o fruto que a ascese hesiquiasta colhe e prova sobre aquilo que a
Filocalia chama de a “grande e bela árvore” da revelação bíblica.
De um santo anônimo
Discurso admirável
sobre as palavras da prece divina
“Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”.
Que poder tem a prece “Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”? E de quais graça ela cumula os
que a praticam? E a que estado de dignidade os conduz? Não nos é possível dizer
e revelar tais coisas, por que isto nos ultrapassa. Diremos apenas de onde vem
esta oração, e quem foram os primeiros a pronunciar suas palavras.
Esta oração tem sua origem na
Sagrada Escritura. E foram os três grandes apóstolos de Cristo, Paulo, João e
Pedro, que disseram as suas palavras. Foi deles que as recebemos, como uma
herança transmitida pelos Padres. Elas são oráculos divinos, revelações do
Espírito Santo, vozes de Deus. Com efeito, nós cremos que todos os ditos e
escritos dos divinos apóstolos que traziam em si o Espírito são palavras de
Cristo, que as disse por suas bocas. Pois nosso Senhor, no santo Evangelho,
prometeu a eles que ele próprio, o Filho, o Pai e o Espírito Santo viriam fazer
neles sua morada[1], e
não apenas neles, os apóstolos, mas em todo cristão que observe seus
mandamentos.
Foi assim que o divino Paulo, que
foi considerado digno de ser elevado até o terceiro céu, disse do Senhor Jesus:
“Ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ se não for no Espírito Santo[2]”.
Ao afirmar que ninguém pode dizer este nome do Senhor Jesus fora do Espírito
Santo, o apóstolo Paulo revelou de maneira admirável que este nome é muito mais
alto do que todos os outros nomes, e que ele os domina: é por isso que é
impossível pronunciá-lo fora do Espírito Santo. Quanto a João o Teólogo, que
revelou como um trovão as coisas do Espírito e da teologia, ele tomou o final
das palavras de Paulo para delas fazer o início. Ele disse: “Todo espírito que
confessa Jesus Cristo vindo na carne é de Deus[3]”.
Ao afirmar que todo espírito que confessa o nome de Jesus Cristo é de Deus,
este apóstolo divino mostra com suas palavras que o nome e a confissão de Jesus
Cristo são da ordem da graça divina e espiritual, que esta não é uma coisa
simples e fortuita. Da mesma forma Pedro, o príncipe dos apóstolos, tomou o
final das palavras de João – ou seja, “Cristo” – e dela fez outro início. A
nosso Senhor que perguntou aos seus discípulos: “Quem vocês dizem que sou?”,
Pedro respondeu: “Você é o Cristo, o Filho de Deus[4]”,
palavras que Deus Pai lhe revelou do céu, como testemunha nosso Senhor no
Evangelho[5].
Considere como em suas palavras divinas
estes três santos apóstolos de Cristo se apoiam um no outro para formar um
círculo. Cada qual recebeu do outro as palavras divinas, de modo a colocar no
começo a palavra que o anterior havia colocado no final, e assim realizaram a
oração. Paulo disse “Senhor Jesus”, João disse “Jesus Cristo” e Pedro disse
“Cristo, Filho de Deus”. Existe aí um círculo admirável. O final “Filho de
Deus” se une ao começo “Senhor”. Pois é a mesma coisa dizer “Senhor” e “Filho
de Deus”, por que as duas coisas manifestam a divindade do Filho único de Deus.
É assim que os
bem-aventurados apóstolos nos ensinaram a dizer no Espírito Santo e a confessar
“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”. O fato de que eram três os torna dignos
de fé. Pois toda palavra deve ser assegurada e confirmada por três testemunhas[6].
Mesmo a ordem segundo a qual os
apóstolos disseram estas palavras não é sem razão, mas tem sua explicação. O
primeiro a dizê-las foi Paulo, depois João e enfim Pedro. A tradição mística da
prece “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” começou por Paulo, que foi o último
dos discípulos de Cristo, depois através de João ela chegou a Pedro, que foi o
primeiro, e nele ela se realizou. Ora, existe aí, penso eu, um sinal da ordem
segundo a qual nós progredimos para nos unir a Deus pela ação, a contemplação e
o amor. Pois Paulo significa a ação, como ele próprio disse: “Eu trabalhei mais
do que todos[7]”.
João representa a contemplação, como indica seu nome de Teólogo. E Pedro
representa o amor, como nosso Senhor testemunhou ao dizer-lhe: “Pedro, você me
ama? Apascenta minhas ovelhas[8]”.
Assim, aquele que se dedica à prece progride primeiro na virtude ativa, depois
se eleva da ação à contemplação e enfim adquire o amor de Cristo e se une a
ele.
Mas estas palavras divinas da
oração não significam apenas isso. Elas revelam igualmente a justa doutrina de
nossa fé e derrubam todas as heresias. Com efeito, “Senhor” manifesta a
natureza divina de Cristo e derruba a heresia dos que afirmam que ele foi
apenas um homem e que não é Deus. “Jesus” manifesta a natureza humana de Cristo
e derruba a heresia dos que dizem que ele é somente Deus e que ele não foi
homem, ou que ele foi homem apenas na aparência. “Cristo” manifesta as duas
naturezas, a divina e a humana, as duas numa só pessoas, numa só hipóstase, e
derruba a heresia dos que dizem que em Cristo existem duas hipóstases separadas
uma da outra. Por fim, “Filho de Deus” manifesta que, em Cristo, a natureza
divina, depois de se ter unido à natureza humana, não se confunde com ela, e
que, da mesma forma, a natureza humana não se confunde com a natureza divina.
“Filho de Deus” derruba assim a heresia dos que dizem que a natureza divina e a
natureza humana em Cristo se confundem e estão misturadas uma à outra. Essas
quatro palavras, que são palavras divinas e punhais espirituais, derrubam e
refutam dois pares de heresias que se opõem entre si na malícia e na divisão,
mas que se unem e concordam na impiedade.
Isto é o que nos transmitiram
nossos Padres, estes homens perfeitos que possuíam a sabedoria de Deus, que
traziam em si o Espírito, que imprimiram em seus corações e amaram
desmesuradamente, como nos ensinaram os apóstolos, cada uma das palavras
divinas “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”, e, em especial, o nome dulcíssimo
de “Jesus”. Eles fizeram deste único nome uma prece perfeita e total.
Continuamente, durante toda sua vida, eles se esforçaram por se saciar da
doçura de Jesus. Eles sentiam todo o tempo fome e sede de Jesus, ainda que
estivessem cheios de alegria espiritual inefável, ainda que houvessem recebido
os carismas de Deus e estivessem doravante livres da carne e deste mundo, como
anjos terrestres ou homens celestes, tão grande era a altura da virtude à qual
se elevaram por meio deste doce nome de Jesus.
Entretanto, a nós, os noviços e
imperfeitos, eles ensinaram ainda a dizer: “Tenha piedade de mim”. Ou seja,
“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”. E isto para
permitir que conheçamos nossa medida e nosso estado, que saibamos que temos
necessidade do enorme e rico amor do Deus Santo e que somos como aquele cego de
que fala o Evangelho, e que, desejando ver a luz com seus olhos, clamou no
momento em que nosso Senhor passava, dizendo: “Jesus, tenha piedade de mim![9]”.
Da mesma forma, nós, que somos cegos na alma, pedimos a Deus que nos revele seu
amor e que nos abra os olhos da alma, para que possamos ver com o intelecto. É
por isso que nos foi ainda prescrito dizer: “tenha piedade de mim”.
Alguns, querendo colocar aí
também o amor ao próximo, dizem assim a oração: “Senhor Jesus Cristo, nosso
Deus, tenha piedade de nós”. Assim eles oram por todos os irmãos. Pois eles
sabem que o amor é a realização da Lei e dos Profetas[10],
que ele consiste numa virtude que contém em si todos os mandamentos e todas as
obras espirituais. Assim eles unem à sua prece o amor ao próximo. Eles pedem a
Deus que tenha piedade deles e de seus irmãos. Eles pedem assim sobre estes em
primeiro lugar o amor de Deus. Pois eles mencionam a Deus pensando nos outros.
Eles chamam nosso Deus para todos, e lhe pedem para dispensar a mesma piedade a
todos os irmãos. Enfim, o amor do Deus boníssimo vem regularmente a nós quando
este vê que mantemos a fé correta nos dogmas e a perfeição dos mandamentos nas
obras, estas duas coisas que contém em si o curto verso da prece: “Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de nós”.
Se quisermos ainda examinar o
tempo em que foram pronunciados originalmente estes nomes divinos “Senhor Jesus
Cristo”, encontrá-los-emos novamente na mesma ordem em que os dizemos. Com
efeito, dizemos primeiro “Senhor”, depois “Jesus” e enfim “Cristo”. Por toda
parte no Antigo Testamento, tanto antes como depois da Lei, o Filho e Verbo de
Deus é chamado de “Senhor”. No tempo de Ló, foi dito: “O Senhor fez chover o
fogo que veio do Senhor[11]”.
E nos Salmos Davi afirma: “O Senhor disse ao meu Senhor[12]”.
Também no Evangelho, no momento em que Gabriel anunciou à Mãe de Deus que o
Verbo de Deus iria se tornar homem, ele disse a Maria: “Você o chamará pelo
nome de Jesus[13]”.
Pois o Filho e Verbo de Deus, sendo Senhor, Mestre do universo e Deus, quis, em
sua bondade e misericórdia extremas, tornar-se homem para salvar o homem. E ele
foi chamado de Jesus, nome que quer dizer Salvador e Redentor do homem. Enfim,
“Cristo” manifesta a deificação da natureza humana que nosso Senhor tomou
quando se encarnou e se tornou homem. Antes de sua Paixão e morte, ele proibia
seus discípulos de chamá-lo de Cristo. Mas depois de sua Paixão e de sua
Ressurreição, foi com toda liberdade que o apóstolo Pedro, diante do povo
judeu, o chamou de Cristo, dizendo: “Que toda a casa de Israel saiba que Deus o
tornou ele próprio Senhor e Cristo[14]”.
Pois a natureza humana que o Filho e Verbo de Deus tomou recebeu a unção de sua
divindade e foi semelhante a Deus, a partir do momento em que Cristo foi
crucificado, ressuscitou dos mortos, subiu aos céus e sentou-se à direita do
Pai. Foi, portanto, depois da Ascenção, que chegou o tempo em que foi revelado
este nome de Cristo. Então os apóstolo anunciaram que Jesus era o Cristo, Filho
de Deus e Deus.
É assim que o chamamos em
primeiro lugar “Senhor”, depois “Jesus” e enfim “Cristo” e “Filho de Deus”, tal
como aparece na oração “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de
mim”, oração que, em sua sabedoria divina, nossos Padres receberam dos santos
apóstolos como uma herança ancestral, e que eles nos transmitiram. Nós mesmos,
tanto quanto podemos, dizemos as palavras desta prece, como colhemos as flores
de uma grande e bela árvore. Agora, onde se encontram os frutos que amadurecem
em si as palavras divinas, que outros o digam, aqueles que, com tempo e
experiência, progrediram nesta obra da oração, que provaram da doçura deste
fruto e que alcançaram a perfeição.
INTERPRETAÇÃO DO
KYRIE ELEISON
Sucedendo a dois textos
apologéticos sobre a prece do coração (uma simples apresentação e uma
explicação bíblica), esta breve interpretação anônima do “Kyrie eleison”
aparece sobretudo como uma advertência e uma defesa. Ela relembra as origens
bíblicas a apostólicas da prece do coração (em especial o “Kyrie eleison”, ou
“Senhor, tenha piedade” dos salmos), mas explica ainda que pedir a piedade do
Senhor não faz sentido a menos que saibamos com certeza e consciência o que
estamos invocando quando dizemos “Senhor”.
Esta observação toca num dos
pontos mais delicados da vida espiritual, já sublinhado no Evangelho: orar não
pode ser nem um hábito, nem uma ostentação. Orar implica sempre uma dupla
consciência que a um tempo quebranta e abre o coração: a consciência da perdição
do homem e a consciência da compaixão do Senhor, sendo que a piedade aqui não é
outra coisa do que, como é afirmado, “a graça do Espírito Santo”, ou seja, o
dom da deificação. Vale dizer, este é o alcance máximo da prece do coração, e
isto mostra a importância deste pequeno texto
De um santo anônimo
1. A oração “Senhor Jesus Cristo,
tenha piedade de mim”, e mais resumidamente “Senhor, tenha piedade” (“Kyrie eleison”) foi dada aos cristãos
desde a época dos apóstolos, e lhes foi prescrito que a dissessem
continuamente. Mas o que significa este “Kyrie
eleison”? Muito poucos o sabem hoje em dia. É por pura perda de tempo, ou
mesmo por nada, que se diz “Senhor, tenha piedade”. Não se recebe assim a
piedade de Deus, porque não se sabe o que está sendo pedido. É preciso saber
que o Filho e Verbo de Deus se tornou Senhor e Mestre da natureza humana a
partir do momento em que se encarnou, ou em que ele se fez homem, quando ele
sofreu tormentos, quando foi crucificado e quando, espalhando seu santíssimo sangue,
resgatou os homens das mãos do diabo. Pois antes de se encarnar, ele era o
Senhor de todas as criaturas visíveis e invisíveis: ele era seu Criador. Quanto
aos homens e aos demônios que não quiseram de boa vontade tê-lo como Senhor e
Mestre, o Senhor do mundo inteiro não se tornou seu Senhor. Pois o Deus
boníssimo, tendo feito os anjos e os homens livres e tendo lhes dado a razão
para que eles tivessem o conhecimento e o discernimento, não quis, sendo justo
e verdadeiro, lhes retirar a liberdade nem dominá-los à força e contra sua
vontade. Mas ele é o Senhor e Mestre apenas dos que querem se submeter ao poder
e ao governo de Deus. Quanto aos que não o querem, ele os deixa fazer sua
vontade, pois eles são livres.
2. Assim é que quando Adão,
seduzido pelo diabo rebelde, se revoltou contra Deus e se recusou a obedecer
seu mandamento, Deus lhe deu a liberdade e não quis dominá-lo à força. Mas o
diabo invejoso, que havia enganado a Adão no começo, não parou de enganá-lo até
conseguir torná-lo semelhante em irracionalidade aos animais desprovidos de
inteligência, e ele passou a viver daí em diante como um animal privado de
razão e de intelecto. Deus, em sua grande compaixão, teve por fim piedade dele.
Ele inclinou os céus e desceu à terra, e se fez homem para o homem. Com seu sangue puríssimo ele o libertou
da escravidão do pecado. Pelo santo Evangelho, ele o conduziu pelo caminho de
uma vida agradável a Deus e, segundo João o Teólogo, ele nos deu o poder de nos
tornarmos filhos de Deus. Ele nos regenerou pelo batismo divino. Ele nos tornou
novas criaturas. Pelos sacramentos, ele alimentou a cada dia e vivificou nossas
almas. Numa palavra, em sua extrema sabedoria, ele abriu a via que o tornou
para sempre inseparável de nós, como nós dele, para que o diabo não mais
tivesse lugar em nós.
3. Aqueles cristãos que, depois
de receber de Cristo seu Mestre tantas graças e tantas benesses, se deixaram
novamente enganar pelo diabo, que se afastaram de Deus por causa do mundo e da
carne e que foram dominados pelo diabo cuja vontade cumprem, mas que não são
insensíveis a ponto de não perceberem o mal que sofreram, que compreendem sua
falta e reconhecem a escravidão em que se encontram, mas que não podem sozinhos
se libertar e pedem socorro a Deus, estes dizem “Senhor, tenha piedade”, para
que o Senhor, em seu grande amor, os cumule com sua misericórdia e compaixão,
para recebê-los como filhos pródigos, para dar-lhes outra vez a graça divina, a
fim de que sejam libertados do pecado pela graça, para que se afastem dos
demônios, para que recuperem sua liberdade, e que assim possam viver agradando
a Deus e cumprindo seus mandamentos.
Estes cristãos, que dizem Kyrie eleison
com tal finalidade querem com isto descobrir a compaixão do Deus boníssimo,
querem receber sua graça, a fim de se libertarem do pecado e ser salvos.
4. Mas os que não têm a
consciência total disto que dissemos não sabem, para sua infelicidade, que
estão subjugados às vontades da carne e às coisas deste mundo e não têm tempo
para pensar na escravidão em que se encontram. Este não é seu objetivo. E se
eles dizem Kyrie eleison é, acima de
tudo, pelo costume de dizê-lo. Como poderão eles receber a compaixão de Deus,
uma compaixão tão maravilhosa e infinita? Melhor seria não receber a compaixão
de Deus, do que recebê-la e novamente a perder, pois então a falta será dupla,
como se colocassem uma pedra preciosa nas mãos de uma criança ou de alguém que
não soubesse seu valor. Se estes recebem a pedra e a perdem, é evidente que a
culpa não é deles, mas de quem a deu para eles.
5. Para melhor compreensão
daquilo que estamos dizendo, considere que aquele que é pobre e indigente neste
mundo e que deseja receber a esmola de um rico, vai ao seu encontro e diz:
“Tenha piedade de mim”, ou seja: “Tenha compaixão de minha pobreza e me dê algo
para viver”. Do mesmo modo, quem tem uma dívida e deseja que seu credor o
perdoe, vai à sua procura e lhe diz: “Tenha piedade de mim”, ou seja: “Tenha
compaixão de minha indigência e me perdoe a dívida que eu tenho para consigo”.
Também o que cometeu uma falta, se quer que o ofendido o perdoe, vai
encontrá-lo e lhe diz: “Tenha piedade de mim”, vale dizer: “Perdoe a ofensa que
lhe fiz”. Mas o pecador diz a Deus: “Tenha piedade de mim” e não sabe nem o que
diz, nem por que o diz, nem em que lhe será boa esta piedade que pede. É apenas
por costume que ele diz “Senhor, tenha piedade”. Assim é que ele não sabe nada.
A partir daí, como poderá Deus lhe conceder uma piedade que ele próprio
desconhece, que ele desdenha, que ele vai logo por a perder para pecar
novamente?
6. A piedade de Deus não é outra
coisa que a graça do Espírito Santo, esta graça que nós, os pecadores, devemos
pedir a Deus dizendo continuamente o Kyrie
eleison, ou seja: “Meu Senhor, tenha piedade de mim pecador, nesta miséria
em que me encontro, e receba-me de novo em sua graça. Dê-me um espírito de
poder para que eu tenha a força de resistir às tentações do diabo e aos maus
hábitos do pecado. Dê-me um espírito de sabedoria para que eu me torne sábio,
para que eu perceba a mim mesmo e me corrija. Dê-me um espírito de temor, para
que eu o reverencie e guarde seus mandamentos. Dê-me um espírito de amor, para
que eu o ame e não mais me afaste de você. Dê-me um espírito de paz, para que
eu mantenha minha alma tranquila, para que eu recolha todos os meus pensamentos
e permaneça calmo e sereno. Dê-me um espírito de pureza, para que eu me guarde
puro de toda mancha. Dê-me um espírito de doçura, para que eu seja afável com
meus irmãos cristãos e me abstenha de toda cólera. Dê-me um espírito de humildade,
para que eu não me veja nas alturas e não me torne orgulhoso”.
7. Aquele que conhece a
necessidade que tem de todas essas coisas e que as pede a Deus em seu grande
amor, dizendo Kyrie eleison, este
receberá certamente aquilo que pede e obterá do Senhor sua piedade e sua divina
graça. Mas aquele que nada sabe daquilo que dissemos, e que diz Kyrie eleison apenas por costume, não é
possível que receba a piedade de Deus. Pois no começo ele recebeu de Deus
muitas graças, mas não as reconheceu e não agradeceu a Deus por tê-las
concedido. Ele recebeu a piedade de Deus quando foi criado, quando foi feito
homem; ele recebeu a piedade de Deus quando foi recriado pelo santo batismo,
quando se tornou cristão ortodoxo. Ele recebeu a piedade de Deus quando foi
libertado de tantos perigos da alma e do corpo que experimentou durante sua
vida. Ele recebeu a piedade de Deus todas as vezes que lhe foi concedido
comungar os santos sacramentos. Ele recebeu a piedade de Deus todas as vezes em
que pecou contra Deus e o feriu com suas faltas, e no entanto não foi destruído
nem castigado como merecia. Ele recebeu a piedade de Deus quando, de um modo ou
de outro, foi beneficiado pela graça divina sem que a tenha reconhecido. Ele
esqueceu tudo isso e não se ligou na sua salvação. Assim, como poderá este
cristão receber a piedade de Deus, uma vez que ele não o sente, não reconhece
esta graça que recebeu de Deus como dissemos, e que ele não sabe o que diz,
dizendo Kyrie eleison sem objetivo
nem finalidade, apenas pela força do hábito?
DISCURSO SOBRE A FÉ E O ENSINAMENTO
Situado no centro da demonstração e da exortação finais dos editores
da Filocalia, este “Discurso sobre a fé e o ensinamento” de Simeão o Novo
Teólogo é uma transcrição de sua Catequese XXII, parcial e parafraseada, embora
fiel quanto à essência. Simeão coloca nos lábios de uma terceira pessoa, ao
modo de são Paulo, a confissão de uma experiência pessoal da luz incriada, este
êxtase que, com pudor e prudência, aproximam e selam a maior parte dos textos
da antologia, em especial os últimos, e que Simeão apresenta aqui em preto no
branco, na linha reta das teofanias bíblicas: “De todas as partes ele não via
senão a luz, diz ele. Ele esqueceu do mundo inteiro. Ele era um com a luz
divina, e lhe parecia que ele próprio havia se tornado luz”.
Toda a mensagem filocálica se abre e se coloca nesta atestação extrema
dos vetores e das visadas de uma fé que não está apenas projetada num devir
absoluto, nem apenas mergulhada nos abismos da interioridade, mas vivida ao
mesmo tempo na atualidade da história e a vinda próxima. Na fina ponta
incandescente da mensagem, a ascese hesiquiasta (para Simeão, o primado da
consciência, a necessidade do pai espiritual, a referência à tradição dos
monges) não conduz senão a manter no fogo da fé e a levar ao estado de graça, à
força de orações, independentemente de lugar, de tempo e de situações, o
primeiro mandamento: amar a Deus, totalmente.
O “Discurso sobre os três modos da fé”, que a Filocalia grega lhe
atribui igualmente, seria na verdade obra de Nicéforo o Solitário, e deveria
assim datar do final do século XIV. Existe aí, de qualquer modo, uma última
colocação, onde encontramos apontados os princípios e os desfechos da longa
experiência do estado de oração, tal como aparece destilada no florilégio.
Importante texto, portanto, que mistura a apologia e a análise crítica, e que
coloca a oração em seu verdadeiro lugar: um encaminhamento atento entre o
estado de perdição e o estado de graça.
Pois ninguém seria capaz de orar em verdade sem estar atento ao
conteúdo e ao alcance da oração. Donde, por toda a tradição hesiquiasta, a
estreita conexão, que de início relembra o Discurso, entre prece e atenção
(favorecida em grego pela similitude das palavras proseuché e prosoché). A
atenção precede e permite a oração, que se desenvolve segundo três modos
complementares. O primeiro prepara o segundo, e este o terceiro, formando os
três modos um conjunto indissociável. Se os dois primeiros se fecham sobre si
mesmos e deixam de visar o terceiro, eles conduzem à perdição.
O primeiro modo é a manifestação da graça. A compreensão das
Escrituras, o desejo do amor de Deus, tudo aí é manifesto. Mas este não é senão
um trampolim visível para o estado de graça. Se ele tomar a si próprio como o
estado de graça, ele arrisca perder-se na ilusão.
O segundo modo é a guarda dos sentidos. É o combate que o intelecto em
oração conduz para se libertar das coisas do mundo. Mas o combate não pode ser
um fim em si. Por si só ele não é capaz de realizar a vida espiritual. A
suficiência do asceta aparece aqui como um impasse. O combate, conforme está
dito, arrisca então tornar-se mera vaidade.
O terceiro modo é a guarda do coração, que permite ao intelecto que
ora “ver este espaço que existe no interior do coração, e ver a si mesmo
inteiramente luminoso”. O monge cessa de considerar que ele está em primeira
linha na busca da graça e do combate espiritual. Ele se confia a um pai
espiritual como se fosse a Deus, e em tudo implora o socorro. Uma única
obrigação: “Você deve guardar sua consciência pura, para Deus, para seu pai
espiritual, para os outros homens, para as coisas do mundo”. O modo final
permite assim aos dois primeiros saírem humildemente de si mesmos, pela
absorção pura e simples de toda ostentação e de todo combate no espaço do
coração: a própria liberdade do estado de graça.
SIMEÃO O NOVO
TEÓLOGO
1
DISCURSO SOBRE A FÉ E O ENSINAMENTO
Para aqueles que dizem que não é possível a quem vive no mundo
submetido às suas necessidades, alcançar a perfeição da virtude. Para começar,
um relato muito útil.
Irmãos e Padres bem-amados, é coisa muito boa, e útil à alma, pregar
comumente a todos a grande e infinita piedade de nosso Deus boníssimo e cheio
de compaixão, e revelar a todos os nossos irmãos cristãos o oceano insondável
da misericórdia e da bondade que Deus tem para conosco. Ora, eu, como meus
irmãos podem ver e o sabem muito bem, nunca tive como ações minhas, nem jejuns
numerosos e excessivos, nem vigílias, não dormi no chão duro, jamais
mortifiquei meu corpo além da conta, mas conheci minha indignidade, refleti
sobre meus pecados, condenei a mim mesmo, humilhei-me, e o Senhor
misericordioso e boníssimo me salvou, como disse o divino Davi: “Eu me
humilhei, e ele me salvou[15]”.
Numa palavra, não fiz mais do que acreditar nas palavras de Deus, e o Senhor
meu Deus me recebeu com esta fé. Pois quem adquire a humildade encontra diante
de si muitos obstáculos. Mas a quem descobre a fé e crê nas palavras de Deus
nada é capaz de se opor. Se, com efeito, desejamos com toda nossa alma
encontrar a fé, depressa e sem pena a encontraremos, uma vez que a fé é uma
graça do Deus boníssimo, que a coloca naturalmente à nossa disposição, apenas a
queiramos possuir. É por isso que vemos que os bárbaros e os pagãos possuem uma
fé natural, cada um crendo nas palavras do outro e tendo mútua confiança em seu
meio.
Mas, para provar a vocês o que eu digo, com fatos e não apenas com
palavras, escutem este relato:
Um homem chamado Jorge, na flor da idade – por volta de uns vinte anos
– morava em Constantinopla, em nosso tempo. Ele era muito bonito, e seus
movimentos eram tão estudados, que muitos levantavam suspeitas a seu respeito,
principalmente aqueles que tinham por hábito não ver senão o exterior das
pessoas e que, sem conhecer os segredos de cada um, condenam e julgam sem
consideração aos demais. Este jovem soube de um monge que morava em um mosteiro
de Constantinopla. Tendo revelado a ele todos os segredos de seu coração, ele
acrescentou que desejava a salvação de sua alma e que tinha um grande desejo de
abandonar o mundo e se tornar monge. O venerável ancião louvou o seu desejo,
deu-lhe os conselhos necessários e confiou a ele o livro de são Marcos o Asceta[16],
para que nele pudesse ler o que o santo dizia da lei espiritual. O jovem recebeu
o livro com tanto amor e piedade como se viesse do próprio Deus, com a
confiança e a esperança de extrair grandes benefícios dali. Voltando à sua
casa, pôs-se a ler o resto do dia com muita atenção. Depois releu,
piedosamente, umas três ou quatro vezes. E, como esperava, sentiu-se
grandemente confortado. Mas ele reteve principalmente três capítulos, que
deixou impressos em seu coração, e tomou a decisão de coloca-los em prática e
observá-los atentamente. O primeiro capítulo dizia o seguinte: “Se você busca a
cura de sua alma, cuide para que sua consciência não tenha do que acusá-lo.
Tudo o que ela lhe mandar fazer faça, e você obterá disto um grande benefício[17]”.
O segundo dizia: “Quem procura adquirir os carismas do Espírito Santo antes de
praticar os mandamentos de Deus é semelhante ao escravo que, no mesmo instante
em que é adquirido por seu senhor, reclama sua liberdade[18]”.
O terceiro dizia: “Quem reza apenas com a boca e ainda não adquiriu o
conhecimento espiritual nem sabe orar com seu intelecto é semelhante ao cego
que clamava: ‘Filho de Davi, tenha piedade de mim[19]’.
Mas quem adquiriu o conhecimento espiritual, que ora com seu intelecto e que
abriu os olhos de sua alma, é semelhante a este mesmo cego depois que o Senhor
o curou de sua cegueira: ele recebeu a luz em seus olhos e viu o Senhor, de
maneira que já não diz ‘Filho de Davi’, mas ‘Filho de Deus’, e ele o adora como
convém[20]”.
Estes três capítulos agradaram muito ao jovem. Ele ficou maravilhado,
e recebeu uma certeza plena em sua alma, e acreditou sem sombra de dúvida que
ele obteria um grande benefício em obedecer à sua consciência, como dizia são
Marcos, que ele desfrutaria dos carismas do Espírito Santo e de sua energia, se
ele observasse os mandamentos de Deus, e que, enfim, pela graça do Espírito
Santo, ele se tornaria digno de abrir os olhos da alma e de ver o Senhor com
olhos de seu intelecto. Ele esperava contemplar esta indizível beleza do Senhor
e foi ferido de tanto amor quanto desejava. Entretanto, ele não fez nada além,
como me afirmou mais tarde sob juramento, do que rezar e se prosternar toda
noite, antes de ir para cama dormir, conforme o que lhe havia sido recomendado
pelo ancião.
Algum tempo depois, numa noite em que ele seguia a regra ditada pelo
ancião e sempre atento à sua consciência, ela lhe ordenou que continuasse a
rezar e a se prosternar, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”,
por tanto tempo quanto pudesse. De bom coração ele obedeceu e logo se pôs, sem
a menor hesitação, a fazer o que lhe ordenava sua consciência, persuadido de
que era o próprio Deus quem lhe pedia que agisse assim. A partir daí, ele nunca
mais se deitou para dormir sem primeiro fazer o que lhe ordenara sua
consciência. E, como ele não cessava de escutá-la e ela não cessava de lhe
pedir sempre mais, em pouco tempo sua oração da noite se alongou grandemente.
De fato, durante o dia ele dirigia a casa de um patrício, ocupando-se de muitos
negócios, ia cotidianamente ao Palácio, e quase não lhe restava tempo para
orar. Mas à noite, antes de se recolher, ele orava como dissemos. Sem coração
se enchia de calor e compunção, e as lágrimas escorriam de seus olhos. Ele
multiplicava as prosternações e, gemendo e chorando, rezava também à Mãe de
Deus. Parecia-lhe que o Senhor estava em pessoa diante dele, e ele se
prosternava a seus pés e lhe pedia que tivesse compaixão de si, como o cego de
que fala o Evangelho, e que desse luz aos olhos de sua alma. Assim, a prece que
ele fazia alongava-se cada dia mais. Enquanto rezava, ele se mantinha reto como
uma coluna, sem mexer os pés ou qualquer membro de seu corpo e sem voltar os
olhos para olhar aqui ou ali, e permanecia imóvel, com grande temor e tremor.
Assim, numa noite em que ele orava e dizia em seu intelecto: “Deus,
tenha compaixão de mim, pecador”, um esplendor divino brilhou subitamente sobre
ele e encheu de luz o quarto. O jovem, extasiado, perdeu a consciência de si
mesmo e até esqueceu que estava em uma casa. Pois de todos os lados ele não via
senão luz e já não sabia se tinha os pés no chão ou se planava no ar, e em seu
intelecto não havia a menor preocupação com seu corpo. Ele esqueceu o mundo
inteiro. Ele era uma coisa só com a luz divina, e parecia-lhe ter ele próprio
se tornado luz. Ele encheu-se de lágrimas e de uma alegria indizíveis. Então
seu intelecto se elevou aos céus e lá ele viu uma luz ainda mais radiante e,
junto a esta luz, apareceu-lhe o santo ancião que lhe havia dado o livro do
abade Marcos e a regra.
Quando eu ouvi o relato do jovem, eu pensei que a intercessão do
ancião foi de um grande auxílio para ele, e que deste modo a providência de
Deus lhe tinha mostrado em que altura de virtude se encontrava este santo,
permitindo a ele vê-lo junto a tamanha luz.
Passada a contemplação o jovem voltou a si, cheio de alegria e
maravilhado. Ele chorou do fundo de seu coração e suas lágrimas foram
acompanhadas de uma doçura extrema. Finalmente ele caiu sobre seu leito, e no
mesmo instante o galo cantou. Pouco depois, as igrejas soaram as matinais, e
ele se levantou para salmodiar conforme seu costume. Durante toda a noite ele
não havia dormido, nem sequer cochilado um pouco.
Eis o que aconteceu ao jovem. Como ele próprio me afirmou, ele não fez
nada além daquilo que vocês ouviram. Simplesmente – e foi por isto que lhe foi
concedida esta contemplação – ele teve uma fé e uma esperança resolutas. E que
ninguém diga que ele fez isto para tentar uma experiência, pois conforme me
relatou isto jamais lhe passou pela cabeça. Ele não teve mais do que a
resolução de sua fé. Ele apenas rejeitou de seu pensamento toda ideia relativa
à carne e ao mundo, e tomou tanto cuidado em guardar sua consciência e de
seguir bem aquilo que ela lhe dizia, que estava como que insensível a todas as
coisas desta vida. Comer e beber lhe eram indiferentes, e muitas vezes ele permanecia
em jejum.
Entenderam, irmãos bem-amados, o que a fé pode fazer, e o poder que
ela tem quando é confirmada pelas obras? Compreenderam que nossa juventude não
nos prejudica, e que nossa velhice não nos adianta se nos faltar o temor a
Deus? Aprenderam agora que nem o mundo, nem a vida na cidade nos impedem de
praticar os mandamentos de Deus se estivermos atentos, e que a anacorese e o
deserto de nada servem se somos preguiçosos e negligentes? Todos nós ouvimos
falar de Davi que, em meio às suas ocupações reais, conservava seu intelecto
consagrado a Deus; nós nos admiramos e dizemos que só houve um Davi, que nunca
houve outro? E eis que naquele jovem existiu mais do que um Davi. Pois Davi
havia recebido o testemunho do próprio Deus, foi ungido profeta e rei e foi
cumulado da graça do Espírito Santo. Se, depois de ter faltado com Deus, de ter
perdido a graça do Espírito Santo e a dignidade de profeta, e de ter se
distanciado da presença de Deus, ele retomou sua consciência, lembrou-se dos
bens que teve e que perdeu, e outra vez buscou recuperá-los, o que há nisto de
admirável? Mas que um jovem de vinte anos totalmente ligado às coisas
passageiras deste mundo, sem que seu intelecto jamais tenha pensado em nada
mais elevado do que estas coisas, que com muito custo entendeu o pouco que lhe
disse o ancião e leu os três capítulos do abade Marcos, tenha podido acreditar
imediatamente e sem hesitação, pondo-se ao trabalho com a esperança de que
aquilo permitiria ao seu intelecto elevar-se até o céu, que ele receberia para
si a compaixão e a intercessão da Mãe de Deus, que assim ele iria se
reconciliar com Deus, a ponto deste lhe enviar do céu a iluminação e a graça do
Espírito Santo, permitindo-lhe atingir o céu e desfrutar desta luz que muitos
desejaram e poucos descobriram, isto sim é admirável e digno de louvor.
Foi assim que este jovem, que, durante muitos anos, não havia jejuado,
nem velado, nem travado os combates da ascese, nem dormido sobre o chão duro,
nem levado o cilício, que não se tornou monge, que não havia deixado o mundo,
conseguiu se tornar, velando um pouco e orando um pouco, anjo terrestre e homem
celeste, homem na realidade sensível e incorpóreo na realidade inteligível,
próximo e inatingível, visto por todos mas a sós com o Deus único e onisciente.
Foi-lhe dado ver esta dulcíssima luz do sol inteligível da justiça. E
merecidamente. Pois o amor a o desejo que ele tinha por Deus o fizeram deixar o
mundo em espírito, permitiram a ele esquecer a carne e todas as coisas vãs
desta vida, e o ligaram inteiramente a Deus. Ele se tornou inteiramente
espiritual, inteiramente luz. Ele conheceu esta contemplação e esta alegria,
mesmo vivendo na cidade, mesmo passando a maior parte do tempo no palácio real,
com seus encargos senhoriais e múltiplos servidores, sempre ocupado com suas
tarefas.
Mas já dissemos o bastante, tanto para louvar a este jovem quanto para
engajá-los em seguir seu amor e imitá-lo, para que se tornem dignos de receber
de Deus semelhante graça. Ou vocês preferem que eu lhes diga coisas ainda
maiores? Mas o que existe de maior do que o temor a Deus, como dizia Gregório o
Teólogo[21],
uma vez que “o começo da sabedoria é o temor a Deus[22]”?
Pois aonde está o temor a Deus, ali está a guarda dos mandamentos; onde está a
guarda dos mandamentos está a purificação da carne, que é uma nuvem que cobre a
alma e a impede de ver em sua pureza o esplendor da luz divina; aonde está a
purificação da carne está o esplendor divino; e onde está o esplendor divino,
aí estará o cumprimento do desejo de Deus. Ora, aonde estiver o esplendor
divino e a iluminação do Espírito Santo estará o fim infinito de toda virtude.
Quem alcançou este fim chegou até o limite do sensível e penetrou no
conhecimento do espiritual.
Tais são, irmãos, as maravilhas de Deus. É assim que Deus manifesta
seus santos que se escondem, ou bem para que outros os imitem e mudem sua
condita, ou bem para que não tenham desculpa, caso não os imitem. Pois aqueles
que vivem no meio da confusão, se se conduzirem como se deve, serão salvos e
receberão de Deus grandes bens, apenas por sua fé. Assim, tenham piedade de
suas almas, e confiem a si mesmos ao Senhor e às suas palavras de todo o
coração. Tenham aversão e desprezem as coisas do mundo, mentirosas e
passageiras. Caminhem em direção a Deus e agarrem-se a ele[23].
Pois, sem Deus, nada existe no mundo. As coisas são nada, se Deus falta.
É por isso que eu choro, lamento-me e me aflijo quando penso que temos
um mestre generoso que nos a ponto de nos conceder as graças que vimos se
mostrarmos que temos fé em suas palavras e em suas promessas, enquanto que nós,
como animais irracionais, preferimos a terra e as coisas corruptíveis que, em
sua misericórdia, ele nos dá em abundância para as necessidades do corpo, a fim
de que este utilize moderadamente o necessário à sua vida e que a alma não seja
entravada, mas que faça sua própria busca e se conduza como prescrito, vivendo
do alimento inteligível da graça do Espírito Santo.
É para isto que o homem foi criado: para encontrar nas coisas do mundo
uma razão para glorificar a Deus que lhe deu tudo, para conhecer Aquele que lhe
manifesta suas benfeitorias e sua benevolência, para deseja-lo, render-lhe
graças em palavras e atos, para ser considerado digno de receber dele outros
bens ainda maiores na eternidade. Mas nós nem suspeitamos os bens futuros,
ligados que estamos apenas aos bens presentes, sem nenhuma atenção ou
reconhecimento por Aquele que no-los deu. Somos assim semelhantes aos demônios,
ou mesmo piores, para dizer a verdade, e é por isso que merecemos ser castigados
por eles. Pois fomos cumulados das maiores benfeitorias desde que nos tornamos
cristãos, que recebemos tantos mistérios e tantos carismas, que cremos em um só
Deus que se fez homem por nós, que sofreu tantos tormentos e morreu finalmente
na cruz para nos libertar dos erros do diabo e do pecado. Ora, em tudo isso
cremos por palavras, mas negamos com nossas obras. Não é o nome de Cristo
anunciado todos os dias em toda parte, nas cidades, nas vilas, nos mosteiros e
nos desertos? Entretanto, se quiserem, examinem de que modo os cristãos
aprendem a guardar seus mandamentos: com dificuldade encontrarão um que seja
verdadeiramente cristão em palavras e obras. Não disse o Senhor no Evangelho:
“Quem crê em mim fará também as obras que eu faço, e ainda maiores[24]”?
Mas quem, hoje em dia, ousará dizer: “Eu faço as obras de Cristo, e nele creio
com uma fé reta”? Vejam, irmãos, que arriscamos ser considerados sem fé no dia
terrível do Juízo, e sermos castigados mais duramente do que aqueles que não
conhecem a Cristo e não creem nele. Pois então será preciso, ou que sejamos
condenados como incrédulos, ou que Cristo seja convencido com nossas mentiras,
o que é impossível.
Escrevi isso, irmãos, não para interditar aos cristãos a anacorese e a
hesíquia, dando preferência à vida no mundo – longe disto! – mas para fazer
saber a todos os que lerem este relato que aquele que quiser e desejar fazer o
bem com toda sua alma e todo seu coração, receberá do Senhor poder fazê-lo em
qualquer lugar e será cumulado de carismas espirituais e de contemplações
divinas, como o jovem que conheci, que foi meu amigo e me contou o que escrevi.
É por isso que eu lhes peço, meus irmãos em Cristo, que tenhamos nós também em
nossos corações o desejo de fazer o bem e que nos esforcemos por cumprir os
mandamentos de Deus, na resolução da fé e da esperança. Nosso Senhor é fiel e
não mente[25].
Nossos rostos não serão confundidos[26].
Estejamos certos de que podemos fazer o bem aonde quer que estejamos, nas
cidades, vilas, mosteiros ou desertos. Pois, em sua bondade e segundo sua
promessa, Deus abre as portas de seu Reino a qualquer um que não cesse de bater[27],
e concede graça do Espírito Santo a quem pedir[28].
Não é possível que quem procura com toda sua alma não encontre[29]
a riqueza dos carismas de Deus. A ele a glória, por todos os séculos dos
séculos. Amém.
SIMEÃO O NOVO
TEÓLOGO
2
SOBRE OS TRÊS MODOS DA PRECE
Existem três modos de atenção e de oração, por meio dos quais ou a
alma se eleva e progride, ou tomba e se perde. Se ela utilizar estes três modos
no tempo oportuno e como se deve, ele progride; se usar desconsiderada e
inoportunamente, ela cai. A atenção deve estar inseparavelmente ligada à
oração, como o corpo está inseparavelmente ligado à alma. A atenção deve ir
adiante e aguardar os inimigos como uma sentinela. É ela que deve em primeiro
lugar conhecer o pecado e se opor aos maus pensamentos que penetram na alma.
Então chega a oração, que destrói e faz perecer no mesmo instante todos esses
maus pensamentos, contra os quais a atenção lutou previamente. Pois a oração
não pode matá-los sozinha. Ora, é deste combate da atenção e da prece que
dependem a vida e a morte da alma. Pois se por meio da atenção mantivermos pura
a prece, progrediremos. Mas se negligenciarmos de guardar a pureza da prece, se
não velarmos por ela, se a deixarmos manchada pelos maus pensamentos, teremos
sido inúteis e não progrediremos nada.
Existem, portanto, três modos de atenção e de oração. Diremos agora
quais são as propriedades de cada qual. Assim, aquele que ama sua salvação
poderá escolher o melhor e não o pior.
Do primeiro modo de atenção e oração
São as seguintes as propriedades do primeiro modo. Quando alguém se
mantém em oração, eleva ao céu seus braços, suas mãos e seu intelecto.
Representa para si mesmo pensamentos divinos, os bens celestes, as ordens dos
anjos e as moradas dos santos. Reúne e colhe em seu intelecto tudo o que
compreendeu das divinas Escrituras. Assim, ele conduz sua alma a amar e desejar
a Deus. Às vezes e exulta, às vezes chora. Mas então seu coração se orgulha,
sem que ele o perceba. Parece-lhe que o que faz vem da graça divina, para
consolá-lo, e ele pede a Deus que o torne sempre digno de agir como o faz
agora. Esta é a marca do erro. Pois o bem não é bem quando não é feito no bom
caminho e da maneira correta. Ainda que vivesse numa extrema hesíquia, seria
impossível a este homem não perder seu bom senso e enlouquecer. E mesmo que não
chegue a tanto, ele não alcançará o conhecimento, nem será capaz de manter em
si as virtudes da impassibilidade. É assim que muitos se perderam, por verem
uma luz e um brilho com os olhos de seu corpo, por sentirem um perfume com seu
olfato, por terem ouvido vozes com seus ouvidos, ou por terem experimentado
outras coisas desta ordem. Alguns foram possuídos por demônios, outros vagaram
de lugar em lugar, fora de si. Outros acolheram em si as contrafações do
demônio: ele lhes apareceu como um anjo de luz e assim eles se desviaram do
caminho tornando-se incorrigíveis, jamais ouvindo os conselhos de seus irmãos.
Outros foram levados pelo diabo a se matar: atiraram-se de precipícios,
enforcaram-se. Quem poderia descrever todas as ilusões por meios das quais o
diabo os faz se perderem? É quase impossível.
Mas depois do que dissemos qualquer homem sensato pode compreender os
danos a que se expõe adotando este primeiro modo de atenção e prece. E, mesmo
que aconteça a alguém que utiliza este modo não sofrer nenhum mal, por se achar
em companhia de outros irmãos (pois são principalmente os anacoretas que
conhecem estes males), ainda assim, por toda a sua vida, ele não progredirá.
Do segundo modo
É o seguinte o segundo modo de atenção e oração. Quando alguém recolhe
seu intelecto em si mesmo, separando-o do sensível, quando guarda seus sentidos
e reúne todos os seus pensamentos para que eles não se dirijam às coisas vãs
deste mundo, quando num momento examina sua consciência e em outro se mantém
atento às palavras da oração, quando, em determinados momentos ele corre atrás
dos pensamentos que o diabo capturou e que o conduzem ao mal e à vaidade, e em
outros, depois de ser dominado e vencido pela paixão, volta a si, é impossível
que este homem, que tem em si o combate, esteja em paz, ou que encontre tempo
para trabalhar pelas virtudes e receba a coroa da justiça[30].
Pois ele é semelhante a alguém que combate à noite, na escuridão. Ele ouve as
vozes e recebe os golpes, mas não consegue ver claramente quem são, nem de onde
vêm os golpes, como e porque eles o atingem, pois está devastado pelas trevas
de sua inteligência e os tormentos de seus pensamentos. É impossível a ele
livrar-se de seus inimigos, os demônios que o ferem. O infeliz pena em vão e
perde seu salário, pois está dominado pela vaidade. Ele não compreende. Pensa
estar atento. Muitas vezes, em seu orgulho, ele despreza e acusa os outros. Ele
imagina que pode conduzi-los e se tornar seu pastor. Ele é semelhante ao cego
que pretende conduzir os outros cegos[31].
É preciso a quem quiser ser salvo, que saiba o prejuízo que este
segundo modo pode causar à alma, e que preste muita atenção. Mesmo assim, este
segundo modo é melhor do que o primeiro, assim como uma noite enluarada é
melhor do que uma noite escura.
Do terceiro modo
O terceiro modo é verdadeiramente algo paradoxal e difícil de
explicar. Não apenas os que não o conhecem têm dificuldade em entendê-lo, como
lhes parece coisa impossível. Eles não creem que tal coisa possa existir, pois,
hoje em dia, este modo não é utilizado por muitos, mas por pouquíssimos.
Parece-me que tamanho bem nos deixou, tanto quanto a obediência. Pois é a
obediência ao pai espiritual que permite a cada um não se preocupar com nada,
uma vez que seus cuidados são remetidos a seu pai, que ele se distancia das
tendências deste mundo e que ele se torna um operário zeloso e diligente deste
modo. E é preciso que ele encontre um mestre e um pai espiritual verdadeiro,
livre de todo erro. Pois a quem se consagrou a Deus e a seu pai espiritual com
uma verdadeira obediência, a quem não vive sua própria vida nem mais faz sua
própria vontade, estando morto para as tendências do mundo e para seu próprio
corpo, que coisa passageira poderá vencer e dominar? Que cuidados ou
inquietações poderá ter este homem? Assim, é por meio deste modo e pela
obediência que se dissipam e desaparecem todos os artifícios dos demônios e todas
as armadilhas que eles tramam para arrastar o intelecto em toda espécie de
pensamentos. É assim que o intelecto deste homem está livre de tudo. É com
total liberdade que ele examina os pensamentos que lhe são sugeridos pelo
demônio, com real aptidão que ele os expulsa, e com um coração puro que ele
oferece suas orações a Deus. Este é o começo da verdadeira via. Os que não se
consagram a este início penam em vão, sem que o saibam.
Ora, o começo deste modo não consiste em olhar para o alto, erguer as
mãos, por seu intelecto nos céus e implorar por socorro. Estas, como dissemos,
são as marcas do primeiro modo, características da ilusão. Tampouco consiste em
vigiar os sentidos com o intelecto, de só estar atento a isto sem perceber na
alma a guerra que lhe travam os inimigos e sem prestar atenção a ela. Estas são
as marcas do segundo modo. Quem as traz é ferido pelos demônios mas não
consegue feri-los. É morto e não se dá conta. É reduzido à escravidão,
subjugado e não consegue se vingar daqueles que fazem dele um escravo; os
inimigos não cessam de combatê-lo aberta ou secretamente, e o tornam vaidoso e
orgulhoso.
Mas você, meu bem-amado, se quiser sua salvação, deverá a partir de
agora se consagrar ao começo deste terceiro modo. Depois de prestar total obediência
ao seu pai espiritual, como dissemos, você deverá fazer tudo com uma
consciência pura, como se estivesse diante da face de Deus. Pois sem obediência
a consciência jamais é pura. E você deve mantê-la pura por três razões:
primeiro, por Deus; segundo, por seu pai espiritual; terceiro, para os outros
homens e as coisas do mundo.
Você deve manter a sua consciência pura. Por Deus, significa não fazer
o que não lhe agradar. Por seu pai espiritual: fazer tudo o que ele lhe
ordenar, nem mais nem menos, mas caminhar segundo sua intenção e sua vontade,
Para os outros homens: não fazer a eles o que você não gosta nem gostaria que
lhe fizessem[32].
Para as coisas do mundo: guardar-se dos abusos, ou, dito de outro modo, usar as
coisas como se deve, tanto a comida como a bebida e as vestimentas. Em uma
palavra, você deve fazer tudo como se estivesse na presença de Deus, a fim de
que sua consciência não possa reprová-lo em nada, faça você o que fizer, e para
que ela não possa açoitá-lo pelo que você fez de errado. Siga assim este
caminho verídico e seguro do terceiro modo da atenção e da prece, como descrito
aqui.
Que seu intelecto guarde o coração no momento da prece. Que ele não
cesse de rodear o coração. E que do fundo do coração ele encaminhe a Deus suas
preces. Quando ele provar que o Senhor é bom[33]
e assim for cumulado de doçura, ele já não se afastará do lugar do coração, e
dirá as mesmas palavras do apóstolo Pedro: “É bom estar aqui[34]”.
Ele não mais deixará de velar sobre o coração e girar ao seu redor, afastando e
expulsando todos os pensamentos que o diabo, o inimigo, semeia. Àqueles que não
fazem ideia do que é isto e que não conhecem este estado, esta obra salutar
parece penosa e incômoda. Mas os que provaram de sua doçura e desfrutaram do
prazer que ela proporciona ao fundo do coração dizem, com o divino Paulo: “Quem
nos separará do amor de Cristo?[35]”.
Pois nossos pais, tendo ouvido o Senhor dizer no santo Evangelho que
é do coração que saem os maus pensamentos, os assassinatos, as prostituições,
os adultérios, os roubos, os falsos testemunhos, as blasfêmias, e que é aí que
se encontra aquilo que mancha o homem[36], ouviram
também o Evangelho ordenar que purificássemos o interior do cálice, para que
também o exterior se torne puro[37], e assim
deixaram quaisquer outras obras espirituais e se dedicaram totalmente a este
combate, ou seja, à guarda do coração, persuadidos de que, por meio desta obra,
eles poderiam obter todas as demais virtudes, uma vez que não há meio de uma
virtude perdurar senão assim. Alguns de nossos pais denominaram a esta obra
hesíquia do coração, outros a chamaram de atenção, outros de sobriedade e
vigilância, ou refutação, outros de exame dos pensamentos e guarda do
intelecto. Foi sobre ela que todos trabalharam e foi por meio dela que foram tornados
dignos dos carismas divinos. É por isso que o Eclesiastes diz: “Alegre-se,
jovem, com sua juventude, e caminhe sobre as vias de seu coração, íntegro[38] e puro, e
afaste de seu coração os pensamentos”. O autor dos Provérbios diz a mesma
coisa, se a sugestão do diabo assaltá-lo: “Não o deixe entrar em seu lugar[39]”. Como
lugar, ele entende o coração. E nosso Senhor diz no santo Evangelho: “Não se
deixem levar[40]”, ou seja,
não dispersem o intelecto aqui e acolá. Ele diz também: “Bem-aventurados os
pobres de espírito[41]”, ou seja:
bem-aventurados aqueles que não possuem no coração nenhuma ideia deste mundo, e
que são pobres, desprovidos que qualquer pensamento mundano. Todos os nossos
Padres disseram coisas semelhantes. Quem quiser pode ler o que escreveram Marcos
o Asceta, João Clímaco, Hesíquio e Filoteu o Sinaíta, o abade Isaías, o grande
Barsanulfo e tantos outros.
Numa palavra, quem não estiver atento em guardar seu intelecto não
poderá tornar puro seu coração, para ser considerado digno de ver a Deus[42].
Quem não está atento não pode se tornar pobre de espírito[43],
nem afligir-se e chorar[44],
nem se tornar manso[45]
e pacífico, nem ter fome e sede de justiça[46].
Resumindo, não é possível obter as outras virtudes senão por meio desta
atenção. Assim, é a ela que você deve se aplicar antes de mais nada, a fim de
compreender pela experiência aquilo de que lhe falei. E se você quiser saber
como fazê-lo, eu lhe direi agora, na medida do possível. Esteja atento.
Antes de tudo, é preciso guardar três coisas. Em primeiro lugar, não
se preocupar com nada, tanto com o que é racional como o que é irracional e
vão, ou seja, morrer para tudo. Em segundo lugar, ter uma consciência pura, que
não tenha nada que reprova-lo. Em terceiro lugar, não ter nenhum pendor: que
seu pensamento não se volte para nada do que é deste mundo. Então se sente num
lugar retirado, permaneça calmo, só, feche a porta, recolha seu intelecto para
longe de tudo o que for passageiro e vão. Descanse o queixo sobre seu peito,
mantenha-se atento a si mesmo com seu intelecto e seus olhos sensíveis. Retenha
por um momento a respiração, dando um tempo para que seu intelecto encontre o
lugar do coração e nele permaneça por inteiro. De início, tudo lhe parecerá
tenebroso e duro. Mas depois que você trabalhar sem descanso, noite e dia,
nesta obra de atenção, oh! milagre, você descobrirá em si uma alegria contínua.
Pois o intelecto combatente terá encontrado o lugar do coração, e verá lá
dentro aquilo que jamais havia visto antes e ignorava por completo. Ele verá
este espaço que existe no interior do coração e verá a si mesmo inteiramente
luminoso, pleno de sabedoria e de discernimento. Daí em diante, de qualquer
lado que surja um pensamento, e antes mesmo que este penetre, seja concebido e
se forme, o intelecto o expulsará e o fará desaparecer em nome de Jesus, ou
seja, com a invocação: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. É então que
ele começará a ter aversão pelos demônios, travando contra eles um combate sem
trégua, opondo a eles seu ardor natural, expulsando-os, surrando-os,
forçando-os a desaparecer. O que virá a seguir, com a ajuda de Deus, é algo que
você aprenderá sozinho, pela experiência, graças à atenção do intelecto, e
guardando a Jesus em seu coração, ou seja, a prece “Senhor Jesus Cristo, tenha
piedade de mim”. De fato, um Padre disse: “Permaneça em sua cela, e ela lhe
ensinará tudo[47]”.
Questão: Porque o primeiro e o segundo modo de que falamos não
podem conduzir com sucesso o trabalho pelo bem?
Resposta: Porque não os utilizamos como se deve. São João Clímaco
compara estes modos a uma escada de quatro degraus, e diz: “Há os que se
humilham e reduzem as paixões; outros que salmodiam, isto é, oram com a boca;
outros, que se dedicam à prece intelectual; e outros, que chegam à contemplação[48]”.
Assim, quem quer subir os quatro degraus não começam pelo alto para se dirigir
para baixo, mas vão de baixo para cima. Eles se erguem do primeiro degrau,
depois do segundo, do terceiro e do quarto. É desta maneira que eles podem se
elevar da terra e alcançar o céu. Primeiramente, no começo, devemos nos
esforçar para deter e reduzir as paixões; depois, devemos nos dedicar à
salmodia, orando com a boca, pois, quando as paixões estão reduzidas, a prece
dá naturalmente à língua prazer e doçura, e agrada a Deus; em terceiro lugar,
devemos orar com a inteligência e, em quarto, nos elevarmos à contemplação. O
primeiro grau é o dos noviços, o segundo se abre aos que progridem, o terceiro
aos que chegam ao cume do progresso, e o quarto, o dos perfeitos.
Portanto, o começo não é outra coisa do que a redução das paixões, que
não se retiram da alma a não ser pela guarda e atenção do coração. Pois é do
coração, como diz nosso Mestre, que vêm os maus pensamentos que mancham o homem[49],
e é aí que são necessárias a guarda e a atenção. Uma vez que as paixões foram
detidas e reduzidas a nada pela guerra que contra elas travou o coração e pela
aversão que este lhes dedica, o intelecto pode desejar e buscar a reconciliação
com Deus. Ele incrementa a oração, e atinge seu objetivo. Por meio da oração,
ele castiga e expulsa os pensamentos que giram ao redor do coração para nele
penetrar. Esta é a guerra. Os demônios se excitam, se opõem, e, por meio das
paixões, suscitam no interior do coração a confusão e a vertigem. Mas diante do
nome de Jesus Cristo eles desaparecem e derretem como a cera de uma vela.
Expulsos do coração, eles já não têm paz e continuam a perturbar o intelecto,
mas agora do exterior, por meio dos sentidos. É por isso que o intelecto
percebe rapidamente as primícias da serenidade e da hesíquia, pois os demônios
já não têm o poder de perturbá-lo em profundidade, mas apenas desde o exterior,
na superfície. Entretanto, é impossível livrar-se da guerra e não mais ser
combatido pelos maus espíritos. Isto só cabe aos perfeitos, àqueles que se
retiraram completamente de tudo e que se dedicam continuamente à atenção do
coração.
Portanto, aquele que se utilizar desses três modos em ordem, cada qual
a seu tempo, poderá ao longo do tempo, depois de ter purificado seu coração das
paixões, dedicar-se inteiramente à salmodia, combater os pensamentos, erguer
aos céus seus olhos sensíveis (se sentir necessidade), contemplá-lo com o olhar
da alma e se consagrar à prece pura, em verdade, como convém.
Porém, não devemos nos voltar em demasia para o céu, para evitar os
maus espíritos que habitam o espaço e são chamados de espíritos aéreos, pois
eles suscitam muitas ilusões, e é preciso estar atento. Deus só nos pede uma
coisa: que nosso coração seja purificado pela guarda e a atenção. Se a raiz é
santa, como diz o Apóstolo, claro que os galhos e os frutos serão sãos[50].
Fora deste caminho, quem eleva seus olhos e seu intelecto para o céu e pretende
se representar os inteligíveis não vê mais do que imaginações, coisas enganosas
e não verdadeiras, pois seu coração é impuro.
Como dissemos, o primeiro e o segundo modos não levam o homem a
progredir. Quando queremos construir uma casa, não começamos pelo teto para
depois fazer as fundações, pois isto não é possível. Primeiro colocamos as
fundações, depois erguemos a casa e finalmente fazemos o telhado. É assim que
devemos agir quanto ao espiritual. Primeiro, colocar as fundações, ou seja,
guardar o coração e dele retirar pouco a pouco as paixões. Depois, construir a
casa espiritual: expulsar a perturbação dos maus espíritos que nos combatem
pelos sentidos, e fugir o mais depressa possível da guerra que contra nós eles
travam. Então fazer o telhado: retirarmo-nos de todas as coisas,
pacificarmo-nos como se deve, darmo-nos totalmente a Deus. É assim que completaremos
a m orada espiritual, em Jesus Cristo nosso Senhor. A ele a glória, pelos
séculos dos séculos. Amém.
GREGÓRIO O SINAÍTA
O quinto dos textos parafraseados
é constituído de diversos capítulos de Gregório o Sinaíta já inseridos na
antologia propriamente dita. Prova, se preciso fosse, de que estes últimos
textos estão destacados da transmissão inerente à instituição monástica e são
endereçados a outros leitores, qualquer que seja a vida que levam no mundo, e
feitos para engajá-los, como a monges, sobre os caminhos da prece perpétua.
Daí procede a retomada dos
conselhos prodigados aos monges por Gregório. Primeiro sobre a maneira
hesiquiasta de orar apenas usando o intelecto, no silêncio do “lugar do
coração”. Depois sobre o modo de conservar o intelecto no coração, com o
auxílio da graça do Espírito Santo, que impede a dispersão, suscita a prece
pura e permite a noera aisthesis, o
“sentido intelectual”, a aproximação filocálica do perfeito. Enfim, sobre o
modo de expulsar do coração todo pensamento que não participa da ação de
graças, deixando todo o espaço para o intelecto em oração.
Segue-se uma série de capítulos
sobre as modalidades práticas (em especial a alternância entre a prece pura e a
salmodia) e as condições fundamentais (a paciência e a humildade) capazes de
abrir a todos o próprio santuário da vida monástica: a hesíquia do coração.
Mas a hesíquia faz causa comum
coma prece perpétua. Ninguém conseguiria atingi-la no alvo, nem nela se manter
sem o estado de graça. Um capítulo preconiza assim a salmodia como caminho de
aproximação, ou como linha auxiliar, e sublinha a necessidade da alternância,
que permite à tensão relaxar e se renovar. Da mesma forma, em matéria de
alimentação, tanto quanto a dura ascese dos monges, é recomendado a todos o equilíbrio
entre o excesso e a falta: “Jamais ultrapassar a medida”, diz Gregório.
Enfim, no último capítulo citado,
um rigoroso aviso, também endereçado a todos, assim como aos monges. A prece do
coração não pode ser “utilizada” ostensivamente. Ela é antes de mais nada o
reconhecimento e amor a Cristo, e humilde socorro. Como nos mosteiros, a vida
espiritual nas condições do século implica um discernimento preciso e o
banimento de toda presunção: uma busca ativa das âncoras da experiência.
COMO CADA UM DEVE
ORAR
Sente-se, seja sobre um banco para fazer esforço, seja sobre um leito
pata relaxar e aliviar seu corpo, e permaneça pacientemente nesta posição,
tanto quanto puder, a fim de cumprir o mandamento do divino Paulo, que ordena
permanecer por longo tempo em oração de
“perseverar na oração[51]”,
de não se apressar em se livrar do esforço e se levantar, mas de manter a
paciência, permanecer com a cabeça inclinada, recolher o intelecto no coração e
pedir a ajuda do Senhor, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”.
Mesmo que com o tempo suas espáduas e sua cabeça lhe doam, persevere nestas
penas e, com todo o seu amor e todo o seu desejo, busque o Senhor em seu
coração. Pois o Reino dos céus é daqueles que violentam a si próprios. São os
violentos que dele se apoderam[52],
como disse o Senhor, que com isto quis mostrar que tipo de violência, quanto
ardor, que tipo de esforços exige a oração. A perseverança em todas as coisas:
eis o que suscita as penas da alma e do corpo.
Como dizer a oração
Os Padres diferem em suas recomendações sobre o modo como devemos
orar. Um manda dizer a prece inteira: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
tenha piedade de mim”. Outro recomenda dizer apenas a metade: “Jesus, Filho de
Deus, tenha piedade de mim”, o que resulta mais fácil para a fraqueza do
intelecto. Pois o intelecto sozinho não é capaz de dizer pura e ´perfeitamente
“Senhor Jesus”, senão pelo Espírito Santo[53].
Mas não se deve mudar constantemente as palavras, dizendo-as negligentemente
ora de uma maneira, ora de outra. Podemos mudar de tempos em tempos, para não
relaxar devido à repetição. Da mesma forma, existem os que ensinam a dizer a
prece com a boca, enquanto outros ordenam dizê-la com o intelecto. Eu digo que
devemos fazê-la com os dois. Com efeito, às vezes o intelecto relaxa e fica
incapaz de dizer a oração sozinho, ora é a boca que fica preguiçosa. É por isso
que devemos orar com a boca e o intelecto, tanto com uma quanto com outro.
Porém, quando dizemos a oração c om a boca, devemos pronunciá-la calmamente,
humildemente, sem perturbação, para que a voz não venha a agitar e entravar a
atenção do intelecto, até que este se habitue com a duração e o progresso nesta
obra da prece, recebendo da graça do Espírito Santo o poder de orar só. A
partir de então já não será necessário falar com a boca. Nem isto será mais
possível. Pois, com gratidão e alegria, diremos a prece apenas com o intelecto.
Como manter o intelecto desperto
Saiba que ninguém consegue por si só dominar o intelecto, se antes não
tiver sido dirigido pela graça do Espírito. Pois o intelecto não se deixa
dominar, não por sua natureza, por que está sempre em movimento e é incapaz de
se deter naturalmente, mas por que ele se dissipa na negligência,
dispersando-se daqui e dali desde a origem. Pois, ao transgredir os mandamentos
de Deus, nós nos afastamos dele, nos separamos dele e perdemos o sentido do
intelecto e já não sabemos quando estamos com Deus e quando formos cortados de
sua presença. A partir de então, nosso intelecto, separado de Deus, é atraído
de todos os lados, servilmente. É por isso que ele não se deixa dominar e não
consegue permanecer em repouso a não ser remetendo-se novamente a Deus,
submetendo-se inteiramente aos seus mandamentos, pedindo sempre a ele e a ele
confiando todas as nossas faltas. Ora, estamos em falta todo o tempo. Mas ele
nos perdoa instantaneamente, se lhe pedimos com humildade e coração contrito, e
se invocamos constantemente seu santo nome, Quando o intelecto se aproxima de
Deus desta maneira e assim o reencontra com enorme alegria, então ele se torna
capaz de ser dirigido por Deus e não mais se dispersar em todas as direções.
Também o sopro da respiração, quando retido na boca, ajuda naturalmente a
dominar o intelecto.
Entretanto, o intelecto não permanece assim por muito tempo, e então
volta a se dispersar. Mas quando a prece age no coração, é ela que passa a
resguardar o intelecto, que o alegra, e que o impede de se dispersar. Porém,
pode acontecer que, no momento em que o intelecto está imerso no coração e
orando, o pensamento se perca e se ocupe de outras coisas. Somente os que são
perfeitos no Senhor são capazes de dominar o pensamento, somente os que, em
Cristo Jesus, alcançaram esta graça, quando seu intelecto não mais se dispersa
e não mais se separa de Deus.
Como expulsar os pensamentos
Jamais um noviço expulsará um pensamento que Deus já não tenha
expulsado. Cabe aos fortes combater e expulsar os pensamentos. E mesmo eles não
os expulsam por si sós. É com Deus que eles os combatem e os expulsam. Quanto a
você, quando estes chegarem, apele para o Senhor, repita a prece sem descansar,
e eles fugirão. Pois eles são suportam o calor que vem da prece para o coração,
e fogem como se queimados pelo fogo. “Fustigue os que o combatem, diz João
Clímaco, com o nome de Jesus[54]”.
Pois nosso Deus é um fogo que consome[55]
a perversidade. O Senhor apressa-se em auxiliar, e logo faz justiça aos que,
com toda alma e todo coração, o chamam dia e noite[56],
como disse o divino Lucas na parábola do juiz iníquo.
O noviço, cuja oração é ainda impotente, deve se manter em pé, pedir a
ajuda de Deus, e o Senhor expulsará os pensamentos. Depois ele deve se sentar
novamente e voltar a orar. Mas mesmo aquele cuja oração é forte, todas as vezes
que for combatido por pensamentos de relaxamento e de prostituição deve também
se por de pé, erguer as mãos e pedir o socorro de Deus. Mas ele deve temer a
ilusão e não fazer isto por muito tempo, para que o diabo não lhe mostre no ar
figuras imaginárias para enganá-lo. Pois manter a inteligência ao mesmo tempo
em cima e em baixo, no coração e em nas coisas em geral, e mantê-la infalível e
a salvo, é apanágio apenas dos perfeitos.
Da hesíquia
Quem busca a hesíquia deve ter
como fundamento, em primeiro lugar, estas cinco virtudes: o silêncio, a
temperança, a vigília, a humildade e a paciência; a seguir, as três obras
agradáveis a Deus: a salmodia, ou seja, a prece com a boca, a leitura, a prece
intelectual – e um pouco de trabalho manual, se for fraco. Pois as virtudes que
mencionamos contêm todas as demais e trabalham juntas. Desde a primeira hora do
dia, o hesiquiasta deve começar pela oração “Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus, tenha piedade de mim”, e se consagrar à lembrança de Deus com atenção e a
hesíquia do coração, durante uma hora; na segunda hora, ele deve se dedicar à
leitura; na terceira, orar com a boca; na quarta, dizer a prece do coração; na
quinta, fazer a leitura; na sexta, salmodiar, dizer a oração com a boca; na
sétima, dizer a prece do coração; na oitava, ler; na nona, salmodiar; na décima,
alimentar-se, na décima-primeira, dormir, se necessário; na décima-segunda,
salmodiar as vésperas. Fazer desta maneira a jornada agrada a Deus.
Da mesma forma, se você quiser
passar facilmente o período da noite; escute.
A vigília noturna tem três modos: o dos noviços, o dos médios e o dos
perfeitos. O primeiro modo consiste em dormir a metade da noite e velar a
segunda metade, seja do por-do-sol até a meia noite, seja da meia noite à
aurora, e passar esta metade tanto salmodiando como orando. O segundo modo
consiste em velar após o crepúsculo por uma hora ou duas, depois dormir por
quatro horas, e por fim se levantar para as matinas, salmodiando e orando por
seis horas. O terceiro modo consiste em passar a noite toda de pé velando.
Antes de mais nada, a hesíquia
exige que tenhamos fé, paciência, amor e esperança, com todo nosso coração e
toda nossa força. Pois àquele que crê, mesmo que não encontre nesta vida o que
deseja – por negligência ou por qualquer outra causa – é impossível que não
receba na hora da morte a certeza dos frutos de sua fé e de seu esforço, e que
não veja a liberdade, que é Jesus Cristo. Mas quem não tem fé será julgado no
momento de sua morte. Pois quem está sujeitado aos prazeres da carne e busca a
glória dos homens, e não a de Deus, este, conforme foi dito, não crê, ainda que
pareça crer nas palavras, pela simples confissão da fé. Este homem se ilude, se
engana, sem saber. Pois ele escutará do Senhor: “Por que você me desprezou e
não me recebeu em seu coração, mas dele me expulsou, também eu o expulsarei de
junto de mim”. É preciso que o fiel creia que todas as palavras de Deus são
verdadeiras, que é possível trabalhá-las, e que ele confesse sua própria
fraqueza, a fim de não incorrer na dupla condenação, caso não as cumpra e nelas
não creia.
Nada deixa mais o coração
contrito e humilhado[57]
do que o silêncio e a hesíquia, quando esta é vivida com discernimento. E nada
devasta a hesíquia tanto quanto estas seis paixões: a liberdade de linguagem, a
gula, o falatório, as distrações, o orgulho e a presunção. O infeliz que se
habitua com elas é tomado de uma vertigem, e, com o tempo, se torna insensível.
Porém, se ele se arrepender, se recomeçar com fé e fervor, ele reencontrará o
que antes desejava, sobretudo se for humilde e se dirigir com amor aos que
possuem experiência. Mas se ele for dominado por alguma das paixões que
mencionamos, os demais males o assaltarão com a descrença, o despojamento de
todo bem, a locupletação das demais paixões e o abandono à vertigem e à
perturbação pelos demônios. O infeliz se tornará irascível e inimigo dos
hesiquiastas, que ele acusará voltando contra eles sua língua como uma espada
de dois gumes.
Da mesma forma, se não nos
entregarmos ao luto como uma forma de tristeza, será impossível suportarmos as
provas da hesíquia. Pois quem toma o luto e medita nas coisas terríveis que
precedem e sucedem à morte, este adquire a paciência e a humildade, os dois
fundamentos da hesíquia. Mas quem busca a hesíquia sem estas duas virtudes terá
sempre em si a presunção e a negligência. Ora, estes dois males não fazem senão
aumentar a dispersão do intelecto, conduzindo ao relaxamento e à preguiça.
Então a intemperança, esta filha da negligência, amolecerá e relaxará o corpo,
entenebrecendo e endurecendo o intelecto, fazendo que com nosso Senhor Jesus
Cristo se vá daí, ao mesmo tempo em que a multidão dos pensamentos e das ideias
invade o lugar da reflexão.
Nada torna a alma tão relaxada,
preguiçosa, dura e sem inteligência, como o egoísmo, ou seja, o amor irracional
por si mesmo, que é a mãe, a causa e a nutriz das paixões. Pois o egoísmo
prefere o repouso do corpo aos esforços da virtude, e pensa que é possível se
comportar convenientemente sem se dedicar às obras virtuosas, e, em especial,
àquelas que exigem os esforços racionais exigidos pelos mandamentos. O egoísmo
suscita assim a preguiça e a impotência da alma do hesiquiasta e faz crescer em
meio às obras da ascese um relaxamento tal, que a torna irremediavelmente
perdida.
Como salmodiar
Uns dizem que se deve salmodiar de tempos em tempos (ou seja, cantar
os salmos, os tropários e outras orações), outros, com muita frequência, outros
nunca. Quanto a você, não salmodie muito, para não ficar confuso: logo viria o
relaxamento. Imite aqueles que salmodiam de tempos em tempos, pois toda medida
é excelente. A salmódia frequente é própria dos ativos, que fazem isto para
compreender aquilo que cantam e para manter seu esforço. Mas ela não convém aos
hesiquiasta, aos quais basta orar a Deus apenas no coração e se afastar dos
pensamentos. A hesíquia, segundo João Clímaco, consiste de fato na rejeição de
todo e qualquer pensamento que venham dos sentidos e do intelecto[58].
Se esgotar toda sua força na salmódia frequente, o intelecto ficará fraco para
orar com intensidade e perseverança.
“Durante a noite, diz João Clímaco, dedique muito tempo à prece e
pouco à salmódia[59]”.
É o que você deve fazer. Quando, estando sentado, você perceber a oração agir e
não cessar de se mover no coração, não a deixe para se levantar e salmodiar, até
que ela o deixe por si só. Pois então você terá abandonado a Deus em seu
coração, onde orava, levantando-se para lhe falar desde fora, com a boca, por
meio da salmódia. Você terá descido do alto para o baixo, criando a confusão.
Você perturbará seu intelecto, expulsando-o da hesíquia e da calma. Pois Deus é
paz[60],
longe de toda confusão e de todo barulho. Nosso louvor deve ser angélico, sem
confusão, como angélica é nossa maneira de viver, desde que a prece da boca, o
apelo sensível, aponte e vise o apelo ao intelecto. E no entanto, a salmódia
nos foi prescrita, para nos elevarmos do sensível ao inteligível e verdadeiro.
Pois foi aos que desconhecem a prece intelectual que foi concedido salmodiar
bastante, e com uma grande diversidade, além de toda medida, sem jamais cessar,
até esgotá-los por meio desta penosa ação, e que possam assim se aproximar da
contemplação, descobrindo a prece intelectual que trabalha em seus corações.
Pois uma é a ação dos hesiquiastas, e outra a da comunidade. Porém cada qual,
se perseverar na via para a qual foi chamado, será salvo[61],
segundo o Apóstolo. É por isso que eu temo estar escrevendo apenas aos fracos,
quando o vejo viver entre eles.
Pois quem se dedica à prece intelectual por ouvir falar ou por que
aprendeu nos livros, deve ficar muito atento ao que está escrito, para não se
perder. Quem provou do mel de Deus está obrigado a salmodiar comedidamente e a
se consagrar a maior parte do tempo à prece. Mas quando sobrevém a indolência,
ele deve salmodiar ou fazer uma leitura sobre a Vida dos padres, para aprender
como estes venceram e foram salvos. Se alguns dizem que muitos Padres
permaneciam de pé por toda a noite, que salmodiavam e que não se dedicavam à
prece intelectual, responderemos com base nas Escrituras que nem todas as obras
dos Padres eram perfeitas, e que as pequenas virtudes não são pequenas para os
grandes, pois estes são fortes e as usam como melhor desejam, enquanto que as
grandes virtudes não são grandes nem perfeitas para os pequenos, que, por serem
fracos, não as sabem utilizar devidamente. Pois antigamente, como hoje, nem
todos os Padres eram ativos, nem todos contemplativos. E nem todos os ativos se
dedicavam integralmente à ação: muitos se elevaram através da contemplação,
abandonaram a ação, se separaram de tudo e se regozijaram na pura contemplação
de Deus, saciados daí por diante com o alimento divino. Eles já não podiam nem
salmodiar, nem meditar em outras coisas, uma vez que se encontravam no êxtase
da contemplação de Deus, até alcançar, nesta vida, a fruição daquilo que
desejavam – mas parcialmente, como se eles tocassem os penhores. Outros se
consagraram até o fim apenas à ação e foram salvos: estes esperaram para
receber em outra vida a recompensa. Alguns só obtiveram a certeza na hora da
morte, ou mesmo após a morte, quando se preservaram suas santas relíquias:
então tiveram a certeza de terem sido salvos. Todos haviam recebido a graça no
momento do batismo, mas, por diversas razões, nem todos provaram o mel da graça
durante sua vida presente, como muitos outros. Alguns ainda houve que se
consagraram aos dois modos, à salmódia e à prece, e assim passaram suas vidas
sem jamais encontrar obstáculos. Outros mantiveram até o fim a hesíquia,
sabiamente, sozinhos e apenas com o Deus único, e foram justificados. Como
dissemos, os perfeitos tudo podem em Cristo que lhes dá a força.
Como se alimentar
Quanto ao ventre que reina sobre as paixões, que posso dizer? Se você
puder paralisá-lo e torná-lo meio morto, não economize esforços. Pois muitas
vezes ele me dominou. Como um escravo, eu o servi e fiz o que ele exigiu. Ele
próprio trabalha com os demônios e é a morada das paixões quando se entrega à
desordem. É ele que nos faz cair, mas é também ele, quando reencontra a boa
ordem, que nos levanta e nos endireita. É ele que nos faz perder a graça e a
dignidade que havíamos recebido, primeiro no paraíso e depois no batismo. Pois
negligenciamos os mandamentos de Deus, que guardam e aumentam a graça naqueles
que se aplicam e se dedicam ao progresso da alma, enquanto que nós nos
orgulhamos, julgamos estar unidos a Deus e decaímos de sua graça.
Os Padres dizem que existem grandes diferenças no modo como se nutrem
os corpos. Um necessita de pouco, outro de muito, para sustentar suas forças
naturais. Cada qual, segundo sua força e seu estado, demanda assim sua
alimentação. Entretanto, aquele que se dedica continuamente à hesíquia não deve
jamais estar saciado, mas deve sempre ter fome ao se levantar da mesa. Por que
quando seu estômago está pesado com os alimentos, seu intelecto fica perturbado
e já não consegue orar com a devida pureza. Ele se entorpece sob os vapores dos
numerosos alimentos e procura dormir o quanto antes. Então, no sono, ele se
torna presa de sonhos e imaginações infames.
Quem pretende encontrar a salvação e violentar a si mesmo pelo Senhor
a fim de viver a hesíquia deve, na minha opinião, se satisfazer a cada dia com
uma libra de pão e três a quatro copos de água ou vinho, comer pouco e de todos
os alimentos que lhe forem apresentados, mas evitando a saciedade para poder
assim escapar ao orgulho, deve comer de tudo sem nada desprezar (pois tudo é
criação de Deus, que é boníssimo) e em tudo dando graças a Deus. Este é o
discernimento dos sábios. Quanto aos que são fracos na alma e na fé, os que não
têm firmeza, é melhor para eles que se abstenham de determinados alimentos. O
divino Paulo recomenda que não comam senão legumes[62],
uma vez que eles não conseguem acreditar que são guardados por Deus, cuja
providência se estende sobre todas as criaturas.
Quanto a você que é velho e que procura uma regra em matéria de
alimentação, que posso lhe dizer? Existem jovens que são incapazes de tomar sua
sopa pesando-a comedidamente. Como o poderá você, que é velho? É por isso que
você deve permanecer livre em tudo. Se você for vencido por ter comido demais,
aflija-se, arrependa-se, condene-se por ter sido intemperante e retome sua
obra. Nunca deixe de fazer assim, caindo, levantando e condenado a si mesmo e
nunca a outro: assim você encontrará o repouso. Você vencerá através de suas
quedas, desde que condene a si próprio, entregando-se ao arrependimento e à
humildade.
Não transgrida a regra de que falamos, e isto lhe será suficiente.
Pois nada fortifica tanto o corpo como comer pão e beber água. É por isso que o
profeta dizia: “Filho do homem, coma seu pão e beba sua água comedidamente[63]”.
A alimentação possui três medidas, a saber: a temperança, o contentamento e a
saciedade. A temperança consiste em ainda ter fome depois da refeição. O
contentamento consiste em comer o suficiente, sem ficar faminto nem saciado. A
saciedade consiste em ficar com o estômago um pouco pesado depois de ter
comido. Mas comer após estar saciado equivale a abrir a porta para a gula, e
com ela entrará a prostituição. Portanto, escolha o melhor, na medida em que
puder. Não ultrapasse a medida, nem para mais, nem para menos. Ter fome e estar
saciado, ser forte em tudo e não ser lesado, isto é próprio dos perfeitos.
Do erro, e de outros assuntos
É preciso que você saiba exatamente o que é o erro, para se proteger
dele, para estar atento e não perder sua alma. Pois os pendores do homem, e em
especial os do noviço e do monge independente[64],
os levam facilmente a viver com os demônios que, por meio dos pensamentos e das
imaginações, não cessam de girar ao redor deles, colocando armadilhas e cavando
poços para fazê-los cair. Não devemos nos espantar em ver que muitos se
perderam, que dizem ou fazem uma coisa por outra, perturbam numerosos cristãos
que não têm conhecimento de tais coisas e cobrem de opróbrio e de vergonha os
hesiquiastas. Pois não há nada de espantoso em que um noviço ou um monge
independente se engane, mesmo depois de uma dura ascese. Isto acontece com
muitos, tanto hoje em dia como antigamente. A lembrança do nome de Deus, que é
aprece intelectual, por ser a mais elevada de todas as ações e o cume de todas
as virtudes, como o é o amor a Deus, o primeiro de todos os mandamentos[65],
requer muita atenção, piedade e temor.
Aquele que, com impudência, temeridade e impiedade, pretende se utilizar
desta obra admirável da prece intelectual, e que busca sem temor dizer por si
mesmo o nome de Deus e de Deus se aproximar enfrentando-o, certamente (se Deus
o permitir) afogar-se-á na ilusão e será destruído pelos demônios. Pois, em seu
orgulho e presunção, ele tenta alcançar o que está além de sua força e de seu
estado. Ele tem a audácia, antes de chegado o tempo, de chamar a Deus em si por
meio da prece intelectual. Ora, frequentemente, vendo em nós tal audácia nas
coisas elevadas, o Senhor compassivo não permite que sejamos tentados pelos
demônios e nos concede que tomemos consciência de nosso estado e de nosso
orgulho, permite que nos arrependamos, que voltemos atrás e nos endireitemos,
antes que nos tornemos o opróbrio dos demônios e o riso dos homens. É por isso
que quem pretende se dedicar a esta obra maravilhosa deve interrogar os que têm
experiência, para com eles aprender como agir, mostrando-se submisso e
obediente a estes, e que ele se engaje com temor a Deus e humildade e que dê
provas de paciência; assim ele não colherá espinhos em lugar do trigo, nem
encontrará a perdição em lugar da salvação.
Quanto a você, meu irmão, se você vive na hesíquia, se se dedica a
esta obra como se deve, e se espera unir-se a Deus por intermédio da prece
intelectual, preste muita atenção em jamais aceitar seja lá o que for de
sensível ou de inteligível que lhe apareça do exterior ou que venha até você,
bem como não imagine nem modele em seu intelecto a figura de Cristo, de um anjo
ou de um santo, pois o intelecto possui, por si só, a faculdade de imaginar, e
pode facilmente dar forma a qualquer coisa que queira, e assim fazer um grande
mal aos que não estão atentos. A simples lembrança do que é bom e do que é mau
já suscita normalmente a imaginação no intelecto, pois o homem é levado a
imaginar as coisas que lhe vêm à memória. Quem as recebe se torna assim
imaginativo, mas não hesiquiasta.
É por isso que você não deve se fiar numa coisa, ainda que pareça boa,
nem acolhê-la, antes de examiná-la e de interrogar os que possuem experiência,
para não se prejudicar. Quando estas coisas chegarem a você, não as receba
facilmente, mas mantenha-se à distância, e guarde atentamente seu intelecto
longe de toda figura, forma ou cor. Pois muitas vezes, para pôr à prova os que
combatem e para ver para que lado pende sua resolução, Deus lhes envia essas
coisas. E mesmo vindo a coisa de Deus, aquele que a viu em seu intelecto ou com
seus olhos, recebendo-a sem examiná-la e sem interrogar os mais experientes,
será facilmente enganado pelo diabo, por ser crédulo.
Cada qual, especialmente o noviço, deve se aplicar a dizer a prece
intelectual em seu coração, pois aí ele não poderá se enganar, e ele não deve
admitir outra coisa até que se acalmem as paixões. Deus não reprova aquele que,
para não se enganar, permanece estritamente atento a si mesmo, e que, por causa
disso, não acolhe nada, nem aquilo que vem de Deus, sem antes examinar e
interrogar os mais experientes. Este é louvado por ele, por ser atento e
refletido.
No entanto, não se deve interrogar qualquer um, mas somente um homem
virtuoso, espiritual, testado, que vele por outros irmãos, e que tenha
experiência. Pois ninguém é capaz de guiar a outros se não tiver o carisma do
discernimento e não souber distinguir o bem do mal. Cada qual, pelo que fez e
pelo que aprendeu, possui um conhecimento e um discernimento naturais, mas nem
todos têm o discernimento do Espírito Santo. Não é fácil encontrar este homem
certo, dotado de tal discernimento, em suas obras, suas palavras, seus pensamentos,
e conseguir tomá-lo como guia espiritual. Por este sinal é possível saber que
ele é a pessoa certa: tudo o que ele diz, faz e pensa é atestado pela divina
Escritura. Assim, é preciso que ele seja comedido em tudo. Pois o diabo costuma
dar a seu erro a aparência de verdade, sobretudo entre os noviços, disfarçando
seus próprios vícios para fazê-los parecer virtudes espirituais.
É por isso que quem deseja alcançar a prece pura deve passar sua vida
na hesíquia, no temor, na tristeza do luto, sob a condução dos que têm
experiência, interrogando-os amiúde. Ele deve se afligir todo o tempo, chorar
por seus pecados, tremer, temer ser condenado e separado de Deus, aqui como na
outra vida. Pois o diabo, ao ver alguém que passa sua vida em luto e aflição,
não suporta ficar ao seu lado. Ele é queimado pela humildade gerada pela
aflição e foge, levando seu orgulho consigo. Mas ele se aproxima daquele que,
em sua presunção, imagina atingir as coisas elevadas, e que, impudentemente,
tenta alcançar o que ultrapassa suas forças. Deste ele se aproxima como se ele
lhe pertencesse, e o prende facilmente em sua rede.
A arma suprema consiste em ter sempre consigo a prece e o luto, a fim
de não cair da alegria da prece na presunção, e de permanecer sempre humilde
para ser salvo. Pois a verdadeira prece é este calor no coração que se encontra
na invocação Senhor Jesus Cristo, que veio, como diz o Evangelho, lançar fogo
sobre a terra[66]
de nosso coração, para queimar nossas paixões e suscitar em nossa alma a
alegria e a mansidão. Também você, irmão, deseje esta prece, a fim de
encontrá-la e de a possuir em seu coração, guardando sempre seu intelecto
desprovido de toda imaginação e de todo pensamento. E não tema. Pois o Deus que
procuramos está conosco e não cessa de nos proteger.
Se alguns se perderam, considere que eles chegaram a este ponto por
causa de seu orgulho e de sua independência, desde que se deixaram levar por
sua própria vontade e não pelos conselhos dos mais experientes. Pois aquele
que, com humildade e obediência, sempre interrogando, se dedica à prece e busca
a Deus, jamais fará mal, pela graça de Cristo que veio salvar todos os homens[67].
Se sobrevém uma tentação, ela é como que uma prova e uma coroa. Pelos caminhos
que só ele conhece, Deus nos traz logo sua ajuda. Como dizem os Padres, as
maquinações dos demônios não podem prejudicar a quem vive retamente, que não
busca agradar aos homens e que evita o orgulho. Mas os que vivem sua vida com
presunção e por sua própria vontade se perdem facilmente e acabam por prejudicar
a si próprios.
Existem assim três virtudes que devemos guardar, examinando a todo
momento se as temos conosco: a temperança, o silêncio e a autocondenação, ou
seja, a humildade. Elas se contêm e se guardam mutuamente. É por intermédio
delas que a prece nasce e cresce continuamente.
A graça aparece de diferentes maneiras nos que se dedicam à obra da
prece. Em uns, ela vem com o temor e o tremor que arrasam as montanhas das
paixões e quebram os corações petrificados, reduzindo ao silêncio e
mortificando o sentimento de sua carne. Em outros, ela se manifesta na alegria
e no regozijo do coração, aquilo que os Padres chamam de sobressalto. Em
outros, enfim, sobretudo nos que progrediram, Deus suscita a graça na paz, na
doçura, na calma, a partir do instante em que Cristo faz sua morada no coração,
segundo o divino Paulo. É por isso que Deus disse ao profeta Elias que o Senhor
não está nem no vento violento, nem no tremor de terra, ou seja, ele não está
nos efeitos da graça que se manifestam de início nos noviços, no temor a Deus e
na alegria do coração, mas que ele é uma brisa leve[68],
luminosa e pacífica. Com isto ele mostrou onde está a perfeição.
Que fazer quando o demônio se transforma em anjo de luz[69] e
engana o homem?
Quem presencia isto não deve recebê-lo de imediato, mas deve primeiro
provar e discernir o bem e o mal, e somente depois crer. Pois aquilo que a
graça pode fazer e que o demônio é incapaz de fazer, é evidente. O demônio
(ainda que apareça como um anjo de luz) não consegue provocar no homem nem
doçura, nem luz, nem desdém pelo mundo, nem a detenção das paixões e dos
prazeres; isto é obra da graça. O que ele provoca é o orgulho, a preguiça, a
presunção e outras malícias do gênero. Pelo modo como ela opera, você pode
saber se a luz que brilha na sua alma vem de Deus ou de Satanás. A alface
lembra uma salada amarga, e o vinagre se assemelha ao vinho. Mas quando você os
prova, você sabe a diferença. O mesmo acontece com a alma do homem. Se ele
tiver o discernimento, ele reconhecerá os carismas do Espírito Santo e os
fantasmas de Satanás.
Entretanto, é preciso saber que o erro tem três causas: o orgulho, a
inveja dos demônios e a concessão de Deus que permite o castigo. O orgulho
provém da inconsequência do intelecto. A inveja dos demônios provém do
progresso. A concessão de Deus provém do pecado. O erro proveniente do orgulho
e da inveja dos demônios é fácil de curar, quando o homem se humilha. Mas
aquele que provém de Deus dura às vezes até a morte.
Também é preciso saber que o demônio do orgulho vem primeiro sobre
aqueles que não estão atentos ao coração. Você, irmão, esteja sempre pronto
para conduzir o combate contra os demônios. Se lhe vier uma imaginação, não se
perturbe. Ainda que você veja uma espada que vai trespassá-lo, ou um fogo brilhante
que vai queimá-lo, ou uma figura selvagem e feia, ou um dragão, ou seja lá o
que for, não tenha medo nem recue. Resista, confesse o Senhor Jesus Cristo, e
você verá facilmente a vitória chegar, com a fuga e a dispersão dos seus
inimigos.
Conheça ainda esta armadilha que os demônios empregam muitas vezes.
Eles se dividem em dois. Uns o assaltam, aparentemente para tentá-lo. Se você
parece pedir por socorro, chegam outros como anjos, e aparentemente expulsam os
primeiros, que fingem estar temerosos e fogem, para enganá-lo e fazê-lo adorar
como se fossem santos anjos aqueles que aparentemente expulsaram os demônios.
Muitas vezes ainda eles irão lhe sugerir belos pensamentos e o
incitarão a rezar contra os que parecem tentá-lo, ou o incitarão a resistir. Se
você fizer isto, eles fingirão ter sido vencidos por você e fugirão, para que
você se orgulhe e pense que progrediu e que agora é capaz de vencer os
pensamentos e expulsar os demônios.
MÁXIMO O
CAPSOCALYVITA
Máximo o Capsocalyvita – o “queimador de cabanas” – foi um destes
monges do Monte Athos que, pelos frutos de sua humildade e de sua contemplação,
contribuíram para fundar a renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV. Ele
próprio não deixou nada escrito. Mas seu exemplo extremo – incendiando suas
sucessivas moradias, como para chamar sobre si o Juízo final – impressionou
seus contemporâneos a ponto de um deles, Teófano de Vatopedi, escrever um
relato de sua vida, de onde foi extraído o diálogo que a Filocalia grega
inseriu na sua conclusão.
Diálogo admirável, entre Máximo e um dos Padres da renovação
hesiquiasta, Gregório o Sinaíta, e que não deixa de lembrar o relato de
Filemon, no século VI, quando o movimento hesiquiasta estava se iniciando no
deserto do Egito. Gregório coloca em primeiro lugar a questão crucial do
carisma do Espírito Santo: a passagem da prece contínua ao arrebatamento do
intelecto, ao êxtase, que ele chama de “transformação divina”. Máximo afirma
peremptoriamente, contra os que negam o sobrenatural, a realidade desta passagem.
Mas ele ao mesmo tempo recusa, não sem humor, toda ostentação do carisma. A
ilusão tem seus sinais, e a graça os seus. O discernimento destes sinais é
fundamental, pois somente ele permite a santidade sacrificial. Isto manifesta e
confirma o testemunho discreto de Máximo, ao final e no próprio coração da
perspectiva hesiquiasta: a atualidade desta.
DA VIDA DE NOSSO
SANTO PAI MÁXIMO CAPSOCALYVITA
O divino Gregório o Sinaíta encontrou um dia a são Máximo e conversou
com ele. Entre outras coisas, disse-lhe: “Ó venerável Padre, diga-me, eu lhe
peço: você tem consigo a prece intelectual?”.
Este sorriu e lhe respondeu: “Não lhe esconderei, venerável Padre, o
milagre que a Mãe de Deus operou por mim. Eu sempre tive, desde a minha
juventude, uma grande confiança na Mãe de Deus. Eu pedia a ela, chorando, que
me concedesse a graça da prece intelectual. Um dia em que, conforme meu
costume, tinha eu ido à igreja que lhe era consagrada, pedi-lhe mais uma vez
com todo meu coração. E, no instante em que me abraçava ao seu santo ícone,
senti no meu peito um calor, como uma chama que provinha do ícone, mas que não
me queimava, mas me cobria como um orvalho, me enchia de doçura e colocava toda
minha alma numa imensa mansuetude. Foi a partir deste momento, Padre, que meu coração
começou a dizer de dentro de si próprio a prece, e que meu intelecto conheceu a
doçura de se lembrar continuamente de Jesus e da Mãe de Deus. A partir de
então, a prece nunca mais deixou meu coração. Perdoe-me”.
O divino Gregório lhe falou: “Diga-me, no momento em que você dizia a
prece ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’, você sentiu
alguma vez uma transformação divina, ou um êxtase, ou qualquer outro fruto do
Espírito Santo?”.
O divino Máximo lhe respondeu: “Ó Padre, se eu me retirei para um
lugar deserto, se sempre desejei a hesíquia, foi justamente para poder
desfrutar daí em diante do fruto da prece, que é um imenso amor a Deus e um
arrebatamento do intelecto no Senhor”.
São Gregório lhe disse: “Eu lhe peço, Padre, diga-me. Você tem consigo
aquilo de que me fala?”. O divino Máximo sorriu outra vez e falou: “Dê-me de
comer... não se inquiete com a ilusão”.
O divino Gregório falou-lhe então: “Possa eu ter em mim esta ilusão,
como a sua. Mas eu lhe peço que me diga o que seu intelecto vê com seus
próprios olhos quando está arrebatado em Deus; e se então lhe é possível elevar
a prece simultaneamente ao coração”.
São Máximo lhe respondeu: “Não, ele não pode. Quando, por meio da
prece, a graça do Espírito Santo chega ao homem, a prece cessa. Pois o
intelecto está inteiramente dominado pela graça do Espírito Santo. Ele já não
pode fazer nada por si mesmo, ele não é capaz de agir. Ele não se submete senão
ao Espírito Santo, e vai para onde este deseja: para o espaço imaterial da luz
de Deus, ou para alguma outra contemplação impossível de descrever, ou, muitas
vezes, para escutar as palavras divinas. O Consolador, o Espírito Santo,
conforta assim seus servidores, conforme lhe apraz. Ele concede sua graça
segundo o que convém a cada um”.
“Podemos ver claramente o que eu digo se considerarmos os profetas e
os apóstolos aos quais foi dado ter tais contemplações, mesmo que os homens se
rissem deles e os considerassem como perdidos e bêbados[70].
O profeta Isaías viu o Senhor sobre um trono elevado, e os serafins que o
rodeavam[71].
Estevão, o primeiro mártir, viu os céus abertos e Jesus à direita do Pai[72].
Do mesmo modo, hoje em dia ainda é concedido aos servidores de Cristo ter estas
visões. Alguns não acreditam nisto, e lhe negam qualquer realidade: acham que
tudo não passa de ilusão, e consideram que quem tem estas visões está perdido.
Eu fico admirado o quanto estes homens são endurecidos. Com a alma cegada, eles
não creem naquilo que o próprio Deus, que não pode mentir, prometeu, pela boca
do profeta Joel, conceder, quando disse: “Eu derramarei a graça de meu Espírito
sobre todos os fiéis, sobre meus servos e servas[73]”.
É esta graça que nos veio trazer nosso Senhor, que ele concede ainda hoje, e
que concederá até o fim do mundo aos seus servidores fiéis, conforme prometido.
Então, quando esta graça do Espírito Santo chega a alguém, ela não lhe mostra o
que ele está acostumado a ver, ela não lhe mostra as coisas sensíveis deste
mundo, mas lhe revela o que ele jamais viu, o que jamais imaginou. Então o
intelecto deste homem recebe do Espírito Santo o ensinamento dos mais altos
mistérios, dos mistérios ocultos que o olho corporal do homem não é capaz de
ver, nem sua inteligência compreender por si própria, como disse o divino Paulo[74]”.
“Para compreender o modo pelo qual o intelecto pode ver os mistérios,
considere o que vou lhe dizer. Enquanto está distante do fogo, a cera é sólida
e pode ser segurada. Mas se você a coloca no fogo, ela se ilumina e queima numa
chama, torna-se luz e se consome inteiramente no fogo. Ela não pode não se
fundir no fogo, nem deixar de liquefazer. Da mesma forma, enquanto o intelecto
do homem está só e não encontrou a Deus, ele só concebe aquilo que está em seu
poder. Mas se ele se aproxima do fogo da Divindade e do Espírito Santo, daí por
diante ele está totalmente sob o domínio da luz de Deus, tornando-se ele
próprio luz, queimando na chama do Espírito Santo e fundindo-se sob os
pensamentos divinos. Daí por diante lhe é impossível, no fogo da Divindade,
conceber por si mesmo o que lhe é próprio e o que deseja conceber”.
O divino Gregório lhe disse então: “Existem coisas aparentadas a
estas, mas que seriam da ordem da ilusão?”.
E o grande Máximo lhe respondeu: “Uns são os sinais da ilusão, outros
os da graça. Pois o espírito maligno, o espírito da mentira, quando se aproxima
do homem, perturba e exacerba o intelecto. Ele endurece e entenebrece o
coração. Ele provoca a preguiça, o medo e o orgulho. Ele apavora os olhos. Ele
faz ferver o cérebro e faz o corpo tremer. Ele revela em imaginação aos olhos
do corpo uma luz que não é clara nem pura, mas vermelha. Ele coloca o intelecto
fora de si e o torna demoníaco. Ele o força a dizer pela boca palavras
blasfemas e maledicentes. Aquele que vê este espírito de ilusão passa a ficar a
maior parte do tempo num espírito de irritação, cheio de cólera, ignorando a
humildade, o verdadeiro luto e as lágrimas, vangloriando-se sempre daquilo que
sabe, vaidoso. Sem a menor reserva, sem temor a Deus, ele vive continuamente
com suas paixões. Acaba por sair totalmente de si e se perder por completo. Que
o Senhor, por nossas orações, nos livre de tal ilusão!”.
“Quanto aos sinais da graça, ei-los aqui: quando a graça do Espírito
Santo vem ao homem, ela reúne seu intelecto, concede que ele seja atento e
humilde, traz consigo a lembrança da morte e dos pecados cometidos, do
julgamento que virá e do castigo eterno. Ela enche sua alma de compunção. Ela o
faz chorar e vestir luto. Ela torna seus olhos mansos e cheios de lágrimas.
Quanto mais ela se aproxima do homem, mais ela apazigua sua alma, consolando-a
com os santos sofrimentos de nosso Senhor Jesus Cristo e com seu infinito amor
pelo homem. Ela suscita em seu intelecto as mais altas contemplações, as
verdadeiras contemplações. Primeiramente, a contemplação do poder
incompreensível de Deus: como, por uma só palavra, ele criou todo o universo e
o levou do nada à existência. Depois, a contemplação do poder infinito por meio
do qual ele mantém e governa tudo, colocando a tudo sob sua providência. Enfim,
a contemplação do mistério da Santa Trindade e do insondável oceano do Ser
divino. Quando o intelecto do homem é assim arrebatado pela luz divina,
iluminado pelo esplendor do conhecimento de Deus, então seu coração se torna
sereno e doce, ele traz os frutos do Espírito Santo, a alegria, a paz, a
paciência, a bondade, a compaixão, o amor e a humildade[75].
E sua alma exulta, inefavelmente regozijada”.
São Gregório o Sinaíta, maravilhado, admirou o que tinha escutado e
que lhe dissera o divino Máximo. E já não dizia que este era um homem, mas um
anjo terrestre.
GREGÓRIO DE
TESSALÔNICA
Este texto composto – tirado em particular dos escritos do patriarca
Filoteu e de Simeão Metafraste – expõe em plena luz o desígnio dos editores da
Filocalia grega, no final do século XVIII: deixar claro que a invocação do nome
de Jesus – a prece contínua – é inerente à identidade cristã e diz respeito a
todos os fiéis, independentemente de seu engajamento ou de seus encargos na
Igreja. Acontece com a mensagem filocálica a mesma coisa que com o Evangelho:
ela não pode ser reservada a alguns. Ela foi feita para todos.
É o que afirma aqui Gregório de Tessalônica (Gregório Palamas) ao
velho Jó. E é o que confirma também a Vida de Constantino, o pai de Gregório,
reportada pelo Patriarca Filoteu, e a Vida de Eudócimo, contada por Simeão
Metafraste.
Assim a prece contínua verifica e orienta a vocação dos fiéis a
recolher o intelecto no abismo do coração, e a unir sem confusão da vida que
levam no século e a exigência evangélica: fechar as portas dos sentidos e pedir
em segredo a graça do Pai das luzes. A abertura para o mundo é aí também tão
completa quanto a consagração à interioridade orante. Este ultimíssimo texto
constitui com toda justiça o “endereçamento” da antologia filocálica.
DA VIDA DE SÃO GREGÓRIO,
ARCEBISPO DE TESSALÔNICA
Que
todos os Cristãos devem orar continuamente
Não se deve pensar, irmãos cristãos, que somente os sacerdotes e os
monges têm o dever de orar continuamente, mas não os leigos. Não, não. Todos os
cristãos têm em comum o dever de estar todo o tempo em oração.
O Patriarca de Constantinopla Filoteu escreveu na Vida de são Gregório
de Tessalônica, que este tinha um amigo muito querido chamado Jó, um homem
muito simples e muito virtuoso. Num dia em que o santo estava conversando com
ele, falou-lhe da prece, dizendo que todo cristão devia simplesmente sempre se
esforçar por orar, e orar continuamente, como ordenou o apóstolo Paulo a todos:
“Orai sem cessar[76]”,
e como disse o profeta Davi, embora tenha sido rei e encarregado de todos os
negócios de seu reino: “Eu tenho sempre o Senhor diante de mim[77]”,
ou seja: por meio da oração, em meu intelecto, eu vejo todo o tempo o Senhor
diante de mim. Da mesma forma, Gregório o Teólogo ensinava a todos os cristãos
que é preciso, na prece, lembrar-se do nome de Deus mais frequentemente do que
se respira[78].
O santo falava destas coisas e de muitas outras a seu amigo Jó. E
acrescentava que devemos obedecer às recomendações dos santos, e que não apenas
devemos orar, nós mesmos, continuamente, como devemos ainda ensinar os demais,
monges e leigos, sábios e ignorantes, homens, mulheres e crianças, e exortá-los
a orar sempre. A coisa pareceu novidade ao velho Jó, e ele se pôs a contestar.
Ele disse ao santo que a prece contínua era própria só aos ascetas e aos monges
que viviam fora do mundo e de suas distrações, mas que era impossível que
orassem sem cessar os que viviam no mundo e tinham tantos cuidados e afazeres.
O santo lhe forneceu ainda outros testemunhos e provas irrefutáveis, mas o
velho Jó não se deixou persuadir. Então o divino Gregório, para fugir da
querela e da discussão, calou-se. Em seguida, cada qual entrou de volta para
sua cela. Mais tarde, quando Jó orava sozinho em sua cela, um anjo do Senhor
lhe apareceu, enviado por Deus que quer a salvação de todos os homens. O anjo
reprovou-lhe haver contestado o que lhe dissera são Gregório e haver se oposto
a ele em coisas que eram com toda evidência a fonte de salvação dos cristãos.
Ordenou a ele em nome do Deus santo que daí por diante fosse mais atento e que
evitasse dizer coisas contra uma obra tão útil à alma, pois ele estaria se
opondo à própria vontade de Deus. Ele o proibiu de aceitar em si doravante
qualquer pensamento contrário, e lhe pediu que considerasse as coisas conforme
o que lhe havia dito o divino Gregório. Então o velho Jó, este homem simples,
correu logo a ver o santo. Ele caiu a seus pés e lhe pediu perdão por ter se
oposto a ele e por haver contestado suas palavras. E lhe revelou o que lhe
havia dito o anjo do Senhor.
Veem, irmãos, que todos os cristãos, do menor ao maior, têm em comum o
dever de orar continuamente, de dizer a prece intelectual ‘Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tenha piedade de mim’, e de acostumar seu intelecto e seu
coração a dizê-la sem cessar? Considerem o quanto esta prece agrada a Deus e
quanto benefício ela nos traz, uma vez que, em sua extrema misericórdia, ele
enviou um anjo celeste para no-la revelar, para que não tivéssemos mais a
respeito nenhuma dúvida?
Mas que dizem os homens que vivem no mundo? “Estamos nomeio de tantos
cuidados e afazeres... Como é possível orar sem cessar?”.
Eu lhes respondo: Deus não nos pede nada impossível. Ele só nos
ordenou aquilo que sempre esteve em nosso poder executar. Todo homem que, esforçando-se,
busca a salvação de sua alma, é capaz de atingir a prece contínua. Pois se a
coisa fosse impossível, ela o seria para todos os leigos, e não encontraríamos
no mundo tantos homens que a obtiveram. O pai de são Gregório é apenas um
exemplo entre muitos. Este homem admirável, chamado Constantino, trabalhava no
palácio do rei. Ele era chamado de pai e mestre do rei Andrônico. Ele se
ocupava diariamente dos negócios reais, sem falar dos assuntos de sua própria
casa, pois era muito rico, tinha muitas propriedades e servidores, além de sua
esposa e filhos. Apesar de tudo, ele jamais se separava de Deus. Ele permanecia
tão voltado para a prece intelectual contínua que muitas vezes esquecia o que
lhe dissera o rei e os ministros do palácio a propósito dos assuntos do reino,
e era obrigado a perguntar reiteradamente sobre os mesmos assuntos. Alguns
ministros, que ignoravam a causa deste comportamento, ficavam contrariados e
lhe reprovavam por esquecer tão depressa e por perturbar o rei repetindo as
questões. Mas o rei, que conheci a causa, o defendia dizendo: “Constantino,
este homem feliz, tem seus próprios pensamentos. E eles o impedem de estar
atento aos assuntos provisórios e vãos de que falamos nós. Mas sua inteligência
está ligada ao que é verdadeiro, às coisas do céu, e assim ele esquece das
coisas terrestres. Pois toda a sua atenção está na prece, e voltada para Deus”.
Como nos conta o santo Patriarca Filoteu, Constantino era assim
venerado e amado pelo rei e por todos os grandes e os ministros do reino, assim
como era amado por Deus a ponto de lhe ter sido concedido fazer alguns
milagres. São Filoteu, na vida de são Gregório, o filho de Constantino, conta
que um dia este embarcara com toda sua família para ir a Gálata ver um
anacoreta que lá vivia em estado de hesíquia, e receber sua bênção. Já em
viagem, ele perguntou aos seus servidores se haviam trazido algum alimento para
oferecer ao abade. Estes responderam-lhe que, na pressa, haviam se esquecido e
que não trouxeram nada. Este homem bendito ficou um pouco entristecido, mas não
disse nada. Ele simplesmente foi até aproa do barco, colocou a mão na água e,
em sua prece intelectual silenciosa, pediu a Deus, o mestre do mar, que lhe
enviasse um peixe. E pouco depois – ó obras maravilhosas, Cristo Rei, pelas
quais, paradoxalmente, você glorifica seus servidores! – ele retirou a mão do
mar, trazendo um grande peixe que atirou ao barco diante de seus servidores,
dizendo: “O Senhor pensou em nós e em seu servidor, o abade, e lhe enviou algo
para comer.” Veem, irmãos, com quanto glória Jesus Cristo glorifica seus
servidores que estão sempre com ele e que invocam continuamente seu nome santo
e dulcíssimo?
Da mesma forma Eudócimo, este homem justo e santo, não morava também
ele em Constantinopla? Não vivia ele no palácio do rei, misturado aos negócios
do reino? Não participava ele da comitiva do rei e dos ministros do palácio, no
meio dos assuntos e das discussões? Malgrado tudo, a prece intelectual jamais o
abandonava, como nos reporta Simeão Metafrastre no relato de sua vida. Assim,
ainda que se encontrasse no mundo e em meio às coisas do mundo, o três vezes
bem-aventurado levava verdadeiramente uma vida angélica acima do mundo, e o
Deus que recompensa lhe concedeu ter um fim divino. Muitos outros ainda, inumeráveis,
viveram da mesma maneira suas vidas no mundo e conseguiram se dedicar a esta
prece intelectual salutar, como podemos ver nos relatos de suas vidas.
Irmãos cristãos, eu lhes peço então, com o divino Crisóstomo, pela
salvação de suas almas, não negligenciem esta obra da prece. Imitem aqueles de
quem lhes falei. E, tanto quanto possível, sigam-nos. Se a coisa lhes parecer
difícil no começo, estejam seguros e certos, como se viesse do próprio Deus que
domina o universo, que o próprio nome de nosso Senhor Jesus Cristo, invocado
por nós a cada dia e continuamente, aplainará todas as dificuldades, e que, com
o tempo, quando nos tenhamos acostumado com este nome, quando formos cumulados
de doçura nele, saberemos por experiência que sua invocação contínua não é nem
impossível nem difícil, mas possível e fácil. É por isso que o divino Paulo,
que, melhor do que nós, sabia o grande bem que proporciona esta prece, nos
exortou a orar sem cessar[79].
Ora, ele não quis nos recomendar uma coisa difícil e impossível, que
não pudéssemos fazer; nós o teríamos necessariamente desobedecido e
transgredido sua ordem, e assim estaríamos condenados. Mas o objetivo do
Apóstolo, ao dizer “Orem sem cessar” era de que oremos com nosso intelecto,
coisa que é sempre possível fazer. Quando trabalhamos com as mãos, quando
caminhamos, quando nos sentamos, quando comemos ou bebemos, sempre podemos orar
com nosso intelecto e trazer conosco uma prece que seja verdadeira e que agrade
a Deus. Podemos trabalhar com o corpo e orar com a alma. O homem exterior pode
cumprir com todas as tarefas corporais enquanto o homem interior está
inteiramente consagrado à adoração a Deus, trazendo consigo sempre esta obra
espiritual da prece do intelecto. É o que nos pede Jesus, o Deus Homem, quando
diz no Evangelho: “Quando você orar, entre em sua câmara, feche a porta e ore a
seu Pai em segredo[80].”
A câmara da alma é o corpo. As portas de nosso ser são os cinco sentidos. A
alma penetra em sua câmara quando o intelecto cessa de ir e vir nas coisas do
mundo e se coloca no centro de nosso coração. E os sentidos permanecem fechados
quando não os deixamos ligados às coisas sensíveis e visíveis. Assim, nosso
intelecto se vê liberado de toda atividade do mundo. Por meio da prece
intelectual secreta, ele se une a Deus, seu Pai. O mesmo Cristo disse também:
“E seu Pai que está no secreto lhe concederá a recompensa[81]”.
Deus, que conhece os segredos dos corações, vê a prece intelectual e a
recompensa concedendo grandes carismas visíveis.
Pois esta prece intelectual é a verdadeira prece, a prece perfeita.
Ela enche a alma da graça divina e dos carismas o Espírito, como o perfume cujo
odor, num vidro, é tanto mais forte quanto mais fechado. O mesmo acontece com a
oração. Quanto mais você a encerrar em seu coração, mais ela encherá o coração
de graça divina. Bem-aventurados os que se dedicam a esta obra celeste. Pois
por meio dela eles superam todas as tentações dos demônios malignos, como Davi
venceu o orgulhoso Golias[82];
por meio dela eles extinguiram os desejos desordenados da carne, como as três
crianças que extinguiram as chamas da fornalha[83];
com ela eles apaziguaram as paixões, como Daniel acalmou os leões selvagens[84];
por meio dela eles fizeram descer o orvalho do Espírito Santo aos corações,
como Elias fez descer a chuva sobre o Carmelo[85].
É esta prece intelectual que sobe até o trono de Deus e é guardada em cálices
de ouro, de onde se eleva seu perfume até o Senhor, como diz João o Teólogo no
Apocalipse: “Os vinte e quatro anciãos se prosternavam diante do Cordeiro com
suas cítaras e com cálices de ouro cheios de perfume, que são as preces dos
santos[86]”.
Esta prece intelectual é uma luz que ilumina sempre a alma do homem e aquece
seu coração nas chamas do amor a Deus. Ela é uma corrente que une Deus ao
homem.
Ó graça incomparável da prece intelectual! Ela permite ao homem estar
sempre em diálogo com Deus. Ó coisa verdadeiramente maravilhosa! Você está com
os homens por meio do corpo, e com Deus por intermédio do intelecto. Os anjos
não possuem uma voz material, mas eles não cessam de glorificar a Deus em seu
intelecto. Esta é a sua obra, e a ela eles se consagram por toda sua vida.
Também você, irmão, quando penetrar na câmara e fechar a porta, ou seja, quando
seu intelecto não se dispersar mais aqui e ali, mas entrar em seu coração,
quando seus sentidos permanecerem fechados e não mais se ligarem às coisas do
mundo, quando você puder assim orar sempre com sua inteligência, você se
tornará semelhante aos santos anjos, e seu Pai, que vê a prece escondida que
você lhe oferece no segredo de seu coração lhe concederá a recompensa de
grandes carismas espirituais. E o que pode você querer mais do que estar sempre
unido a Deus pelo intelecto, como dissemos, e continuamente conversar com ele,
sem o que, nem aqui nem em outra vida, homem algum jamais poderá ser bem-aventurado?
Portanto, irmão, seja você quem for, quando você tomar em suas mãos
este livro e o ler pelo bem de sua alma, eu lhe rogo, lembre-se de invocar a Deus,
de dizer “Kyrie eleison” pela alma pecadora daquele que se esforçou por compor
este livro e daquele que o publicou. Eles têm grande necessidade de sua oração,
para que a piedade divina venha sobre suas almas, como sobre a sua também.
Assim seja.
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COM ESTE TEXTO
ENCERRA-SE A COLETÂNEA
DA FILOCALIA GREGA
Que a paz de Cristo esteja sobre o leitor.
[1]
Cf. João 14: 29.
[2] I Coríntios 12: 3.
[3] I João 4: 2.
[4] Mateus 16: 15-16.
[5]
Cf. Mateus 16: 17.
[6]
Cf. Mateus 18: 16.
[7] I Coríntios 15: 10.
[8] João 21: 16.
[9]
Cf. Marcos 10: 47.
[10]
Cf. Mateus 22: 40; Romanos 13: 10.
[11] Gênesis 19: 24.
[12] Salmo 109 (110): 1.
[13] Lucas 1: 31.
[14] Atos 2: 36
[15] Salmo 114 (115): 6.
[16]
Ver Marcos o Monge, Tratados espirituais
e teológicos, SO 41.
[17]
Marcos o Asceta, Sobre a lei espiritual
69.
[18] Dos que pensam ser justificados 64.
[19]
Cf. Mateus 10: 47.
[20]
Cf. João 9: 38; Sobre a lei espiritual
13-14.
[21]
Gregório de Nazianze, Discurso XXXIX,
8.
[22] Provérbios 1: 7.
[23]
Cf. Salmo 33 (34): 6.
[24] João 14: 12.
[25]
Cf. II Tessalonicenses 3: 3.
[26]
Cf. Salmo 33 (34): 6.
[27]
Cf. Mateus 7: 8.
[28]
Cf. Lucas 11: 13.
[29]
Cf. Mateus 7: 9.
[30]
Cf. II Timóteo 4: 8.
[31]
Cf. Mateus 15: 14.
[32]
Cf. Mateus 7: 12.
[33]
Cf. Salmo 33 (34): 9.
[34] Mateus 17: 4.
[35] Romanos 8: 35.
[36]
Cf. Mateus 15: 19-20.
[37]
Cf. Mateus 23: 26.
[38] Eclesiastes 10: 4.
[39]
Na realidade trata-se de Eclesiastes
10: 4.
[40] Lucas 12: 29.
[41] Mateus 5: 3.
[42]
Cf. Mateus 5: 8.
[43]
Cf. Mateus 5: 3.
[44]
Cf. Mateus 5: 4.
[45]
Cf. Mateus 5: 5.
[46]
Cf. Mateus 5: 6.
[47] Sentenças dos Padres do Deserto, Moisés
6.
[48] A escada santa, XXVIII, 35.
[49]
Cf. Mateus 15: 19.
[50]
Cf. Romanos 11: 16.
[51] Cf. Romanos 12: 12.
[52]
Cf. Mateus 10: 12.
[53]
Cf. I Coríntios 12: 3.
[54]
João Clímaco, A escada santa XX, 7.
[55]
Cf. Deuteronômio 4: 24.
[56]
Cf. Lucas 18: 7.
[57]
Cf. Salmo 50 (51): 19.
[58]
João Clímaco, A escada santa XXVII,
52.
[59]
João Clímaco, A escada santa XXVII,
92.
[60]
Cf. Efésios 2: 14.
[61]
Cf. I Coríntios 7: 24.
[62]
Cf. Romanos 14: 2.
[63] Ezequiel 4: 16.
[64] O
monge independente, ou idiorritmo, é aquele que não tem guia espiritual e que
age segundo sua própria conveniência.
[65]
Cf. Mateus 22: 38.
[66]
Cf. Lucas 12: 49.
[67]
Cf. I Timóteo 2: 4.
[68]
Cf. I Reis 19: 11-12.
[69]
Cf. II Coríntios 11: 14.
[70]
Cf. Atos 2: 13.
[71]
Cf. Isaías 6: 2.
[72] Cf.
Atos 7: 56.
[73] Joel 3: 2.
[74]
Cf. I Coríntios 2: 9.
[75]
Cf. Gálatas 5: 22.
[76] 1
Tessalonicenses 5: 17.
[77] Salmo 15 (16): 8.
[78]
Gregório de Nazianze, Discurso XXVII,
4.
[79]
Cf. 1 Tessalonicenses 5: 17.
[80] Mateus 6: 6.
[81] Ibid.
[82]
Cf. I Samuel 17: 51.
[83] Cf. Daniel 3: 24-25.
[84] Cf. Daniel 6: 18-19.
[85] Cf. I Reis 18: 45.
[86] Apocalipse 5: 8.
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