segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Filocalia Tomo II Volume 4 - Opúsculos em grego demótico

OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO





No final da Filocalia foram inseridos alguns opúsculos ou extratos de obras de Padres traduzidos (provavelmente pelos próprios compiladores, Macário e Nicodemo) em grego demótico, o grego moderno falado, com o objetivo de torna-los acessíveis a todos os cristãos, em razão de sua utilidade. Alguns destes textos já se encontram em um ou outro dos autores publicados; as concordâncias encontrar-se-ão assinaladas.


Sobre as palavras da prece divina
Interpretação do Kyrie eleison
De São Simeão o Novo Teólogo:
Discurso sobre a fé e o ensinamento
Sobre os três modos da prece
De são Gregório o Sinaíta
Da vida de são Máximo o Capsocalyvita
Da vida de são Gregório de Tessalônica


SOBRE AS PALAVRAS DA PRECE DIVINA

O “Discurso sobre as palavras da prece divina” é o primeiro dos sete textos em língua demótica que aparecem como o testamento da Filocalia, pois as dificuldades dos tempos pediam, para os editores de 1782, uma interiorização e uma realização da vida monástica na oração permanente de todos os cristãos. Este discurso, atribuído pela Filocalia a um “santo anônimo”, é de fato a paráfrase de um texto das primeiras décadas do século XV, devido a Marcos Eugênicos, arcebispo de Éfeso, morto em 1429. Ele se segue naturalmente aos capítulos de Simeão de Tessalônica. Mas Simeão apresentava e exortava, enquanto Marcos de Éfeso aprofunda e explica. Ele esclarece que a “prece divina” – a prece do coração – tem sua origem na Sagrada Escritura, que ela perpetua e realiza lembrando continuamente estes dois polos: o nome e a graça de Deus. O próprio nome – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” – nos foi confiado pelos três testemunhos-chave do Novo Testamento, Paulo, João e Pedro. E o apelo à graça – “tenha piedade de mim” – nos foi transmitido pelo cego que, no Evangelho, implora pela compaixão de Jesus. A prece do coração integra assim os dados fundamentais da revelação evangélica (o Senhor é Jesus, Jesus é o Cristo, o Cristo é o Filho de Deus) e estabelece o fiel, por meio da piedade e a graça, no coração da redenção. Ela é assim a própria ortodoxia da fé cristã. Ela explicita a natureza humana e a natureza divina de Cristo, ao mesmo tempo que a união e a distinção das duas naturezas numa mesma hipóstase: a resposta, pura e simples, lapidar e luminosa, a todas as heresias, e sobretudo o fruto que a ascese hesiquiasta colhe e prova sobre aquilo que a Filocalia chama de a “grande e bela árvore” da revelação bíblica.

De um santo anônimo

Discurso admirável sobre as palavras da prece divina
“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”.


Que poder tem a prece “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”? E de quais graça ela cumula os que a praticam? E a que estado de dignidade os conduz? Não nos é possível dizer e revelar tais coisas, por que isto nos ultrapassa. Diremos apenas de onde vem esta oração, e quem foram os primeiros a pronunciar suas palavras.

Esta oração tem sua origem na Sagrada Escritura. E foram os três grandes apóstolos de Cristo, Paulo, João e Pedro, que disseram as suas palavras. Foi deles que as recebemos, como uma herança transmitida pelos Padres. Elas são oráculos divinos, revelações do Espírito Santo, vozes de Deus. Com efeito, nós cremos que todos os ditos e escritos dos divinos apóstolos que traziam em si o Espírito são palavras de Cristo, que as disse por suas bocas. Pois nosso Senhor, no santo Evangelho, prometeu a eles que ele próprio, o Filho, o Pai e o Espírito Santo viriam fazer neles sua morada[1], e não apenas neles, os apóstolos, mas em todo cristão que observe seus mandamentos.

Foi assim que o divino Paulo, que foi considerado digno de ser elevado até o terceiro céu, disse do Senhor Jesus: “Ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ se não for no Espírito Santo[2]”. Ao afirmar que ninguém pode dizer este nome do Senhor Jesus fora do Espírito Santo, o apóstolo Paulo revelou de maneira admirável que este nome é muito mais alto do que todos os outros nomes, e que ele os domina: é por isso que é impossível pronunciá-lo fora do Espírito Santo. Quanto a João o Teólogo, que revelou como um trovão as coisas do Espírito e da teologia, ele tomou o final das palavras de Paulo para delas fazer o início. Ele disse: “Todo espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é de Deus[3]”. Ao afirmar que todo espírito que confessa o nome de Jesus Cristo é de Deus, este apóstolo divino mostra com suas palavras que o nome e a confissão de Jesus Cristo são da ordem da graça divina e espiritual, que esta não é uma coisa simples e fortuita. Da mesma forma Pedro, o príncipe dos apóstolos, tomou o final das palavras de João – ou seja, “Cristo” – e dela fez outro início. A nosso Senhor que perguntou aos seus discípulos: “Quem vocês dizem que sou?”, Pedro respondeu: “Você é o Cristo, o Filho de Deus[4]”, palavras que Deus Pai lhe revelou do céu, como testemunha nosso Senhor no Evangelho[5].

Considere como em suas palavras divinas estes três santos apóstolos de Cristo se apoiam um no outro para formar um círculo. Cada qual recebeu do outro as palavras divinas, de modo a colocar no começo a palavra que o anterior havia colocado no final, e assim realizaram a oração. Paulo disse “Senhor Jesus”, João disse “Jesus Cristo” e Pedro disse “Cristo, Filho de Deus”. Existe aí um círculo admirável. O final “Filho de Deus” se une ao começo “Senhor”. Pois é a mesma coisa dizer “Senhor” e “Filho de Deus”, por que as duas coisas manifestam a divindade do Filho único de Deus.

É assim que os bem-aventurados apóstolos nos ensinaram a dizer no Espírito Santo e a confessar “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”. O fato de que eram três os torna dignos de fé. Pois toda palavra deve ser assegurada e confirmada por três testemunhas[6].

Mesmo a ordem segundo a qual os apóstolos disseram estas palavras não é sem razão, mas tem sua explicação. O primeiro a dizê-las foi Paulo, depois João e enfim Pedro. A tradição mística da prece “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” começou por Paulo, que foi o último dos discípulos de Cristo, depois através de João ela chegou a Pedro, que foi o primeiro, e nele ela se realizou. Ora, existe aí, penso eu, um sinal da ordem segundo a qual nós progredimos para nos unir a Deus pela ação, a contemplação e o amor. Pois Paulo significa a ação, como ele próprio disse: “Eu trabalhei mais do que todos[7]”. João representa a contemplação, como indica seu nome de Teólogo. E Pedro representa o amor, como nosso Senhor testemunhou ao dizer-lhe: “Pedro, você me ama? Apascenta minhas ovelhas[8]”. Assim, aquele que se dedica à prece progride primeiro na virtude ativa, depois se eleva da ação à contemplação e enfim adquire o amor de Cristo e se une a ele.

Mas estas palavras divinas da oração não significam apenas isso. Elas revelam igualmente a justa doutrina de nossa fé e derrubam todas as heresias. Com efeito, “Senhor” manifesta a natureza divina de Cristo e derruba a heresia dos que afirmam que ele foi apenas um homem e que não é Deus. “Jesus” manifesta a natureza humana de Cristo e derruba a heresia dos que dizem que ele é somente Deus e que ele não foi homem, ou que ele foi homem apenas na aparência. “Cristo” manifesta as duas naturezas, a divina e a humana, as duas numa só pessoas, numa só hipóstase, e derruba a heresia dos que dizem que em Cristo existem duas hipóstases separadas uma da outra. Por fim, “Filho de Deus” manifesta que, em Cristo, a natureza divina, depois de se ter unido à natureza humana, não se confunde com ela, e que, da mesma forma, a natureza humana não se confunde com a natureza divina. “Filho de Deus” derruba assim a heresia dos que dizem que a natureza divina e a natureza humana em Cristo se confundem e estão misturadas uma à outra. Essas quatro palavras, que são palavras divinas e punhais espirituais, derrubam e refutam dois pares de heresias que se opõem entre si na malícia e na divisão, mas que se unem e concordam na impiedade.


Isto é o que nos transmitiram nossos Padres, estes homens perfeitos que possuíam a sabedoria de Deus, que traziam em si o Espírito, que imprimiram em seus corações e amaram desmesuradamente, como nos ensinaram os apóstolos, cada uma das palavras divinas “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”, e, em especial, o nome dulcíssimo de “Jesus”. Eles fizeram deste único nome uma prece perfeita e total. Continuamente, durante toda sua vida, eles se esforçaram por se saciar da doçura de Jesus. Eles sentiam todo o tempo fome e sede de Jesus, ainda que estivessem cheios de alegria espiritual inefável, ainda que houvessem recebido os carismas de Deus e estivessem doravante livres da carne e deste mundo, como anjos terrestres ou homens celestes, tão grande era a altura da virtude à qual se elevaram por meio deste doce nome de Jesus.

Entretanto, a nós, os noviços e imperfeitos, eles ensinaram ainda a dizer: “Tenha piedade de mim”. Ou seja, “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”. E isto para permitir que conheçamos nossa medida e nosso estado, que saibamos que temos necessidade do enorme e rico amor do Deus Santo e que somos como aquele cego de que fala o Evangelho, e que, desejando ver a luz com seus olhos, clamou no momento em que nosso Senhor passava, dizendo: “Jesus, tenha piedade de mim![9]”. Da mesma forma, nós, que somos cegos na alma, pedimos a Deus que nos revele seu amor e que nos abra os olhos da alma, para que possamos ver com o intelecto. É por isso que nos foi ainda prescrito dizer: “tenha piedade de mim”.

Alguns, querendo colocar aí também o amor ao próximo, dizem assim a oração: “Senhor Jesus Cristo, nosso Deus, tenha piedade de nós”. Assim eles oram por todos os irmãos. Pois eles sabem que o amor é a realização da Lei e dos Profetas[10], que ele consiste numa virtude que contém em si todos os mandamentos e todas as obras espirituais. Assim eles unem à sua prece o amor ao próximo. Eles pedem a Deus que tenha piedade deles e de seus irmãos. Eles pedem assim sobre estes em primeiro lugar o amor de Deus. Pois eles mencionam a Deus pensando nos outros. Eles chamam nosso Deus para todos, e lhe pedem para dispensar a mesma piedade a todos os irmãos. Enfim, o amor do Deus boníssimo vem regularmente a nós quando este vê que mantemos a fé correta nos dogmas e a perfeição dos mandamentos nas obras, estas duas coisas que contém em si o curto verso da prece: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de nós”.

Se quisermos ainda examinar o tempo em que foram pronunciados originalmente estes nomes divinos “Senhor Jesus Cristo”, encontrá-los-emos novamente na mesma ordem em que os dizemos. Com efeito, dizemos primeiro “Senhor”, depois “Jesus” e enfim “Cristo”. Por toda parte no Antigo Testamento, tanto antes como depois da Lei, o Filho e Verbo de Deus é chamado de “Senhor”. No tempo de Ló, foi dito: “O Senhor fez chover o fogo que veio do Senhor[11]”. E nos Salmos Davi afirma: “O Senhor disse ao meu Senhor[12]”. Também no Evangelho, no momento em que Gabriel anunciou à Mãe de Deus que o Verbo de Deus iria se tornar homem, ele disse a Maria: “Você o chamará pelo nome de Jesus[13]”. Pois o Filho e Verbo de Deus, sendo Senhor, Mestre do universo e Deus, quis, em sua bondade e misericórdia extremas, tornar-se homem para salvar o homem. E ele foi chamado de Jesus, nome que quer dizer Salvador e Redentor do homem. Enfim, “Cristo” manifesta a deificação da natureza humana que nosso Senhor tomou quando se encarnou e se tornou homem. Antes de sua Paixão e morte, ele proibia seus discípulos de chamá-lo de Cristo. Mas depois de sua Paixão e de sua Ressurreição, foi com toda liberdade que o apóstolo Pedro, diante do povo judeu, o chamou de Cristo, dizendo: “Que toda a casa de Israel saiba que Deus o tornou ele próprio Senhor e Cristo[14]”. Pois a natureza humana que o Filho e Verbo de Deus tomou recebeu a unção de sua divindade e foi semelhante a Deus, a partir do momento em que Cristo foi crucificado, ressuscitou dos mortos, subiu aos céus e sentou-se à direita do Pai. Foi, portanto, depois da Ascenção, que chegou o tempo em que foi revelado este nome de Cristo. Então os apóstolo anunciaram que Jesus era o Cristo, Filho de Deus e Deus.

É assim que o chamamos em primeiro lugar “Senhor”, depois “Jesus” e enfim “Cristo” e “Filho de Deus”, tal como aparece na oração “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”, oração que, em sua sabedoria divina, nossos Padres receberam dos santos apóstolos como uma herança ancestral, e que eles nos transmitiram. Nós mesmos, tanto quanto podemos, dizemos as palavras desta prece, como colhemos as flores de uma grande e bela árvore. Agora, onde se encontram os frutos que amadurecem em si as palavras divinas, que outros o digam, aqueles que, com tempo e experiência, progrediram nesta obra da oração, que provaram da doçura deste fruto e que alcançaram a perfeição.

INTERPRETAÇÃO DO KYRIE ELEISON

Sucedendo a dois textos apologéticos sobre a prece do coração (uma simples apresentação e uma explicação bíblica), esta breve interpretação anônima do “Kyrie eleison” aparece sobretudo como uma advertência e uma defesa. Ela relembra as origens bíblicas a apostólicas da prece do coração (em especial o “Kyrie eleison”, ou “Senhor, tenha piedade” dos salmos), mas explica ainda que pedir a piedade do Senhor não faz sentido a menos que saibamos com certeza e consciência o que estamos invocando quando dizemos “Senhor”.

Esta observação toca num dos pontos mais delicados da vida espiritual, já sublinhado no Evangelho: orar não pode ser nem um hábito, nem uma ostentação. Orar implica sempre uma dupla consciência que a um tempo quebranta e abre o coração: a consciência da perdição do homem e a consciência da compaixão do Senhor, sendo que a piedade aqui não é outra coisa do que, como é afirmado, “a graça do Espírito Santo”, ou seja, o dom da deificação. Vale dizer, este é o alcance máximo da prece do coração, e isto mostra a importância deste pequeno texto


De um santo anônimo


1. A oração “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”, e mais resumidamente “Senhor, tenha piedade” (“Kyrie eleison”) foi dada aos cristãos desde a época dos apóstolos, e lhes foi prescrito que a dissessem continuamente. Mas o que significa este “Kyrie eleison”? Muito poucos o sabem hoje em dia. É por pura perda de tempo, ou mesmo por nada, que se diz “Senhor, tenha piedade”. Não se recebe assim a piedade de Deus, porque não se sabe o que está sendo pedido. É preciso saber que o Filho e Verbo de Deus se tornou Senhor e Mestre da natureza humana a partir do momento em que se encarnou, ou em que ele se fez homem, quando ele sofreu tormentos, quando foi crucificado e quando, espalhando seu santíssimo sangue, resgatou os homens das mãos do diabo. Pois antes de se encarnar, ele era o Senhor de todas as criaturas visíveis e invisíveis: ele era seu Criador. Quanto aos homens e aos demônios que não quiseram de boa vontade tê-lo como Senhor e Mestre, o Senhor do mundo inteiro não se tornou seu Senhor. Pois o Deus boníssimo, tendo feito os anjos e os homens livres e tendo lhes dado a razão para que eles tivessem o conhecimento e o discernimento, não quis, sendo justo e verdadeiro, lhes retirar a liberdade nem dominá-los à força e contra sua vontade. Mas ele é o Senhor e Mestre apenas dos que querem se submeter ao poder e ao governo de Deus. Quanto aos que não o querem, ele os deixa fazer sua vontade, pois eles são livres.

2. Assim é que quando Adão, seduzido pelo diabo rebelde, se revoltou contra Deus e se recusou a obedecer seu mandamento, Deus lhe deu a liberdade e não quis dominá-lo à força. Mas o diabo invejoso, que havia enganado a Adão no começo, não parou de enganá-lo até conseguir torná-lo semelhante em irracionalidade aos animais desprovidos de inteligência, e ele passou a viver daí em diante como um animal privado de razão e de intelecto. Deus, em sua grande compaixão, teve por fim piedade dele. Ele inclinou os céus e desceu à terra, e se fez homem para o  homem. Com seu sangue puríssimo ele o libertou da escravidão do pecado. Pelo santo Evangelho, ele o conduziu pelo caminho de uma vida agradável a Deus e, segundo João o Teólogo, ele nos deu o poder de nos tornarmos filhos de Deus. Ele nos regenerou pelo batismo divino. Ele nos tornou novas criaturas. Pelos sacramentos, ele alimentou a cada dia e vivificou nossas almas. Numa palavra, em sua extrema sabedoria, ele abriu a via que o tornou para sempre inseparável de nós, como nós dele, para que o diabo não mais tivesse lugar em nós.

3. Aqueles cristãos que, depois de receber de Cristo seu Mestre tantas graças e tantas benesses, se deixaram novamente enganar pelo diabo, que se afastaram de Deus por causa do mundo e da carne e que foram dominados pelo diabo cuja vontade cumprem, mas que não são insensíveis a ponto de não perceberem o mal que sofreram, que compreendem sua falta e reconhecem a escravidão em que se encontram, mas que não podem sozinhos se libertar e pedem socorro a Deus, estes dizem “Senhor, tenha piedade”, para que o Senhor, em seu grande amor, os cumule com sua misericórdia e compaixão, para recebê-los como filhos pródigos, para dar-lhes outra vez a graça divina, a fim de que sejam libertados do pecado pela graça, para que se afastem dos demônios, para que recuperem sua liberdade, e que assim possam viver agradando a Deus e cumprindo seus  mandamentos. Estes cristãos, que dizem Kyrie eleison com tal finalidade querem com isto descobrir a compaixão do Deus boníssimo, querem receber sua graça, a fim de se libertarem do pecado e ser salvos.

4. Mas os que não têm a consciência total disto que dissemos não sabem, para sua infelicidade, que estão subjugados às vontades da carne e às coisas deste mundo e não têm tempo para pensar na escravidão em que se encontram. Este não é seu objetivo. E se eles dizem Kyrie eleison é, acima de tudo, pelo costume de dizê-lo. Como poderão eles receber a compaixão de Deus, uma compaixão tão maravilhosa e infinita? Melhor seria não receber a compaixão de Deus, do que recebê-la e novamente a perder, pois então a falta será dupla, como se colocassem uma pedra preciosa nas mãos de uma criança ou de alguém que não soubesse seu valor. Se estes recebem a pedra e a perdem, é evidente que a culpa não é deles, mas de quem a deu para eles.

5. Para melhor compreensão daquilo que estamos dizendo, considere que aquele que é pobre e indigente neste mundo e que deseja receber a esmola de um rico, vai ao seu encontro e diz: “Tenha piedade de mim”, ou seja: “Tenha compaixão de minha pobreza e me dê algo para viver”. Do mesmo modo, quem tem uma dívida e deseja que seu credor o perdoe, vai à sua procura e lhe diz: “Tenha piedade de mim”, ou seja: “Tenha compaixão de minha indigência e me perdoe a dívida que eu tenho para consigo”. Também o que cometeu uma falta, se quer que o ofendido o perdoe, vai encontrá-lo e lhe diz: “Tenha piedade de mim”, vale dizer: “Perdoe a ofensa que lhe fiz”. Mas o pecador diz a Deus: “Tenha piedade de mim” e não sabe nem o que diz, nem por que o diz, nem em que lhe será boa esta piedade que pede. É apenas por costume que ele diz “Senhor, tenha piedade”. Assim é que ele não sabe nada. A partir daí, como poderá Deus lhe conceder uma piedade que ele próprio desconhece, que ele desdenha, que ele vai logo por a perder para pecar novamente?

6. A piedade de Deus não é outra coisa que a graça do Espírito Santo, esta graça que nós, os pecadores, devemos pedir a Deus dizendo continuamente o Kyrie eleison, ou seja: “Meu Senhor, tenha piedade de mim pecador, nesta miséria em que me encontro, e receba-me de novo em sua graça. Dê-me um espírito de poder para que eu tenha a força de resistir às tentações do diabo e aos maus hábitos do pecado. Dê-me um espírito de sabedoria para que eu me torne sábio, para que eu perceba a mim mesmo e me corrija. Dê-me um espírito de temor, para que eu o reverencie e guarde seus mandamentos. Dê-me um espírito de amor, para que eu o ame e não mais me afaste de você. Dê-me um espírito de paz, para que eu mantenha minha alma tranquila, para que eu recolha todos os meus pensamentos e permaneça calmo e sereno. Dê-me um espírito de pureza, para que eu me guarde puro de toda mancha. Dê-me um espírito de doçura, para que eu seja afável com meus irmãos cristãos e me abstenha de toda cólera. Dê-me um espírito de humildade, para que eu não me veja nas alturas e não me torne orgulhoso”.

7. Aquele que conhece a necessidade que tem de todas essas coisas e que as pede a Deus em seu grande amor, dizendo Kyrie eleison, este receberá certamente aquilo que pede e obterá do Senhor sua piedade e sua divina graça. Mas aquele que nada sabe daquilo que dissemos, e que diz Kyrie eleison apenas por costume, não é possível que receba a piedade de Deus. Pois no começo ele recebeu de Deus muitas graças, mas não as reconheceu e não agradeceu a Deus por tê-las concedido. Ele recebeu a piedade de Deus quando foi criado, quando foi feito homem; ele recebeu a piedade de Deus quando foi recriado pelo santo batismo, quando se tornou cristão ortodoxo. Ele recebeu a piedade de Deus quando foi libertado de tantos perigos da alma e do corpo que experimentou durante sua vida. Ele recebeu a piedade de Deus todas as vezes que lhe foi concedido comungar os santos sacramentos. Ele recebeu a piedade de Deus todas as vezes em que pecou contra Deus e o feriu com suas faltas, e no entanto não foi destruído nem castigado como merecia. Ele recebeu a piedade de Deus quando, de um modo ou de outro, foi beneficiado pela graça divina sem que a tenha reconhecido. Ele esqueceu tudo isso e não se ligou na sua salvação. Assim, como poderá este cristão receber a piedade de Deus, uma vez que ele não o sente, não reconhece esta graça que recebeu de Deus como dissemos, e que ele não sabe o que diz, dizendo Kyrie eleison sem objetivo nem finalidade, apenas pela força do hábito?


DISCURSO SOBRE A FÉ E O ENSINAMENTO


Situado no centro da demonstração e da exortação finais dos editores da Filocalia, este “Discurso sobre a fé e o ensinamento” de Simeão o Novo Teólogo é uma transcrição de sua Catequese XXII, parcial e parafraseada, embora fiel quanto à essência. Simeão coloca nos lábios de uma terceira pessoa, ao modo de são Paulo, a confissão de uma experiência pessoal da luz incriada, este êxtase que, com pudor e prudência, aproximam e selam a maior parte dos textos da antologia, em especial os últimos, e que Simeão apresenta aqui em preto no branco, na linha reta das teofanias bíblicas: “De todas as partes ele não via senão a luz, diz ele. Ele esqueceu do mundo inteiro. Ele era um com a luz divina, e lhe parecia que ele próprio havia se tornado luz”.

Toda a mensagem filocálica se abre e se coloca nesta atestação extrema dos vetores e das visadas de uma fé que não está apenas projetada num devir absoluto, nem apenas mergulhada nos abismos da interioridade, mas vivida ao mesmo tempo na atualidade da história e a vinda próxima. Na fina ponta incandescente da mensagem, a ascese hesiquiasta (para Simeão, o primado da consciência, a necessidade do pai espiritual, a referência à tradição dos monges) não conduz senão a manter no fogo da fé e a levar ao estado de graça, à força de orações, independentemente de lugar, de tempo e de situações, o primeiro mandamento: amar a Deus, totalmente.

O “Discurso sobre os três modos da fé”, que a Filocalia grega lhe atribui igualmente, seria na verdade obra de Nicéforo o Solitário, e deveria assim datar do final do século XIV. Existe aí, de qualquer modo, uma última colocação, onde encontramos apontados os princípios e os desfechos da longa experiência do estado de oração, tal como aparece destilada no florilégio. Importante texto, portanto, que mistura a apologia e a análise crítica, e que coloca a oração em seu verdadeiro lugar: um encaminhamento atento entre o estado de perdição e o estado de graça.

Pois ninguém seria capaz de orar em verdade sem estar atento ao conteúdo e ao alcance da oração. Donde, por toda a tradição hesiquiasta, a estreita conexão, que de início relembra o Discurso, entre prece e atenção (favorecida em grego pela similitude das palavras proseuché e prosoché). A atenção precede e permite a oração, que se desenvolve segundo três modos complementares. O primeiro prepara o segundo, e este o terceiro, formando os três modos um conjunto indissociável. Se os dois primeiros se fecham sobre si mesmos e deixam de visar o terceiro, eles conduzem à perdição.

O primeiro modo é a manifestação da graça. A compreensão das Escrituras, o desejo do amor de Deus, tudo aí é manifesto. Mas este não é senão um trampolim visível para o estado de graça. Se ele tomar a si próprio como o estado de graça, ele arrisca perder-se na ilusão.

O segundo modo é a guarda dos sentidos. É o combate que o intelecto em oração conduz para se libertar das coisas do mundo. Mas o combate não pode ser um fim em si. Por si só ele não é capaz de realizar a vida espiritual. A suficiência do asceta aparece aqui como um impasse. O combate, conforme está dito, arrisca então tornar-se mera vaidade.

O terceiro modo é a guarda do coração, que permite ao intelecto que ora “ver este espaço que existe no interior do coração, e ver a si mesmo inteiramente luminoso”. O monge cessa de considerar que ele está em primeira linha na busca da graça e do combate espiritual. Ele se confia a um pai espiritual como se fosse a Deus, e em tudo implora o socorro. Uma única obrigação: “Você deve guardar sua consciência pura, para Deus, para seu pai espiritual, para os outros homens, para as coisas do mundo”. O modo final permite assim aos dois primeiros saírem humildemente de si mesmos, pela absorção pura e simples de toda ostentação e de todo combate no espaço do coração: a própria liberdade do estado de graça.




SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO

1
DISCURSO SOBRE A FÉ E O ENSINAMENTO

Para aqueles que dizem que não é possível a quem vive no mundo submetido às suas necessidades, alcançar a perfeição da virtude. Para começar, um relato muito útil.


Irmãos e Padres bem-amados, é coisa muito boa, e útil à alma, pregar comumente a todos a grande e infinita piedade de nosso Deus boníssimo e cheio de compaixão, e revelar a todos os nossos irmãos cristãos o oceano insondável da misericórdia e da bondade que Deus tem para conosco. Ora, eu, como meus irmãos podem ver e o sabem muito bem, nunca tive como ações minhas, nem jejuns numerosos e excessivos, nem vigílias, não dormi no chão duro, jamais mortifiquei meu corpo além da conta, mas conheci minha indignidade, refleti sobre meus pecados, condenei a mim mesmo, humilhei-me, e o Senhor misericordioso e boníssimo me salvou, como disse o divino Davi: “Eu me humilhei, e ele me salvou[15]”. Numa palavra, não fiz mais do que acreditar nas palavras de Deus, e o Senhor meu Deus me recebeu com esta fé. Pois quem adquire a humildade encontra diante de si muitos obstáculos. Mas a quem descobre a fé e crê nas palavras de Deus nada é capaz de se opor. Se, com efeito, desejamos com toda nossa alma encontrar a fé, depressa e sem pena a encontraremos, uma vez que a fé é uma graça do Deus boníssimo, que a coloca naturalmente à nossa disposição, apenas a queiramos possuir. É por isso que vemos que os bárbaros e os pagãos possuem uma fé natural, cada um crendo nas palavras do outro e tendo mútua confiança em seu meio.

Mas, para provar a vocês o que eu digo, com fatos e não apenas com palavras, escutem este relato:

Um homem chamado Jorge, na flor da idade – por volta de uns vinte anos – morava em Constantinopla, em nosso tempo. Ele era muito bonito, e seus movimentos eram tão estudados, que muitos levantavam suspeitas a seu respeito, principalmente aqueles que tinham por hábito não ver senão o exterior das pessoas e que, sem conhecer os segredos de cada um, condenam e julgam sem consideração aos demais. Este jovem soube de um monge que morava em um mosteiro de Constantinopla. Tendo revelado a ele todos os segredos de seu coração, ele acrescentou que desejava a salvação de sua alma e que tinha um grande desejo de abandonar o mundo e se tornar monge. O venerável ancião louvou o seu desejo, deu-lhe os conselhos necessários e confiou a ele o livro de são Marcos o Asceta[16], para que nele pudesse ler o que o santo dizia da lei espiritual. O jovem recebeu o livro com tanto amor e piedade como se viesse do próprio Deus, com a confiança e a esperança de extrair grandes benefícios dali. Voltando à sua casa, pôs-se a ler o resto do dia com muita atenção. Depois releu, piedosamente, umas três ou quatro vezes. E, como esperava, sentiu-se grandemente confortado. Mas ele reteve principalmente três capítulos, que deixou impressos em seu coração, e tomou a decisão de coloca-los em prática e observá-los atentamente. O primeiro capítulo dizia o seguinte: “Se você busca a cura de sua alma, cuide para que sua consciência não tenha do que acusá-lo. Tudo o que ela lhe mandar fazer faça, e você obterá disto um grande benefício[17]”. O segundo dizia: “Quem procura adquirir os carismas do Espírito Santo antes de praticar os mandamentos de Deus é semelhante ao escravo que, no mesmo instante em que é adquirido por seu senhor, reclama sua liberdade[18]”. O terceiro dizia: “Quem reza apenas com a boca e ainda não adquiriu o conhecimento espiritual nem sabe orar com seu intelecto é semelhante ao cego que clamava: ‘Filho de Davi, tenha piedade de mim[19]’. Mas quem adquiriu o conhecimento espiritual, que ora com seu intelecto e que abriu os olhos de sua alma, é semelhante a este mesmo cego depois que o Senhor o curou de sua cegueira: ele recebeu a luz em seus olhos e viu o Senhor, de maneira que já não diz ‘Filho de Davi’, mas ‘Filho de Deus’, e ele o adora como convém[20]”.

Estes três capítulos agradaram muito ao jovem. Ele ficou maravilhado, e recebeu uma certeza plena em sua alma, e acreditou sem sombra de dúvida que ele obteria um grande benefício em obedecer à sua consciência, como dizia são Marcos, que ele desfrutaria dos carismas do Espírito Santo e de sua energia, se ele observasse os mandamentos de Deus, e que, enfim, pela graça do Espírito Santo, ele se tornaria digno de abrir os olhos da alma e de ver o Senhor com olhos de seu intelecto. Ele esperava contemplar esta indizível beleza do Senhor e foi ferido de tanto amor quanto desejava. Entretanto, ele não fez nada além, como me afirmou mais tarde sob juramento, do que rezar e se prosternar toda noite, antes de ir para cama dormir, conforme o que lhe havia sido recomendado pelo ancião.

Algum tempo depois, numa noite em que ele seguia a regra ditada pelo ancião e sempre atento à sua consciência, ela lhe ordenou que continuasse a rezar e a se prosternar, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”, por tanto tempo quanto pudesse. De bom coração ele obedeceu e logo se pôs, sem a menor hesitação, a fazer o que lhe ordenava sua consciência, persuadido de que era o próprio Deus quem lhe pedia que agisse assim. A partir daí, ele nunca mais se deitou para dormir sem primeiro fazer o que lhe ordenara sua consciência. E, como ele não cessava de escutá-la e ela não cessava de lhe pedir sempre mais, em pouco tempo sua oração da noite se alongou grandemente. De fato, durante o dia ele dirigia a casa de um patrício, ocupando-se de muitos negócios, ia cotidianamente ao Palácio, e quase não lhe restava tempo para orar. Mas à noite, antes de se recolher, ele orava como dissemos. Sem coração se enchia de calor e compunção, e as lágrimas escorriam de seus olhos. Ele multiplicava as prosternações e, gemendo e chorando, rezava também à Mãe de Deus. Parecia-lhe que o Senhor estava em pessoa diante dele, e ele se prosternava a seus pés e lhe pedia que tivesse compaixão de si, como o cego de que fala o Evangelho, e que desse luz aos olhos de sua alma. Assim, a prece que ele fazia alongava-se cada dia mais. Enquanto rezava, ele se mantinha reto como uma coluna, sem mexer os pés ou qualquer membro de seu corpo e sem voltar os olhos para olhar aqui ou ali, e permanecia imóvel, com grande temor e tremor.

Assim, numa noite em que ele orava e dizia em seu intelecto: “Deus, tenha compaixão de mim, pecador”, um esplendor divino brilhou subitamente sobre ele e encheu de luz o quarto. O jovem, extasiado, perdeu a consciência de si mesmo e até esqueceu que estava em uma casa. Pois de todos os lados ele não via senão luz e já não sabia se tinha os pés no chão ou se planava no ar, e em seu intelecto não havia a menor preocupação com seu corpo. Ele esqueceu o mundo inteiro. Ele era uma coisa só com a luz divina, e parecia-lhe ter ele próprio se tornado luz. Ele encheu-se de lágrimas e de uma alegria indizíveis. Então seu intelecto se elevou aos céus e lá ele viu uma luz ainda mais radiante e, junto a esta luz, apareceu-lhe o santo ancião que lhe havia dado o livro do abade Marcos e a regra.

Quando eu ouvi o relato do jovem, eu pensei que a intercessão do ancião foi de um grande auxílio para ele, e que deste modo a providência de Deus lhe tinha mostrado em que altura de virtude se encontrava este santo, permitindo a ele vê-lo junto a tamanha luz.

Passada a contemplação o jovem voltou a si, cheio de alegria e maravilhado. Ele chorou do fundo de seu coração e suas lágrimas foram acompanhadas de uma doçura extrema. Finalmente ele caiu sobre seu leito, e no mesmo instante o galo cantou. Pouco depois, as igrejas soaram as matinais, e ele se levantou para salmodiar conforme seu costume. Durante toda a noite ele não havia dormido, nem sequer cochilado um pouco.

Eis o que aconteceu ao jovem. Como ele próprio me afirmou, ele não fez nada além daquilo que vocês ouviram. Simplesmente – e foi por isto que lhe foi concedida esta contemplação – ele teve uma fé e uma esperança resolutas. E que ninguém diga que ele fez isto para tentar uma experiência, pois conforme me relatou isto jamais lhe passou pela cabeça. Ele não teve mais do que a resolução de sua fé. Ele apenas rejeitou de seu pensamento toda ideia relativa à carne e ao mundo, e tomou tanto cuidado em guardar sua consciência e de seguir bem aquilo que ela lhe dizia, que estava como que insensível a todas as coisas desta vida. Comer e beber lhe eram indiferentes, e muitas vezes ele permanecia em jejum.

Entenderam, irmãos bem-amados, o que a fé pode fazer, e o poder que ela tem quando é confirmada pelas obras? Compreenderam que nossa juventude não nos prejudica, e que nossa velhice não nos adianta se nos faltar o temor a Deus? Aprenderam agora que nem o mundo, nem a vida na cidade nos impedem de praticar os mandamentos de Deus se estivermos atentos, e que a anacorese e o deserto de nada servem se somos preguiçosos e negligentes? Todos nós ouvimos falar de Davi que, em meio às suas ocupações reais, conservava seu intelecto consagrado a Deus; nós nos admiramos e dizemos que só houve um Davi, que nunca houve outro? E eis que naquele jovem existiu mais do que um Davi. Pois Davi havia recebido o testemunho do próprio Deus, foi ungido profeta e rei e foi cumulado da graça do Espírito Santo. Se, depois de ter faltado com Deus, de ter perdido a graça do Espírito Santo e a dignidade de profeta, e de ter se distanciado da presença de Deus, ele retomou sua consciência, lembrou-se dos bens que teve e que perdeu, e outra vez buscou recuperá-los, o que há nisto de admirável? Mas que um jovem de vinte anos totalmente ligado às coisas passageiras deste mundo, sem que seu intelecto jamais tenha pensado em nada mais elevado do que estas coisas, que com muito custo entendeu o pouco que lhe disse o ancião e leu os três capítulos do abade Marcos, tenha podido acreditar imediatamente e sem hesitação, pondo-se ao trabalho com a esperança de que aquilo permitiria ao seu intelecto elevar-se até o céu, que ele receberia para si a compaixão e a intercessão da Mãe de Deus, que assim ele iria se reconciliar com Deus, a ponto deste lhe enviar do céu a iluminação e a graça do Espírito Santo, permitindo-lhe atingir o céu e desfrutar desta luz que muitos desejaram e poucos descobriram, isto sim é admirável e digno de louvor.

Foi assim que este jovem, que, durante muitos anos, não havia jejuado, nem velado, nem travado os combates da ascese, nem dormido sobre o chão duro, nem levado o cilício, que não se tornou monge, que não havia deixado o mundo, conseguiu se tornar, velando um pouco e orando um pouco, anjo terrestre e homem celeste, homem na realidade sensível e incorpóreo na realidade inteligível, próximo e inatingível, visto por todos mas a sós com o Deus único e onisciente. Foi-lhe dado ver esta dulcíssima luz do sol inteligível da justiça. E merecidamente. Pois o amor a o desejo que ele tinha por Deus o fizeram deixar o mundo em espírito, permitiram a ele esquecer a carne e todas as coisas vãs desta vida, e o ligaram inteiramente a Deus. Ele se tornou inteiramente espiritual, inteiramente luz. Ele conheceu esta contemplação e esta alegria, mesmo vivendo na cidade, mesmo passando a maior parte do tempo no palácio real, com seus encargos senhoriais e múltiplos servidores, sempre ocupado com suas tarefas.

Mas já dissemos o bastante, tanto para louvar a este jovem quanto para engajá-los em seguir seu amor e imitá-lo, para que se tornem dignos de receber de Deus semelhante graça. Ou vocês preferem que eu lhes diga coisas ainda maiores? Mas o que existe de maior do que o temor a Deus, como dizia Gregório o Teólogo[21], uma vez que “o começo da sabedoria é o temor a Deus[22]”? Pois aonde está o temor a Deus, ali está a guarda dos mandamentos; onde está a guarda dos mandamentos está a purificação da carne, que é uma nuvem que cobre a alma e a impede de ver em sua pureza o esplendor da luz divina; aonde está a purificação da carne está o esplendor divino; e onde está o esplendor divino, aí estará o cumprimento do desejo de Deus. Ora, aonde estiver o esplendor divino e a iluminação do Espírito Santo estará o fim infinito de toda virtude. Quem alcançou este fim chegou até o limite do sensível e penetrou no conhecimento do espiritual.

Tais são, irmãos, as maravilhas de Deus. É assim que Deus manifesta seus santos que se escondem, ou bem para que outros os imitem e mudem sua condita, ou bem para que não tenham desculpa, caso não os imitem. Pois aqueles que vivem no meio da confusão, se se conduzirem como se deve, serão salvos e receberão de Deus grandes bens, apenas por sua fé. Assim, tenham piedade de suas almas, e confiem a si mesmos ao Senhor e às suas palavras de todo o coração. Tenham aversão e desprezem as coisas do mundo, mentirosas e passageiras. Caminhem em direção a Deus e agarrem-se a ele[23]. Pois, sem Deus, nada existe no mundo. As coisas são nada, se Deus falta.

É por isso que eu choro, lamento-me e me aflijo quando penso que temos um mestre generoso que nos a ponto de nos conceder as graças que vimos se mostrarmos que temos fé em suas palavras e em suas promessas, enquanto que nós, como animais irracionais, preferimos a terra e as coisas corruptíveis que, em sua misericórdia, ele nos dá em abundância para as necessidades do corpo, a fim de que este utilize moderadamente o necessário à sua vida e que a alma não seja entravada, mas que faça sua própria busca e se conduza como prescrito, vivendo do alimento inteligível da graça do Espírito Santo.

É para isto que o homem foi criado: para encontrar nas coisas do mundo uma razão para glorificar a Deus que lhe deu tudo, para conhecer Aquele que lhe manifesta suas benfeitorias e sua benevolência, para deseja-lo, render-lhe graças em palavras e atos, para ser considerado digno de receber dele outros bens ainda maiores na eternidade. Mas nós nem suspeitamos os bens futuros, ligados que estamos apenas aos bens presentes, sem nenhuma atenção ou reconhecimento por Aquele que no-los deu. Somos assim semelhantes aos demônios, ou mesmo piores, para dizer a verdade, e é por isso que merecemos ser castigados por eles. Pois fomos cumulados das maiores benfeitorias desde que nos tornamos cristãos, que recebemos tantos mistérios e tantos carismas, que cremos em um só Deus que se fez homem por nós, que sofreu tantos tormentos e morreu finalmente na cruz para nos libertar dos erros do diabo e do pecado. Ora, em tudo isso cremos por palavras, mas negamos com nossas obras. Não é o nome de Cristo anunciado todos os dias em toda parte, nas cidades, nas vilas, nos mosteiros e nos desertos? Entretanto, se quiserem, examinem de que modo os cristãos aprendem a guardar seus mandamentos: com dificuldade encontrarão um que seja verdadeiramente cristão em palavras e obras. Não disse o Senhor no Evangelho: “Quem crê em mim fará também as obras que eu faço, e ainda maiores[24]”? Mas quem, hoje em dia, ousará dizer: “Eu faço as obras de Cristo, e nele creio com uma fé reta”? Vejam, irmãos, que arriscamos ser considerados sem fé no dia terrível do Juízo, e sermos castigados mais duramente do que aqueles que não conhecem a Cristo e não creem nele. Pois então será preciso, ou que sejamos condenados como incrédulos, ou que Cristo seja convencido com nossas mentiras, o que é impossível.

Escrevi isso, irmãos, não para interditar aos cristãos a anacorese e a hesíquia, dando preferência à vida no mundo – longe disto! – mas para fazer saber a todos os que lerem este relato que aquele que quiser e desejar fazer o bem com toda sua alma e todo seu coração, receberá do Senhor poder fazê-lo em qualquer lugar e será cumulado de carismas espirituais e de contemplações divinas, como o jovem que conheci, que foi meu amigo e me contou o que escrevi. É por isso que eu lhes peço, meus irmãos em Cristo, que tenhamos nós também em nossos corações o desejo de fazer o bem e que nos esforcemos por cumprir os mandamentos de Deus, na resolução da fé e da esperança. Nosso Senhor é fiel e não mente[25]. Nossos rostos não serão confundidos[26]. Estejamos certos de que podemos fazer o bem aonde quer que estejamos, nas cidades, vilas, mosteiros ou desertos. Pois, em sua bondade e segundo sua promessa, Deus abre as portas de seu Reino a qualquer um que não cesse de bater[27], e concede graça do Espírito Santo a quem pedir[28]. Não é possível que quem procura com toda sua alma não encontre[29] a riqueza dos carismas de Deus. A ele a glória, por todos os séculos dos séculos. Amém.     


SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO

2
SOBRE OS TRÊS MODOS DA PRECE


Existem três modos de atenção e de oração, por meio dos quais ou a alma se eleva e progride, ou tomba e se perde. Se ela utilizar estes três modos no tempo oportuno e como se deve, ele progride; se usar desconsiderada e inoportunamente, ela cai. A atenção deve estar inseparavelmente ligada à oração, como o corpo está inseparavelmente ligado à alma. A atenção deve ir adiante e aguardar os inimigos como uma sentinela. É ela que deve em primeiro lugar conhecer o pecado e se opor aos maus pensamentos que penetram na alma. Então chega a oração, que destrói e faz perecer no mesmo instante todos esses maus pensamentos, contra os quais a atenção lutou previamente. Pois a oração não pode matá-los sozinha. Ora, é deste combate da atenção e da prece que dependem a vida e a morte da alma. Pois se por meio da atenção mantivermos pura a prece, progrediremos. Mas se negligenciarmos de guardar a pureza da prece, se não velarmos por ela, se a deixarmos manchada pelos maus pensamentos, teremos sido inúteis e não progrediremos nada.

Existem, portanto, três modos de atenção e de oração. Diremos agora quais são as propriedades de cada qual. Assim, aquele que ama sua salvação poderá escolher o melhor e não o pior.

Do primeiro modo de atenção e oração

São as seguintes as propriedades do primeiro modo. Quando alguém se mantém em oração, eleva ao céu seus braços, suas mãos e seu intelecto. Representa para si mesmo pensamentos divinos, os bens celestes, as ordens dos anjos e as moradas dos santos. Reúne e colhe em seu intelecto tudo o que compreendeu das divinas Escrituras. Assim, ele conduz sua alma a amar e desejar a Deus. Às vezes e exulta, às vezes chora. Mas então seu coração se orgulha, sem que ele o perceba. Parece-lhe que o que faz vem da graça divina, para consolá-lo, e ele pede a Deus que o torne sempre digno de agir como o faz agora. Esta é a marca do erro. Pois o bem não é bem quando não é feito no bom caminho e da maneira correta. Ainda que vivesse numa extrema hesíquia, seria impossível a este homem não perder seu bom senso e enlouquecer. E mesmo que não chegue a tanto, ele não alcançará o conhecimento, nem será capaz de manter em si as virtudes da impassibilidade. É assim que muitos se perderam, por verem uma luz e um brilho com os olhos de seu corpo, por sentirem um perfume com seu olfato, por terem ouvido vozes com seus ouvidos, ou por terem experimentado outras coisas desta ordem. Alguns foram possuídos por demônios, outros vagaram de lugar em lugar, fora de si. Outros acolheram em si as contrafações do demônio: ele lhes apareceu como um anjo de luz e assim eles se desviaram do caminho tornando-se incorrigíveis, jamais ouvindo os conselhos de seus irmãos. Outros foram levados pelo diabo a se matar: atiraram-se de precipícios, enforcaram-se. Quem poderia descrever todas as ilusões por meios das quais o diabo os faz se perderem? É quase impossível.

Mas depois do que dissemos qualquer homem sensato pode compreender os danos a que se expõe adotando este primeiro modo de atenção e prece. E, mesmo que aconteça a alguém que utiliza este modo não sofrer nenhum mal, por se achar em companhia de outros irmãos (pois são principalmente os anacoretas que conhecem estes males), ainda assim, por toda a sua vida, ele não progredirá.

Do segundo modo

É o seguinte o segundo modo de atenção e oração. Quando alguém recolhe seu intelecto em si mesmo, separando-o do sensível, quando guarda seus sentidos e reúne todos os seus pensamentos para que eles não se dirijam às coisas vãs deste mundo, quando num momento examina sua consciência e em outro se mantém atento às palavras da oração, quando, em determinados momentos ele corre atrás dos pensamentos que o diabo capturou e que o conduzem ao mal e à vaidade, e em outros, depois de ser dominado e vencido pela paixão, volta a si, é impossível que este homem, que tem em si o combate, esteja em paz, ou que encontre tempo para trabalhar pelas virtudes e receba a coroa da justiça[30]. Pois ele é semelhante a alguém que combate à noite, na escuridão. Ele ouve as vozes e recebe os golpes, mas não consegue ver claramente quem são, nem de onde vêm os golpes, como e porque eles o atingem, pois está devastado pelas trevas de sua inteligência e os tormentos de seus pensamentos. É impossível a ele livrar-se de seus inimigos, os demônios que o ferem. O infeliz pena em vão e perde seu salário, pois está dominado pela vaidade. Ele não compreende. Pensa estar atento. Muitas vezes, em seu orgulho, ele despreza e acusa os outros. Ele imagina que pode conduzi-los e se tornar seu pastor. Ele é semelhante ao cego que pretende conduzir os outros cegos[31].

É preciso a quem quiser ser salvo, que saiba o prejuízo que este segundo modo pode causar à alma, e que preste muita atenção. Mesmo assim, este segundo modo é melhor do que o primeiro, assim como uma noite enluarada é melhor do que uma noite escura.

Do terceiro modo

O terceiro modo é verdadeiramente algo paradoxal e difícil de explicar. Não apenas os que não o conhecem têm dificuldade em entendê-lo, como lhes parece coisa impossível. Eles não creem que tal coisa possa existir, pois, hoje em dia, este modo não é utilizado por muitos, mas por pouquíssimos. Parece-me que tamanho bem nos deixou, tanto quanto a obediência. Pois é a obediência ao pai espiritual que permite a cada um não se preocupar com nada, uma vez que seus cuidados são remetidos a seu pai, que ele se distancia das tendências deste mundo e que ele se torna um operário zeloso e diligente deste modo. E é preciso que ele encontre um mestre e um pai espiritual verdadeiro, livre de todo erro. Pois a quem se consagrou a Deus e a seu pai espiritual com uma verdadeira obediência, a quem não vive sua própria vida nem mais faz sua própria vontade, estando morto para as tendências do mundo e para seu próprio corpo, que coisa passageira poderá vencer e dominar? Que cuidados ou inquietações poderá ter este homem? Assim, é por meio deste modo e pela obediência que se dissipam e desaparecem todos os artifícios dos demônios e todas as armadilhas que eles tramam para arrastar o intelecto em toda espécie de pensamentos. É assim que o intelecto deste homem está livre de tudo. É com total liberdade que ele examina os pensamentos que lhe são sugeridos pelo demônio, com real aptidão que ele os expulsa, e com um coração puro que ele oferece suas orações a Deus. Este é o começo da verdadeira via. Os que não se consagram a este início penam em vão, sem que o saibam.

Ora, o começo deste modo não consiste em olhar para o alto, erguer as mãos, por seu intelecto nos céus e implorar por socorro. Estas, como dissemos, são as marcas do primeiro modo, características da ilusão. Tampouco consiste em vigiar os sentidos com o intelecto, de só estar atento a isto sem perceber na alma a guerra que lhe travam os inimigos e sem prestar atenção a ela. Estas são as marcas do segundo modo. Quem as traz é ferido pelos demônios mas não consegue feri-los. É morto e não se dá conta. É reduzido à escravidão, subjugado e não consegue se vingar daqueles que fazem dele um escravo; os inimigos não cessam de combatê-lo aberta ou secretamente, e o tornam vaidoso e orgulhoso.

Mas você, meu bem-amado, se quiser sua salvação, deverá a partir de agora se consagrar ao começo deste terceiro modo. Depois de prestar total obediência ao seu pai espiritual, como dissemos, você deverá fazer tudo com uma consciência pura, como se estivesse diante da face de Deus. Pois sem obediência a consciência jamais é pura. E você deve mantê-la pura por três razões: primeiro, por Deus; segundo, por seu pai espiritual; terceiro, para os outros homens e as coisas do mundo.

Você deve manter a sua consciência pura. Por Deus, significa não fazer o que não lhe agradar. Por seu pai espiritual: fazer tudo o que ele lhe ordenar, nem mais nem menos, mas caminhar segundo sua intenção e sua vontade, Para os outros homens: não fazer a eles o que você não gosta nem gostaria que lhe fizessem[32]. Para as coisas do mundo: guardar-se dos abusos, ou, dito de outro modo, usar as coisas como se deve, tanto a comida como a bebida e as vestimentas. Em uma palavra, você deve fazer tudo como se estivesse na presença de Deus, a fim de que sua consciência não possa reprová-lo em nada, faça você o que fizer, e para que ela não possa açoitá-lo pelo que você fez de errado. Siga assim este caminho verídico e seguro do terceiro modo da atenção e da prece, como descrito aqui.

Que seu intelecto guarde o coração no momento da prece. Que ele não cesse de rodear o coração. E que do fundo do coração ele encaminhe a Deus suas preces. Quando ele provar que o Senhor é bom[33] e assim for cumulado de doçura, ele já não se afastará do lugar do coração, e dirá as mesmas palavras do apóstolo Pedro: “É bom estar aqui[34]”. Ele não mais deixará de velar sobre o coração e girar ao seu redor, afastando e expulsando todos os pensamentos que o diabo, o inimigo, semeia. Àqueles que não fazem ideia do que é isto e que não conhecem este estado, esta obra salutar parece penosa e incômoda. Mas os que provaram de sua doçura e desfrutaram do prazer que ela proporciona ao fundo do coração dizem, com o divino Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo?[35]”.

Pois nossos pais, tendo ouvido o Senhor dizer no santo Evangelho que é do coração que saem os maus pensamentos, os assassinatos, as prostituições, os adultérios, os roubos, os falsos testemunhos, as blasfêmias, e que é aí que se encontra aquilo que mancha o homem[36], ouviram também o Evangelho ordenar que purificássemos o interior do cálice, para que também o exterior se torne puro[37], e assim deixaram quaisquer outras obras espirituais e se dedicaram totalmente a este combate, ou seja, à guarda do coração, persuadidos de que, por meio desta obra, eles poderiam obter todas as demais virtudes, uma vez que não há meio de uma virtude perdurar senão assim. Alguns de nossos pais denominaram a esta obra hesíquia do coração, outros a chamaram de atenção, outros de sobriedade e vigilância, ou refutação, outros de exame dos pensamentos e guarda do intelecto. Foi sobre ela que todos trabalharam e foi por meio dela que foram tornados dignos dos carismas divinos. É por isso que o Eclesiastes diz: “Alegre-se, jovem, com sua juventude, e caminhe sobre as vias de seu coração, íntegro[38] e puro, e afaste de seu coração os pensamentos”. O autor dos Provérbios diz a mesma coisa, se a sugestão do diabo assaltá-lo: “Não o deixe entrar em seu lugar[39]”. Como lugar, ele entende o coração. E nosso Senhor diz no santo Evangelho: “Não se deixem levar[40]”, ou seja, não dispersem o intelecto aqui e acolá. Ele diz também: “Bem-aventurados os pobres de espírito[41]”, ou seja: bem-aventurados aqueles que não possuem no coração nenhuma ideia deste mundo, e que são pobres, desprovidos que qualquer pensamento mundano. Todos os nossos Padres disseram coisas semelhantes. Quem quiser pode ler o que escreveram Marcos o Asceta, João Clímaco, Hesíquio e Filoteu o Sinaíta, o abade Isaías, o grande Barsanulfo e tantos outros.

Numa palavra, quem não estiver atento em guardar seu intelecto não poderá tornar puro seu coração, para ser considerado digno de ver a Deus[42]. Quem não está atento não pode se tornar pobre de espírito[43], nem afligir-se e chorar[44], nem se tornar manso[45] e pacífico, nem ter fome e sede de justiça[46]. Resumindo, não é possível obter as outras virtudes senão por meio desta atenção. Assim, é a ela que você deve se aplicar antes de mais nada, a fim de compreender pela experiência aquilo de que lhe falei. E se você quiser saber como fazê-lo, eu lhe direi agora, na medida do possível. Esteja atento.

Antes de tudo, é preciso guardar três coisas. Em primeiro lugar, não se preocupar com nada, tanto com o que é racional como o que é irracional e vão, ou seja, morrer para tudo. Em segundo lugar, ter uma consciência pura, que não tenha nada que reprova-lo. Em terceiro lugar, não ter nenhum pendor: que seu pensamento não se volte para nada do que é deste mundo. Então se sente num lugar retirado, permaneça calmo, só, feche a porta, recolha seu intelecto para longe de tudo o que for passageiro e vão. Descanse o queixo sobre seu peito, mantenha-se atento a si mesmo com seu intelecto e seus olhos sensíveis. Retenha por um momento a respiração, dando um tempo para que seu intelecto encontre o lugar do coração e nele permaneça por inteiro. De início, tudo lhe parecerá tenebroso e duro. Mas depois que você trabalhar sem descanso, noite e dia, nesta obra de atenção, oh! milagre, você descobrirá em si uma alegria contínua. Pois o intelecto combatente terá encontrado o lugar do coração, e verá lá dentro aquilo que jamais havia visto antes e ignorava por completo. Ele verá este espaço que existe no interior do coração e verá a si mesmo inteiramente luminoso, pleno de sabedoria e de discernimento. Daí em diante, de qualquer lado que surja um pensamento, e antes mesmo que este penetre, seja concebido e se forme, o intelecto o expulsará e o fará desaparecer em nome de Jesus, ou seja, com a invocação: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. É então que ele começará a ter aversão pelos demônios, travando contra eles um combate sem trégua, opondo a eles seu ardor natural, expulsando-os, surrando-os, forçando-os a desaparecer. O que virá a seguir, com a ajuda de Deus, é algo que você aprenderá sozinho, pela experiência, graças à atenção do intelecto, e guardando a Jesus em seu coração, ou seja, a prece “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. De fato, um Padre disse: “Permaneça em sua cela, e ela lhe ensinará tudo[47]”.

Questão: Porque o primeiro e o segundo modo de que falamos não podem conduzir com sucesso o trabalho pelo bem?

Resposta: Porque não os utilizamos como se deve. São João Clímaco compara estes modos a uma escada de quatro degraus, e diz: “Há os que se humilham e reduzem as paixões; outros que salmodiam, isto é, oram com a boca; outros, que se dedicam à prece intelectual; e outros, que chegam à contemplação[48]”. Assim, quem quer subir os quatro degraus não começam pelo alto para se dirigir para baixo, mas vão de baixo para cima. Eles se erguem do primeiro degrau, depois do segundo, do terceiro e do quarto. É desta maneira que eles podem se elevar da terra e alcançar o céu. Primeiramente, no começo, devemos nos esforçar para deter e reduzir as paixões; depois, devemos nos dedicar à salmodia, orando com a boca, pois, quando as paixões estão reduzidas, a prece dá naturalmente à língua prazer e doçura, e agrada a Deus; em terceiro lugar, devemos orar com a inteligência e, em quarto, nos elevarmos à contemplação. O primeiro grau é o dos noviços, o segundo se abre aos que progridem, o terceiro aos que chegam ao cume do progresso, e o quarto, o dos perfeitos.

Portanto, o começo não é outra coisa do que a redução das paixões, que não se retiram da alma a não ser pela guarda e atenção do coração. Pois é do coração, como diz nosso Mestre, que vêm os maus pensamentos que mancham o homem[49], e é aí que são necessárias a guarda e a atenção. Uma vez que as paixões foram detidas e reduzidas a nada pela guerra que contra elas travou o coração e pela aversão que este lhes dedica, o intelecto pode desejar e buscar a reconciliação com Deus. Ele incrementa a oração, e atinge seu objetivo. Por meio da oração, ele castiga e expulsa os pensamentos que giram ao redor do coração para nele penetrar. Esta é a guerra. Os demônios se excitam, se opõem, e, por meio das paixões, suscitam no interior do coração a confusão e a vertigem. Mas diante do nome de Jesus Cristo eles desaparecem e derretem como a cera de uma vela. Expulsos do coração, eles já não têm paz e continuam a perturbar o intelecto, mas agora do exterior, por meio dos sentidos. É por isso que o intelecto percebe rapidamente as primícias da serenidade e da hesíquia, pois os demônios já não têm o poder de perturbá-lo em profundidade, mas apenas desde o exterior, na superfície. Entretanto, é impossível livrar-se da guerra e não mais ser combatido pelos maus espíritos. Isto só cabe aos perfeitos, àqueles que se retiraram completamente de tudo e que se dedicam continuamente à atenção do coração.

Portanto, aquele que se utilizar desses três modos em ordem, cada qual a seu tempo, poderá ao longo do tempo, depois de ter purificado seu coração das paixões, dedicar-se inteiramente à salmodia, combater os pensamentos, erguer aos céus seus olhos sensíveis (se sentir necessidade), contemplá-lo com o olhar da alma e se consagrar à prece pura, em verdade, como convém.

Porém, não devemos nos voltar em demasia para o céu, para evitar os maus espíritos que habitam o espaço e são chamados de espíritos aéreos, pois eles suscitam muitas ilusões, e é preciso estar atento. Deus só nos pede uma coisa: que nosso coração seja purificado pela guarda e a atenção. Se a raiz é santa, como diz o Apóstolo, claro que os galhos e os frutos serão sãos[50]. Fora deste caminho, quem eleva seus olhos e seu intelecto para o céu e pretende se representar os inteligíveis não vê mais do que imaginações, coisas enganosas e não verdadeiras, pois seu coração é impuro.

Como dissemos, o primeiro e o segundo modos não levam o homem a progredir. Quando queremos construir uma casa, não começamos pelo teto para depois fazer as fundações, pois isto não é possível. Primeiro colocamos as fundações, depois erguemos a casa e finalmente fazemos o telhado. É assim que devemos agir quanto ao espiritual. Primeiro, colocar as fundações, ou seja, guardar o coração e dele retirar pouco a pouco as paixões. Depois, construir a casa espiritual: expulsar a perturbação dos maus espíritos que nos combatem pelos sentidos, e fugir o mais depressa possível da guerra que contra nós eles travam. Então fazer o telhado: retirarmo-nos de todas as coisas, pacificarmo-nos como se deve, darmo-nos totalmente a Deus. É assim que completaremos a m orada espiritual, em Jesus Cristo nosso Senhor. A ele a glória, pelos séculos dos séculos. Amém.



GREGÓRIO O SINAÍTA


O quinto dos textos parafraseados é constituído de diversos capítulos de Gregório o Sinaíta já inseridos na antologia propriamente dita. Prova, se preciso fosse, de que estes últimos textos estão destacados da transmissão inerente à instituição monástica e são endereçados a outros leitores, qualquer que seja a vida que levam no mundo, e feitos para engajá-los, como a monges, sobre os caminhos da prece perpétua.

Daí procede a retomada dos conselhos prodigados aos monges por Gregório. Primeiro sobre a maneira hesiquiasta de orar apenas usando o intelecto, no silêncio do “lugar do coração”. Depois sobre o modo de conservar o intelecto no coração, com o auxílio da graça do Espírito Santo, que impede a dispersão, suscita a prece pura e permite a noera aisthesis, o “sentido intelectual”, a aproximação filocálica do perfeito. Enfim, sobre o modo de expulsar do coração todo pensamento que não participa da ação de graças, deixando todo o espaço para o intelecto em oração.

Segue-se uma série de capítulos sobre as modalidades práticas (em especial a alternância entre a prece pura e a salmodia) e as condições fundamentais (a paciência e a humildade) capazes de abrir a todos o próprio santuário da vida monástica: a hesíquia do coração.

Mas a hesíquia faz causa comum coma prece perpétua. Ninguém conseguiria atingi-la no alvo, nem nela se manter sem o estado de graça. Um capítulo preconiza assim a salmodia como caminho de aproximação, ou como linha auxiliar, e sublinha a necessidade da alternância, que permite à tensão relaxar e se renovar. Da mesma forma, em matéria de alimentação, tanto quanto a dura ascese dos monges, é recomendado a todos o equilíbrio entre o excesso e a falta: “Jamais ultrapassar a medida”, diz Gregório.

Enfim, no último capítulo citado, um rigoroso aviso, também endereçado a todos, assim como aos monges. A prece do coração não pode ser “utilizada” ostensivamente. Ela é antes de mais nada o reconhecimento e amor a Cristo, e humilde socorro. Como nos mosteiros, a vida espiritual nas condições do século implica um discernimento preciso e o banimento de toda presunção: uma busca ativa das âncoras da experiência.


COMO CADA UM DEVE ORAR

Sente-se, seja sobre um banco para fazer esforço, seja sobre um leito pata relaxar e aliviar seu corpo, e permaneça pacientemente nesta posição, tanto quanto puder, a fim de cumprir o mandamento do divino Paulo, que ordena permanecer por longo tempo em oração  de “perseverar na oração[51]”, de não se apressar em se livrar do esforço e se levantar, mas de manter a paciência, permanecer com a cabeça inclinada, recolher o intelecto no coração e pedir a ajuda do Senhor, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. Mesmo que com o tempo suas espáduas e sua cabeça lhe doam, persevere nestas penas e, com todo o seu amor e todo o seu desejo, busque o Senhor em seu coração. Pois o Reino dos céus é daqueles que violentam a si próprios. São os violentos que dele se apoderam[52], como disse o Senhor, que com isto quis mostrar que tipo de violência, quanto ardor, que tipo de esforços exige a oração. A perseverança em todas as coisas: eis o que suscita as penas da alma e do corpo.

Como dizer a oração

Os Padres diferem em suas recomendações sobre o modo como devemos orar. Um manda dizer a prece inteira: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”. Outro recomenda dizer apenas a metade: “Jesus, Filho de Deus, tenha piedade de mim”, o que resulta mais fácil para a fraqueza do intelecto. Pois o intelecto sozinho não é capaz de dizer pura e ´perfeitamente “Senhor Jesus”, senão pelo Espírito Santo[53]. Mas não se deve mudar constantemente as palavras, dizendo-as negligentemente ora de uma maneira, ora de outra. Podemos mudar de tempos em tempos, para não relaxar devido à repetição. Da mesma forma, existem os que ensinam a dizer a prece com a boca, enquanto outros ordenam dizê-la com o intelecto. Eu digo que devemos fazê-la com os dois. Com efeito, às vezes o intelecto relaxa e fica incapaz de dizer a oração sozinho, ora é a boca que fica preguiçosa. É por isso que devemos orar com a boca e o intelecto, tanto com uma quanto com outro. Porém, quando dizemos a oração c om a boca, devemos pronunciá-la calmamente, humildemente, sem perturbação, para que a voz não venha a agitar e entravar a atenção do intelecto, até que este se habitue com a duração e o progresso nesta obra da prece, recebendo da graça do Espírito Santo o poder de orar só. A partir de então já não será necessário falar com a boca. Nem isto será mais possível. Pois, com gratidão e alegria, diremos a prece apenas com o intelecto.

Como manter o intelecto desperto

Saiba que ninguém consegue por si só dominar o intelecto, se antes não tiver sido dirigido pela graça do Espírito. Pois o intelecto não se deixa dominar, não por sua natureza, por que está sempre em movimento e é incapaz de se deter naturalmente, mas por que ele se dissipa na negligência, dispersando-se daqui e dali desde a origem. Pois, ao transgredir os mandamentos de Deus, nós nos afastamos dele, nos separamos dele e perdemos o sentido do intelecto e já não sabemos quando estamos com Deus e quando formos cortados de sua presença. A partir de então, nosso intelecto, separado de Deus, é atraído de todos os lados, servilmente. É por isso que ele não se deixa dominar e não consegue permanecer em repouso a não ser remetendo-se novamente a Deus, submetendo-se inteiramente aos seus mandamentos, pedindo sempre a ele e a ele confiando todas as nossas faltas. Ora, estamos em falta todo o tempo. Mas ele nos perdoa instantaneamente, se lhe pedimos com humildade e coração contrito, e se invocamos constantemente seu santo nome, Quando o intelecto se aproxima de Deus desta maneira e assim o reencontra com enorme alegria, então ele se torna capaz de ser dirigido por Deus e não mais se dispersar em todas as direções. Também o sopro da respiração, quando retido na boca, ajuda naturalmente a dominar o intelecto.

Entretanto, o intelecto não permanece assim por muito tempo, e então volta a se dispersar. Mas quando a prece age no coração, é ela que passa a resguardar o intelecto, que o alegra, e que o impede de se dispersar. Porém, pode acontecer que, no momento em que o intelecto está imerso no coração e orando, o pensamento se perca e se ocupe de outras coisas. Somente os que são perfeitos no Senhor são capazes de dominar o pensamento, somente os que, em Cristo Jesus, alcançaram esta graça, quando seu intelecto não mais se dispersa e não mais se separa de Deus.


Como expulsar os pensamentos

Jamais um noviço expulsará um pensamento que Deus já não tenha expulsado. Cabe aos fortes combater e expulsar os pensamentos. E mesmo eles não os expulsam por si sós. É com Deus que eles os combatem e os expulsam. Quanto a você, quando estes chegarem, apele para o Senhor, repita a prece sem descansar, e eles fugirão. Pois eles são suportam o calor que vem da prece para o coração, e fogem como se queimados pelo fogo. “Fustigue os que o combatem, diz João Clímaco, com o nome de Jesus[54]”. Pois nosso Deus é um fogo que consome[55] a perversidade. O Senhor apressa-se em auxiliar, e logo faz justiça aos que, com toda alma e todo coração, o chamam dia e noite[56], como disse o divino Lucas na parábola do juiz iníquo.

O noviço, cuja oração é ainda impotente, deve se manter em pé, pedir a ajuda de Deus, e o Senhor expulsará os pensamentos. Depois ele deve se sentar novamente e voltar a orar. Mas mesmo aquele cuja oração é forte, todas as vezes que for combatido por pensamentos de relaxamento e de prostituição deve também se por de pé, erguer as mãos e pedir o socorro de Deus. Mas ele deve temer a ilusão e não fazer isto por muito tempo, para que o diabo não lhe mostre no ar figuras imaginárias para enganá-lo. Pois manter a inteligência ao mesmo tempo em cima e em baixo, no coração e em nas coisas em geral, e mantê-la infalível e a salvo, é apanágio apenas dos perfeitos.


Da hesíquia

Quem busca a hesíquia deve ter como fundamento, em primeiro lugar, estas cinco virtudes: o silêncio, a temperança, a vigília, a humildade e a paciência; a seguir, as três obras agradáveis a Deus: a salmodia, ou seja, a prece com a boca, a leitura, a prece intelectual – e um pouco de trabalho manual, se for fraco. Pois as virtudes que mencionamos contêm todas as demais e trabalham juntas. Desde a primeira hora do dia, o hesiquiasta deve começar pela oração “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”, e se consagrar à lembrança de Deus com atenção e a hesíquia do coração, durante uma hora; na segunda hora, ele deve se dedicar à leitura; na terceira, orar com a boca; na quarta, dizer a prece do coração; na quinta, fazer a leitura; na sexta, salmodiar, dizer a oração com a boca; na sétima, dizer a prece do coração; na oitava, ler; na nona, salmodiar; na décima, alimentar-se, na décima-primeira, dormir, se necessário; na décima-segunda, salmodiar as vésperas. Fazer desta maneira a jornada agrada a Deus.

Da mesma forma, se você quiser passar facilmente o período da noite; escute.  A vigília noturna tem três modos: o dos noviços, o dos médios e o dos perfeitos. O primeiro modo consiste em dormir a metade da noite e velar a segunda metade, seja do por-do-sol até a meia noite, seja da meia noite à aurora, e passar esta metade tanto salmodiando como orando. O segundo modo consiste em velar após o crepúsculo por uma hora ou duas, depois dormir por quatro horas, e por fim se levantar para as matinas, salmodiando e orando por seis horas. O terceiro modo consiste em passar a noite toda de pé velando.

Antes de mais nada, a hesíquia exige que tenhamos fé, paciência, amor e esperança, com todo nosso coração e toda nossa força. Pois àquele que crê, mesmo que não encontre nesta vida o que deseja – por negligência ou por qualquer outra causa – é impossível que não receba na hora da morte a certeza dos frutos de sua fé e de seu esforço, e que não veja a liberdade, que é Jesus Cristo. Mas quem não tem fé será julgado no momento de sua morte. Pois quem está sujeitado aos prazeres da carne e busca a glória dos homens, e não a de Deus, este, conforme foi dito, não crê, ainda que pareça crer nas palavras, pela simples confissão da fé. Este homem se ilude, se engana, sem saber. Pois ele escutará do Senhor: “Por que você me desprezou e não me recebeu em seu coração, mas dele me expulsou, também eu o expulsarei de junto de mim”. É preciso que o fiel creia que todas as palavras de Deus são verdadeiras, que é possível trabalhá-las, e que ele confesse sua própria fraqueza, a fim de não incorrer na dupla condenação, caso não as cumpra e nelas não creia.

Nada deixa mais o coração contrito e humilhado[57] do que o silêncio e a hesíquia, quando esta é vivida com discernimento. E nada devasta a hesíquia tanto quanto estas seis paixões: a liberdade de linguagem, a gula, o falatório, as distrações, o orgulho e a presunção. O infeliz que se habitua com elas é tomado de uma vertigem, e, com o tempo, se torna insensível. Porém, se ele se arrepender, se recomeçar com fé e fervor, ele reencontrará o que antes desejava, sobretudo se for humilde e se dirigir com amor aos que possuem experiência. Mas se ele for dominado por alguma das paixões que mencionamos, os demais males o assaltarão com a descrença, o despojamento de todo bem, a locupletação das demais paixões e o abandono à vertigem e à perturbação pelos demônios. O infeliz se tornará irascível e inimigo dos hesiquiastas, que ele acusará voltando contra eles sua língua como uma espada de dois gumes.

Da mesma forma, se não nos entregarmos ao luto como uma forma de tristeza, será impossível suportarmos as provas da hesíquia. Pois quem toma o luto e medita nas coisas terríveis que precedem e sucedem à morte, este adquire a paciência e a humildade, os dois fundamentos da hesíquia. Mas quem busca a hesíquia sem estas duas virtudes terá sempre em si a presunção e a negligência. Ora, estes dois males não fazem senão aumentar a dispersão do intelecto, conduzindo ao relaxamento e à preguiça. Então a intemperança, esta filha da negligência, amolecerá e relaxará o corpo, entenebrecendo e endurecendo o intelecto, fazendo que com nosso Senhor Jesus Cristo se vá daí, ao mesmo tempo em que a multidão dos pensamentos e das ideias invade o lugar da reflexão.

Nada torna a alma tão relaxada, preguiçosa, dura e sem inteligência, como o egoísmo, ou seja, o amor irracional por si mesmo, que é a mãe, a causa e a nutriz das paixões. Pois o egoísmo prefere o repouso do corpo aos esforços da virtude, e pensa que é possível se comportar convenientemente sem se dedicar às obras virtuosas, e, em especial, àquelas que exigem os esforços racionais exigidos pelos mandamentos. O egoísmo suscita assim a preguiça e a impotência da alma do hesiquiasta e faz crescer em meio às obras da ascese um relaxamento tal, que a torna irremediavelmente perdida.


Como salmodiar

Uns dizem que se deve salmodiar de tempos em tempos (ou seja, cantar os salmos, os tropários e outras orações), outros, com muita frequência, outros nunca. Quanto a você, não salmodie muito, para não ficar confuso: logo viria o relaxamento. Imite aqueles que salmodiam de tempos em tempos, pois toda medida é excelente. A salmódia frequente é própria dos ativos, que fazem isto para compreender aquilo que cantam e para manter seu esforço. Mas ela não convém aos hesiquiasta, aos quais basta orar a Deus apenas no coração e se afastar dos pensamentos. A hesíquia, segundo João Clímaco, consiste de fato na rejeição de todo e qualquer pensamento que venham dos sentidos e do intelecto[58]. Se esgotar toda sua força na salmódia frequente, o intelecto ficará fraco para orar com intensidade e perseverança.

“Durante a noite, diz João Clímaco, dedique muito tempo à prece e pouco à salmódia[59]”. É o que você deve fazer. Quando, estando sentado, você perceber a oração agir e não cessar de se mover no coração, não a deixe para se levantar e salmodiar, até que ela o deixe por si só. Pois então você terá abandonado a Deus em seu coração, onde orava, levantando-se para lhe falar desde fora, com a boca, por meio da salmódia. Você terá descido do alto para o baixo, criando a confusão. Você perturbará seu intelecto, expulsando-o da hesíquia e da calma. Pois Deus é paz[60], longe de toda confusão e de todo barulho. Nosso louvor deve ser angélico, sem confusão, como angélica é nossa maneira de viver, desde que a prece da boca, o apelo sensível, aponte e vise o apelo ao intelecto. E no entanto, a salmódia nos foi prescrita, para nos elevarmos do sensível ao inteligível e verdadeiro. Pois foi aos que desconhecem a prece intelectual que foi concedido salmodiar bastante, e com uma grande diversidade, além de toda medida, sem jamais cessar, até esgotá-los por meio desta penosa ação, e que possam assim se aproximar da contemplação, descobrindo a prece intelectual que trabalha em seus corações. Pois uma é a ação dos hesiquiastas, e outra a da comunidade. Porém cada qual, se perseverar na via para a qual foi chamado, será salvo[61], segundo o Apóstolo. É por isso que eu temo estar escrevendo apenas aos fracos, quando o vejo viver entre eles.

Pois quem se dedica à prece intelectual por ouvir falar ou por que aprendeu nos livros, deve ficar muito atento ao que está escrito, para não se perder. Quem provou do mel de Deus está obrigado a salmodiar comedidamente e a se consagrar a maior parte do tempo à prece. Mas quando sobrevém a indolência, ele deve salmodiar ou fazer uma leitura sobre a Vida dos padres, para aprender como estes venceram e foram salvos. Se alguns dizem que muitos Padres permaneciam de pé por toda a noite, que salmodiavam e que não se dedicavam à prece intelectual, responderemos com base nas Escrituras que nem todas as obras dos Padres eram perfeitas, e que as pequenas virtudes não são pequenas para os grandes, pois estes são fortes e as usam como melhor desejam, enquanto que as grandes virtudes não são grandes nem perfeitas para os pequenos, que, por serem fracos, não as sabem utilizar devidamente. Pois antigamente, como hoje, nem todos os Padres eram ativos, nem todos contemplativos. E nem todos os ativos se dedicavam integralmente à ação: muitos se elevaram através da contemplação, abandonaram a ação, se separaram de tudo e se regozijaram na pura contemplação de Deus, saciados daí por diante com o alimento divino. Eles já não podiam nem salmodiar, nem meditar em outras coisas, uma vez que se encontravam no êxtase da contemplação de Deus, até alcançar, nesta vida, a fruição daquilo que desejavam – mas parcialmente, como se eles tocassem os penhores. Outros se consagraram até o fim apenas à ação e foram salvos: estes esperaram para receber em outra vida a recompensa. Alguns só obtiveram a certeza na hora da morte, ou mesmo após a morte, quando se preservaram suas santas relíquias: então tiveram a certeza de terem sido salvos. Todos haviam recebido a graça no momento do batismo, mas, por diversas razões, nem todos provaram o mel da graça durante sua vida presente, como muitos outros. Alguns ainda houve que se consagraram aos dois modos, à salmódia e à prece, e assim passaram suas vidas sem jamais encontrar obstáculos. Outros mantiveram até o fim a hesíquia, sabiamente, sozinhos e apenas com o Deus único, e foram justificados. Como dissemos, os perfeitos tudo podem em Cristo que lhes dá a força.


Como se alimentar

Quanto ao ventre que reina sobre as paixões, que posso dizer? Se você puder paralisá-lo e torná-lo meio morto, não economize esforços. Pois muitas vezes ele me dominou. Como um escravo, eu o servi e fiz o que ele exigiu. Ele próprio trabalha com os demônios e é a morada das paixões quando se entrega à desordem. É ele que nos faz cair, mas é também ele, quando reencontra a boa ordem, que nos levanta e nos endireita. É ele que nos faz perder a graça e a dignidade que havíamos recebido, primeiro no paraíso e depois no batismo. Pois negligenciamos os mandamentos de Deus, que guardam e aumentam a graça naqueles que se aplicam e se dedicam ao progresso da alma, enquanto que nós nos orgulhamos, julgamos estar unidos a Deus e decaímos de sua graça.

Os Padres dizem que existem grandes diferenças no modo como se nutrem os corpos. Um necessita de pouco, outro de muito, para sustentar suas forças naturais. Cada qual, segundo sua força e seu estado, demanda assim sua alimentação. Entretanto, aquele que se dedica continuamente à hesíquia não deve jamais estar saciado, mas deve sempre ter fome ao se levantar da mesa. Por que quando seu estômago está pesado com os alimentos, seu intelecto fica perturbado e já não consegue orar com a devida pureza. Ele se entorpece sob os vapores dos numerosos alimentos e procura dormir o quanto antes. Então, no sono, ele se torna presa de sonhos e imaginações infames.

Quem pretende encontrar a salvação e violentar a si mesmo pelo Senhor a fim de viver a hesíquia deve, na minha opinião, se satisfazer a cada dia com uma libra de pão e três a quatro copos de água ou vinho, comer pouco e de todos os alimentos que lhe forem apresentados, mas evitando a saciedade para poder assim escapar ao orgulho, deve comer de tudo sem nada desprezar (pois tudo é criação de Deus, que é boníssimo) e em tudo dando graças a Deus. Este é o discernimento dos sábios. Quanto aos que são fracos na alma e na fé, os que não têm firmeza, é melhor para eles que se abstenham de determinados alimentos. O divino Paulo recomenda que não comam senão legumes[62], uma vez que eles não conseguem acreditar que são guardados por Deus, cuja providência se estende sobre todas as criaturas.

Quanto a você que é velho e que procura uma regra em matéria de alimentação, que posso lhe dizer? Existem jovens que são incapazes de tomar sua sopa pesando-a comedidamente. Como o poderá você, que é velho? É por isso que você deve permanecer livre em tudo. Se você for vencido por ter comido demais, aflija-se, arrependa-se, condene-se por ter sido intemperante e retome sua obra. Nunca deixe de fazer assim, caindo, levantando e condenado a si mesmo e nunca a outro: assim você encontrará o repouso. Você vencerá através de suas quedas, desde que condene a si próprio, entregando-se ao arrependimento e à humildade.

Não transgrida a regra de que falamos, e isto lhe será suficiente. Pois nada fortifica tanto o corpo como comer pão e beber água. É por isso que o profeta dizia: “Filho do homem, coma seu pão e beba sua água comedidamente[63]”. A alimentação possui três medidas, a saber: a temperança, o contentamento e a saciedade. A temperança consiste em ainda ter fome depois da refeição. O contentamento consiste em comer o suficiente, sem ficar faminto nem saciado. A saciedade consiste em ficar com o estômago um pouco pesado depois de ter comido. Mas comer após estar saciado equivale a abrir a porta para a gula, e com ela entrará a prostituição. Portanto, escolha o melhor, na medida em que puder. Não ultrapasse a medida, nem para mais, nem para menos. Ter fome e estar saciado, ser forte em tudo e não ser lesado, isto é próprio dos perfeitos.


Do erro, e de outros assuntos

É preciso que você saiba exatamente o que é o erro, para se proteger dele, para estar atento e não perder sua alma. Pois os pendores do homem, e em especial os do noviço e do monge independente[64], os levam facilmente a viver com os demônios que, por meio dos pensamentos e das imaginações, não cessam de girar ao redor deles, colocando armadilhas e cavando poços para fazê-los cair. Não devemos nos espantar em ver que muitos se perderam, que dizem ou fazem uma coisa por outra, perturbam numerosos cristãos que não têm conhecimento de tais coisas e cobrem de opróbrio e de vergonha os hesiquiastas. Pois não há nada de espantoso em que um noviço ou um monge independente se engane, mesmo depois de uma dura ascese. Isto acontece com muitos, tanto hoje em dia como antigamente. A lembrança do nome de Deus, que é aprece intelectual, por ser a mais elevada de todas as ações e o cume de todas as virtudes, como o é o amor a Deus, o primeiro de todos os mandamentos[65], requer muita atenção, piedade e temor.

Aquele que, com impudência, temeridade e impiedade, pretende se utilizar desta obra admirável da prece intelectual, e que busca sem temor dizer por si mesmo o nome de Deus e de Deus se aproximar enfrentando-o, certamente (se Deus o permitir) afogar-se-á na ilusão e será destruído pelos demônios. Pois, em seu orgulho e presunção, ele tenta alcançar o que está além de sua força e de seu estado. Ele tem a audácia, antes de chegado o tempo, de chamar a Deus em si por meio da prece intelectual. Ora, frequentemente, vendo em nós tal audácia nas coisas elevadas, o Senhor compassivo não permite que sejamos tentados pelos demônios e nos concede que tomemos consciência de nosso estado e de nosso orgulho, permite que nos arrependamos, que voltemos atrás e nos endireitemos, antes que nos tornemos o opróbrio dos demônios e o riso dos homens. É por isso que quem pretende se dedicar a esta obra maravilhosa deve interrogar os que têm experiência, para com eles aprender como agir, mostrando-se submisso e obediente a estes, e que ele se engaje com temor a Deus e humildade e que dê provas de paciência; assim ele não colherá espinhos em lugar do trigo, nem encontrará a perdição em lugar da salvação.

Quanto a você, meu irmão, se você vive na hesíquia, se se dedica a esta obra como se deve, e se espera unir-se a Deus por intermédio da prece intelectual, preste muita atenção em jamais aceitar seja lá o que for de sensível ou de inteligível que lhe apareça do exterior ou que venha até você, bem como não imagine nem modele em seu intelecto a figura de Cristo, de um anjo ou de um santo, pois o intelecto possui, por si só, a faculdade de imaginar, e pode facilmente dar forma a qualquer coisa que queira, e assim fazer um grande mal aos que não estão atentos. A simples lembrança do que é bom e do que é mau já suscita normalmente a imaginação no intelecto, pois o homem é levado a imaginar as coisas que lhe vêm à memória. Quem as recebe se torna assim imaginativo, mas não hesiquiasta.

É por isso que você não deve se fiar numa coisa, ainda que pareça boa, nem acolhê-la, antes de examiná-la e de interrogar os que possuem experiência, para não se prejudicar. Quando estas coisas chegarem a você, não as receba facilmente, mas mantenha-se à distância, e guarde atentamente seu intelecto longe de toda figura, forma ou cor. Pois muitas vezes, para pôr à prova os que combatem e para ver para que lado pende sua resolução, Deus lhes envia essas coisas. E mesmo vindo a coisa de Deus, aquele que a viu em seu intelecto ou com seus olhos, recebendo-a sem examiná-la e sem interrogar os mais experientes, será facilmente enganado pelo diabo, por ser crédulo.

Cada qual, especialmente o noviço, deve se aplicar a dizer a prece intelectual em seu coração, pois aí ele não poderá se enganar, e ele não deve admitir outra coisa até que se acalmem as paixões. Deus não reprova aquele que, para não se enganar, permanece estritamente atento a si mesmo, e que, por causa disso, não acolhe nada, nem aquilo que vem de Deus, sem antes examinar e interrogar os mais experientes. Este é louvado por ele, por ser atento e refletido.

No entanto, não se deve interrogar qualquer um, mas somente um homem virtuoso, espiritual, testado, que vele por outros irmãos, e que tenha experiência. Pois ninguém é capaz de guiar a outros se não tiver o carisma do discernimento e não souber distinguir o bem do mal. Cada qual, pelo que fez e pelo que aprendeu, possui um conhecimento e um discernimento naturais, mas nem todos têm o discernimento do Espírito Santo. Não é fácil encontrar este homem certo, dotado de tal discernimento, em suas obras, suas palavras, seus pensamentos, e conseguir tomá-lo como guia espiritual. Por este sinal é possível saber que ele é a pessoa certa: tudo o que ele diz, faz e pensa é atestado pela divina Escritura. Assim, é preciso que ele seja comedido em tudo. Pois o diabo costuma dar a seu erro a aparência de verdade, sobretudo entre os noviços, disfarçando seus próprios vícios para fazê-los parecer virtudes espirituais.

É por isso que quem deseja alcançar a prece pura deve passar sua vida na hesíquia, no temor, na tristeza do luto, sob a condução dos que têm experiência, interrogando-os amiúde. Ele deve se afligir todo o tempo, chorar por seus pecados, tremer, temer ser condenado e separado de Deus, aqui como na outra vida. Pois o diabo, ao ver alguém que passa sua vida em luto e aflição, não suporta ficar ao seu lado. Ele é queimado pela humildade gerada pela aflição e foge, levando seu orgulho consigo. Mas ele se aproxima daquele que, em sua presunção, imagina atingir as coisas elevadas, e que, impudentemente, tenta alcançar o que ultrapassa suas forças. Deste ele se aproxima como se ele lhe pertencesse, e o prende facilmente em sua rede.

A arma suprema consiste em ter sempre consigo a prece e o luto, a fim de não cair da alegria da prece na presunção, e de permanecer sempre humilde para ser salvo. Pois a verdadeira prece é este calor no coração que se encontra na invocação Senhor Jesus Cristo, que veio, como diz o Evangelho, lançar fogo sobre a terra[66] de nosso coração, para queimar nossas paixões e suscitar em nossa alma a alegria e a mansidão. Também você, irmão, deseje esta prece, a fim de encontrá-la e de a possuir em seu coração, guardando sempre seu intelecto desprovido de toda imaginação e de todo pensamento. E não tema. Pois o Deus que procuramos está conosco e não cessa de nos proteger.

Se alguns se perderam, considere que eles chegaram a este ponto por causa de seu orgulho e de sua independência, desde que se deixaram levar por sua própria vontade e não pelos conselhos dos mais experientes. Pois aquele que, com humildade e obediência, sempre interrogando, se dedica à prece e busca a Deus, jamais fará mal, pela graça de Cristo que veio salvar todos os homens[67]. Se sobrevém uma tentação, ela é como que uma prova e uma coroa. Pelos caminhos que só ele conhece, Deus nos traz logo sua ajuda. Como dizem os Padres, as maquinações dos demônios não podem prejudicar a quem vive retamente, que não busca agradar aos homens e que evita o orgulho. Mas os que vivem sua vida com presunção e por sua própria vontade se perdem facilmente e acabam por prejudicar a si próprios.

Existem assim três virtudes que devemos guardar, examinando a todo momento se as temos conosco: a temperança, o silêncio e a autocondenação, ou seja, a humildade. Elas se contêm e se guardam mutuamente. É por intermédio delas que a prece nasce e cresce continuamente.

A graça aparece de diferentes maneiras nos que se dedicam à obra da prece. Em uns, ela vem com o temor e o tremor que arrasam as montanhas das paixões e quebram os corações petrificados, reduzindo ao silêncio e mortificando o sentimento de sua carne. Em outros, ela se manifesta na alegria e no regozijo do coração, aquilo que os Padres chamam de sobressalto. Em outros, enfim, sobretudo nos que progrediram, Deus suscita a graça na paz, na doçura, na calma, a partir do instante em que Cristo faz sua morada no coração, segundo o divino Paulo. É por isso que Deus disse ao profeta Elias que o Senhor não está nem no vento violento, nem no tremor de terra, ou seja, ele não está nos efeitos da graça que se manifestam de início nos noviços, no temor a Deus e na alegria do coração, mas que ele é uma brisa leve[68], luminosa e pacífica. Com isto ele mostrou onde está a perfeição.


Que fazer quando o demônio se transforma em anjo de luz[69] e engana o homem?

Quem presencia isto não deve recebê-lo de imediato, mas deve primeiro provar e discernir o bem e o mal, e somente depois crer. Pois aquilo que a graça pode fazer e que o demônio é incapaz de fazer, é evidente. O demônio (ainda que apareça como um anjo de luz) não consegue provocar no homem nem doçura, nem luz, nem desdém pelo mundo, nem a detenção das paixões e dos prazeres; isto é obra da graça. O que ele provoca é o orgulho, a preguiça, a presunção e outras malícias do gênero. Pelo modo como ela opera, você pode saber se a luz que brilha na sua alma vem de Deus ou de Satanás. A alface lembra uma salada amarga, e o vinagre se assemelha ao vinho. Mas quando você os prova, você sabe a diferença. O mesmo acontece com a alma do homem. Se ele tiver o discernimento, ele reconhecerá os carismas do Espírito Santo e os fantasmas de Satanás.

Entretanto, é preciso saber que o erro tem três causas: o orgulho, a inveja dos demônios e a concessão de Deus que permite o castigo. O orgulho provém da inconsequência do intelecto. A inveja dos demônios provém do progresso. A concessão de Deus provém do pecado. O erro proveniente do orgulho e da inveja dos demônios é fácil de curar, quando o homem se humilha. Mas aquele que provém de Deus dura às vezes até a morte.

Também é preciso saber que o demônio do orgulho vem primeiro sobre aqueles que não estão atentos ao coração. Você, irmão, esteja sempre pronto para conduzir o combate contra os demônios. Se lhe vier uma imaginação, não se perturbe. Ainda que você veja uma espada que vai trespassá-lo, ou um fogo brilhante que vai queimá-lo, ou uma figura selvagem e feia, ou um dragão, ou seja lá o que for, não tenha medo nem recue. Resista, confesse o Senhor Jesus Cristo, e você verá facilmente a vitória chegar, com a fuga e a dispersão dos seus inimigos.

Conheça ainda esta armadilha que os demônios empregam muitas vezes. Eles se dividem em dois. Uns o assaltam, aparentemente para tentá-lo. Se você parece pedir por socorro, chegam outros como anjos, e aparentemente expulsam os primeiros, que fingem estar temerosos e fogem, para enganá-lo e fazê-lo adorar como se fossem santos anjos aqueles que aparentemente expulsaram os demônios.

Muitas vezes ainda eles irão lhe sugerir belos pensamentos e o incitarão a rezar contra os que parecem tentá-lo, ou o incitarão a resistir. Se você fizer isto, eles fingirão ter sido vencidos por você e fugirão, para que você se orgulhe e pense que progrediu e que agora é capaz de vencer os pensamentos e expulsar os demônios.


MÁXIMO O CAPSOCALYVITA


Máximo o Capsocalyvita – o “queimador de cabanas” – foi um destes monges do Monte Athos que, pelos frutos de sua humildade e de sua contemplação, contribuíram para fundar a renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV. Ele próprio não deixou nada escrito. Mas seu exemplo extremo – incendiando suas sucessivas moradias, como para chamar sobre si o Juízo final – impressionou seus contemporâneos a ponto de um deles, Teófano de Vatopedi, escrever um relato de sua vida, de onde foi extraído o diálogo que a Filocalia grega inseriu na sua conclusão.

Diálogo admirável, entre Máximo e um dos Padres da renovação hesiquiasta, Gregório o Sinaíta, e que não deixa de lembrar o relato de Filemon, no século VI, quando o movimento hesiquiasta estava se iniciando no deserto do Egito. Gregório coloca em primeiro lugar a questão crucial do carisma do Espírito Santo: a passagem da prece contínua ao arrebatamento do intelecto, ao êxtase, que ele chama de “transformação divina”. Máximo afirma peremptoriamente, contra os que negam o sobrenatural, a realidade desta passagem. Mas ele ao mesmo tempo recusa, não sem humor, toda ostentação do carisma. A ilusão tem seus sinais, e a graça os seus. O discernimento destes sinais é fundamental, pois somente ele permite a santidade sacrificial. Isto manifesta e confirma o testemunho discreto de Máximo, ao final e no próprio coração da perspectiva hesiquiasta: a atualidade desta.



 DA VIDA DE NOSSO SANTO PAI MÁXIMO CAPSOCALYVITA

O divino Gregório o Sinaíta encontrou um dia a são Máximo e conversou com ele. Entre outras coisas, disse-lhe: “Ó venerável Padre, diga-me, eu lhe peço: você tem consigo a prece intelectual?”.

Este sorriu e lhe respondeu: “Não lhe esconderei, venerável Padre, o milagre que a Mãe de Deus operou por mim. Eu sempre tive, desde a minha juventude, uma grande confiança na Mãe de Deus. Eu pedia a ela, chorando, que me concedesse a graça da prece intelectual. Um dia em que, conforme meu costume, tinha eu ido à igreja que lhe era consagrada, pedi-lhe mais uma vez com todo meu coração. E, no instante em que me abraçava ao seu santo ícone, senti no meu peito um calor, como uma chama que provinha do ícone, mas que não me queimava, mas me cobria como um orvalho, me enchia de doçura e colocava toda minha alma numa imensa mansuetude. Foi a partir deste momento, Padre, que meu coração começou a dizer de dentro de si próprio a prece, e que meu intelecto conheceu a doçura de se lembrar continuamente de Jesus e da Mãe de Deus. A partir de então, a prece nunca mais deixou meu coração. Perdoe-me”.

O divino Gregório lhe falou: “Diga-me, no momento em que você dizia a prece ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’, você sentiu alguma vez uma transformação divina, ou um êxtase, ou qualquer outro fruto do Espírito Santo?”.

O divino Máximo lhe respondeu: “Ó Padre, se eu me retirei para um lugar deserto, se sempre desejei a hesíquia, foi justamente para poder desfrutar daí em diante do fruto da prece, que é um imenso amor a Deus e um arrebatamento do intelecto no Senhor”.

São Gregório lhe disse: “Eu lhe peço, Padre, diga-me. Você tem consigo aquilo de que me fala?”. O divino Máximo sorriu outra vez e falou: “Dê-me de comer... não se inquiete com a ilusão”.

O divino Gregório falou-lhe então: “Possa eu ter em mim esta ilusão, como a sua. Mas eu lhe peço que me diga o que seu intelecto vê com seus próprios olhos quando está arrebatado em Deus; e se então lhe é possível elevar a prece simultaneamente ao coração”.

São Máximo lhe respondeu: “Não, ele não pode. Quando, por meio da prece, a graça do Espírito Santo chega ao homem, a prece cessa. Pois o intelecto está inteiramente dominado pela graça do Espírito Santo. Ele já não pode fazer nada por si mesmo, ele não é capaz de agir. Ele não se submete senão ao Espírito Santo, e vai para onde este deseja: para o espaço imaterial da luz de Deus, ou para alguma outra contemplação impossível de descrever, ou, muitas vezes, para escutar as palavras divinas. O Consolador, o Espírito Santo, conforta assim seus servidores, conforme lhe apraz. Ele concede sua graça segundo o que convém a cada um”.

“Podemos ver claramente o que eu digo se considerarmos os profetas e os apóstolos aos quais foi dado ter tais contemplações, mesmo que os homens se rissem deles e os considerassem como perdidos e bêbados[70]. O profeta Isaías viu o Senhor sobre um trono elevado, e os serafins que o rodeavam[71]. Estevão, o primeiro mártir, viu os céus abertos e Jesus à direita do Pai[72]. Do mesmo modo, hoje em dia ainda é concedido aos servidores de Cristo ter estas visões. Alguns não acreditam nisto, e lhe negam qualquer realidade: acham que tudo não passa de ilusão, e consideram que quem tem estas visões está perdido. Eu fico admirado o quanto estes homens são endurecidos. Com a alma cegada, eles não creem naquilo que o próprio Deus, que não pode mentir, prometeu, pela boca do profeta Joel, conceder, quando disse: “Eu derramarei a graça de meu Espírito sobre todos os fiéis, sobre meus servos e servas[73]”. É esta graça que nos veio trazer nosso Senhor, que ele concede ainda hoje, e que concederá até o fim do mundo aos seus servidores fiéis, conforme prometido. Então, quando esta graça do Espírito Santo chega a alguém, ela não lhe mostra o que ele está acostumado a ver, ela não lhe mostra as coisas sensíveis deste mundo, mas lhe revela o que ele jamais viu, o que jamais imaginou. Então o intelecto deste homem recebe do Espírito Santo o ensinamento dos mais altos mistérios, dos mistérios ocultos que o olho corporal do homem não é capaz de ver, nem sua inteligência compreender por si própria, como disse o divino Paulo[74]”.

“Para compreender o modo pelo qual o intelecto pode ver os mistérios, considere o que vou lhe dizer. Enquanto está distante do fogo, a cera é sólida e pode ser segurada. Mas se você a coloca no fogo, ela se ilumina e queima numa chama, torna-se luz e se consome inteiramente no fogo. Ela não pode não se fundir no fogo, nem deixar de liquefazer. Da mesma forma, enquanto o intelecto do homem está só e não encontrou a Deus, ele só concebe aquilo que está em seu poder. Mas se ele se aproxima do fogo da Divindade e do Espírito Santo, daí por diante ele está totalmente sob o domínio da luz de Deus, tornando-se ele próprio luz, queimando na chama do Espírito Santo e fundindo-se sob os pensamentos divinos. Daí por diante lhe é impossível, no fogo da Divindade, conceber por si mesmo o que lhe é próprio e o que deseja conceber”.

O divino Gregório lhe disse então: “Existem coisas aparentadas a estas, mas que seriam da ordem da ilusão?”.

E o grande Máximo lhe respondeu: “Uns são os sinais da ilusão, outros os da graça. Pois o espírito maligno, o espírito da mentira, quando se aproxima do homem, perturba e exacerba o intelecto. Ele endurece e entenebrece o coração. Ele provoca a preguiça, o medo e o orgulho. Ele apavora os olhos. Ele faz ferver o cérebro e faz o corpo tremer. Ele revela em imaginação aos olhos do corpo uma luz que não é clara nem pura, mas vermelha. Ele coloca o intelecto fora de si e o torna demoníaco. Ele o força a dizer pela boca palavras blasfemas e maledicentes. Aquele que vê este espírito de ilusão passa a ficar a maior parte do tempo num espírito de irritação, cheio de cólera, ignorando a humildade, o verdadeiro luto e as lágrimas, vangloriando-se sempre daquilo que sabe, vaidoso. Sem a menor reserva, sem temor a Deus, ele vive continuamente com suas paixões. Acaba por sair totalmente de si e se perder por completo. Que o Senhor, por nossas orações, nos livre de tal ilusão!”.

“Quanto aos sinais da graça, ei-los aqui: quando a graça do Espírito Santo vem ao homem, ela reúne seu intelecto, concede que ele seja atento e humilde, traz consigo a lembrança da morte e dos pecados cometidos, do julgamento que virá e do castigo eterno. Ela enche sua alma de compunção. Ela o faz chorar e vestir luto. Ela torna seus olhos mansos e cheios de lágrimas. Quanto mais ela se aproxima do homem, mais ela apazigua sua alma, consolando-a com os santos sofrimentos de nosso Senhor Jesus Cristo e com seu infinito amor pelo homem. Ela suscita em seu intelecto as mais altas contemplações, as verdadeiras contemplações. Primeiramente, a contemplação do poder incompreensível de Deus: como, por uma só palavra, ele criou todo o universo e o levou do nada à existência. Depois, a contemplação do poder infinito por meio do qual ele mantém e governa tudo, colocando a tudo sob sua providência. Enfim, a contemplação do mistério da Santa Trindade e do insondável oceano do Ser divino. Quando o intelecto do homem é assim arrebatado pela luz divina, iluminado pelo esplendor do conhecimento de Deus, então seu coração se torna sereno e doce, ele traz os frutos do Espírito Santo, a alegria, a paz, a paciência, a bondade, a compaixão, o amor e a humildade[75]. E sua alma exulta, inefavelmente regozijada”.

São Gregório o Sinaíta, maravilhado, admirou o que tinha escutado e que lhe dissera o divino Máximo. E já não dizia que este era um homem, mas um anjo terrestre.


GREGÓRIO DE TESSALÔNICA


Este texto composto – tirado em particular dos escritos do patriarca Filoteu e de Simeão Metafraste – expõe em plena luz o desígnio dos editores da Filocalia grega, no final do século XVIII: deixar claro que a invocação do nome de Jesus – a prece contínua – é inerente à identidade cristã e diz respeito a todos os fiéis, independentemente de seu engajamento ou de seus encargos na Igreja. Acontece com a mensagem filocálica a mesma coisa que com o Evangelho: ela não pode ser reservada a alguns. Ela foi feita para todos.

É o que afirma aqui Gregório de Tessalônica (Gregório Palamas) ao velho Jó. E é o que confirma também a Vida de Constantino, o pai de Gregório, reportada pelo Patriarca Filoteu, e a Vida de Eudócimo, contada por Simeão Metafraste.

Assim a prece contínua verifica e orienta a vocação dos fiéis a recolher o intelecto no abismo do coração, e a unir sem confusão da vida que levam no século e a exigência evangélica: fechar as portas dos sentidos e pedir em segredo a graça do Pai das luzes. A abertura para o mundo é aí também tão completa quanto a consagração à interioridade orante. Este ultimíssimo texto constitui com toda justiça o “endereçamento” da antologia filocálica.



DA VIDA DE SÃO GREGÓRIO,
ARCEBISPO DE TESSALÔNICA

Que todos os Cristãos devem orar continuamente

Não se deve pensar, irmãos cristãos, que somente os sacerdotes e os monges têm o dever de orar continuamente, mas não os leigos. Não, não. Todos os cristãos têm em comum o dever de estar todo o tempo em oração.

O Patriarca de Constantinopla Filoteu escreveu na Vida de são Gregório de Tessalônica, que este tinha um amigo muito querido chamado Jó, um homem muito simples e muito virtuoso. Num dia em que o santo estava conversando com ele, falou-lhe da prece, dizendo que todo cristão devia simplesmente sempre se esforçar por orar, e orar continuamente, como ordenou o apóstolo Paulo a todos: “Orai sem cessar[76]”, e como disse o profeta Davi, embora tenha sido rei e encarregado de todos os negócios de seu reino: “Eu tenho sempre o Senhor diante de mim[77]”, ou seja: por meio da oração, em meu intelecto, eu vejo todo o tempo o Senhor diante de mim. Da mesma forma, Gregório o Teólogo ensinava a todos os cristãos que é preciso, na prece, lembrar-se do nome de Deus mais frequentemente do que se respira[78].

O santo falava destas coisas e de muitas outras a seu amigo Jó. E acrescentava que devemos obedecer às recomendações dos santos, e que não apenas devemos orar, nós mesmos, continuamente, como devemos ainda ensinar os demais, monges e leigos, sábios e ignorantes, homens, mulheres e crianças, e exortá-los a orar sempre. A coisa pareceu novidade ao velho Jó, e ele se pôs a contestar. Ele disse ao santo que a prece contínua era própria só aos ascetas e aos monges que viviam fora do mundo e de suas distrações, mas que era impossível que orassem sem cessar os que viviam no mundo e tinham tantos cuidados e afazeres. O santo lhe forneceu ainda outros testemunhos e provas irrefutáveis, mas o velho Jó não se deixou persuadir. Então o divino Gregório, para fugir da querela e da discussão, calou-se. Em seguida, cada qual entrou de volta para sua cela. Mais tarde, quando Jó orava sozinho em sua cela, um anjo do Senhor lhe apareceu, enviado por Deus que quer a salvação de todos os homens. O anjo reprovou-lhe haver contestado o que lhe dissera são Gregório e haver se oposto a ele em coisas que eram com toda evidência a fonte de salvação dos cristãos. Ordenou a ele em nome do Deus santo que daí por diante fosse mais atento e que evitasse dizer coisas contra uma obra tão útil à alma, pois ele estaria se opondo à própria vontade de Deus. Ele o proibiu de aceitar em si doravante qualquer pensamento contrário, e lhe pediu que considerasse as coisas conforme o que lhe havia dito o divino Gregório. Então o velho Jó, este homem simples, correu logo a ver o santo. Ele caiu a seus pés e lhe pediu perdão por ter se oposto a ele e por haver contestado suas palavras. E lhe revelou o que lhe havia dito o anjo do Senhor.

Veem, irmãos, que todos os cristãos, do menor ao maior, têm em comum o dever de orar continuamente, de dizer a prece intelectual ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’, e de acostumar seu intelecto e seu coração a dizê-la sem cessar? Considerem o quanto esta prece agrada a Deus e quanto benefício ela nos traz, uma vez que, em sua extrema misericórdia, ele enviou um anjo celeste para no-la revelar, para que não tivéssemos mais a respeito nenhuma dúvida?
Mas que dizem os homens que vivem no mundo? “Estamos nomeio de tantos cuidados e afazeres... Como é possível orar sem cessar?”.

Eu lhes respondo: Deus não nos pede nada impossível. Ele só nos ordenou aquilo que sempre esteve em nosso poder executar. Todo homem que, esforçando-se, busca a salvação de sua alma, é capaz de atingir a prece contínua. Pois se a coisa fosse impossível, ela o seria para todos os leigos, e não encontraríamos no mundo tantos homens que a obtiveram. O pai de são Gregório é apenas um exemplo entre muitos. Este homem admirável, chamado Constantino, trabalhava no palácio do rei. Ele era chamado de pai e mestre do rei Andrônico. Ele se ocupava diariamente dos negócios reais, sem falar dos assuntos de sua própria casa, pois era muito rico, tinha muitas propriedades e servidores, além de sua esposa e filhos. Apesar de tudo, ele jamais se separava de Deus. Ele permanecia tão voltado para a prece intelectual contínua que muitas vezes esquecia o que lhe dissera o rei e os ministros do palácio a propósito dos assuntos do reino, e era obrigado a perguntar reiteradamente sobre os mesmos assuntos. Alguns ministros, que ignoravam a causa deste comportamento, ficavam contrariados e lhe reprovavam por esquecer tão depressa e por perturbar o rei repetindo as questões. Mas o rei, que conheci a causa, o defendia dizendo: “Constantino, este homem feliz, tem seus próprios pensamentos. E eles o impedem de estar atento aos assuntos provisórios e vãos de que falamos nós. Mas sua inteligência está ligada ao que é verdadeiro, às coisas do céu, e assim ele esquece das coisas terrestres. Pois toda a sua atenção está na prece, e voltada para Deus”.

Como nos conta o santo Patriarca Filoteu, Constantino era assim venerado e amado pelo rei e por todos os grandes e os ministros do reino, assim como era amado por Deus a ponto de lhe ter sido concedido fazer alguns milagres. São Filoteu, na vida de são Gregório, o filho de Constantino, conta que um dia este embarcara com toda sua família para ir a Gálata ver um anacoreta que lá vivia em estado de hesíquia, e receber sua bênção. Já em viagem, ele perguntou aos seus servidores se haviam trazido algum alimento para oferecer ao abade. Estes responderam-lhe que, na pressa, haviam se esquecido e que não trouxeram nada. Este homem bendito ficou um pouco entristecido, mas não disse nada. Ele simplesmente foi até aproa do barco, colocou a mão na água e, em sua prece intelectual silenciosa, pediu a Deus, o mestre do mar, que lhe enviasse um peixe. E pouco depois – ó obras maravilhosas, Cristo Rei, pelas quais, paradoxalmente, você glorifica seus servidores! – ele retirou a mão do mar, trazendo um grande peixe que atirou ao barco diante de seus servidores, dizendo: “O Senhor pensou em nós e em seu servidor, o abade, e lhe enviou algo para comer.” Veem, irmãos, com quanto glória Jesus Cristo glorifica seus servidores que estão sempre com ele e que invocam continuamente seu nome santo e dulcíssimo?

Da mesma forma Eudócimo, este homem justo e santo, não morava também ele em Constantinopla? Não vivia ele no palácio do rei, misturado aos negócios do reino? Não participava ele da comitiva do rei e dos ministros do palácio, no meio dos assuntos e das discussões? Malgrado tudo, a prece intelectual jamais o abandonava, como nos reporta Simeão Metafrastre no relato de sua vida. Assim, ainda que se encontrasse no mundo e em meio às coisas do mundo, o três vezes bem-aventurado levava verdadeiramente uma vida angélica acima do mundo, e o Deus que recompensa lhe concedeu ter um fim divino. Muitos outros ainda, inumeráveis, viveram da mesma maneira suas vidas no mundo e conseguiram se dedicar a esta prece intelectual salutar, como podemos ver nos relatos de suas vidas.

Irmãos cristãos, eu lhes peço então, com o divino Crisóstomo, pela salvação de suas almas, não negligenciem esta obra da prece. Imitem aqueles de quem lhes falei. E, tanto quanto possível, sigam-nos. Se a coisa lhes parecer difícil no começo, estejam seguros e certos, como se viesse do próprio Deus que domina o universo, que o próprio nome de nosso Senhor Jesus Cristo, invocado por nós a cada dia e continuamente, aplainará todas as dificuldades, e que, com o tempo, quando nos tenhamos acostumado com este nome, quando formos cumulados de doçura nele, saberemos por experiência que sua invocação contínua não é nem impossível nem difícil, mas possível e fácil. É por isso que o divino Paulo, que, melhor do que nós, sabia o grande bem que proporciona esta prece, nos exortou a orar sem cessar[79].

Ora, ele não quis nos recomendar uma coisa difícil e impossível, que não pudéssemos fazer; nós o teríamos necessariamente desobedecido e transgredido sua ordem, e assim estaríamos condenados. Mas o objetivo do Apóstolo, ao dizer “Orem sem cessar” era de que oremos com nosso intelecto, coisa que é sempre possível fazer. Quando trabalhamos com as mãos, quando caminhamos, quando nos sentamos, quando comemos ou bebemos, sempre podemos orar com nosso intelecto e trazer conosco uma prece que seja verdadeira e que agrade a Deus. Podemos trabalhar com o corpo e orar com a alma. O homem exterior pode cumprir com todas as tarefas corporais enquanto o homem interior está inteiramente consagrado à adoração a Deus, trazendo consigo sempre esta obra espiritual da prece do intelecto. É o que nos pede Jesus, o Deus Homem, quando diz no Evangelho: “Quando você orar, entre em sua câmara, feche a porta e ore a seu Pai em segredo[80].” A câmara da alma é o corpo. As portas de nosso ser são os cinco sentidos. A alma penetra em sua câmara quando o intelecto cessa de ir e vir nas coisas do mundo e se coloca no centro de nosso coração. E os sentidos permanecem fechados quando não os deixamos ligados às coisas sensíveis e visíveis. Assim, nosso intelecto se vê liberado de toda atividade do mundo. Por meio da prece intelectual secreta, ele se une a Deus, seu Pai. O mesmo Cristo disse também: “E seu Pai que está no secreto lhe concederá a recompensa[81]”. Deus, que conhece os segredos dos corações, vê a prece intelectual e a recompensa concedendo grandes carismas visíveis.

Pois esta prece intelectual é a verdadeira prece, a prece perfeita. Ela enche a alma da graça divina e dos carismas o Espírito, como o perfume cujo odor, num vidro, é tanto mais forte quanto mais fechado. O mesmo acontece com a oração. Quanto mais você a encerrar em seu coração, mais ela encherá o coração de graça divina. Bem-aventurados os que se dedicam a esta obra celeste. Pois por meio dela eles superam todas as tentações dos demônios malignos, como Davi venceu o orgulhoso Golias[82]; por meio dela eles extinguiram os desejos desordenados da carne, como as três crianças que extinguiram as chamas da fornalha[83]; com ela eles apaziguaram as paixões, como Daniel acalmou os leões selvagens[84]; por meio dela eles fizeram descer o orvalho do Espírito Santo aos corações, como Elias fez descer a chuva sobre o Carmelo[85]. É esta prece intelectual que sobe até o trono de Deus e é guardada em cálices de ouro, de onde se eleva seu perfume até o Senhor, como diz João o Teólogo no Apocalipse: “Os vinte e quatro anciãos se prosternavam diante do Cordeiro com suas cítaras e com cálices de ouro cheios de perfume, que são as preces dos santos[86]”. Esta prece intelectual é uma luz que ilumina sempre a alma do homem e aquece seu coração nas chamas do amor a Deus. Ela é uma corrente que une Deus ao homem.

Ó graça incomparável da prece intelectual! Ela permite ao homem estar sempre em diálogo com Deus. Ó coisa verdadeiramente maravilhosa! Você está com os homens por meio do corpo, e com Deus por intermédio do intelecto. Os anjos não possuem uma voz material, mas eles não cessam de glorificar a Deus em seu intelecto. Esta é a sua obra, e a ela eles se consagram por toda sua vida. Também você, irmão, quando penetrar na câmara e fechar a porta, ou seja, quando seu intelecto não se dispersar mais aqui e ali, mas entrar em seu coração, quando seus sentidos permanecerem fechados e não mais se ligarem às coisas do mundo, quando você puder assim orar sempre com sua inteligência, você se tornará semelhante aos santos anjos, e seu Pai, que vê a prece escondida que você lhe oferece no segredo de seu coração lhe concederá a recompensa de grandes carismas espirituais. E o que pode você querer mais do que estar sempre unido a Deus pelo intelecto, como dissemos, e continuamente conversar com ele, sem o que, nem aqui nem em outra vida, homem algum jamais poderá ser bem-aventurado?

Portanto, irmão, seja você quem for, quando você tomar em suas mãos este livro e o ler pelo bem de sua alma, eu lhe rogo, lembre-se de invocar a Deus, de dizer “Kyrie eleison” pela alma pecadora daquele que se esforçou por compor este livro e daquele que o publicou. Eles têm grande necessidade de sua oração, para que a piedade divina venha sobre suas almas, como sobre a sua também. Assim seja.




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COM ESTE TEXTO
ENCERRA-SE A COLETÂNEA
DA FILOCALIA GREGA


Que a paz de Cristo esteja sobre o leitor.



[1] Cf. João 14: 29.
[2] I Coríntios 12: 3.
[3] I João 4: 2.
[4] Mateus 16: 15-16.
[5] Cf. Mateus 16: 17.
[6] Cf. Mateus 18: 16.
[7] I Coríntios 15: 10.
[8] João 21: 16.
[9] Cf. Marcos 10: 47.
[10] Cf. Mateus 22: 40; Romanos 13: 10.
[11] Gênesis 19: 24.
[12] Salmo 109 (110): 1.
[13] Lucas 1: 31.
[14] Atos 2: 36
[15] Salmo 114 (115): 6.
[16] Ver Marcos o Monge, Tratados espirituais e teológicos, SO 41.
[17] Marcos o Asceta, Sobre a lei espiritual 69.
[18] Dos que pensam ser justificados 64.
[19] Cf. Mateus 10: 47.
[20] Cf. João 9: 38; Sobre a lei espiritual 13-14.
[21] Gregório de Nazianze, Discurso XXXIX, 8.
[22] Provérbios 1: 7.
[23] Cf. Salmo 33 (34): 6.
[24] João 14: 12.
[25] Cf. II Tessalonicenses 3: 3.
[26] Cf. Salmo 33 (34): 6.
[27] Cf. Mateus 7: 8.
[28] Cf. Lucas 11: 13.
[29] Cf. Mateus 7: 9.
[30] Cf. II Timóteo 4: 8.
[31] Cf. Mateus 15: 14.
[32] Cf. Mateus 7: 12.
[33] Cf. Salmo 33 (34): 9.
[34] Mateus 17: 4.
[35] Romanos 8: 35.
[36] Cf. Mateus 15: 19-20.
[37] Cf. Mateus 23: 26.
[38] Eclesiastes 10: 4.
[39] Na realidade trata-se de Eclesiastes 10: 4.
[40] Lucas 12: 29.
[41] Mateus 5: 3.
[42] Cf. Mateus 5: 8.
[43] Cf. Mateus 5: 3.
[44] Cf. Mateus 5: 4.
[45] Cf. Mateus 5: 5.
[46] Cf. Mateus 5: 6.
[47] Sentenças dos Padres do Deserto, Moisés 6.
[48] A escada santa, XXVIII, 35.
[49] Cf. Mateus 15: 19.
[50] Cf. Romanos 11: 16.
[51] Cf. Romanos 12: 12.
[52] Cf. Mateus 10: 12.
[53] Cf. I Coríntios 12: 3.
[54] João Clímaco, A escada santa XX, 7.
[55] Cf. Deuteronômio 4: 24.
[56] Cf. Lucas 18: 7.
[57] Cf. Salmo 50 (51): 19.
[58] João Clímaco, A escada santa XXVII, 52.
[59] João Clímaco, A escada santa XXVII, 92.
[60] Cf. Efésios 2: 14.
[61] Cf. I Coríntios 7: 24.
[62] Cf. Romanos 14: 2.
[63] Ezequiel 4: 16.
[64] O monge independente, ou idiorritmo, é aquele que não tem guia espiritual e que age segundo sua própria conveniência.
[65] Cf. Mateus 22: 38.
[66] Cf. Lucas 12: 49.
[67] Cf. I Timóteo 2: 4.
[68] Cf. I Reis 19: 11-12.
[69] Cf. II Coríntios 11: 14.
[70] Cf. Atos 2: 13.
[71] Cf. Isaías 6: 2.
[72] Cf. Atos 7: 56.
[73] Joel 3: 2.
[74] Cf. I Coríntios 2: 9.
[75] Cf. Gálatas 5: 22.
[76] 1 Tessalonicenses 5: 17.
[77] Salmo 15 (16): 8.
[78] Gregório de Nazianze, Discurso XXVII, 4.
[79] Cf. 1 Tessalonicenses 5: 17.
[80] Mateus 6: 6.
[81] Ibid.
[82] Cf. I Samuel 17: 51.
[83] Cf. Daniel 3: 24-25.
[84] Cf. Daniel 6: 18-19.
[85] Cf. I Reis 18: 45.
[86] Apocalipse 5: 8.

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